O não cumprimento pelo apelante do ónus de impugnação da decisão da matéria da 1.ª instância, representado pela falta de individualização ou especificação, nas conclusões da alegação daquele recurso ordinário, dos factos que reputa de mal julgados, por um erro sobre provas, determina, irremissivelmente, a imediata rejeição, nesse segmento, do recurso, não havendo lugar ao convite do recorrente para que supra a omissão.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. Relatório.
Por sentença proferida no dia 6 de Dezembro de 2023, o Sr. Juiz de Direito do juízo Central Cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, julgou procedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, proposta por SFPONLINE, SA, contra MEO– Serviços de Comunicação e Multimédia, SA, e condenou a última a pagar à primeira a quantia de € 91 000,00, acrescida de juros, vencidos e vincendos, contados desde a data da citação até pagamento.
A demandada interpôs desta decisão recurso ordinário de apelação, para o Tribunal da Relação de Coimbra, no qual impugnou a decisão da matéria de facto com fundamento no erro sobre provas – mas sem indicar, tanto na alegação, como nas conclusões, a prova ou provas que foram erroneamente avaliadas – pedindo a sua absolvição. Porém, aquele Tribunal, por acórdão proferido no dia 12 de Novembro de 2024, com fundamento em que a recorrente não indicou em momento algum, nas conclusões que apresenta, os pontos de facto que considera incorrectamente provados, rejeitou a impugnação da matéria efectuada pela apelante, por falta de indicação nas conclusões, enquanto delimitadoras do objecto do recurso, dos pontos de facto impugnados e concluiu pela improcedência do recurso.
A demandada interpôs deste acórdão recurso de revista excepcional – no qual pede a sua revogação e se determine ao Tribunal a quo que se pronuncie acerca da matéria de facto que a recorrente considerou como incorrectamente provada – tendo rematado a sua alegação com as conclusões seguintes:
A. O presente Recurso de Revista Excepcional é um recurso ordinário com base nos termos do art.º 672º do CPC, porque, considera a Recorrente, estar em causa uma questão que, pela sua relevância jurídica, é de importância fundamental, claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito.
B. Estando a questão decidenda e alegada problemática, relacionada com a alegada falta de conclusões, que a Recorrente crê ter cumprido;
C. E que, ainda que o Venerando Tribunal a quo não considerasse como cumprido, não exortou a recorrente ao aperfeiçoamento, porque não foi instada a tal;
D. Sendo de admitir que as restantes exigências das als. b) e c) do art. 640º 1, em articulação com o respectivo n.º 2, tenham sido cumpridas no corpo das alegações.
E. Pelo que não feito uso do Princípio de Proporcionalidade e da Razoabilidade para a apreciação das Alegações da Recorrente, na parte em que esta pretendia reapreciação da matéria de facto dada como provada.
F. A qual a Recorrente considerava como incorretamente interpretada, pelo Tribunal de Primeira Instância;
G .Violando assim, também, por esta via, o Princípio da Igualdade, bem como o princípio do aproveitamento e da prevalência da substância sobre a forma devendo ser o Recurso julgado procedente.
H. Devendo assim, o Acórdão Recorrido, enfermando de vício de Lei, por incorrecta subsunção dos factos, ao Direito, ser revogado, por incorrecta aplicação do art.º 640º do CPC!
Não foi oferecida resposta.
2. Correcção da espécie de revista, delimitação do seu âmbito objectivo e individualização da questão concreta controversa que deve ser solucionada.
2.1. Admissão do recurso como revista normal ou comum.
O primeiro problema de natureza estritamente processual, que importa resolver é o de saber qual é a espécie adequada da revista – se a revista excepcional, interposta pela recorrente, se a revista normal ou comum.
O recurso de revista excepcional só é admissível se a revista, ordinária ou comum, o não for designadamente por força da causa de exclusão da recorribilidade dos acórdãos da Relação, de largo espectro, representada pela chamada dupla conforme, de harmonia com a qual não é admitida revista daqueles acórdãos, sempre que confirmem, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (art.º 671.º, n.º 3, do CPC). Com este causa de irrecorribilidade visa-se racionalizar o acesso ao Supremo e acentuar a função que é característica dos tribunais supremos: a uniformização de jurisprudência. A restrição pode também justificar-se quer pela suficiência e a adequação da actividade do tribunal, que – numa perspectiva abstracta e formal - parte do princípio de que é suficiente a decisão acorde de dois tribunais e abstrai da importância da decisão para as partes, em especial, para o eventual recorrente, e da relevância dos fundamentos da sua impugnação – diversos daqueles que justificam que o recurso de revista seja sempre admissível – quer pela falta de interesse processual do recorrente: a parte que viu a sua pretensão ser julgada de modo idêntico pelas duas instâncias, não carece mais de interesse processual1. No entanto, em certos casos excepcionais, a revista é admissível (art.ºs 671.º, n.º 3, in fine, e 672.º. n.º 1, do CPC)
Como a conformidade das decisões das instâncias exclui o recurso de revista que, doutro modo, seria admissível, o que importa determinar é se essas decisões são conformes – duae conformes sententiae - não se são desconformes, pelo que se aquelas decisões não forem inteiramente coincidentes, o que interessa determinar é se essa não coincidência equivale a uma não-conformidade. As decisões das instâncias podem ser conformes, mesmo que entre elas se registe alguma desconformidade, o que é confirmado pela regra de que as decisões das instâncias são conformes se as respectivas fundamentações, apesar de distintas, não forem essencialmente diferentes (art.º 671.º, n.º 3, do CPC). Para verificar se o acórdão da Relação é conforme ou desconforme perante a decisão da 1.ª instância há que considerar os elementos das duas decisões. E entre os elementos das duas decisões, interessantes para a avaliação ou aferição daquela conformidade releva, desde logo, a fundamentação: se a fundamentação das decisões das instâncias for homótropa ou não for essencialmente diferente, a revista normal ou comum é inadmissível; se, porém, a motivação do acórdão da Relação for essencialmente distinta, aquele recurso ordinário é admissível, não o sendo a revista excepcional.
Apesar de alguma flutuação de formulações, por fundamentação essencialmente diversa este Tribunal tem entendido, não aquela que seja divergente no tocante a aspectos marginais, subalternos ou secundários - mas a que assente numa ratio decidendi inteiramente distinta, como sucede quando radica em institutos ou normas jurídicas completamente diferenciadas ou quando, movendo-se embora no âmbito do mesmo instituto ou norma jurídica, os interpreta de modo inteiramente divergente, aplicando ao objecto do processo um enquadramento jurídico marcadamente diferenciado que se repercuta, decisivamente, na solução jurídica da controvérsia2.
Por definição, a fundamentação do acórdão da Relação é necessariamente diferente se assentar num fundamento de procedência ou de improcedência do recurso de apelação que deva considerar-se novo, por não ter sido utilizado pela decisão da 1.ª instância. Nesta hipótese, as duas decisões das instâncias são, no plano da motivação, irrecusavelmente diferentes, pelo que a única coisa que resta discutir é se essa diferença de fundamentação é essencial. E será essencialmente diferente se, de harmonia com o critério apontado, se repercutir, de modo decisivo, no sentido da decisão.
Tendo-se isto – como se deve – por certo, a conclusão de que no caso se não verifica o obstáculo à admissibilidade da revista, normal ou comum, representado pela duae conformes sententiae é meramente consequencial.
Pode compreender-se que a lei retire de uma dupla sucumbência da parte, a inadmissibilidade do recurso de revista. Mas já não se compreende que a parte seja considerada duplamente vencida quando pretende alegar, pela primeira vez, na revista, um fundamento de recurso que não podia ter invocado na apelação interposta da decisão da 1.ª instância para a Relação – e que, portanto, não pode considerar-se ter sido atingido pela preclusão - o que sucederá quando o acórdão da Relação, apesar de confirmar, sem voto de vencido, a decisão da 1.ª instância, fornecer um novo fundamento para a interposição do recurso de revista. O caso paradigmático, e frequente, é o da violação, pelo acórdão da Relação, das normas adjectivas relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, mais precisamente, com o não uso ou o uso incorrecto pela Relação dos seus poderes específicos sobre a matéria de facto em que uma jurisprudência reiterada do Supremo descaracteriza a dupla conforme, precisamente com o argumento de que a questão emergiu ex-novo do acórdão da Relação3. Orientação que, de resto, pode generalizar-se de harmonia com este pensamento: sempre que um fundamento da revista preencha o requisito da novidade, por só ter surgido com o acórdão da Relação, aquele recurso, por ausência de conformidade de decisões, deve ter-se por admissível.
Julga-se que é, precisamente esse, o caso do recurso.
A recorrente alega, na revista, desde logo – com ou sem razão, por ora e para o caso, não interessa – que a Relação, indevidamente, não reapreciou a decisão a matéria de facto da 1.ª instância, que impugnou no recurso de apelação, portanto, que não fez uso dos seus poderes-deveres de correcção daquela decisão. Ora, alegando-se a violação pela Relação, por omissão ou não uso, dos seus poderes de correcção da decisão da matéria de facto, não se verifica o obstáculo de admissibilidade da revista comum ou normal representado pela duae conformes sententiae, pelo que aquela revista é admissível.
Os casos de irrecorribilidade são excepcionais (art.º 627.º, n.º 1, do CPC). Essa excepcionalidade vincula a uma aplicação cuidadosa do regime, complexo e difícil, da dupla conforme de modo a evitar uma ampliação da causa de irrecorribilidade correspondente.
Tendo-se isto por certo, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que a revista comum ou normal, é admissível e que a revista excepcional o não é e, portanto, que a recorrente errou quanto à qualificação do meio processual, erro que se corrige – dada a plena aproveitabilidade do requerimento de interposição do recurso - determinando que se observem os termos processuais adequados: os da revista normal ou comum (art.º 193.º, n.º 3, do CPC).
2.2. Delimitação do âmbito objectivo da revista e individualização da questão concreta a resolver.
Como o âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados nas instâncias, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação, é uma só a questão colocada à atenção deste Tribunal Supremo: a de saber se o Tribunal da Relação fez um não uso incorrecto dos seus poderes de correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância e, consequentemente, se o processo lhe dever ser devolvido para que actue esses mesmos poderes. A resolução deste problema reclama, naturalmente, o exame dos poderes de correcção da Relação relativamente à decisão da matéria de facto da 1.ª instância e das condições de que a lei de processo faz depender a actuação das competências funcionais correspondentes (art.º 635.º, nºs 1, 3 a 5, do CPC).
No julgamento da impugnação, deve, porém, ter-se presente o distinguo entre fundamentos absolutos e relativos do recurso. Dizem-se absolutos os fundamentos que se forem considerados procedentes pelo tribunal de recurso conduzem sempre à procedência do recurso, porque não são compatíveis com a confirmação da decisão recorrida com outro fundamento; os fundamentos relativos são aquele que, apesar de serem reconhecidos pelo tribunal ad quem, não impedem a confirmação da decisão recorrida, com um fundamento distinto daquele que foi aceite pelo tribunal a quo4. Portanto, a improcedência do recurso, e a consequente confirmação da decisão impugnada podem resultar, da modificação pelo tribunal superior, do fundamento dessa mesma decisão. Sempre que a decisão possa comportar vários fundamentos, o tribunal ad quem pode aceitar a procedência do recurso, mas encontrar um fundamento, distinto daquele que foi utilizado pelo tribunal a quo, para confirmar a decisão impugnada. Nessa decisão importa, de outro aspecto, ponderar o princípio da economia processual, princípio que se orienta por um critério de eficiência do processo, considerado num plano individual – i.e., no plano de cada acto processual – e que proíbe a prática de actos objectivamente inúteis ou supérfluos (art.ºs 130.º e 534.º, n.º 1, do CPC). A economia processual fundamenta, por isso, a irrelevância virtual de um acto, i.e., a irrelevância de um acto que, apesar de admissível, é considerado supérfluo antes mesmo de ser praticado.
3. Fundamentos.
3.1. Fundamentos de facto.
O Sr. Juiz de Direito, com fundamento na prova documental e nos depoimentos das testemunhas AA, BB, CC, DD e EE decidiu a matéria de facto – decisão que o acórdão recorrido manteve qua tale – nos termos seguintes:
3.1.1. Factos provados.
1. A Autora é uma sociedade comercial anónima, licenciada para a exploração de jogos e apostas online, o abrigo do DL n.º 66/2015, de 29 de Abril, regime jurídico dos jogos e apostas online, que opera com a marca “Casino Portugal.pt”.
2. Licenças para exploração de jogos e apostas online de que a Autora é titular por transmissão da sociedade sua acionista maioritária, Sociedade F..., S.A., ao abrigo do Artº 21º do referido Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online.
3. Porque licenciada para tal, a Autora explora “apostas desportivas à cota” -cfr Doc 1 – e “jogos de fortuna ou azar”.
4. Para a suporte do sistema tecnológico do jogo online, essencial ao desenvolvimento da sua atividade, a referida Sociedade F..., S.A., logo no inicio da exploração, em 2016, negociou e contratualizou com a Ré o designado projecto “Plataforma em Data Center”, elaborado pela ré como um “Service Level Agreement” (adiante designado por SLA) que se junta.
5. SLA esse que, com a transmissão das licenças para a Autora, referida em 1., passou a estar contratualizado com esta, tendo a Ré atribuído à Autora o nº de cliente ...02 e facturado os serviços de acordo com o estabelecido neste projeto.
6. Esse SLA prevê vários serviços e recursos que a Ré se obrigou a prestar à Autora, em função das requisições desta, assegurando o processamento, memória e armazenamento de dados relativos à atividade de jogo online.
7. Nas obrigações contratualizadas e assumidas pela Ré, inclui-se a disponibilidade e operacionalidade de vários servidores privados para acorrer às necessidades da Autora, servidores que cabe à Ré colocar em produção.
8. Ao longo da execução do projeto contratualizado, a Ré foi colocando vários servidores em produção, em função do que foi sendo ajustado com a Autora, de acordo com o desenvolvimento da atividade desta.
9. Para cada servidor em atividade, a Ré assumiu a obrigação, porque incluída nos serviços que se obrigou a prestar, de configurar um sistema de segurança, conforme pontos 1.4. a 1.8. dos Docs 3 e 4 juntos, designadamente “Serviços de Monitorização e Reporting, com suporte técnico especializado 24x7h, com acesso a dashboard de relatórios da atividade do sistema”, “Backup diário com rotação semanal e retenção mensal” e serviços de “ Reporting e procedimentos de segurança”.
10. Serviços estes que incluem sistema de alertas sobre indicadores do estado de cada um dos servidores, designadamente estado de funcionalidade, com emissão de alerta em caso de situação critica do estado de funcionamento do servidor, de acordo com ponto 1.5, em “Recursos Disponíveis:”, dos Docs 3 e 4.
11. Os serviços previstos no SLA foram objeto de ajustamentos caso a caso, e foram sucessivamente requisitados, através de emissão de notas de encomenda, pela Autora à Ré, que os passou a fornecer.
12. Serviços que são faturados mensalmente pela Ré, conforme factura detalhada que se junta.
13. No dia 19 de junho de 2019, a Ré, através do seu responsável pela gestão de projetos, resumindo reunião sobre proposta, da própria Ré, de “migração do ambiente de produção para uma nova infraestrutura Coud com melhor desempenho e storage SSD”, elencou os seguintes servidores de produção: proxyprd01, proxyprd02, webserverprd01, webserverprd02, bdprd01, bdprd02, webserverprd03, bdlogs01, bdbw01 e webserverprd04 – cfr Doc 6– pag 3.
14. E no dia 28 de junho de 2019 o mesmo responsável pela gestão de projetos da Ré envia email ao responsável da Autora, AA, para com “esquema atualizado da solução implementada onde constam esses mesmos servidores em produção (com o servidor bdlogs01 referido como bdbwlogs). – cfr. Doc 7 e Doc 7 anexo
15. É através dos servidores disponibilizados pela Ré que, designadamente a operação/atividade de apostas desportivas à cota, se processa.
16. É através dos recursos disponibilizados pelos servidores que todos os dados do jogo são processados, armazenados e gravados, devendo a Ré assegurar que estão em perfeitas condições de funcionamento e sem falhas, uma vez que desse funcionamento perfeito e sem falhas depende a exploração e oferta da Autora aos seus clientes.
17. No dia 05 de outubro de 2019, pelas 16h e 16m, o apoio ao cliente da Autora constatou que os eventos/mercados disponibilizados para apostas no site CasinoPortugal.pt, apesar de conhecidos os resultados, não estavam a sair do site de apostas, ou seja, o site estava a permitir que os jogadores submetessem apostas após o conhecimento do resultado do jogo.
18. Os servidores e recursos da Ré não processaram o terminus dos mercados/ eventos de apostas disponibilizados no site da Autora para apostas desportivas à cota pelos seus clientes.
19. Um dos servidores a esse efeito dedicado, não atualizou, como deveria em circunstâncias e funcionamento normais e devidos, os dados e informação sobre os jogos/eventos desportivos em curso o que fez com que eventos desses jogos disponibilizados para apostas, se mantivessem ativos no site e disponíveis para submissão de apostas pelos clientes mesmo após conhecidos os resultados.
20. Por que assim foi, houve jogadores que fizeram apostas depois de conhecidos os resultados dos eventos a que submeteram apostas (por exemplo: resultado correto ao intervalo, jogador que marcou 2 golos no jogo…) , aproveitando do respetivo resultado já ser conhecido, obtendo ganhos em razão, simplesmente de uma falha do sistema, ganhos que de outro modo não poderiam almejar.
21. Assim, consequência das falhas devidas aos servidores e bases de dados disponibilizadas pela Ré, os jogadores puderam jogar depois de conhecidos os resultados, apostando em função de uma probabilidade de ganhos de 100%, sem a componente de prognostico ou resultado incerto.
22. No dia 05/10/2019, pelas 16h e 16m, o serviço de apoio ao cliente da Autora contactou o Eng. AA, programador informático sénior da Autora, transmitindo que os designados mercados (eventos disponíveis para aposta), apesar de terminados, não estavam a sair do site de apostas e que continuava a ser possível os clientes fazerem apostas sobre esses mercados.
23. De imediato o referido Eng.º AA verifica o que se passa e deteta que o sistema estava a demorar cerca de 8 a 12 segundos a processar as mensagens da “Betgenius” (fornecedor de jogos), quando o normal seriam cerca de 20 milissegundos.
24. De seguida, o mesmo AA comunica com o gestor de serviço da Ré – EE -, solicitando-lhe que verificasse o que se passava com as bases de dados, que estavam demasiado lentas.
25. No mesmo dia 05/10/2020, pelas 19.49, o mesmo gestor de serviços da Ré, reencaminhou a AA resultado das suas diligências para verificar o problema – email da equipa de bases de dados da Ré a dizer que não foram detetados constrangimentos na base de dados.
26. Não obstante tal comunicação da Ré, o sistema mantinha problemas de falta de atualização de dados, pelo que o referido programador colaborador da Autora – AA - , perante a falta de resposta satisfatória da Ré, começou a fazer debug ao sistema detetando que o servidor dblogs01 não estava a processar dados, mantendo pendentes todas as mensagens recebidas.
27. Esse mencionado servidor, tendo recebido dados do software de jogos não as processava, não atualizando os dados relativos aos eventos desportivos/mercados para finalizados e assim bloquear a possibilidade de apostas.
28. Tendo em conta a gravidade da situação, e sem resposta adequada da Ré, o mencionado responsável programador altera o código de software de jogo da Autora por forma a que ignorasse esse servidor no envio de mensagens para processar, ultrapassando assim o problema.
29. Nesse mesmo dia 05/10/2019, pelas 23h e 54m, solicita aos serviços da Ré análise sobre o servidor bdlogs1, relativamente ao qual foram detetados problemas.
30. Através de consulta do registo de boot no ficheiro boot.log do servidor bdlogs1, o programador da Autora AA constatou que no dia 06/10/2019, pelas 10h 41m os serviços da Ré reiniciaram o servidor bdlogs1, informação que partilhou no dia 14/10/2019 com os seus colegas dos serviços de programação.
31. Em resposta ao pedido da Autora – Doc 9 junto - , no dia 06/10/2020 pelas 18h12m, a Ré informou que o pedido foi implementado, que foi feito o restart do servidor e que o mesmo se encontra online.
32. O servidor dblogs1, que a Ré implementou em produção nos serviços de data center (serviços de “cloud”) que presta à Autora, deixou de funcionar no dia 05/10/2019.
33. Tal falha no funcionamento, teve como consequência que no período em que não foram processados os dados do final dos mercados/eventos desportivos disponibilizados para apostas, entre as 15h e 33m e as 19h e 01m do dia 05/10/2020, fossem efetuadas 37 apostas mercados, depois de conhecidos os respetivos resultados.
34. Dos mercados disponíveis para apostas no site da Autora – “Casino Portugal”, expõe-se na tabela anexa aqueles em que, por falha do servidor fornecido pela Ré, foi possível apostar depois de conhecidos os resultados:
35. Em que “Tipo”, é o tipo de aposta feira pelo jogador: se é simples, só num mercado de apostas, ou múltipla, em vários mercados de apostas.
36. “Aposta do Cliente”, é o mercado de aposta em que o cliente/jogador apostou, por exemplo, como exposto na primeira linha da tabela apresentada e que expõe uma aposta de que o jogador Crociata, G marca golo no jogo “Crotone - Virtus Entella”
37. “Mercado Selecionado”, corresponde ao resultado disponível para aposta (mercado de aposta) que foi selecionado pelos jogadores . Ou seja, por exemplo, que determinado jogador marca golo no jogo, qual o resultado correto ao intervalo, qual o número exato de golos ao intervalo, se no Resultado do jogo ganha a equipa de fora, de casa ou é empate, etc, num determinado Jogo – “Nome Jogo”.
38. “Desporto” corresponde à modalidade desportiva relativamente à qual se disponibilizam no site mercados para aposta “Mercado Selecionado”, no caso todos respeitam a futebol.
39. “Nome Jogo” corresponde às equipas de futebol que se defrontam, por exemplo “Crotone – Virtus Entella”, referido na referida primeira linha, e que estavam disponíveis para apostas no site da Autora, como “Mercado de apostas”.
40. “Data Inicio Jogo”, corresponde à data e hora em que teve início o jogo de futebol relativamente ao qual estavam disponíveis no site da Autora determinados mercados de
41. “Data Conhecimento Resultado” corresponde à data e hora em que foi conhecido o resultado do mercado de aposta selecionado pelo jogador/apostador. Por exemplo, no caso que nos ocupa, como apresentado na primeira linha da tabela do art. 35 anterior, relativamente aposta o jogador Crociata, G marcar golo no Jogo “Crotone - Virtus Entella”, o resultado foi conhecido no dia 2019-10-05 pelas 15:19:00horas. Ou seja, foi nesse dia e hora que o jogador marcou golo. Ou, outro exemplo, como exposto na segunda linha da tabela, o cliente/apostador apostou que o jogador Meggiorini, R ia marcar dois ou mais jogos no jogo “Livorno – Chievo”, a data do conhecimento do resultado do mercado da aposta, ou seja quando se soube que o jogador Meggiorini, R tinha marcado dois ou mais golos foi no dia 2019-10-05 pelas 15:17:00horas.
42. “Data Aposta”, corresponde ao dia e hora em que o cliente apostador fez a sua aposta. Voltando a socorrer-nos do exposto na segunda linha tabela do art. 35., o apostador apostou que o jogador Meggiorini, R ia marcar dois ou mais jogos no jogo “Livorno – Chievo” no dia 2019-10-05 pelas 15:33:44horas.
43. A tabela apresentada no art. 35. Concretiza exatamente cada uma das apostas quais os jogos que se mantiveram ativos para apostas após o conhecimento dos resultados; que concretas apostas foram feitas após o conhecimento dos resultados; a que horas foram feitas cada uma das apostas.
44. As apostas acima devidamente elencadas, sistematizadas e explicadas, foram efetuadas por 7 clientes identificados com os ID de cliente ...81, ...51, ...48, ...36, ...72, ...78, ...35, cujo valor concreto apostado e ganho obtido com a aposta se descrimina abaixo.
45. O cliente/apostador com o ID de cliente ...81, de nome FF, cuja ficha de cliente se junta – cfr Doc 11A - , fez as seguintes apostas:
46. O cliente/apostador com o ID ...51, de nome GG, cuja ficha de cliente se junta – cfr Doc 11B - , fez as seguintes apostas:
47. O cliente/apostador com o ID ...48, de nome HH, cuja ficha de cliente se junta – cfr Doc 11C - , fez as seguintes apostas:
48. O cliente/apostador com o ID ...36, de nome II, cuja ficha de cliente se junta – cfr Doc 11D- , fez as seguintes apostas:
49. O cliente/apostador com o ID ...72, de nome JJ, cuja ficha de cliente se junta – cfr Doc 11E- , fez as seguintes apostas:
50. O cliente/apostador com o ID ...78, de nome KK, cuja ficha de cliente se junta – cfr Doc 11F- , fez as seguintes apostas:
51. O cliente/apostador com o ID ...35 de nome LL, cuja ficha de cliente se junta – cfr Doc 11G- , fez as seguintes apostas:
52. Cada um dos jogadores acima discriminados por apostas, data/hora do conhecimento do resultado, data/hora da aposta, valor da aposta e ganhos das apostas, apostou depois de conhecer os resultados e obteve ganhos.
53. Ganhos a que corresponderam perdas da Autora, que se viu forçada a pagar a esses jogadores.
54. O valor total das apostas totais dos apostadores foi de € 6.935,65, com ganhos totais dos jogadores que apostaram nas condições em causa, de € 97.159,35 – conforme extrato demonstrativo extraído da plataforma tecnológica de jogo online da Autora - cfr Doc 12 e 12 A já juntos aos autos.
55. Tal falha do servidor aconteceu, além do mais, sem que tivesse sido emitido qualquer alerta de problemas.
56. Seria esse sistema de alerta que poderia ter avisado para a situação critica do servidor, nomeadamente falha de memória.
57. A Ré não assegurou, como lhe competia, que todos os servidores por si colocados em produção para a Autora processariam devidamente os dados do sistema técnico de jogo online em causa.
58. O servidor bdlogs1, por falha de capacidade de memória, não processou os dados recebidos, não tendo igualmente sido gerado qualquer alerta da situação critica em que se encontrava nem do bloqueio de processamento em que ficou.
3.1.2. Factos não provados.
Não se provaram os seguintes factos:
Da contestação:
34º o problema não era relativo a servidores em produção (bdprd01 / bdprd02) mas sim a um servidor ainda em projeto (bdlogs01);
36º Mesmo que para tal não estivesse contratado, porquanto estando o servidor em projeto, logo sem SLA (tempo previsível) de resposta.
39º A Autora ao estar a utilizar um servidor/serviço ainda não entregue pela Ré, nem aceite em cenários de produção no seu negócio…
40º O servidor que foi objeto do restart estava ainda à data de 25/10/2019 em projeto (LT...10)…
41º Não foi efetuada nenhuma alteração ao servidor pelas equipas de operação.
42º o restart resolveu o problema.
43º só após desenvolvimentos aplicacionais adicionais feitos pelo cliente a situação não voltou a ocorrer.
45º Ora, a Autora, a fazer uso de um servidor que estava em projeto (ainda não disponibilizado pela Ré, para utilização)…
Inexistem outros factos articulados pelas partes suscetíveis de inclusão entre os factos provados e não provados, quer por encerrarem matéria conclusiva e/ou de direito quer por traduzirem mera impugnação da matéria alegada na petição inicial ou instrumental para a apreciação da causa.
3.2. Fundamentos de direito.
3.2.1. Poderes de controlo da Relação no tocante à decisão da matéria de facto da 1.ª instância, ónus de impugnação dessa decisão e pontualidade do seu cumprimento pela recorrente.
No caso do recurso de apelação que tenha por objecto, principal ou concorrente, a impugnação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, por erro em matéria de provas, o Tribunal da Relação deve proceder, no tocante a cada um dos enunciados de facto que o recorrente reputa de mal julgados, à reapreciação das provas que, segundo o impugnante, foram erroneamente valoradas ou apreciadas – reapreciação que pressupõe o conhecimento do seu conteúdo, a determinação da sua relevância e a sua valoração (art.ºs 640.º, n.º 1, a) a c), e 662.º, n.º 1, do CPC). No exercício dos seus poderes de correcção da decisão proferida sobre a matéria de facto, a Relação pode alterar aquela decisão se ela for incompatível com a prova produzida em 1.ª instância: esta incompatibilidade pode decorrer de um novo juízo formulado pela Relação dado que – considerando a remissão realizada pelo art.º 662.º, n.º 3 para o art.º 607.º do CPC, a Relação tem de realizar a análise crítica das provas produzidas na 1.ª instância, extrair, se for caso disso, ilações das presunções judiciais e das presunções legais e ainda formar, nas matérias submetidas à livre apreciação da prova, uma prudente convicção autónoma – e fundamentada - sobre essas provas (art.º 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC).
Abstraindo dos casos em que à Relação é lícita a actuação oficiosa dos seus poderes de correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, o exercício desses poderes está, porém, dependente da satisfação pelo recorrente de um especifico ónus de impugnação.
O recorrente que impugna, no recurso de apelação, a decisão da matéria de facto deve especificar, sob a pena ou cominação grave da imediata rejeição, nesse segmento, do recurso, quais os pontos ou enunciados concretos dessa matéria que considera incorrectamente julgados, quais os meios de prova, constantes do processo ou do registo ou da gravação nele realizada, que impõem uma decisão diversa sobre esses pontos e a decisão que, no seu ver, deve ser encontrada para os pontos factos impugnados (art.º 640.º, n.º 1, a) a c), do CPC). Neste último caso, quando os meios de prova invocados como fundamento no erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente proceder à indicação das passagens do registo fonográfico em que funda a impugnação, sem prejuízo da faculdade de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (art.º 640.º, n.º 2, a), do CPC).
A lei de processo é, assim, clara na exigência de que o recorrente, além de individualizar, com a precisão exigível, os pontos de facto que reputa de julgados em erro, relacione cada um desses concretos pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados com cada um dos meios de prova e com cada passagem relevante dos meios de prova gravados ou com a transcrição que, eventualmente, tenha feito das passagens relevantes dos meios de prova objecto do registo sonoro5 – embora neste Tribunal seja visível, numa interpretação bona partem, a orientação segundo a qual é admissível a impugnação da decisão da matéria por atacado ou por blocos de factos. Mas com uma reserva que não é de somenos: essa metódica de impugnação da matéria de facto só deve ter-se por admissível, e o ónus correspondente de impugnação da decisão da matéria de facto só deve ter-se por pontualmente cumprido, quando que esse conjunto de factos e de provas correspondam a uma mesma realidade factual que deva ser julgada com os mesmos meios de prova6(art.º 640.º, n.ºs 1, b), e 2, a), do CPC).
Porque se formulou a exigência da especificação, exacta, pelo recorrente dos factos e das provas, que no seu ver, foram mal avaliadas, e das passagens da gravação em que funda a impugnação? Para que o recorrido e o tribunal ad quem, que há-de julgar o recurso, fiquem habilitados a conhecer nitidamente, as provas e os troços ou os segmentos da prova pessoal registada susceptíveis de inculcar o error in iudicando que o recorrente assaca à decisão da questão de facto. A parte contrária necessita de o saber para exercer o seu direito ao contraditório e porque lhe incumbe, na resposta ao recurso, indicar as provas e os depoimentos gravados – e a sua precisa localização no registo fonográfico - que infirmem as conclusões do recorrente; o tribunal ad quem, que disponha de poderes de controlo da decisão da matéria de facto, carece de o saber para poder reapreciar, com segurança e reflexão, o julgamento cuja exactidão se impugna (art.º 640.º n.º 2, b) do CPC).
E a exigência de que a indicação das passagens do registo sonoro que, segundo o impugnante, tornam patente o erro na avaliação ou na apreciação das provas produzida oralmente seja exacta, precisa, específica, visa, nitidamente – sobretudo nos casos de depoimentos particularmente extensos – permitir, tanto à parte contrária, como ao Tribunal ad quem – uma audição, fácil e célere, das passagens do registo sonoro em que se funda a impugnação, de modo a avaliar, de forma ágil, se os troços do registo apontados pelo recorrente são ou não adequados a inculcar o erro de julgamento que invoca, sem prejuízo, todavia, da actuação, pelo tribunal ad quem dos seus poderes de investigação oficiosa, portanto, da faculdade de proceder à audição de quaisquer outros segmentos do registo, do mesmo ou de outros depoimentos.
De harmonia com jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, há, no entanto, que operar, no ónus da impugnação da matéria de facto que vincula o apelante, um distinguo entre um ónus primário ou fundamental – referido à indicação dos pontos que o recorrente reputa de mal julgados, aos meios de prova que impõem decisão diversa e à decisão que deve ser proferida sobre as questões de factos impugnadas - e um ónus secundário – que tem por objecto a indicação exacta das passagens do registo sonoro da prova. Dito de outro modo: o ónus primário tem por objecto a delimitação do objecto e a fundamentação concludente da impugnação (art.º 640.º, n.º 1, do CPC); o ónus secundário respeita à facilitação do acesso aos meios de prova objecto do registo sonoro, relevantes para a apreciação da impugnação deduzida (art.º 640.º, n.º 2, do CPC). O ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação comporta três dimensões: em primeiro lugar, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que reputa de julgados em erro, enunciando-os na motivação do recurso e, de forma sintética, nas conclusões7; em segundo lugar deve especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou objecto do registo sonoro que determinam, para cada um factos que alega terem sido mal julgados, uma decisão diversa daquela que foi encontrada pelo decisor da 1.ª instância8; por último, deve indicar, na motivação, a decisão que, no seu ver, numa avaliação prudencial das provas, deve, em substituição, ser proferida sobre os factos impugnados.
O critério relevante para aferir da observância ou inobservância de qualquer destes ónus, deve ser um critério adequado à função, em conformidade com os princípios regulativos da proporcionalidade e da razoabilidade9. O requisito da adequação à função salienta que os ónus da impugnação da decisão da matéria de facto visam garantir uma adequada intelegibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência facultar à contraparte uma possibilidade de um contraditório esclarecido e ao tribunal uma apreciação conscenciosa; os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade respeitam à relação entre a gravidade da conduta processual do recorrente e a severidade das consequências que se a lei associa ao não cumprimento, ou ao cumprimento defeituoso, daquele ónus: essa consequência deve ser adequada, proporcional e razoável à gravidade daquele incumprimento. Importa, contudo, notar que a apreciação do não cumprimento do ónus processual em discussão, de harmonia com estes parâmetros, pressupõe um o cumprimento, ainda que mínimo, desse ónus; na hipótese contrária, não que há convocar, como critério de decisão, qualquer desses parâmetros10.
Por último, importa reter que, de harmonia com uma jurisprudência constante deste Tribunal Supremo, que merece a concordância da doutrina, a rejeição do recurso, no segmento relativo à impugnação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, não tem de ser precedida de prévio despacho de convite do impugnante ao suprimento ou aperfeiçoamento da sua alegação11.
Este viaticum habilita, com suficiência, à resolução da questão concreta controversa objecto da revista.
3.2.2. Concretização.
A recorrente, que na alegação do seu recurso de apelação, foi clara na declaração de que tinha por objecto a impugnação da decisão da matéria de facto, extraiu daquela alegação, referido a esse objecto, as conclusões com o teor seguinte:
A) A Recorrente pretende ver modificada a matéria de facto provada como não provada, no sentido de vir a obter factualidade que sustente a alteração da decisão de que recorre.
B) Pretende-se alteração dos factos provados nos moldes em que se considere provado que houve circunstâncias dolosas por parte de apostadores, que eram do conhecimento da recorrida.
Face a estas proposições, é patente que a recorrente não individualizou ou especificou, nas conclusões do seu recurso, com um mínimo de precisão, os enunciados de facto que, no seu ver, foram julgados em erro. Não procedeu àquela individualização e a esta especificação nas conclusões com que rematou a sua alegação nem, aliás, no corpo desta mesma alegação. Sendo isto indubitavelmente assim, não há que apontar ao acórdão impugnado qualquer incorrecção, quando observou, por um lado, que a recorrente não indicou em momento algum, nas conclusões que apresenta, os pontos de facto que considera incorrectamente provados, e quando concluiu, por outro, pela inelutável rejeição por tal fundamento, do recurso, no segmento em que tinha por objecto, a impugnação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância.
Admita-se, porém, ad argumentum – por mera exaustão de fundamentação – que se devia entender que a recorrente procedeu, nas conclusões, à indicação apontada ou que, não o tendo feito, deveria ser convidada a fazê-lo e, portanto, que o recurso deveria ser julgado procedente e o processo devolvido ao Tribunal de que provém para que exercesse as competências funcionais de correcção da decisão da quaestio facti da 1.ª instância que a lei de processo lhe reconhece. Mesmo nesta hipótese à Relação não seria possível actuar os seus poderes-deveres de correção daquela decisão: é que a recorrente, na alegação do seu recurso de apelação, também omitiu, por inteiro, a indicação das provas – documentais e/ou pessoais – que, na sua perspectiva, foram apreciadas ou avaliadas em erro, as provas que, numa avaliação prudente imporiam uma decisão diferente da encontrada pelo decisor da 1.ª instância para a matéria de facto. Por força do não cumprimento pela recorrente também deste específico ónus da impugnação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, o reenvio do processo para o Tribunal de que provém o recurso seria, pois, nesta eventualidade, de todo inútil e, como tal, proibido (art.º 130.º do CPC).
Quer dizer: ainda que este Tribunal Supremo aceitasse, pelo motivo invocado pela recorrente, a procedência do recurso, sempre existiria um outro fundamento, distinto daquele que foi utilizado pelo tribunal a quo, para confirmar a decisão impugnada.
O fundamento da revista consiste, exclusivamente, no não uso incorrecto pela Relação dos seus poderes-deveres de correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância e o pedido, assente nesse fundamento, consiste na determinação à Relação para que se pronuncie acerca da matéria de facto que a recorrente considerou como incorrectamente provada. A conclusão de que aquele fundamento e este pedido devem ser julgados improcedentes, esgota ou exaure, por força da vinculação temática do tribunal à impugnação da recorrente, o objecto da revista que, por isso, deve, sem mais, ser julgada improcedente.
A proposição mais saliente do percurso argumentativo percorrido é, em síntese apertada, a seguinte: o não cumprimento pelo apelante do ónus de impugnação da decisão da matéria da 1.ª instância, representado pela falta de individualização ou especificação, nas conclusões da alegação daquele recurso ordinário, dos factos que reputa de mal julgados, por um erro sobre provas, determina, irremissivelmente, a imediata rejeição, nesse segmento, do recurso, não havendo lugar ao convite do recorrente para que supra a omissão.
A recorrente sucumbe no recurso. Esta sucumbência torna-a objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos:
a) Admite-se a revista, como revista comum ou normal;
b) Julga-se a revista improcedente.
Custas pela recorrente.
2025.03.11
Henrique Antunes (Relator)
António Domingos Pires Robalo
António Magalhães
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1. Rui Pinto, Repensando os requisitos da dupla conforme (art.º 671.º, n.º 3, do CPC), Julgar, Online, Novembro de 2019, pág. 4.↩︎
2. Acs. do STJ de 12.10.2023 (1901/21), 30.11.2023 (1120/20), 29.09.2022 (19864/15), 19.02.2015 (302915/11) e de 30.04.2015 (1583/08); Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 425.↩︎
3. V.g. Acs. do STJ de 26.11.2020 (11/13), 16.12.2020 (4016/13), 08.12.18 (2639/13) e 11.10.2018 (617/14), Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., págs. 427 e 428, Miguel Teixeira de Sousa, Dupla Conforme e vícios na formação do acórdão da Relação, disponível em blogippc.blogspot.com, entrada de 01/04/2015,↩︎
4. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 470.↩︎
5. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., pág. 197. O ónus de que o recorrente, no tocante à especificação dos pontos de facto que considera mal julgados, referencie o meio de prova que se indica para evidenciar aquele erro não é constitucionalmente impróprio: Ac. do TC n.º 148/2025 (245/2024).↩︎
6. Acs. de 27.10.2021 (1372/18), 01.06.2022 (1104/18) e 30.11.2023 (556/21).↩︎
7. A exigência da inclusão ou especificação, nas conclusões do recurso, e não apenas no corpo da alegação, dos pontos ou enunciados de facto impugnados com fundamento no erro sobre provas, constitui entendimento jurisprudencial e doutrinal acorde: Acs. do STJ de 30.03.2022 (330/14), 09.06.21 (10300/18), 27.04.2023 (4696/15), 16.11.2023 (203/18), 08.02.24 (7146/20), 30.11.2023 (7146/20) e 04.07.2023 (1727/07); Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., pág. 197, José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol. 3.º, Almedina, 2022, 3.ª edição, pág. 95 e Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, AAFDL, 2020, pág. 301.↩︎
8. De harmonia com o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 12/2023 – DR-220/2023, Série I, de 2023-11-14 – nos termos da al, c) do n.º 1 do art.º 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.↩︎
9. Acs. do STJ de 07.12.2023 (2037/16) e 11.09.2019 (42/18).↩︎
10. Ac. do STJ de 19.03.2024 (150/19).↩︎
11. Acs. do STJ de 08.09.2021 (5404/11), 15.09.2022 (556/19), 06.02.2024 (18321/21) e 23.01.2024 (2605/20); José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3.º, cit., pág. 95, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., pág. 199 e Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, cit., pág. 304. De harmonia com a jurisprudência constitucional, dela não se retira que o despacho de aperfeiçoamento seja uma exigência constitucional, dado que tal equivaleria, no fundo à concessão de um novo prazo para recorrer que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso: Ac. do TC n.º 259/02 (101/02),↩︎