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PLATAFORMA DIGITAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
INDÍCIOS
Sumário
1-Resultou provado que o estafeta exerce a sua actividade no âmbito de plataforma digital desde Outubro de 2020. 2- Atenta a data do início do contrato, na qualificação do mesmo, não cumpre aplicar o disposto no art. 12º-A do CT. 3- Não resultaram provados os factos índices da presunção de laboralidade, tendo, antes, resultado provado que o estafeta exercia a sua actividade com a faculdade de decidir quando se liga e desliga da Plataforma e de rejeitar as ofertas de entrega que entender. 4- Não se provou quantos dias e horas o estafeta trabalhou e quantos serviços prestou, por semana, bem como os rendimentos semanais auferidos. 5- Os factos provados são, assim, insuficientes para concluirmos que o estafeta estava sujeito ao poder de direcção da plataforma digital.
Texto Integral
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa:
I-Relatório
O Ministério Público instaurou a presente ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra “UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL Lda.”, pedindo que seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre o trabalhador AA e a R., com reporte a 1 de Outubro de 2020.
Para tanto alegou, em síntese:
- Desde Outubro de 2020 que entre a R. e AA existe uma relação laboral já que este integra a estrutura organizativa da R. e recebe, por semana, uma quantia mensal entre €150 e €300;
- A plataforma determina os procedimentos que o estafeta tem de seguir e utiliza o sistema da geolocalização;
-A R. não permite que o estafeta partilhe as credenciais associadas à conta;
- A R. pode restringir o seu acesso à plataforma ou mesmo desactivar a conta em definitivo;
- AA só trabalha para a R.;
- A aplicação informática da R. é o instrumento de trabalho utilizado.
A R. contestou a acção, por excepção e por impugnação.
Em sede de excepção, a R. invocou a anulabilidade da participação efectuada pela ACT aos Serviços do Ministério Público.
Em sede de impugnação, a R. negou a existência de ordens, de poder disciplinar, de horário e de controle sobre o prestador da actividade e pugnou pela autonomia do estafeta.
Foi proferido despacho saneador. A excepção dilatória invocada pela R. foi julgada improcedente.
Procedeu-se a julgamento e foi acordada a matéria de facto.
O Tribunal a quo proferiu sentença.
Foram considerados provados os seguintes factos:
1. A Ré é uma sociedade que tem como objeto social: “prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos; Atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com restauração; Consultoria, conceção e produção de publicidade e marketing; Aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais”;
2. A Ré é uma plataforma de prestação de serviços de entregas on line, nomeadamente de refeições, através de uma aplicação informática criada e desenvolvida para tal efeito, efetuando a mencionada plataforma a gestão de um negócio que estabelece a ligação entre o estafeta e o cliente, assegurando ainda as necessárias parcerias com empresas do setor da restauração e do comércio;
3. Para a execução das referidas atividades, a Ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet – atua como intermediária na entrega dos produtos encomendados;
4. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a Ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito;
5. As funções desempenhadas pelo estafeta consistem na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), transportando esses produtos até ao cliente final.
6. Assim, a Ré atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma:
- Os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo);
- Os utilizadores estafetas; e
- Os utilizadores clientes;
7. A atividade da Ré inclui:
- A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e
- A intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas;
8. AA, com o número de contribuinte …, beneficiário da segurança social com o nº …, titular da Autorização de Residência nº …, válida até …7.2025, com residência na … Lisboa, titular do endereço electrónico … e do telefone … presta a referida atividade de estafeta para a Ré plataforma digital UBER EATS desde outubro de 2020;
9. AA realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;
10. No decurso de uma ação inspetiva realizada pela ACT no dia 4/10/2023, pelas 12H28, foi verificado que AA se encontrava em frente à entrada do Atrium… Lisboa, a aguardar a preparação para recolha de pedido efetuado por cliente na aplicação móvel Uber Eats e posterior entrega na morada indicada pelo cliente, tendo-se apurado que desenvolve a sua atividade da seguinte forma:
- O estafeta estava registado na plataforma digital UBER EATS, como “Parceiro de Entregas Independente”, através da criação de uma conta na plataforma, na aplicação disponibilizada na internet para o efeito;
- Visando o registo em causa, e de acordo com exigência da aplicação UBER EATS, foram submetidos pelo estafeta na referida aplicação os seus documentos de identificação, bem como o certificado de registo criminal, o comprovativo de abertura de atividade como trabalhador independente, entre outros;
- Foi ainda associado à conta do estafeta o meio de transporte em que este se desloca, no caso, a bicicleta, conforme requerido pela plataforma;
- O estafeta, para finalizar o registo, ficou ainda obrigado a aderir aos termos e condições aplicáveis constantes do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”;
11. Embora a UBER EATS não mantenha um suporte em papel da adesão aos termos e condições aplicáveis, tem um registo eletrónico de adesão aos mesmos com data e hora;
12. AA realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;
13. Para iniciar a prestação do serviço na plataforma UBER EATS, AA teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter atualizada e ativa sendo que, uma vez ativada a conta, é iniciada a atividade como estafeta e o início da sessão na plataforma é feito através das credenciais de identificação do estafeta (o email utilizado …) e de uma palavra passe, sendo que, para receber os pedidos, coloca-se em estado de disponibilidade;
14. Para se poder registar e exercer as referidas funções de estafeta para a Ré, AA tinha que ter atividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens;
15. Os prestadores de atividade registados na Plataforma decidem livremente o local onde prestam a sua atividade, ou seja, se prestam a sua atividade numa determinada zona da cidade ou até mesmo do país.
16. Podem inclusivamente bloquear comerciantes e/ou clientes com quem não desejam contactar.
17. A Plataforma não dá qualquer tipo de indicação aos prestadores de atividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas, podendo mudar de localidade quando entenderem, desde que previamente efetuem o registo de mudança de área na plataforma e o registo fique aceite e efetuado por parte da UBER;
18. A plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efetua por entrega, podendo, no entanto, o estafeta “filtrar", aceitando ou não os pedidos que aparecem no ecrã, através do preço por quilómetro (designado de “Taxa Mínima por Quilómetro”)";
19. Com efeito, apesar de o estafeta poder definir na aplicação o valor mínimo por quilómetro, ou seja, o montante mínimo que aceita para proceder à entrega de cada pedido, não existe qualquer negociação entre o prestador e a plataforma quanto aos critérios que estão subjacentes à definição dos valores;
20. Não existe também qualquer intervenção do estafeta no processo de negociação de preços entre a plataforma e os parceiros de negócio, nomeadamente, restaurantes e estabelecimentos comerciais;
21. Cada serviço tem o seu valor definido que o estafeta vê na plataforma e é livre de aceitar, ou não, mas apenas por esse valor;
22. Na Plataforma, os prestadores de atividade dispõem de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”;
23. Desta forma, os prestadores de atividade podem ajustar o seu preço por quilómetro sempre que quiserem sem o baixar e assim não perder qualquer oferta de entrega que possa surgir na Plataforma;
24. Os prestadores de atividade escolhem quando são pagos, através da ferramenta "Cashout", tendo o estafeta em apreço escolhido ser pago semanalmente. Apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através do Cash Out é que os mesmos são pagos semanalmente;
25. O estafeta é pago por transferência bancária e fica disponível na plataforma o registo de todos os pagamentos recebidos ao longo de um ano, assim como o comprovativo da transferência.
26. O estafeta recebe os valores das entregas que efetuar, podendo aceitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo;
27. A plataforma exige que a prestação da atividade do estafeta seja efetuada fazendo uso de uma mochila térmica para transporte dos pedidos UBER EATS, sendo que, para a plataforma validar o perfil no ato de criação da conta o estafeta tem de submeter prova de detenção da mochila de transporte, a qual deve cumprir requisitos mínimos quanto às dimensões – 44 cm de largura x 35 cm de profundidade x 40 cm de altura - assim como quanto ao estado de conservação e limpeza;
28. O estafeta não está obrigado a usar roupa distintiva da marca UBER EATS nem a apresentar-se em conformidade com qualquer critério que não seja o pessoal;
29. A partir do momento em que o estafeta AA faz login na aplicação e passa a estar online, a plataforma, ora Ré, fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização do dispositivo que tem de estar obrigatoriamente ligado para que a aplicação funcione e permita ao estafeta receber pedidos de entrega, sendo, pois, indispensável ao exercício da atividade e à atribuição dos pedidos dos clientes;
30. O GPS é uma ferramenta necessária para o funcionamento da Plataforma e para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;
31. A localização é um dos fatores relevantes para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;
32. O GPS permite aos clientes acompanhar a sua encomenda a partir do momento em que o estafeta a recolhe;
33. O Estafeta é livre de escolher o percurso que entender para fazer cada entrega, assim como o tempo que cada entrega possa levar escolhendo o sistema de GPS que entende para efetuar o percurso ou até nem o utilizar;
34. A plataforma tem a possibilidade de recolher a classificação efetuada ao estafeta, quer pelo cliente quer pelo comerciante/restaurante, através de meios eletrónicos inseridos na aplicação;
35. O estafeta é livre para escolher o seu horário;
36. É livre para decidir quando se liga e desliga da Plataforma;
37. E durante quanto tempo permanece ligado;
38. Sendo ainda livre para rejeitar e aceitar a ofertas de entrega que entender
39. O que resulta na impossibilidade de a Ré saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas.
40. Não são raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada na Plataforma ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega;
41. O Prestador de Atividade pode passar, dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sem que daí resulte qualquer consequência para si.
42. E a sua conta continua ativa;
43. O estabelecimento, o tipo de pedido, o valor do serviço, o cliente final e a morada de entrega são indicados ao estafeta pela plataforma UBER EATS através da referida aplicação que deve consultar no telemóvel;
44. A prática de partilha de contas, por motivos de segurança e conformidade legal, não é permitida na Plataforma, conforme decorre da cláusula 5.n. dos termos e condições aplicáveis;
45. Ou seja, o estafeta não pode permitir que terceiros utilizem a sua conta, devendo manter os seus detalhes de login confidenciais a todo o tempo;
46. Só quando o estafeta efetua o login na plataforma é que pode aceder às ofertas de entregas disponíveis;
47. A plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta ao vincular-se aos termos do contrato de utilização da aplicação, designadamente, se permitir a utilização de conta por terceiros não autorizados, ou por comportamentos fraudulentos";
48. Conforme decorre da cláusula 11 e da cláusula 16.b. dos termos e condições aplicáveis a Ré tem o direito de restringir o acesso à Plataforma e a resolver o contrato com o prestador de serviços nas seguintes situações:
a) Quando a Ré está a cumprir uma obrigação legal;
b) Quando o prestador de atividade não cumpre as suas obrigações contratuais;
c) Quando está em causa a segurança dos clientes; e
d) Por motivos de autoproteção (situações de fraude)
49. O sinal de GPS deve encontrar-se ativo entre os pontos de recolha e de entrega, de outro modo, o bom funcionamento da aplicação e o próprio serviço ficam comprometidos;
50. O estafeta autoriza a UBER a aceder à localização do seu dispositivo quando está logado;
51. Aliás, se os estafetas não tiverem o GPS ligado a aplicação não funciona para entregas, uma vez que é o GPS que permite à plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha;
52. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido podem introduzir dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega;
53. A Plataforma faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos), clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha, e estafetas (como o Prestador de Atividade em causa na presente ação) que desejam fazer entregas aos clientes;
54. A aplicação e o site da Uber Eats Portugal (ora ré) são pertença da Uber Eats dos Estados Unidos;
55. A Ré contratou um seguro de responsabilidade civil com a Allianz um seguro de proteção de parceiros de entrega que abrange o Prestador de Atividade.";
56. Após aceitar a entrega o estafeta não se pode fazer substituir por ninguém.
57. Antes de aceitar uma entrega existe na plataforma a possibilidade de o estafeta designar um substituto, o qual tem que estar registado na Uber com conta ativa e como substituto, para que este aceite os pedidos que entre ambos entenderem, sendo que a ré procederá ao pagamento ao estafeta substituído.
58. O estafeta pode prestar atividade a terceiros, incluindo via outra plataforma. A Plataforma é uma das muitas ferramentas que eles têm para realizar entregas. Os prestadores de atividade podem ter sua própria clientela e atendê-la com liberdade e sem necessidade de comunicar isso à Uber Eats. Eles também podem usar outras plataformas concorrentes, incluindo ao mesmo tempo que estão a prestar a sua atividade na Plataforma. Cabe esclarecer que os prestadores de atividade não estão adstritos a qualquer obrigação de exclusividade, podendo livremente escolher por prestar a sua atividade através de outras plataformas digitais ou qualquer outro meio que escolham, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.
59. Para se registarem na Plataforma, os prestadores de atividade não estão sujeitos a qualquer tipo de processo de recrutamento, no sentido de não haver análise de CV, entrevistas ou qualquer tipo de processo de seleção, exceto o preenchimento dos requisitos contratuais já mencionados supra;
60. A R. não faz uso do feedback dado pelos clientes a cada entrega do estafeta, apenas lhe atribuindo pontos por cada entrega que efetua para efeitos de descontos na aquisição de material diverso.
*
O Tribunal a quo julgou a acção improcedente e absolveu a R. do pedido.
*
O Ministério Público recorreu desta sentença e formulou as seguintes conclusões:
-A R, através da internet e de uma aplicação informática, recebe os pedidos dos utilizadores inscritos e organiza a forma de satisfazer esses pedidos, encaminhando-os para os estabelecimentos comerciais aderentes e atribuindo o trabalho de entrega dos produtos pedidos a estafetas que se encontram registados na aplicação;
-Faz a cobrança do valor do serviço ao utilizador final e efetuando os posteriores pagamentos do trabalho prestado pelo referido estafeta e do valor acordado com o parceiro comerciante;
-Pelo que é uma plataforma digital;
-De acordo com o artigo 12-A, do Código do Trabalho, presume-se a existência de contrato de trabalho “quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;
b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;
e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;
f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação”;
-Os estafetas, onde se integra o AA, prestam para a R a sua atividade, acima descrita, sob as suas ordens, direcção e fiscalização, pois:
- A R paga directamente ao AA, através de transferência bancária;
-O que tudo integra a presunção estabelecida no artigo 41, al a);
- É a R que determina as regras específica quanto à prestação da atividade por parte do estafeta;
- Os termos e condições de utilização da plataforma para os estafetas foram e estão predefinidos pela R;
-A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade do estafeta, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;
-A atuação do estafeta é controlada em tempo real através de GPS, ou seja, a localização exata do prestador de atividade é conhecida pela plataforma da R através do sistema de geolocalização;
-O que integra a presunção estabelecida no artigo 41, al b);
-A plataforma digital exerce o poder disciplinar sobre o prestador de atividade mediante a exclusão da possibilidade de realização de futuras atividades na plataforma através de suspensão ou desativação da conta, o que agora integra a presunção estabelecida no artigo 41 al e);
-A aplicação informática (App) da R é um instrumento de trabalho essencial
ao seu negócio e é utilizado pelos diferentes utilizadores da plataforma;
- Toda a atividade do estafeta é realizada com base nessa aplicação que o estafeta tem que instalar no seu telemóvel, aplicação essa que é propriedade da Glovoapp que é por si desenvolvida, suportada e mantida;
-O que por último integra a presunção estabelecida no artigo 41 al f);
-Ocorre que a R não ilidiu as referidas presunções;
-Na verdade, tem como fim a prestação de um serviço de recolha e entregas,
fixa o preço e as condições do pagamento do serviço, assim como as condições essenciais para a prestação do referido serviço;
-Os estafetas não dispõem de uma organização empresarial própria e autónoma, prestando os seus serviços enxertados na organização de trabalho da R, submetidos à sua direcção e organização, como demonstra o modo como estabelece os preços dos serviços de entrega;
-A prestação de trabalho do estafeta está sujeita a uma organização do trabalho determinada pela R que estabeleceu meios de controle do processo produtivo em tempo real que operam sobre a actividade e não apenas sobre o resultado final, mediante a gestão algorítmica do serviço e a possibilidade de conhecer constantemente a geolocalização dos estafetas, o que evidência a ocorrência do requisito da dependência e subordinação jurídica própria da relação laboral;
-Em suma, a atividade levada a cabo pelo estafeta AA, através da plataforma da Ré, reveste aquelas características previstas no supra citado artigo 12.º-A do Código do Trabalho, o que implica que se presuma a existência de um contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital;
-Assim, entendemos, com o devido respeito, que a decisão recorrida viola normas e princípios jurídicos que regem a matéria sub judice, designadamente o artigo 11.° e 12-A do Código do Trabalho;
Pelo exposto, deve a douta sentença ser substituída por outra que declare a existência de um contrato de trabalho entre AA e a Uber Eats Portugal, Unipessoal Lda.”, com reporte a 1 de outubro de 2020.
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A recorrida contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
1) A matéria de facto que resultou provada nos presentes autos não permite alcançar uma decisão distinta daquela que foi proferida pelo douto Tribunal a quo, sendo que as alegações em causa assentam maioritariamente em meros juízos opinativos
e conclusivos, sem qualquer sustentação fáctica.
2) Conforme se pode ler, designadamente, no sumário do acórdão datado de 04 de julho de 2018, processo n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1 (Relator: Chambel Mourisco), disponível em www.dgsi.pt, “a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que, estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes”.
3) Este em sido, aliás, o entendimento dos nossos Tribunais superiores, nomeadamente o Tribunal da Relação de Évora e o Tribunal da Relação de Guimarães, que já se pronunciaram relativamente a esta questão, concluindo pela inaplicabilidade da presunção de laboralidade prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho a relações cuja vigência tenha iniciado em data anterior a 1 de maio de 2023, como é o caso do estafeta visado na presente ação.
4) Em face do exposto, e percorrendo os factos provados, não se vislumbra que alguma das características previstas nas várias alíneas do indicado artigo 12.º esteja verificada. Vejamos:
5) Foi o prestador de atividade que escolheu a cidade onde querem prestar atividade e que escolhem o local onde aguardam o pedido e ainda que escolhem o caminho que os leva aos locais de recolha e de entrega que livremente aceitaram realizar -Factos Provados 15, 17 e 33.
6) Não se provou que os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados
pertençam à Recorrida.
7) Resultou provado (Factos Provados 35, 36, 37) que é o próprio prestador de atividade que escolhe quando se ligam à aplicação e, dentro desse período, escolhe os pedidos que quer fazer ou não, sendo ainda livre de estar desligado vários dias, semanas ou meses (Facto Provado 41) sem necessidade de apresentar qualquer justificação.
8) Não se provou que a Recorrida paga uma quantia certa com periodicidade aos estafetas, sendo que o estafetas pode resgatar o valor das entregas que concluiu a qualquer momento (Facto Provado 24).
9) Por fim, não se provou que os prestadores de atividade desempenhem quaisquer funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da Recorrida.
10) Assim, não se verifica a presunção da existência de contrato de trabalho, pelo que, sem necessidade de maiores considerações e desenvolvimentos, aplicando-se o artigo 12.º do Código do Trabalho, deve a sentença recorrida ser mantida, não se reconhecendo a existência de um contrato de trabalho.
11) Aplicando-se a presunção de laboralidade do artigo 12.º-A do Código do
Trabalho, como entendeu o Tribunal a quo, defende o Recorrente que os factos que resultaram provados permitem funcionar a presunção de laboralidade consagrada pelo legislador no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, nomeadamente por se verificarem as características previstas nas alíneas a), b), c), e) e f). Todavia, tal entendimento esta errado:
12) A alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho refere-se a “retribuição” e não a taxa de entrega ou preço do serviço de entrega. Trata-se de um conceito definido no Código do Trabalho, no artigo 258.º, e que consiste numa contrapartida pela trabalho/atividade prestada.
13) Como entendeu o Tribunal a quo, não só a Recorrida não fixa unilateralmente a retribuição, como não determina limites mínimos e máximos da taxa de entrega.
14) O elemento copulativo «e» inserido pelo legislador na alínea a) reconduz-nos à convicção de que pretendeu que tal pressuposto se baseasse na inflexibilidade da componente remuneração, ou seja, que esta fosse fixada com a intervenção exclusiva da plataforma, pelo menos em termos de moldura de retribuição, e não numa flexibilidade mitigada, em que o estafeta tem o poder de impor limites mínimos, como sucede na relação em apreço – Facto Provado 18.
15) Como aponta o douto Tribunal a quo “Não é a plataforma que estabelece o limite mínimo de cada entrega mas sim o próprio estafeta que o faz. Ele é que fixa o seu valor mínimo. No entanto, mesmo depois de o fazer ele pode aceitar algo que esteja aquém desse valor”.
16) Para além disso, o prestador de atividade tem sempre a possibilidade de recusar as propostas que lhe são apresentadas (Facto Provado 38), o que não seria possível se o mesmo não tivesse qualquer palavra a dizer relativamente ao preço que é proposto.
17) Na verdade, a possibilidade expressa de recusar as propostas apresentadas, independentemente do motivo e sem que qualquer consequência negativa daí advenha não pode deixar de ser vista como uma forma de negociação, na medida em que, com essa recusa, o prestador da atividade não está a aceitar o preço proposto e, assim, está a exigir um preço mais elevado para os serviços que presta, nomeadamente por não concordar com o preço originalmente proposto.
18) A retribuição por cada serviço não é, pois, fixada unilateralmente pela Recorrida, antes é proposta por esta ao prestador da atividade, tendo em conta o preço mínimo por quilómetro por si definido, sendo que o estafeta pode, ainda assim, recusá-la. Trata-se de uma proposta de serviço, não de uma imposição da sua prática.
19) Assim, dificilmente se poderá concluir pela fixação da retribuição – como aconteceria se o pagamento do serviço fosse apresentado depois de ele ser realizado ou se o estafeta não pudesse recusar a sua realização com a inerente imposição do seu pagamento.
20) Podendo o estafeta recusar o serviço (já se está no domínio da possibilidade de uma negociação) e, portanto, não se pode concluir que a Recorrida fixe a retribuição.
21) No que concerne ao exercício do poder de direção e da determinação de regras específicas quanto à prestação da atividade e ao controlo da prestação da atividade, conclui o Recorrente, de forma pouco clara e apenas fazendo referência à alínea b) do artigo 12.º-A do Código d Trabalho, que os “termos e condições de utilização da plataforma para os estafetas foram e estão predefinidos pela Ré” e que a “plataforma digital controla estafeta em tempo real através de GPS e verifica a qualidade da atividade prestada através de meios eletrónicos”.
22) É certo que existem regras para que os prestadores de atividade iniciem o seu relacionamento com a Recorrida, como a forma de inscrição na plataforma. Não menos certo é que não se pode falar, nessa fase, de qualquer prestação de atividade, pelo que tais regras não têm a virtualidade de fazer funcionar a presunção.
23) Note-se que a alínea b) do art. 12.º-A do Código do Trabalho se refere expressamente a “regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do
prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade” e não a regras específicas para o acesso à prestação da atividade na plataforma, diferença que pode passar despercebida numa leitura menos atenta e que deve, por isso, ser salientada.
24) Por conseguinte, assumir a definição de regras para registo na plataforma como uma regra específica quanto à prestação da atividade não pode deixar de ser vista como uma interpretação demasiado extensiva, sem qualquer base legal ou interpretativa que o sustente.
25) A necessidade de registo não é (nem pode ser) uma regra quanto à prestação da atividade, antes sim um passo essencial para aceder a qualquer tipo de plataforma ou aplicação informática.
26) Por outro lado, a Recorrida não compreende a referência ao controlo em tempo real através de GPS, uma vez que do elenco de factos provados não se vislumbra um único facto passível de concluir por qualquer controlo por parte da Recorrida, antes pelo contrário.
27) De facto, e como acertadamente aponta o Tribunal a quo, o estafeta “escolhe o modo como executa o seu trabalho. Este escolhe de forma totalmente livre o percurso” (Facto Provado 33), bem assim, a utilização de GPS “não importa controlo algum pela R. pois esta nem sequer pode interferir no percurso, nem impor que seja seguido o do GPS”.
28) Em consonância, ficou ainda provado que os prestadores de atividade podem utilizar os sistemas de navegação GPS que preferirem utilizar ou até mesmo não utilizar nenhum sistema de navegação GPS (Facto Provado 33), pelo que não é possível concluir pelo controlo ou orientação por parte da Recorrida na forma como os estafetas se apresentam ou como prestam a sua atividade – tal conclusão mostra-se totalmente ilógica com os factos provados em causa.
29) Note-se que o legislador não quis estabelecer a verificação do indício com a simples existência de um sistema de geolocalização, sendo que do elenco dos factos provados não constam sequer factos que permitam concluir que a Sr. AA alguma vez tenha sido sujeito a controlo e supervisão através do GPS, antes pelo contrário.
30) Quanto à alegada verificação a qualidade da atividade prestada através de meios eletrónicos resultou provado que, apesar de poder recolher a classificação efetuada ao estafeta, a Recorrida não faz qualquer uso da mesma (Facto Provado 60), ou seja, não resultou provado que exista qualquer avaliação, vinculativa ou não, por parte da Recorrida sobre o prestador de atividade visado.
31) Como aponta o Tribunal a quo aquando da análise da característica prevista na alínea b) do artigo 12.º-A, não foram alegados quaisquer factos pelo Ministério Público que permitam sustentar o poder direção da Recorrida perante o estafeta.
32) O invocado pelo Recorrente a este propósito não faz referência a uma única regra específica que permita aferir direção ou controlo relativamente à apresentação, conduta ou prestação de atividade do prestador de atividade.
33) De facto, a factualidade relevante para este efeito deve consistir na prova e demonstração de factos concretos de onde resulte, no fundo, o controlo e/ou o poder de direção, mas da análise dos presentes autos verifica-se que não foi alegado nem apurado um único facto concreto que permita concluir pela verificação destas características, nem os factos provados conseguem cumprir esse desiderato.
34) Não ficou, assim, demonstrada essa prova de direção ou controlo, razão pela qual se terá de concluir pela não verificação desta característica, como bem concluiu o douto Tribunal a quo.
35) Entende o Recorrente que o “a plataforma digital exerce o poder disciplinar sobre o prestador de atividade mediante a exclusão da possibilidade de realização de futuras atividades na plataforma através de suspensão ou desativação da conta”.
36) No entanto, e à semelhança do que faz em todas as demais alíneas que considera verificadas, o Recorrente não indica um único facto concreto que permita suportar a sua conclusão, o que, diga-se, torna difícil a tarefa de resposta da Recorrida, bem como a de sindicância pelo Tribunal ad quem.
37) Sem prejuízo, cumpre notar, a este propósito, que a alínea e) do artigo 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho se reporta ao exercício de poderes laborais (poder disciplinar) sobre o prestador de atividade, sendo que o poder disciplinar visa sancionar o trabalhador pela violação de deveres laborais.
38) O poder disciplinar corresponde a um poder punitivo do empregador, que visa atuar sobre condutas do trabalhador consideradas censuráveis no contexto da relação laboral estabelecida.
39) Percorrido o elenco dos factos provados, não se encontra um único facto que evidencie que a Recorrida, de algum modo, exerce ou exerceu algum tipo de poder disciplinar sobre o prestador de atividade, no sentido de ter a possibilidade de sancionar um comportamento do prestador que não respeitasse as suas obrigações/deveres ou os padrões de comportamento determinados pela mesma.
40) Sem prejuízo da ausência de factualidade concreta, sempre se refira que nenhuma das situações que se encontra elencada nos termos e condições aplicáveis consiste na violação de um dever laboral, sendo que, como aponta o Tribunal a quo “qualquer contrato, de qualquer natureza, pode ser resolvido, desde que as condições contratuais sejam violadas, e o cometimento de uma fraude, a colocação em causa da segurança dos clientes, ou a não observância de obrigações legais têm necessariamente de conduzir ao mesmo resultado de resolução do contrato. Se a Uber não o fizesse, e permitisse aos estafetas continuar a fazer entregas nessas circunstâncias, estaria a prestar um mau serviço aos comerciantes e clientes que a ela recorrem”.
41) No caso concreto, trata-se, inclusivamente, de uma prerrogativa dos serviços de intermediação em linha, que se encontra prevista no artigo 4.º do Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, relativo à promoção da equidade e da transparência para os utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha (Regulamento P2B), como o da Recorrida.
42) Não se vislumbra, assim, como é que a Recorrida exerce poderes laborais, nomeadamente o poder disciplinar, já que, como ficou demonstrado, a desativação de contas (i) não constitui uma manifestação do poder disciplinar, (ii) não é exercida como forma de orientar comportamentos e (iii) é reconhecida pelo Direito da União Europeia como sendo uma prerrogativa das plataformas digitais perante profissionais independentes, pelo que não se pode concluir pela verificação da característica prevista na alínea e) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
43) Defende a Recorrente que “a app da Ré é um instrumento de trabalho essencial ao seu negócio”.
44) Um software não pode ter-se como um utensílio nos mesmos moldes que um hardware (um bem corpóreo), ou seja, o equipamento de trabalho é o telemóvel onde é instalada a aplicação informática e não esta (da mesma forma que o instrumento de trabalho de um advogado é o computador que utiliza, não o software “word” onde escreve as suas peças processuais ou o software “adobe reader” com o qual abre as notificações do tribunal em formato pdf).
45) Para além disso, a referência do legislador à possibilidade de exploração de instrumentos de trabalho por contrato de locação não pode deixar de ser salientada e vista como um indício de que o legislador estava claramente a pensar em bens corpóreos.
46) Interpretação contrária, para além de absolutamente ilógica, terá o seguinte resultado prático: a alínea f) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho estará sempre automaticamente verificada, sem necessidade de quaisquer indagações por parte
do Tribunal, o que não pode deixar de ser tido como atentatório dos mais elementares e basilares direitos de defesa.
47) Por fim, o legislador quis claramente distinguir plataforma digital, onde inclui o conceito de aplicação informática (cfr. artigo 12.º-A, n.º 2 do Código de Trabalho), de equipamento e instrumento de trabalho (previsto no artigo 12.º-A, n.º 1, alínea f) do Código do Trabalho). Conforme decorre do artigo 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho, a plataforma digital (alegadamente a Recorrida) é o sujeito da relação contratual estabelecida com os prestadores da atividade, logo, a Recorrida não pode ser, simultaneamente, o sujeito da relação contratual e o equipamento ou o instrumento de trabalho do prestador de atividade.
48) Sempre sem conceder, mesmo que se considere a app como um verdadeiro instrumento de trabalho sempre terá de se concluir que o mesmo se revela insuficiente para que se considere esta característica como verificada, tal como concluiu o douto Tribunal a quo, porquanto tal alínea refere-se a equipamentos/instrumentos e não apenas a um único instrumento.
49) In casu, não se verifica qualquer dos indícios presentes no artigo 12.º ou 12.º-A do Código do Trabalho, não podendo, por isso, presumir-se a existência de um contrato de trabalho.
50) No entanto, caso assim não se entenda e se conclua pelo preenchimento de alguns dos pressupostos de aplicação da presunção de laboralidade, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, é certo que a Recorrida ilidiu qualquer presunção que eventualmente se verificasse.
51) O que se afirma resulta expressa e claramente da análise dos seguintes factos provados:
- O prestador de atividade não está obrigado a realizar qualquer número mínimo de entregas, a permanecer conectado na aplicação ou, estando conectado, a aceitar qualquer pedido – Facto Provado 37;
- O prestador de atividade decide quando se liga e desliga da plataforma e pode passar dias, semanas ou meses sem se ligar – Factos Provados 35, 36, 37 e 41;
- O prestador de atividade é livre de recusar qualquer serviço proposto, sem qualquer consequência, incluindo cancelar já depois de aceitar – Facto Provado 38;
- Para além disso, o prestador de atividade é livre de decidir não receber propostas de entrega de determinados clientes e/ou comerciantes, igualmente sem qualquer consequência – Facto Provado 16;
- Os Prestadores de atividade têm liberdade para estabelecer um valor mínimo por quilómetro abaixo do qual não efetuam entregas – Facto Provado 18;
-Os prestadores de atividade não estão sujeitos a qualquer tipo de exclusividade, que resulta da possibilidade de prestar o mesmo serviço para as empresas que diretamente concorrem no mercado com a Recorrida ou até mesmo a título individual em concorrência com a Recorrida ou exercer qualquer outra atividade remunerada, o que sucede in casu, já que a disponibilidade para estar a executar a prestação destes serviços apenas depende dos próprios – conforme Facto Provado 58;
- Para se registar e começar a prestar atividade o prestador de atividade não foi sujeito a qualquer tipo de processo de recrutamento, como seja análise de CV, entrevistas ou qualquer tipo de processo de seleção – Facto Provado 59;
- A Recorrida também não restringe ou impõe qualquer obrigatoriedade quanto ao local de exercício de atividade, podendo o prestador de atividade prestar a sua
atividade em qualquer localidade e sem qualquer tipo de indicação aos prestadores de atividade sobre o local onde deve estar para receber propostas de entregas – Factos Provados 15 e 17;
- Quando presta a sua atividade, o prestador de atividade pode seguir as rotas que desejar, bem como utilizar os sistemas de navegação GPS que preferir utilizar ou até mesmo de não utilizar nenhum sistema de navegação GPS – Facto Provado 33;
- O prestador de atividade tem a possibilidade de designar outras pessoas (também registadas) para substituição no exercício da atividade, o que demonstra que o que interessa à Recorrida não é a atividade em si mesma, elemento inerente a um contrato de trabalho que é celebrado intuitu personae, mas antes o resultado da sua atividade, característica do contrato de prestação de serviços – Facto Provado 57;
- A remuneração auferida é variável e por entrega, e não fixa em função do tempo despendido na realização da atividade;
-O prestador de atividade escolhe a forma como se apresenta, nomeadamente a roupa e o equipamento que quer usar (incluindo utilizar a marca de concorrentes) – Facto Provado 28;
- Por fim, todos os instrumentos utilizados no desempenho da atividade pertencem aos prestadores de atividade e não à Recorrida – Facto Provado 14.
52) Este conjunto de elementos apontam no sentido da inexistência de uma relação com carácter de subordinação jurídica, pelo que, nos termos do artigo 12.º-A, n.º
4, do Código do Trabalho e artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil, resulta ilidida qualquer presunção de laboralidade que eventualmente se verificasse.
53) De facto, do exposto resulta que, para além de ser autónomo na fixação do tempo e local de prestação da sua atividade, o prestador de atividade visado tem uma
profunda liberdade para definir que tarefas aceita ou não prestar, uma vez que inexistem limites ou consequências para a não aceitação. Aqui reside uma característica que se afigura de difícil compatibilização com a ordenação típica da relação laboral, o que, aliás, foi já apreciado e assim concluído, pelo colendo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no acórdão de 9 de janeiro de 2019, no processo n.º 1376/16.3T8CSC.L1.S1.
54) Para além disso, foi essa independência que fundou a decisão do Tribunal Justiça da União Europeia proferido no Caso B/Yodel Delivery Network.
55) As quatro características identificadas pelo TJUE como inconsistentes com a qualificação de trabalhador estejam todas verificadas nos presentes autos, o que cumpre realçar.
56) Em sentido convergente, o Supremo Tribunal de Justiça do Reino Unido, em decisão de 21 de novembro de 2023, decidiu que os estafetas que prestam atividade (no caso, para a plataforma Deliveroo) não podem ser considerados trabalhadores subordinados, uma vez que são “livres de rejeitar ofertas de trabalho, de se tornarem indisponíveis e de realizarem trabalhos para concorrentes”, concluindo que “estas características são fundamentalmente inconsistentes com qualquer noção de relação de trabalho”(tradução nossa)
57) Cumpre ainda recordar dois acórdãos do nosso Supremo Tribunal de Justiça, nos quais foi decidido que o facto de prestador de atividade poder escolher o próprio horário, não exercer a atividade em regime de exclusividade, ter a possibilidade de aceitar ou rejeitar serviços, ter a possibilidade de se fazer substituir e a possibilidade de agendar férias sem ser pago durante esse período e ser o titular dos instrumentos de trabalho permite ilidir a presunção do artigo 12.º do Código do Trabalho ou distinguir uma prestação de serviços de um contrato de trabalho, não obstante, nestes casos concretos ser evidente que os prestadores de atividade não têm uma estrutura organizativa própria, não são empresários e não têm os seus próprios clientes.
58) A ausência de exclusividade (Facto Provado 58) – nomeadamente o facto de a Recorrida permitir o “multiapping” – é um fator determinante do trabalho autónomo, que tem sido recorrentemente identificado não só pelos tribunais nacionais, mas também pelo Tribunal de Justiça da UE.
59) A este propósito, argumenta o Recorrente, que “nada impede que o trabalhador subordinado tenha mais do que um contrato de trabalho com diferentes empregadores, ou um contrato de trabalho e um contrato de prestação de serviços, porquanto o pluriemprego não é proibido”.
60) No entanto, cumpre não olvidar que qualquer trabalhador por conta de outrem se encontra vinculado a um conjunto de deveres, entre os quais o dever de lealdade (artigo 128.º, n.º 1, alínea f), do Código do Trabalho).
61) O dever de lealdade do trabalhador para com o empregador manifesta-se na obrigação de não concorrência, obrigação que constitui corolário do dever de lealdade, impondo ao trabalhador o dever de se abster de comportamentos contrários ou lesivos dos interesses da entidade empregadora – “não negociando por conta própria ou alheia em concorrência”.
62) Nesse âmbito, é vedado a qualquer trabalhador “o exercício de actividade concorrencial nos termos aí previstos, proibindo a lei a possibilidade de aquele desenvolver uma atividade, por si ou no seu interesse, que conflua ou entre em concorrência com o empregador, pondo em causa a sua organização em matéria comercial, de produção, negocial ou económica”
63) É entendimento unânime, tanto na doutrina como na jurisprudência, que o dever de lealdade constitui um valor absoluto, não suscetível de graduações. Assim, o
reconhecimento, ainda que hipotético e que por mero dever de patrocínio se concebe, de um contrato de trabalho entre os prestadores de atividade visados e a Recorrida redundaria na obrigatoriedade de os prestadores de atividade deixarem de prestar a sua atividade de estafeta para plataformas concorrentes, nomeadamente para a Glovo, sob pena de violação automática do dever de lealdade a que passará a estar vinculado e adstrito.
64) A violação do dever de lealdade e a obrigação legal de não concorrência que impende sobre o trabalhador não dependem da verificação, em concreto, de um efetivo prejuízo para o empregador, nem sequer do efetivo desvio de clientela, sendo suficiente a potencialidade desse prejuízo.
65) Na verdade, o próprio legislador, ao estabelecer que o trabalhador não pode negociar por conta própria ou alheia em concorrência com o empregador, está a proibir o trabalhador de qualquer atuação que possa entrar em concorrência com a atividade desenvolvida pelo empregador, proibição que é justificada, porquanto “se alguém contrata trabalhadores, não pode estar sujeito ao risco de estes entrarem em concorrência com a sua actividade”
66) De facto, a contratação de trabalhadores tem como desiderato o desenvolvimento e o sucesso da empresa, pelo que “seria absurdo aceitar que aqueles pudessem desenvolver actividades susceptíveis de conduzir ao desvio de clientela da própria empresa onde trabalham e, consequentemente, dessa forma, potenciar uma limitação do seu volume de negócios e dos seus proveitos”.
67) São estas as razões pelas quais a ausência de exclusividade assume decisiva importância neste tipo de ações e na análise da relação jurídica em apreço, o que não deve ser ignorado: é que os deveres e obrigações a que estão adstritos os trabalhadores não permite a prestação de trabalho simultâneo a duas (ou mais) entidades concorrentes distintas, situação que é admitida no âmbito de uma prestação de serviços, na qual é o próprio prestador, dotado de autonomia na organização da sua atividade, quem decide quando presta a sua atividade, para quem, e de que forma, tal como sucede in casu.
68) Alega ainda o Recorrente, embora sem concretizar em qualquer factualidade concreta, que o estafeta “se encontra inserido numa estrutura organizativa da empresa que gere a plataforma, recebendo ordens e instruções através do procedimento padronizado que se mostra instituído, estando também sujeito ao regime sancionatório por aquela implementado”.
69) Não se provou que existam quaisquer ordens e instruções através de qualquer procedimento padronizado, bem assim, que haja algum tipo de exercício de poder disciplinar da Recorrida perante o estafeta, pelo que tais alegações são totalmente
infundadas, não tendo qualquer suporte factual.
70) Quanto ao facto de o estafeta estar inserido na organização produtiva da Recorrida, resultou provado (Facto 40) que não são raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada na plataforma ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega e ainda (Facto Provado 6) que a Ré atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma, isto é, estabelecimentos comerciais, os utilizadores estafetas e os utilizadores clientes, nada mais.
71) De facto, não se pode considerar que o prestador de atividade faz parte da organização produtiva da Recorrida se esta nem consegue determinar quantos prestadores de atividade se encontrarão disponíveis em determinada área geográfica num período de tempo específico e se estes sequer vão aceitar as ofertas de entrega que lhes são disponibilizadas. É impossível organizar o que não é conhecido. Uma organização produtiva pressupõe isso mesmo: organização, o que implica planeamento e disponibilidade de mão-de-obra para o efeito.
72) Contrariamente ao que sucede numa relação laboral, e conforme já várias vezes referido ao longo das presentes contra-alegações, a Recorrida não organiza a atividade do prestador de atividade de maneira alguma, pois este é livre para escolher o seu horário, ligar e desligar-se da plataforma, e decidir durante quanto tempo permanece ligado, sendo ainda livre para rejeitar e aceitar as propostas de entrega que bem entender, conforme decorre da factualidade provada.
73) Tudo isto resulta na impossibilidade prática de a Recorrida saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as propostas de entrega disponibilizadas.
74) Não se pode, assim, concluir que a Recorrida disponha de uma organização de prestação de serviços de entrega.
75) Sem prejuízo, ainda que se possa considerar a integração do estafeta na organização produtiva da Recorrida, o que por mero dever de patrocínio se concebe, é necessário ponderar a natureza da atividade em questão, pois não se pode afirmar que esta atividade específica — a recolha e entrega de produtos —exija o recurso a meios produtivos de grande envergadura ou uma complexidade organizativa considerável.
76) Por fim, cumpre realçar que o prestador de atividade tem a possibilidade de designar outras pessoas para substituição no exercício da atividade, o que demonstra que o que interessa à Recorrida não é a atividade em si mesma, elemento inerente a um contrato de trabalho que é celebrado intuitu personae, mas antes o resultado da sua atividade, característica do contrato de prestação de serviços.
77) De facto, e como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12 de setembro de 2024, proferido no âmbito do processo n.º 3842/23.5T8PTM.E1 (Relator: João Luís Nunes), “Particularmente decisivo apresenta-se o facto do estafeta poder subcontratar outro prestador de serviço para realizar a entrega: sendo o contrato de trabalho um contrato intuitu personae, em que as qualidades pessoais do trabalhador são elementos essenciais para a conformação da relação de trabalho, a possibilidade de subcontratação de outro prestador da atividade não se harmoniza com tal caraterística.
Como bem assinala o tribunal a quo, através da possibilidade de os estafetas se fazerem substituir por outras pessoas o que demonstra é que à ré não interessa a atividade em si daquele concreto estafeta, mas sim o resultado da mesma (entrega dos produtos), caraterística do contrato de prestação de serviço”.
78) Tendo em conta a factualidade provada constata-se que não existe o mínimo resquício de subordinação jurídica.
79) Ao concluir o registo na plataforma e concordar com os termos e condições aplicáveis, o prestador de atividade não se comprometeu a prestar qualquer atividade em nome da Recorrida.
80) A Recorrida não conseguirá garantir a disponibilidade de mão-de-obra, que é aquilo que permite um contrato de trabalho, sem retirar a liberdade de os prestadores de atividade organizarem a sua atividade.
81) Por isso, caso se entendesse que existe um contrato de trabalho entre os prestadores de atividade e a Recorrida, esse contrato nunca poderá ser igual aquele que atualmente vincula as partes, de outro modo, os prestadores de atividade poderiam sempre imiscuir-se de cumprir a principal obrigação de um trabalhador (a de trabalhar) e a Recorrida nada poderia fazer quanto a isso.
82) Um contrato de trabalho é o que é, conforme definido na lei, não o que alguma doutrina e jurisprudência quer que seja, sem qualquer alteração legislativa que o
sustente.
83) Ainda que a doutrina ou a jurisprudência possam ser sensíveis à alegada
precaridade e dependência económica de alguns prestadores de serviços (precariedade essa que, existindo, impõe a intervenção do legislador para os proteger), a verdade é que a solução não poderá passar por alterar aquela que é a definição de contrato de trabalho prevista na lei (definição essa que não é dada nem pelo art 12º-A, nem pelo art. 12º nem pelo método indiciário, que preveem apenas factos índice da sua existência).
84) Nestes termos, deve a sentença recorrida ser mantida, não se reconhecendo qualquer contrato de trabalho entre a Recorrida e o prestador de atividade visado, o Sr. AA.
Terminou, pugnando pela improcedência do recurso.
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II- Importa solucionar no âmbito do presente recurso se vigora entre a R. e AA um contrato de trabalho.
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III- Apreciação
Os factos provados resultaram do acordo das partes e são os acima indicados.
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Resulta dos factos provados que AA presta a sua actividade para a R. desde Outubro de 2020 (facto provado sob 8).
Revendo posição anterior da relatora e tendo em atenção posição já perfilhada, posteriormente, em diversos Acórdãos ( designadamente no recente Acórdão desta Relação de 15.01.2025 - relatora Desembargadora Susana Silveira e no qual a ora ralatora interveio na qualidade de 1ª Adjunta e ora Desembargadora 1ª Adjunta interveio na qualidade de 2ª Adjunta- www.dgsi.pt), entendemos que, para efeitos de qualificação do contrato, importa atender à lei em vigor à data da sua celebração, sem prejuízo da valoração das alterações contratuais à luz de lei posterior.
Tem sido esta a posição adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça (Acórdãos de 17.10.2007, 18.12.2008 e 14.01.2009- www.dgsi.pt).
O que significa que, para efeitos de qualificação da relação contratual em apreço, o Tribunal não deverá atender ao disposto no art. 12-A do CT (aditado pela lei nº 13/2023, de 03.04).
O art. 11º do CT consagra a noção de contrato de trabalho nos seguintes termos : «Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.»
Conforme refere António Monteiro Fernandes in “Direito do Trabalho”, 15ª edição, pags. 131 e 132 ao delimitar o conceito de contrato de trabalho, «o primeiro elemento a salientar consiste na natureza da prestação a que se obriga o trabalhador. Trata-se de uma prestação de actividade, que se concretiza, pois, em fazer algo que é justamente a aplicação ou exteriorização da força de trabalho tornada disponível, para a outra parte, por este negócio. Este traço característico constitui um primeiro elemento da distinção entre as relações de trabalho subordinado e as relações de trabalho autónomo: nestas, precisamente porque o fornecedor da força de trabalho mantém o controlo da aplicação dela, isto é, da actividade correspondente, o objecto do seu compromisso é apenas o resultado da mesma actividade -só este é devido nos termos pré-determinados no contrato; os meios necessários para o tornar efectivo em tempo útil estão, em regra, fora do contrato, são da livre escolha e organização por parte do trabalhador. No contrato de trabalho, pelo contrário, o que está em causa é a própria actividade do trabalhador, que a outra parte organiza e dirige no sentido de um resultado que ( aí) está por seu turno fora do contrato; assim, nomeadamente, e por princípio (…), o trabalhador que tenha cumprido diligentemente a sua prestação não pode ser responsabilizado pela frustração do resultado pretendido.»
O art. 12º do CT sob a epígrafe “presunção de contrato de trabalho” estatui :
«1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características: a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado; b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade; c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma; d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma; e) O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa (…).»
Vejamos o caso concreto.
Quanto à alínea a) do nº1 do citado preceito legal, verificamos que resultou provado sob 15 e 17:
- Os prestadores de atividade registados na Plataforma decidem livremente o local onde prestam a sua atividade, ou seja, se prestam a sua atividade numa determinada zona da cidade ou até mesmo do país (15);
- A Plataforma não dá qualquer tipo de indicação aos prestadores de atividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas, podendo mudar de localidade quando entenderem, desde que previamente efetuem o registo de mudança de área na plataforma e o registo fique aceite e efetuado por parte da UBER ( 17).
Do exposto resulta que a área geográfica da prestação não é determinada pela R., pelo que não estão reunidos os factos contidos na citada alínea a).
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Quanto à alínea b) do mesmo preceito legal, resultou provado sob 14: Para se poder registar e exercer as referidas funções de estafeta para a Ré, AA tinha que ter atividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens.
Conforme refere o citado Acórdão desta Relação de 15.01.2025: «Nenhum destes instrumentos de trabalho é pertença da apelada ou foi por ela disponibilizado, daí que os factos índice integradores da presunção a que alude a citada al. b) se não verifiquem. Não se desconhece que a jurisprudência, pelo menos em parte, tem vindo a eleger como instrumento de trabalho a aplicação detida pela plataforma digital e/ou o software que à mesma se associa, enfatizando a circunstância de a noção de equipamentos e instrumentos de trabalho não implicar a sua natureza corpórea. Sem embargo de nada nos impelir a que assim não seja, isto é, que o conceito de instrumentos e equipamentos de trabalho é suficientemente apto a abranger elementos incorpóreos, há que relevar que, no caso em apreço, o empregador é uma plataforma digital que opera através de meios electrónicos e, em particular, a partir de uma app ou aplicação. Vale o que vem de ser dito, sem prejuízo, naturalmente, de todo o respeito que nos merecem as considerações em sentido oposto, que a aplicação por via da qual a plataforma opera ou se manifesta não pode desta ser autonomizada e, assim, ser considerada um instrumento ou um equipamento de trabalho, do mesmo passo que não o será o software que nela se incorpora. Uma e outra realidades – a plataforma e o meio por que se manifesta – são indissociáveis, afigurando-se-nos a separação uma da outra, para efeitos de erigir a aplicação em um equipamento ou instrumento de trabalho, operação assinalavelmente artificial.» *
Quanto à alínea c), resulta dos pontos 35 e 36 dos factos provados que o estafeta é livre para escolher o seu horário e é livre para decidir quando se liga e desliga da Plataforma, pelo que não estão reunidos os factos índices previstos na referida alínea c).
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Quanto à alínea d), resultou provado sob 18 a 19 e 21 a 26:
- A plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efetua por entrega, podendo, no entanto, o estafeta “filtrar", aceitando ou não os pedidos que aparecem no ecrã, através do preço por quilómetro (designado de “Taxa Mínima por Quilómetro”)" (18);
- Com efeito, apesar de o estafeta poder definir na aplicação o valor mínimo por quilómetro, ou seja, o montante mínimo que aceita para proceder à entrega de cada pedido, não existe qualquer negociação entre o prestador e a plataforma quanto aos critérios que estão subjacentes à definição dos valores (19);
- Cada serviço tem o seu valor definido que o estafeta vê na plataforma e é livre de aceitar, ou não, mas apenas por esse valor ( 21);
- Na Plataforma, os prestadores de atividade dispõem de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”( 22);
- Desta forma, os prestadores de atividade podem ajustar o seu preço por quilómetro sempre que quiserem sem o baixar e assim não perder qualquer oferta de entrega que possa surgir na Plataforma (23);
-Os prestadores de atividade escolhem quando são pagos, através da ferramenta "Cashout", tendo o estafeta em apreço escolhido ser pago semanalmente. Apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através do Cash Out é que os mesmos são pagos semanalmente (24);
- O estafeta é pago por transferência bancária e fica disponível na plataforma o registo de todos os pagamentos recebidos ao longo de um ano, assim como o comprovativo da transferência (25);
- O estafeta recebe os valores das entregas que efetuar, podendo aceitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo (26).
Dos factos provados não resulta o recebimento pelo estafeta de uma quantia certa, pelo que não estão reunidos os factos índices contidos na alínea d).
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Quanto à alínea e), o estafeta não exerce funções de direcção ou de chefia na estrutura orgânica da empresa.
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Os factos provados são, assim, insuficientes para concluirmos que dever-se-á presumir a existência de contrato de trabalho.
Não obstante o estafeta prestar a sua actividade no âmbito da Plataforma com utilização do sistema de geolocalização, entendemos que, no caso concreto, os factos provados não revelam o exercício de poderes de autoridade pela R..
Salientamos os seguintes factos:
- O estafeta é livre para escolher o seu horário (35);
- É livre para decidir quando se liga e desliga da Plataforma (36);
- E durante quanto tempo permanece ligado (37);
- Sendo ainda livre para rejeitar e aceitar a ofertas de entrega que entender (38);
- O que resulta na impossibilidade de a Ré saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas (39).
- Não são raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada na Plataforma ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega (40);
- O Prestador de Atividade pode passar, dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sem que daí resulte qualquer consequência para si (41);
- E a sua conta continua ativa (42).
Numa situação similar à presente, concluiu o Acórdão desta Relação de 15.01.2025 (relatora Desembargadora Manuela Fialho e no qual interveio na qualidade de 1ªAdjunta a ora Desembargadora 2ª Adjunta) : «(…) Enfim, tudo ponderado não vemos no conjunto de factos cuja prova se obteve indícios de contrato de trabalho, não obstante se admitir a inserção numa certa organização, porém sem que os autos evidenciem o exercício de poderes de autoridade conformes à disciplina laboral (Artº 11º do CT).»
Igual conclusão dever-se-á formular nos presentes autos, pelo que consideramos que não está provado que entre a R. e AA vigore um contrato de trabalho.
Importa, por último, referir que a generalidade da factualidade provada se refere aos direitos e obrigações do contrato celebrado entre a UBER EATS e qualquer estafeta que se registe na plataforma, incluindo o prestador AA, mas, concretamente quanto a este, apenas se provou ainda que presta a atividade de estafeta para a UBER EATS desde Outubro de 2020, através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone, utilizando uma bicicleta e uma mochila e sendo pago semanalmente, e que no dia 4/10/2023, pelas 12H28, estava a prestar tal atividade.
Assim sendo e desconhecendo-se quantos dias e horas o estafeta trabalhou e quantos serviços prestou, por semana, bem como os rendimentos semanais auferidos, ao longo do tempo, em suma, não se sabendo se a sua atividade era ocasional ou rara, ou, pelo contrário, intensa e essencial do ponto de vista da sua subsistência e também do seu contributo para o negócio da Ré, não se pode concluir pela sua inserção na organização da Ré e consequente subordinação jurídica à mesma.
Improcede, desta forma, o recurso de apelação.
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IV-Decisão
Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas.
Registe e notifique.
Lisboa, 12 de Março de 2025
Francisca Mendes
Alda Martins
Eugénia Maria Guerra