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NULIDADE DA SENTENÇA
DIREITO DE RETENÇÃO
REQUISITOS
Sumário
I - Segundo o disposto no art. 754.° do Cód. Civil, haverá direito de retenção sempre que três requisitos se verifiquem cumulativamente: i) o retentor retenha licitamente a coisa que deve restituir [art. 756º, alínea a)]; ii) o retentor, devedor da restituição da coisa, seja simultaneamente credor daquele a quem ela é devida; iii) o crédito a garantir esteja diretamente conexionado com a coisa detida (conexão material ou objetiva), devendo resultar de despesas feitas por causa da coisa retida ou por danos por ela causados. II - Um mecânico (devedor da obrigação de entrega da coisa) que tiver reparado uma viatura automóvel pode retê-la enquanto o dono da viatura não pagar a respetiva reparação. III - Não se apurando a existência de uso de facto relevante no comércio da reparação automóvel de acordo com os quais o dono da obra beneficia de prazo, para além da aceitação da obra, para efetuar o pagamento do preço, nem havendo convenção das partes, o preço deverá ser satisfeito no momento da aceitação da obra (art. 1211º, n.º 2, do Cód. Civil). IV - Concluída a reparação da viatura e tendo-se a respetiva proprietária apresentado na oficina para levantar a viatura – e sem que se mostre questionada a verificação da obra (art. 1218º do CC) –, ocorre por parte daquela uma aceitação tácita da obra (art. 217º do CC).
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório
EMP01..., S.A. intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra EMP02... UNIPESSOAL, LDA, pedindo:
a-) Para o caso de a Ré vir invocar o direito de retenção, ser declarada suficiente e idónea a caução prestada pela Autora, no montante de € 9.330,22, nos termos e para os efeitos do artigo 756.º, alínea d), do Código Civil (CCiv);
b-) Ser a Ré condenada a restituir à Autora, caso não o faça após a citação e no prazo legal previsto para a contestação, o veículo identificado no artigo 3.º;
c-) Ser a Ré condenada a pagar à Autora, a título de reparação pelos danos patrimoniais emergentes da mora na reparação do aludido veículo, a quantia de € 30.000,00;
d-) Ser a Ré condenada a pagar à Autora, a título de compensação pela privação do uso do aludido veículo, indemnização calculada à razão mensal de € 3.000,00, desde 24 de abril de 2022 até à sua efetiva entrega, que por ora se computa em € 39.000,00;
e-) Todas aquelas quantias acrescidas de juros à taxa legal prevista para as obrigações de natureza comercial, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- A Autora é dona e legítima possuidora do veículo da marca ..., modelo .../P, de matrícula ..-EP-.., o qual é utilizado na sua atividade de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, de âmbito nacional ou internacional;
- O aludido veículo sofreu uma avaria ao nível do motor, tendo contratado a Ré para proceder à sua reparação, ficando convencionado que seria a Autora a fornecer as peças de substituição e que a Ré procederia à reparação no prazo de 15 (quinze) dias;
- O aludido veículo deu entrada na oficina da Ré, para ser reparado, no dia 07.01.2022, mas só no dia 04.05.2022 é que aquela concluiu a reparação do veículo, tendo enviado à Autora um documento denominado “estimativa”, descrito pela Ré como “proforma”, com o valor de € 9.330,22;
- Sucede que, tendo-se apresentado para levantar a viatura, a Autora foi impedida pela Ré de o fazer, tendo esta exigido o prévio pagamento da quantia de € 9.330,22;
- Nunca a Ré, aquando das negociações do contrato de prestação de serviços supra descritos, informou a Autora que esta teria de proceder ao pagamento dos serviços no ato da entrega da viatura;
- Acresce que a Autora e a Ré não eram desconhecidas, tendo esta prestado, no passado, serviços de idêntica natureza, onde sempre sucedeu que as viaturas reparadas eram entregues de imediato e o pagamento efetuado em momento posterior;
- Numa relação contratual como a supra descrita, em que é a própria Autora a fornecer as peças de substituição e a Ré se limita a efetuar a reparação, assistia-lhe o direito de verificar se os serviços foram bem prestados antes de proceder ao seu pagamento, o que apenas é possível procedendo ao levantamento da viatura e colocando-a em circulação;
- Até à presente data, a Ré ainda não enviou à Autora qualquer fatura, tendo-lhe comunicado que não lhe presta garantia dos serviços prestados;
- A Autora protestou contra a conduta da Ré, exigindo que esta proceda à emissão e envio da fatura, preste garantia dos serviços prestados e a autorize a levantar a viatura;
- A aludida viatura estava adstrita à cliente da Autora – EMP03... –, ao abrigo de um contrato de aluguer que tinha por objeto o transporte de mercadorias de e para aquela, faturando, em média e mensalmente, a quantia de € 10.000,00;
- A Autora não tinha outra viatura disponível para satisfazer as necessidades da sua cliente, pelo que, em 24.04.2022, como consequência direta e necessária da mora da Ré, aquela cliente resolveu com justa causa o contrato firmado com a Autora;
- De 28.01 até 24.04.2022, a Autora sofreu um prejuízo de € 30.000,00 e, desde 24.04.2022, está privada da utilização do seu veículo pelo facto de a Ré impedir o seu levantamento;
- Assim, mensalmente, como consequência direta e necessária da descrita conduta da Ré, a Autora sofre um prejuízo patrimonial, que se computa em € 39.000,00 (tendo por referência o mês de maio de 2023).
Prevenindo a hipótese de a Ré vir na contestação invocar o direito de retenção, declarou a Autora que, desde já, prestava caução da quantia de € 9.330,22, à ordem do Tribunal, para ser entregue à Ré na íntegra ou deduzida (mediante compensação) do montante em que for condenada a pagar à Autora nos presentes autos, conforme a sorte da ação.
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Citada, contestou a Ré (ref.ª ...02), por impugnação (pugnando pela total improcedência da ação) e por reconvenção, tendo pedido a condenação da Autora:
i) A pagar-lhe o valor de € 9.330,22, a título de capital, bem como € 721,22, relativos a juros vencidos até à presente data, bem como os juros vincendos até efetivo e integral pagamento;
ii) Como litigante de má-fé em multa e compensação a definir a final.
Para tanto, alegou, em súmula, o seguinte:
- A data da reparação decorreu de atraso na entrega das peças pela Autora à Ré;
- No passado, houve relações comerciais anteriores, sendo que a Autora não pagou voluntariamente à Ré as faturas de maio e junho de 2019, num total de € 1.008,17, que só pagou em 2020.03.15, após aposição de fórmula executória em requerimento de injunção, com "perdão" de juros, da taxa de justiça e das despesas de cobrança ali confirmados;
- Naturalmente que, tendo havido necessidade de recorrer à via judicial para obter a cobrança de cerca de € 1.000,00, apenas pagos cerca de nove meses depois do devido, com os atrasos e prejuízos óbvios, e atento o valor da reparação aqui em apreço, logo a Autora foi informada da necessidade de pagamento da reparação antes do levantamento da viatura;
- É verdade que o representante da Autora se apresentou nas instalações da Ré para levantar o camião, mas já sabia que tinha de proceder à liquidação da reparação, ou, pelo menos, de entregar cheque no respetivo valor e com data do levantamento, data em que também seria emitida a fatura;
- E tanto assim foi que, ali chegado, aquele representante apressou-se logo a dizer que não tinha vindo do escritório e que, por isso, não trazia nem dinheiro nem o cheque, mas que, no dia seguinte, entregaria o cheque, querendo levar o camião naquele momento, ao que a funcionária da Ré disse que se, no dia seguinte, entregasse o cheque, então seria no dia seguinte que o camião também seria entregue;
- A fatura foi enviada, como sempre acontecera, logo que emitida em correio simples, e foi também remetida, em 2022.10.27, através de carta registada com aviso de receção para a morada constante do registo comercial, mas tal carta não foi recebida/levantada;
- No que à exigência da garantia respeita, tal é de todo impossível, dado ter sido a Autora a fornecer a quase totalidade dos componentes essenciais;
- Quanto a problemas que decorram da deficiente instalação, colocação ou montagem, naturalmente que será a Ré responsável, pela mera aplicação dos preceitos legais atinentes, com a ressalva de problemas relacionados com expressas opções da Autora, em desacordo com a Ré, nomeadamente a mera retificação em vez da substituição da colaça;
- Em relação à caução, bem sabe a Autora quanto tem a pagar da fatura, sendo também devidos juros, valor que, à presente data, ascende a € 721,22;
- À Ré assiste o direito à retenção do veículo até estar pago o serviço e material fornecido, pois que respeitam a intervenção no veículo retido:
- Quanto valor reclamado a título de privação do uso, o mesmo é abusivo, até porque o valor do camião não deverá ultrapassar os € 6.000,00 a € 8.000,00;
- A Autora tem plena consciência de que está em falta com o pagamento devido à Ré, tanto que o seu gerente se comprometeu a entregar o cheque para pagamento quando ali se deslocou, mas inventou vários pretextos para tentar levantar o camião sem pagar, optando por intentar a presente ação após não receber/levantar a notificação vinda do Balcão de Injunções, de que foi normalmente avisada, fazendo um pedido astronómico e descabido, obrigando a Ré a diversos gastos e atrasos no recebimento do que lhe é devido, tudo para tentar obter uma decisão judicial que sabe ser inadequada e/ou tentar retardar o pagamento ou reduzir o montante que sabe ter de liquidar, com o torpe objetivo de falsear a realidade e obter uma decisão injusta.
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A Autora apresentou réplica (Ref.ª ...31), pugnando pela verificação da excepção dilatória de litispendência, com a consequente absolvição da A. da instância reconvencional ou, assim não se entendendo, pela total improcedência da reconvenção.
Para tanto, e em resumo:
- Invocou a exceção de litispendência entre a instância reconvencional e o procedimento de injunção n.º 38186/23...., em que a Ré pede a condenação da Autora no pagamento de € 9.333,22 a título de capital, € 102,00 a título de taxa de justiça e € 636,87 a título de juros de mora;
- Sustentou que, só com a notificação da contestação, a Autora tomou conhecimento da fatura ...20, emitida em ../../2022, no valor de € 9.322,22, reiterando que nunca esta fatura lhe foi enviada, seja por via postal, seja por via eletrónica;
- Alegou que o artigo 754.º, do CCiv, não confere ao credor de juros de mora o direito de retenção e, sem prescindir, ainda que a Ré tivesse direito aos juros de mora, o seu valor é irrisório quando comparado com o valor da reparação (€ 9.322,22), com o valor da viatura (nunca inferior ao valor da sua reparação) e com os proventos que esta é suscetível de gerar para a Autora (devidamente contabilizados na petição inicial), pelo que o exercício do direito de retenção excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelo seu fim económico;
- Exerceu o contraditório quanto ao pedido de condenação como litigante de má-fé, pugnando pela sua improcedência.
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A Ré apresentou o articulado, que denominou de superveniente (ref.ª ...33), no qual veio dizer que o procedimento de injunção n.º 38186/23.... foi arquivado, tendo juntado cópia do requerimento a desistir da instância apresentado naqueles autos.
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Após o despacho de 12.10.2023, em que se conferiu à Ré a oportunidade para exercer o contraditório quanto à matéria de exceção articulada na réplica, veio aquela dizer que o crédito que fundamenta o direito de retenção é tudo aquilo que for devido, sendo legítimo o seu exercício (ref.ª ...54).
Sem prejuízo, mais alegou que a Ré mostra a sua total disponibilidade para entregar o veículo mal o Tribunal entenda que o direito de retenção engloba só a parte do crédito relativa ao capital e não já aos juros vencidos ou defina o valor a caucionar e tal se mostre realizado, decisão que parece ser a prevista no artigo 909.º/2, do Código de Processo Civil (CPCiv).
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Realizou-se a audiência prévia a 30/11/2023 (ref.ª ...70), na qual as partes transigiram parcialmente quanto ao objeto da causa, o que foi homologado por sentença e, em consequência, a instância foi julgada extinta quanto aos pedidos formulados em a) e b), na acção, e quanto ao pedido reconvencional.
Na parte remanescente [als. c) a e), do pedido], proferiu-se despacho saneador, no qual foi afirmada a validade e a regularidade da instância.
Estabeleceu-se ainda o objeto do litígio e fixaram-se os temas da prova, em termos que não mereceram a reclamação das partes.
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Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, na sessão realizada a 25.06.2024 (ref.ª ...71).
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Posteriormente, a Mm.ª Julgadora “a quo” proferiu sentença, datada de 17/07/2024 (ref.ª ...91), nos termos da qual decidiu: «i) Quanto aos pedidos formulados na ação sob as als. c) a e), julga-se a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se a Ré desses pedidos; ii) Julga-se improcedente o pedido de condenação da Autora como litigante de má fé».
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Inconformada, a autora interpôs recurso da sentença (ref.ª ...69) e, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1. Na fixação da matéria de facto provada, não pode o Julgador atender apenas aos factos que suportam a versão que considera aplicável, mas sim a todos os factos relevantes, para a boa decisão da causa. 2. Por não constar do elenco dos factos provados e/ou não provados a factualidade alegada pela A. nos artigos 11.º e 24.º (repetido) da petição inicial, relevante no contexto de todas as soluções de direito plausíveis, a douta sentença recorrida padece de nulidade nos termos do art.º 662.º, n.º 2, al. c) do CPC. 3. A A. impugna a decisão da matéria de facto dos pontos 19, 22 e 23 dos factos julgados provados e das alíneas b), c), d) e f) dos factos julgados não provados. 4. A redacção do ponto 19 padece de manifesto lapso, uma vez que se crê que o Tribunal a quo pretendeu dar resposta de “provado” ao artigo 24.º (repetido) da petição inicial, pelo que a redacção daquele facto carece da seguinte rectificação: 19 - Em 24.04.2022, aquela cliente comunicou à Autora o seguinte: 5. A prova produzida sobre o ponto 22 é manifestamente insuficiente, lacunosa e até contraditória, uma vez que o teor dos emails de 27/04/2022 e 04/05/2022 não se coaduna com os depoimentos de AA e BB, ficando assim a dúvida insanável sobre se AA comunicou ao legal representante da A. a necessidade de prévio pagamento da reparação como condição de levantamento da viatura, facto que este refutou liminarmente, o que foi confirmado por CC; 6. Donde, aplicando a regra do art.º 414.º do CPC, o ponto 22 deve ser julgado NÃO PROVADO ou, quando assim não se entenda, alterada a sua redacção para o seguinte: “22 – Dois ou três dias antes de concluída a reparação da viatura, a D. AA exigiu à A., como condição para proceder ao seu levantamento, a entrega de um cheque pré-datado a 30 dias”. 7. Relativamente ao ponto 23 dos factos provados e alínea c) dos não provados, o Tribunal a quo formou a sua convicção exclusivamente no documento n.º 3 junto com a contestação, documento que a A. expressamente impugnou por falso, sendo certo que a Ré não produziu qualquer prova sobre quem redigiu e alegadamente introduziu no envelope o escrito e a factura, sendo ainda inverosímil a devolução da carta uma vez que foi dirigida a um apartado da A., a que acresce a omissão do envio da factura por e-mail, aliás, na senda das anteriores comunicações entre A. e Ré; 8. Pelo que, estando expressamente impugnado por falso o documento n.º 3 junto com a contestação e não tendo a Ré produzido qualquer meio de prova sobre esta questão, impõe-se a aplicação do princípio consagrado no art.º 414.º do CPC, devendo o ponto 23 ser julgado NÃO PROVADO e a alínea c) passar a integrar o elenco dos factos provados, com a seguinte redacção: “Até à data da entrada da presente acção, a Ré não tinha enviado à A. qualquer factura.” 9. A alínea b) deveria ter sido julgada provada por acordo, uma vez que o artigo 13.º da petição inicial não foi impugnado pela Ré na Contestação e nem esta, lida no seu todo, impõe a conclusão da sua não aceitação; 10.Sem prescindir, sobre tal matéria foi produzida abundante prova, designadamente, os depoimentos de DD, BB e EE, que de forma unívoca, garantiram que ao longo dos anos (entre 2018 e 2022) a Ré nunca exigiu à A. o prévio pagamento do preço da reparação como condição de entrega das viaturas; 11.Por conseguinte, a alínea b) deverá passar a integrar o elenco dos factos provados, com a seguinte redacção: “No passado, sempre as viaturas reparadas eram entregues de imediato e o pagamento efectuado pela Autora em momento posterior.” 12.Também a alínea d) deverá passar a integrar o elenco dos factos provados, por dimanar das regras da experiência comum que uma “voltinha” pelas instalações da Ré não permitiria à A. verificar a efectiva reparação de um veículo que tem de estar apto a circular dezenas e até centenas de milhares de quilómetros no transporte de mercadorias de âmbito nacional e internacional. 13.Devendo ter a seguinte redacção: “Apenas é possível verificar os serviços realizados na viatura procedendo ao seu levantamento.” 14.A matéria da alínea f) foi abordada pela testemunha FF, mas também dimana do julgado provado nos pontos 4), 17), 18) e 20), pelo que, ainda que não tenha sido possível concretizar os danos emergentes da privação do uso da viatura, deverá integrar os factos provados em respeito ao alegado no art.º 29.º da petição inicial, com a seguinte redacção: “Mensalmente, como consequência directa e necessária da descrita conduta da Ré, a A. sofre um prejuízo patrimonial não concretamente apurado”. 15.O artigo 11.º da petição inicial não consta do elenco dos factos seleccionados pelo Tribunal a quo, mas sobre ela incidiu o depoimento de GG, que sendo mecânico há 40 anos e tendo negócio próprio da área da mecânica, especializada em reparação de veículos pesados, afirmou não ser conforme os usos e costumes cobrar adiantadamente, como condição de levantamento da viatura, o preço da sua reparação; 16.É ainda evidência do alegado no artigo 11.º os seguintes factos fundamentais: - A. e Ré são pessoas colectivas; - Entre A. e Ré existiram diversas relações comerciais, entre 2018 e 2022, tendo por objecto a reparação de viaturas da marca ...; - A frota da A. é composta por 12 ou 13 veículos da marca ..., cuja reparação era feita habitualmente pela Ré; - No passado, nunca a Ré existiu à A. o prévio pagamento do preço da reparação como condição da entrega da viatura; - A viatura retira pela Ré é um instrumento de trabalho da A., que se dedica precisamente ao transporte terrestre de mercadorias; - As peças aplicadas na reparação foram fornecidas pela própria A.; - A única situação de incumprimento da A. verificou-se em relação a duas facturas, do montante global de cerca de €1.000,00, tendo a Ré aceite o pagamento em singelo do capital, mesmo depois de aposta a fórmula executória ao requerimento injuntivo; - Mesmo depois deste episódio, a A. continuou a levar veículos à Ré para reparação e a levantá-los sem necessidade de prévio pagamento; - Na reparação em causa nos autos, o preço nem sequer foi previamente estabelecido.. 17.O próprio Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de maio, transpondo para o ordenamento interno a Directiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro de 2011, transforma em letra de lei um uso e costume não apenas Português, mas também dos demais países da União Europeia, do pagamento diferido dos bens e serviços transaccionados entre comerciantes; 18.Nas relações comerciais entre empresas, a menos que outra coisa seja convencionada, é uso e costume que o prazo de pagamento seja de 30 dias após a entrega dos bens ou prestação dos serviços. 19.E, por conseguinte, respeitando o alegado em sede petição inicial no artigo 11.º, à matéria de facto provada deve ser aditado que: “A descrita conduta da Ré não é conforme o uso e os costumes.” 20.Da factualidade apurada dimana que, previamente à prestação dos serviços, não existiu orçamento e as partes nada convencionaram quanto ao regime de preço (preço global ou a forfait ou per avisionem), modo e prazo do seu pagamento. 21.Apurou-se apenas que A. e Ré acordaram que esta procederia à reparação de uma viatura, sendo a A. a fornecer as peças, que efectuada a reparação, a Ré enviou à A. uma “estimativa”, no valor de €9.330,22, e que apresentando-se para levantar a viatura, a A. foi impedida pela Ré de o fazer, exigindo esta o prévio pagamento da aludida quantia. 22.Tendo o contrato de empreitada natureza consensual, é irrelevante que a Ré tenha enviado à A. um email, contendo uma estimativa (ou pro-forma) e alertando para a necessidade de prévio pagamento do preço (concretamente, de entrega de um cheque), uma vez que a Ré não pode, unilateralmente, por mera comunicação à parte contrária em Abril ou Maio de 2022, aditar termos, cláusulas ou condições aquele negócio jurídico, perfeitamente formado muitos meses antes (Janeiro de 2022); 23.Também não consta dos factos provados e nem a Ré alegou que, comunicada aquela condição, a A. a tenha aceite. 24.Também em rigor, a Ré nem sequer apresentou à A. um preço, mas uma mera estimativa (ou pro-forma), sendo certo que só procedeu à emissão da factura muitos meses depois, em 13/07/2022; 25.No contrato de empreitada, dispõe o art.º 1211.º, n.º 2 do Código Civil, que “o preço deve ser pago, não havendo cláusula ou uso em contrário, no acto de aceitação da obra”. 26.É esta especificidade da empreitada que determina, na Directiva 2011/7/EU, uma disposição como o artigo 3º, nº 2, iv), transposto no artigo 4º, nº 3, alínea d) e nº 4 do DL 62/2013: mora ocorre “30 dias após a data de aceitação ou verificação, quando esteja previsto, na lei ou no contrato, um processo mediante o qual deva ser determinada a conformidade dos bens ou serviços e o devedor receba a factura em data anterior ou na data de aceitação ou verificação“ (nº 3, alínea d)); e, “[c]aso esteja previsto um processo de aceitação ou de verificação para determinar a conformidade dos bens ou do serviço, a duração desse processo [em certo sentido, a constituição em mora] não pode exceder 30 dias a contar da data de Receção dos bens ou da prestação dos serviços […]” (nº 4). 27.A Ré não alegou e nem dimana dos factos provados que a A. tenha aceite a obra, pelo contrário, o que sucedeu é que a Ré impediu a A. de levantar a viatura; 28.A Ré só emitiu a factura muitos meses mais tarde, em 13/07/2022; 29.E, segundo a sua própria alegação, apenas tentou remetê-la à A. também muitos meses mais tarde, por carta registada com AR remetida em 27/10/2022. 30.Porque as partes nada estipularam, para que a Ré pudesse exigir da A. o pagamento prévio à entrega o veículo, teria, em primeiro lugar, de lhe comunicar o preço e não uma mera estimativa e, em segundo lugar, obter da A. a aceitação da obra, o que não alegou e nem provou ter ocorrido. 31.Nos termos do art.º 757.º, n.º 1 do Código Civil, o direito de retenção só se verifica antes do vencimento do crédito quando se verifique alguma das circunstâncias que importam a perda do benefício do prazo, que nos caso não foram alegadas e nem se verificam; 32.Não há direito de retenção quando a parte contrária preste caução suficiente, o que sucedeu no caso; 33.A viatura retida pela Ré é instrumento de trabalho da A., ou se preferirmos, um objecto indispensável ao exercício da sua actividade; 34.Não há direito de retenção relativamente a coisas impenhoráveis (art.º 756.º, al. c) do Código Civil). 35.A exigência de prévio pagamento de uma “estimativa” ou “pro-forma” da realização de reparação, como condição de entrega da viatura, não é conforme o uso e os costumes, não apenas em Portugal, mas também nos demais países da União Europeia, onde é usual o pagamento diferido dos bens e serviços (geralmente 30 dias). 36.A privação do uso da viatura causou à A. um dano não concretamente apurado, que terá de ser objecto de competente incidente de liquidação. 37.A douta sentença recorrida viola os art.os 414.º e 607.º, n.º 4 do CPC e os art.os 219.º, 406.º, 757.º, n.º 1, 756.º, als. c) e d), 762.º e 1211.º, n.º 2 do Código Civil. Nestes termos e nos melhores de direito, concedendo provimento à presente Apelação, deverá proferir-se douto Acórdão que, revogando a douta sentença recorrida, julgue a acção procedente e condene a Ré a pagar à A., a título de compensação pela privação do uso do veículo, indemnização a apurar em liquidação de sentença, desde 24 de Abril de 2022 até à sua efectiva entrega, até ao limite de €3.000,00 por mês, acrescida de juros de mota à taxa legal prevista para as obrigações de natureza comercial, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento. Assim decidindo, farão V.ªs Ex.as, Venerandos Desembargadores, a habitual JUSTIÇA».
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Contra-alegou a Ré, pugnando pelo não provimento do recurso interposto pela parte contrária (ref.ª ...66).
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Por despacho de 28/11/2024 (ref.ª ...08), a Mm.ª Julgadora “a quo” procedeu à rectificação da sentença no tocante à al. 19) dos factos provados e do 1.º parágrafo relativo à motivação das als. 18) e 19) dos factos provados; pronunciou-se quanto às invocadas nulidades da sentença, concluindo pela sua improcedência.
Mais admitiu o recurso interposto, como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Notificada nos termos e para os fins do disposto no art. 614º, n.º 1 do CPC, a A. invocou a nulidade por omissão do dever imposto pelo art. 590.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC (ref.ª ...65).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Delimitação do objeto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].
No caso, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:
i. Da(s) nulidade(s) da sentença;
ii. Da impugnação da decisão da matéria de facto;
iii. - Da ilegitimidade do exercício do direito de retenção.
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III. Fundamentos
IV. Fundamentação de facto
I - A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
- Oriundos da petição inicial: 1) A Autora dedica-se ao transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, de âmbito nacional ou internacional, em veículos de peso bruto igual ou superior a dois mil e quinhentos quilos, o que faz com carácter habitual e fim lucrativo (artigo 1.º, da petição inicial). 2) Por sua vez, a Ré dedica-se ao comércio e reparação de veículos automóveis, o que faz com carácter habitual e fim lucrativo (artigo 2.º, da petição inicial). 3) A Autora é dona e legítima possuidora do veículo da marca ..., modelo .../P, de matrícula ..-EP-.. (artigo 3.º, da petição inicial). 4) Este veículo é utilizado pela Autora na sua atividade de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, de âmbito nacional ou internacional (artigo 4.º, da petição inicial). 5) O aludido veículo sofreu uma avaria ao nível do motor (artigo 5.º, da petição inicial). 6) A Autora contratou a Ré para proceder à sua reparação, tendo ficado convencionado que seria a Autora a fornecer as peças de substituição (artigo 6.º, da petição inicial). 7) O aludido veículo deu entrada na oficina da Ré, para ser reparado, no dia 07.01.2022 (artigo 8.º, da petição inicial). 8) No dia 04.05.2022, a Ré concluiu a reparação do veículo, tendo enviado à Autora um documento denominado “estimativa”, descrito pela Ré como “proforma”, com o valor de € 9.330,22 (artigo 9.º, da petição inicial). 9) Sucede que, tendo-se apresentado para levantar a viatura, a Autora foi impedida pela Ré de o fazer, tendo esta exigido o prévio pagamento da quantia de € 9.330,22 (artigo 10.º, da petição inicial). 10) Nunca a Ré, aquando das negociações do contrato de prestação de serviços supra descritos, informou a Autora que esta teria de proceder ao pagamento dos serviços no ato da entrega da viatura (artigo 12.º, da petição inicial). 11) A Autora e a Ré não eram desconhecidas, tendo esta no passado prestado serviços de idêntica natureza à Autora (parte do artigo 13.º, da petição inicial). 12) Apenas é possível verificar os serviços colocando a viatura em circulação (parte do artigo 14.º, da petição inicial). 13) A Ré comunicou à Autora o que consta da carta junta como documento n.º 10 à petição inicial, na qual se refere o seguinte (artigo 16.º, da petição inicial): 14) Em novembro de 2020, a Ré já tinha efetuado uma reparação, no mesmo veículo (parte do artigo 18.º, da petição inicial). 15) A Autora enviou à Ré as comunicações juntas enquanto documentos n.ºs 9 e 11 à petição inicial, cujo conteúdo se dá por reproduzido (artigos 19.º e 20.º, da petição inicial). 16) À data da entrada da petição inicial, a Ré continuava a impedir o levantamento da viatura (parte do artigo 19.º[1]). 17) A aludida viatura estava adstrita à cliente da Autora, EMP03..., ao abrigo de um contrato de aluguer que tinha por objeto o transporte de mercadorias de e para aquela (artigo 22.º, da petição inicial). 18) E a Autora não tinha outra viatura disponível para satisfazer as necessidades da cliente (artigo 24.º, da petição inicial). 19) Em 28.04.2022, aquela cliente comunicou à Autora o seguinte (artigo 24.º, da petição inicial)[2]: 20) Caso a Ré tivesse autorizado a Autora a proceder ao seu levantamento, esta poderia utilizá-lo no exercício da sua atividade comercial de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, de âmbito nacional e internacional (artigo 27.º, da petição inicial). - Oriundos da contestação: 21) A Autora não pagou voluntariamente à Ré faturas de maio e junho de 2019, num total de 1.008,17, quantia que pagou em 15.03.2020 após aposição de fórmula executória em requerimento de injunção (artigo 3.º, da contestação). 22) A Autora foi informada da necessidade do pagamento antes do levantamento da viatura (artigo 5.º, da contestação). 23) A Ré enviou a fatura relativa à reparação da viatura, pelo menos, através de carta registada com AR remetida a 27.10.2022, mas não foi levantada pela Ré (parte do artigo 23.º, da contestação). - Factos considerados nos termos do artigo 607.º/4, do CPCiv: 24) A fatura relativa ao preço da reparação da viatura foi emitida em ../../2022.
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- Factos não provados(com pertinência para a decisão da causa):
Discutida a causa, nãoresultaram provados: - Oriundos da petição inicial: a) A Autora convencionou com a Ré, quando a contratou, que procederia à reparação no prazo de 15 (quinze) dias (artigo 6.º, da petição inicial). b) No passado, sempre as viaturas reparadas eram entregues de imediato e o pagamento efetuado pela Autora em momento posterior (parte do artigo 13.º, da petição inicial). c) Até à data de entrada da presente ação, a Ré ainda não tinha enviado à Autora qualquer fatura (artigo 15.º, da petição inicial). d) Apenas é possível verificar os serviços realizados na viatura procedendo ao seu levantamento (parte do artigo 14.º, da petição inicial). e) A reparação aludida em 14) foi igual à que motivou a mencionada em 5) a 7), altura que o problema ressurgiu (parte do artigo 18.º, da petição inicial). f) Peles serviços indicados em 17), dos factos provados, a Autora faturava em média e mensalmente a quantia de € 10.000,00 (artigo 23.º, da petição inicial), gerando proventos mensais na ordem dos € 3.000,00, deduzidas todas as despesas de € 7.000,00 (artigo 28.º, da petição inicial). - Oriundos da contestação: g) Existiu atraso da entrega das peças por parte da Autora à Ré (artigo 2.º, da contestação).
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V. Fundamentação de direito.
1. – Nulidade(s) da sentença recorrida.
1.1. Na apelação interposta, sustenta a recorrente/Autora que, «[p]or não constar do elenco dos factos provados e/ou não provados a factualidade alegada pela A. nos artigos 11.º e 24.º (repetido) da petição inicial, relevante no contexto de todas as soluções de direito plausíveis, a (…) sentença recorrida padece de nulidade nos termos do art.º 662.º, n.º 2, al. c) do CPC»[3].
E, na sequência da prolação do despacho de 28/11/2024 (ref.ª ...08), no qual a Mm.ª Julgadora “a quo” procedeu à rectificação da sentença no tocante à al. 19), dos factos provados – procedendo à reprodução do texto do email enviado pela cliente EMP03... à Ré e que consta do documento n.º 6 junto com a petição inicial –, a recorrente/Autora invocou a nulidade por omissão do dever imposto pelo art. 590.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC (ref.ª ...65).
Isto porque, diz, tendo sido pela primeira vez confrontado com a «asserção de que o art.º 11.º da petição inicial não consubstancia uma alegação de facto (“tratou-se de uma afirmação sem substrato factual, e, como tal, não fez parte da factualidade objecto de resposta positiva ou negativa da sentença proferida”), (…), ainda que que se considerasse insuficiente ou deficitário o alegado no artigo 11.º, não estaria o Tribunal a quo dispensado de providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados nos termos do art.º 590.º, n.ºs 2, al. b), 3 e 4, do CPC».
E, caso disso se apercebesse após o encerramento da audiência de julgamento, podia e devia determinar a sua reabertura nos termos do art. 607.º, n.º 1 do CPC, para convidar a A. a concretizar aquela sua alegação e indicar os meios de prova.
Não o tendo feito e tendo a prova produzida incidido sobre a temática, não podia a A. razoavelmente contar a que o Tribunal “a quo” simplesmente ignorasse tal factualidade e a tivesse por não alegada, omissão (do dever imposto pelo art.º 590.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do CPC) que consubstancia, também e em si, uma nulidade, passível de influir no exame e decisão da causa, cuja arguição reitera.
Respondendo, dir-se-á que a objeção apontada à não seleção da factualidade alegada no art. 24º da petição inicial mostra-se já suprida na decorrência da prolação do despacho de 28/11/2024, onde se deu nota e reconheceu o (manifesto) lapso de escrita cometido (ref.ª ...08), o qual foi objeto de rectificação nos termos do disposto no art. 614º, n.º 1, do CPC.
Já quanto à invocada nulidade por omissão, na decisão da matéria de facto, da resposta ao art. 11.º da petição inicial, bem como por não ter sido proferido despacho convite, tem-se a mesma por insubsistente.
Importa desde logo ter presente a regra geral enunciada no art. 5º do CPC, donde resulta que o tribunal deverá considerar os factos articulados pelas partes que sejam essenciais, sendo que estes tanto podem constituir a causa de pedir e ter sido alegados pelo autor, como dizerem respeito a exceções invocadas pelo réu.
Assim, na enunciação dos factos provados como dos não provados cabe necessariamente uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa) sobre os factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as exceções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a ação ou a exceção proceda[4].
Acontece que, como refere Abrantes Geraldes[5], a decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, podendo – e devendo – algumas delas ser solucionadas de imediato pela Relação, ao passo que outras poderão determinar a anulação total ou parcial do julgamento.
Um dos vícios que naquela decisão pode ser detetado pode traduzir-se na integração na sentença, na parte em que se enuncia a matéria de facto provada (e não provada), de pura matéria de direito e que nem sequer em termos aproximados se possa qualificar como decisão de facto.
Dispõe o art. 607.º, n.º 4, do CPC, que, na fundamentação da sentença, o juiz tomará «em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência».
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o art. 646.º, n.º 4, previa, ainda, que têm-se «por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes».
Muito embora esta norma tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos[6].
O que significa que, quando tal não tenha sido observado pelo tribunal “a quo” e este se tenha pronunciado sobre afirmações conclusivas ou de direito, considerando-as provadas ou não provadas, deve tal pronúncia ter-se por não escrita[7].
Como é sabido, a distinção entre matéria de facto e matéria de direito tem sido controversa, quer na doutrina quer na jurisprudência.
Na formulação do Prof. Alberto dos Reis[8], «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei».
Deste modo, “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”[9].
Conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, os juízos conclusivos ou de valor não retratam ocorrências da vida real, quer internas, quer externas, mas sim o efeito e consequência dessas mesmas ocorrências, conclusões essas que cabe ao julgador extrair na prolação da sentença, dos factos dados como provados. Trata-se de matéria que não se cinge ao elencar do facto, mas tem em si, explicita ou implicitamente, considerações valorativas sobre esse facto, ou seja, apreciações que ultrapassam a objetividade do facto e trazem consigo a subjetividade da análise valorativa de uma determinada ocorrência da vida real. Dito de outro modo, só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova[10].
Ainda no âmbito das patologias de que a decisão da matéria de facto pode padecer, importa destacar o facto de outras decisões sob recurso “podem revelar-se total ou parcialmente deficientes”, “resultante da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, “de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”[11].
Verificado esse vício, para além de o mesmo ser sujeito a apreciação oficiosa da Relação, poderá esta supri-lo a partir dos elementos que constam do processo ou da gravação.
Pode, assim, “revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo”, faculdade esta que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objetiva de factos relevantes”; nesse caso, ao invés de anular a decisão da 1ª instância, se estiverem acessíveis todos os elementos probatórios relevantes, “a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas”.
O vício em causa será eventualmente subsumível ao regime específico previsto no art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC, do qual resulta que a Relação deve, mesmo oficiosamente anular “a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Com efeito, a deficiência da decisão da matéria de facto poderá decorrer da omissão de pronúncia quanto a algum facto controvertido, sendo de destacar que todos os factos controvertidos devem ser apreciados pelo tribunal, sem que entre eles possa ser estabelecida qualquer relação de prejudicialidade que dispense a pronúncia sobre outros[12].
Nesta conformidade, a aludida objeção – a falta de inclusão de factos invocados pela A./Recorrente no elenco dos factos provados –, não consubstanciando uma nulidade da sentença, deveria ser tão só ulteriormente analisada aquando da pronúncia sobre a impugnação da decisão da matéria de facto[13].
Contudo, uma vez que na decorrência dessa objeção a autora propugna também pela omissão de despacho convite, opta-se por dela se conhecer desde já nesta sede.
No caso em apreço a matéria que a recorrente pretende ver aditada ao elenco dos factos provados - a conduta da Ré [de exigir o pagamento do preço da reparação do veículo automóvel como condição de levantamento] não é conforme o uso e os costumes” (art. 11.º da petição inicial) – é manifestamente conclusiva, visto não retratar uma ocorrência da vida real, quer interna, quer externa, mas sim o efeito e consequência dessa mesma ocorrência.
Nada há, pois, a censurar ao facto da sua não inclusão quer nos factos provados, quer no rol dos factos não provados.
Socorrendo-nos da fundamentação aduzida no despacho de 28/11/2024 (ref.ª ...08), diremos que «o artigo 11.º, da petição, não consubstancia uma alegação de facto, relativa aos usos e costumes observados no âmbito do mercado da reparação automóvel. Constitui (tão-só) uma afirmação da parte no sentido de que a exigência do pagamento da reparação como pressuposto da entrega da viatura (vd. artigo 10.º, da petição) não é conforme com os usos e costumes. No entanto, nesse artigo 11.º, não são identificados os usos ou costumes violados. Seria mister, para constituir facto controvertido a sujeitar a instrução, que a Autora tivesse circunstanciado os referidos usos e costumes (p. ex., pagamento do preço do serviço quinze dias ou um mês ou dois meses após a entrega da viatura ou outros). Não o tendo feito, entendeu-se que se tratou de uma afirmação sem substrato factual, e, como tal, não fez parte da factualidade objeto de resposta positiva ou negativa na sentença proferida».
Por outro lado, ao invés do propugnado pela recorrente, não tinha o Tribunal de providenciar pelo aperfeiçoamento do articulado quanto à afirmação conclusiva alegada no art. 11º da petição inicial, posto que nos subsequentes arts. 12º a 19º a autora não deixou de alegar e precisar o que, na sua óptica, entendia ser a conduta desconforme da Ré em função quer do concreto negócio jurídico celebrado entre as partes, quer das relações comerciais transatas entre si havidas, quer do facto de não lhe ter sido enviada factura, assim como da comunicação subsequente da ré no sentido de que não lhe prestaria garantia dos serviços prestados.
De outro modo, quando a parte explicitasse uma (qualquer) asserção conclusiva para rematar ou contextualizar uma alegação fáctica, à cautela o tribunal ficaria sempre vinculado ao dever de convidar a parte a aperfeiçoar essa afirmação conclusiva, o que não nos parece adequado.
Relembre-se que a intervenção do juiz apontando defeitos na narração dos factos deve pautar-se por grande rigor e sobriedade, não cabendo ao juiz imiscuir-se nas opões assumidas pelas partes, nem sugerir outras alternativas, ainda que eventualmente mais vantajosas[14].
Termos em que se indeferem as apontadas nulidades da sentença.
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2. Da impugnação da decisão da matéria de facto.
2.1. Em sede de recurso interposto, a recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no art. 640º do CPC, o qual dispõe que:
“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)».
Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que a recorrente indica quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redação que deve ser dada quanto à factualidade que entende estar mal julgada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua ótica o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que fazem assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação e localização, procedendo inclusivamente à respectiva transcrição de excertos dos depoimentos que consideram relevantes para o efeito, pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o triplo ónus de impugnação estabelecido no citado art. 640º.
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2.2. Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o art. 662.º, n.º 1, do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Por referência às respetivas conclusões extrai-se que a autora/recorrente pretende:
i) a correção/modificação da redação do ponto 19 dos factos provados da decisão recorrida.
ii) a alteração da resposta positiva para negativa dos pontos 22 e 23 dos factos provados da decisão recorrida.
iii) a alteração da resposta negativa para positiva das alíneas b), c), d) e f) dos factos não provados da decisão recorrida.
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2.3. Vejamos circunstanciadamente cada um dos pontos impugnados.
- Ponto 19 dos factos provados.
A impugnação deduzida mostra-se prejudicada mercê da prolação do despacho de 28/11/2024 (ref.ª ...08), nos termos do qual a Mm.ª Julgadora “a quo” procedeu à rectificação (do lapso de escrita) da sentença no tocante ao mencionado ponto fáctico.
Com efeito, onde constava:
Ponto 19:
Em 24.04.2022, aquela cliente comunicou à Autora o seguinte:
Passou a constar:
Em 28.04.2022, aquela cliente comunicou à Autora o seguinte (artigo 24.º, da petição inicial):
Consequentemente, mostrando-se suprido o lapso de escrita – cuja rectificação coincide com a pretensão preconizada pela recorrente – nada mais há a decidir quanto a esse ponto.
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Ponto 22 dos factos provados da decisão recorrida.
O referido ponto fáctico impugnado tem o seguinte teor: «22) A Autora foi informada da necessidade do pagamento antes do levantamento da viatura (artigo 5.º, da contestação)».
A demonstração da referida facticidade resulta objetiva e inequivocamente do teor dos e-mails juntos pela própria recorrente com a petição inicial, sendo o primeiro datado de 27/04/2022[15] e o segundo de 04.05.2022.
No primeiro dos referidos emails é expressamente referido que:
“Conforme combinado com a D. AA, o pagamento / cheque deverá ser entregue aquando o levantamento da viatura (cheque para a presente data)”.
E no segundo email:
“Terminada a intervenção na v/viatura, segue em anexo proforma. O pagamento deverá ser entregue aquando o levantamento da viatura (cheque para a presente data)”.
A confirmação do teor dos referidos emails – que a recorrente não nega ter recebido, tendo inclusivamente sido ela quem os carreou aos autos –, mas sobretudo a razão da imposição da referida condição – pagamento do custo da reparação prévio ao levantamento da viatura – foi devidamente esclarecida pela testemunha AA, funcionária da Ré desde 2012, que exerce as funções de administrativa, que deu nota de um litígio anterior surgido entre as partes em que a autora se recusou a pagar voluntariamente faturas referentes ao custo de uma reparação, o que obrigou a ré a recorrer ao procedimento de injunção a fim de se fazer pagar do respetivo preço (cfr. ponto 20 dos factos provados).
Dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC (motorista da Autora) e EE (escriturário da Autora), depreende-se que o e-mail de 27/04/2022 foi enviado pela Ré na pressuposição de a reparação se encontrar terminada, se bem que se veio a verificar que era necessário efetuar mais operações (em virtude do motor apresentar limalhas).
Já o segundo e-mail, de 04.05.2022, respeita à data do termo definitivo da reparação.
Ora, como assertivamente se refere na motivação da sentença recorrida, «através destes e-mails, que estavam em poder da Autora (pois que os juntou com a petição inicial), esta teve conhecimento, antes de se apresentar para levantar a viatura, de qual era a posição da Ré quanto à questão do pagamento (veja-se que também a testemunha EE, escriturário da Autora, reconheceu que, nos e-mails recebidos, existia um alerta a respeito da necessidade de pagar). De referir que a prova deste facto – ou seja, de que, antes do levantamento, a Autora tinha sido avisada da necessidade de efetuar o pagamento imediato – não está em contradição com a prova, simultânea, de que, aquando das negociações tendo em vista a reparação, a Ré não informou a Autora de que deveria pagar o serviço no ato da entrega, uma vez que, enquanto a al. [22)][16] se reporta ao momento anterior ao levantamento daviatura (já após a reparação estar executada), a al. [10)] diz respeito ao momento da formação do contrato».
Termos em que improcede a impugnação do referido ponto fáctico.
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Ponto 23 dos factos provados e al. c) dos factos não provados.
Reproduzindo o seu conteúdo: «23) A Ré enviou a fatura relativa à reparação da viatura, pelo menos, através de carta registada com AR remetida a 27.10.2022, mas não foi levantada pela Ré (parte do artigo 23.º, da contestação)». «c) Até à data de entrada da presente ação, a Ré ainda não tinha enviado à Autora qualquer fatura (artigo 15.º, da petição inicial)».
Também nesta parte os argumentos erigidos pela recorrente são manifestamente insuficientes para fundamentar uma alteração da resposta aos mencionados pontos fácticos impugnados.
Como se constata do registo da carta de 27/10/2022 (cfr. fls. 34), a carta foi enviada para a seguinte morada:
Rua ..., ..., ... ....
A referida morada corresponde à sede da Autora e não oferece dúvidas de que a referida carta registada foi devolvida com a menção “objeto não reclamado”.
Pois bem, ainda que anteriormente as comunicações entre as partes se processassem habitualmente por email – nomeadamente o envio do documento denominado “estimativa”, descrito pela Ré como “proforma” –, a verdade é que à data do envio da referida missiva registada o litígio que subjaz à dedução da presente ação já havia eclodido, posto que, tendo-se a Autora apresentado na oficina no início de maio de 2022 para levantar a viatura, foi impedida pela Ré de o fazer, em virtude desta exigir o prévio pagamento da quantia de € 9.330,22, o que aquela recusou fazer.
Donde, em razão da ocorrência do referido litígio e prevenindo a necessidade de ter de demonstrar para efeitos probatórios a interpelação da devedora, se mostre justificado e plausível que a Ré tenha tido o cuidado de enviar carta registada (e não o envio de mero email) com a fatura relativa à reparação da viatura.
Acresce que, não obstante estar expressamente impugnado por falso o teor da missiva que alegadamente seguia no documento n.º 3 junto com a contestação, a verdade é que esse meio de prova podia – tal como foi – ser livremente apreciado pelo julgador, pois, como decorre do art. 607º, nº 5, do C.P.Civil, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção a cada facto”. Encontrando-se perante prova documental, o julgador pode dele retirar as ilações e inferências que julgue apropriadas e pertinentes face ao seu conteúdo, ou seja, avalia, estima e determina o seu valor probatório, fixando a materialidade adequada conforme a sua convicção (normalmente conjugada com os outros elementos probatórios produzidos)[17].
Não estava, por isso, a Mmª Juíza “a quo” impedida de, juntamente com os demais meios de prova produzidos – mormente o referido registo postal e o depoimento da testemunha AA, que atestou o litígio anterior –, valorar o teor de tais documentos tendente à formação da sua convicção.
Termos em que, pelas razões expostas se concorda com os critérios que conduziram a que a convicção da julgadora que presidiu ao julgamento em 1ª instância se tivesse formado no sentido expresso na resposta ao indicado ponto 23) dos factos provados.
Ainda que assim não fosse, jamais poderia ser dada como provada a facticidade objeto da al. c) dos factos não provados.
Isto porque, consoante doutrina e jurisprudência correntes, das respostas negativas à matéria articulada – e na medida em que o forem, das respostas restritivas também – resulta apenas que tudo se passa como se esses factos (não provados) não tivessem sido sequer alegados[18]. Ou, dito de outra forma, a não prova dos factos articulados apenas significa isso mesmo: não se terem provados os factos articulados, e não que se tenham demonstrado os factos contrários[19]. Ou, dito ainda de outro modo, a resposta negativa a um facto controvertido não significa a prova do facto contrário; significa tão-somente que esse facto controvertido não se provou, ou porque nenhuma prova foi produzida, ou porque a prova produzida se mostrou insuficiente para convencer o tribunal da veracidade desse facto[20]. O mesmo é dizer que a resposta de não provado a um determinado facto não implica, direta e necessariamente, que o facto contrário se deva ter por provado, mas apenas que o mesmo não se provou, por a prova produzida naqueles autos em concreto não ter logrado demonstrar a verificação do mesmo[21].
Improcede, assim, a impugnação deduzida.
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Aliena b) dos factos não provados. «b) No passado, sempre as viaturas reparadas eram entregues de imediato e o pagamento efetuado pela Autora em momento posterior (parte do artigo 13.º, da petição inicial)».
Sustenta a recorrente que «este facto deveria ter sido dado como provado por acordo, uma vez que o artigo 13.º da petição inicial não foi impugnado pela Ré na contestação. Também lida a Contestação no seu todo, não encontramos em nenhum momento a afirmação de que, no passado, a Ré tenha exigido à A. o prévio pagamento da reparação para permitir o levantamento das viaturas. Pelo contrário, o que a Ré alega no artigo 3.º e 4.º da contestação é que a necessidade de exigir o prévio pagamento do valor da reparação, como condição de levantamento da viatura, só surge após Maio e Junho de 2019, na sequência do atraso no pagamento de facturas do valor de cerca de €1.000,00; O que significa que, antes, tal condição não existia».
Vejamos.
Preceitua o art. 607º, n.º 4 do CPC que, «[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência».
Embora o legislador tenha consagrado o princípio da livre convicção da prova (art. 607º, n.º 5, 1ª parte do CPC), não deixou de instituir limitações a esse princípio.
Isso mesmo resulta do estatuído no n.º 5 do art. 607º do CPC, nos termos do qual o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, sendo que essa “livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Tais factos cuja prova resulta por admissão por acordo das partes estão submetidos ao regime da prova legal (tabelada ou tarifada), impondo-se ao juiz a força probatória de tais meios de prova, não tendo aquele qualquer margem de valoração acerca da factualidade expressa por tais meios probatórios[22].
Mas quais os factos que devem ser considerados admitidos por acordo ?
A lei dá resposta a esta questão ao prescrever que são de considerar admitidos por acordo:
- os factos (constitutivos da causa de pedir) alegados pelo autor na petição inicial que não forem impugnados pelo réu na contestação, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito (art. 574º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
- os factos (modificativos, impeditivos ou extintivos do direito invocado pelo autor) alegados pelo réu na contestação que não forem impugnados pelo autor na réplica (ou, não havendo lugar a esta, aquando do exercício do contraditório nos termos do art. 3º, n.º 4 do CPC), conforme resulta do n.º 1 do art. 587º do CPC.
Ora, como é sabido, “[a]s provas têm por função a demonstração da realidade dos factos” (art. 341º do Código Civil - abreviadamente designado por CC) e a “instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova” (art. 410º do CPC).
Logo, se os factos já estão admitidos por acordo, não há necessidade de sujeitá-los a qualquer produção de prova ulterior, posto que tal se traduziria na prática de um acto processual inútil, proibido por lei (art. 130º do CPC).
Revertendo ao caso dos autos e embora se reconheça que a Ré, na contestação, não impugnou, direta e expressamente, a matéria alegada no art. 13º da petição inicial, a verdade é que, como a própria recorrente reconhece, alegou nos arts. 3.º e 4.º da contestação que a necessidade de exigir o prévio pagamento do valor da reparação, como condição de levantamento da viatura, só surgiu após maio e junho de 2019, na sequência do não pagamento voluntário de facturas do valor de cerca de €1.008,17, o que obrigou ao recurso à via judicial para obter a cobrança de cerca de €1.000,00.
O que significa, para o específico efeito em apreço, que a facticidade alegada no art. 13º da petição inicial não pode (sem mais) dar-se como admitida por acordo, em virtude de estar em oposição com a defesa considerada no seu conjunto.
Contudo, sem grandes delongas, reconhece-se que em função da prova produzida, nomeadamente do depoimento da testemunha AA a facticidade em causa deverá ser parcialmente dada como provada, posto esta testemunha ter confirmado que, no passado, aquando da entrega das viaturas reparadas não era exigido à autora o pagamento imediato do preço da reparação (embora por vezes pagasse de imediato), o que só passou a ser feito a partir de 2019, aquando do não pagamento voluntário de facturas de maio e junho de 2019, tendo havido necessidade de recorrer à via judicial para obter a cobrança do respetivo valor.
Assim, impõe-se a eliminação da al. b) dos factos não provados e a sua transferência para o elenco dos factos provados, passando a valer, como ponto 25, com a seguinte redação: «b) Até ao ano de 2019, as viaturas reparadas eram entregues de imediato e o pagamento efetuado pela Autora em momento posterior».
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Alínea d) dos factos não provados.
A mencionada alínea impugnada apresenta o seguinte teor:
“d) Apenas é possível verificar os serviços realizados na viatura procedendo ao seu levantamento”.
Sustenta a recorrente estarmos perante um facto cuja evidência dimana das regras da experiência comum, posto que sendo a viatura em causa um camião, destinado ao transporte de mercadorias nacional e internacional e sendo vedado à A. a posse e uso da viatura, não lhe possível aquilatar se foi efectivamente reparada e, neste caso, se a reparação foi efectuada conforme as regras da arte, tornando impossível a formulação de qualquer reparo ou reclamação pela A..
Acrescenta que, «neste tipo de reparações, em que está em causa um componente fundamental do veículo (motor), em que a viatura é um instrumento de trabalho e em que esta tem de estar apta a circular sob elevado esforço (leia-se “peso”), por várias horas e muito quilómetros, diariamente, a verificação do estado da reparação só pode ser feita em condições de trabalho. O mesmo é dizer, que a viatura tem de ser entregue e colocada em circulação em condições normais de trabalho, pois de outra forma não é possível aquilatar do sucesso da reparação».
Também nesta parte não temos dúvidas em sufragar na íntegra a motivação da sentença recorrida.
Como aí se explicitou: «O facto não provado respeitante à necessidade do levantamento da viatura para efeitos de verificação da reparação – al. d), dos factos não provados – resulta de a realização da inspeção poder ser efetuada (ainda) sob o domínio da Ré: com a sua assistência ou em local ou em tempo a acordar com a mesma. De notar que a Autora, em momento algum, alegou que tenha solicitado o levantamento da viatura para efeitos de realizar a inspeção; o que invocou é que o levantamento era condição necessária para verificar a correção da reparação. No entanto, como se acabou de dizer, a Autora, para verificar a reparação (algo que – repete-se – não disse que, pedido, lhe tenha sido negado), precisava de a pôr em circulação, mas já não levantá-la de modo definitivo e integrá-la na sua atividade comercial, como pretendia».
A esta judiciosa fundamentação acrescentar-se-á, por referência às declarações de parte do legal representante da Autora, HH, que este jamais reportou que aquando da deslocação às instalações da Ré a fim de levantar a viatura reparada tenha exigido verificar se a mesma se encontrava conforme.
O dissenso centralizou-se, sim, no facto de a Ré ter exigido o pagamento prévio da reparação como condição do levantamento da viatura, afirmando o declarante que não tinha vindo preparado para proceder ao pagamento imediato, tendo-lhe sido rejeitada a possibilidade de levantar a viatura nos moldes anteriores, em que o pagamento seria apenas processado após a ulterior recepção da fatura. Aludiu também ao facto de não concordar com o valor faturado (reportando-se, presume-se, ao documento denominado “estimativa”, descrito pela Ré como “proforma”, com o valor de € 9.330,22 – cfr. fls. 14 v.º e 15), por tal se lhe afigurar exagerado e daí que tenha insistido para falar com o gerente da Ré, sr. II, o que não logrou fazer.
Contudo, reitera-se, em parte alguma das suas declarações aludiu ao facto de ter solicitado a realização de uma inspeção à viatura a fim de verificar se a reparação havia sido efetuada sem vícios e de tal lhe ter sido negado.
Nesta conformidade, improcede a impugnação em apreço.
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Alínea F) dos factos não provados.
A matéria objeto da alínea impugnado tem o seguinte conteúdo: «f-) Pelos serviços indicados em 17), dos factos provados, a Autora faturava em média e mensalmente a quantia de € 10.000,00 (artigo 23.º, da petição inicial), gerando proventos mensais na ordem dos € 3.000,00, deduzidas todas as despesas de € 7.000,00 (artigo 28.º, da petição inicial)».
Resposta pretendida: «f) PROVADO QUE mensalmente, como consequência directa e necessária da descrita conduta da Ré, a A. sofre um prejuízo patrimonial não concretamente apurado (parte do artigo 29.º da petição inicial)».
Fazendo alusão ao facto de o Tribunal “a quo” ter considerado insuficiente o depoimento prestado quanto a essa matéria pela testemunha EE, «pelo facto de a A. estar sujeita à contabilidade organizada e não ter junto aos autos suporte documental que permita quantificar o montante dos proventos passíveis de ser gerados pela viatura», a recorrente contrapõe não estar em causa que a viatura, colocada em circulação, não gerasse proventos, como também não está em causa que a sua privação, mercê da conduta da Ré, não tenha causado prejuízos à A.
Para tanto socorre-se da materialidade fáctica resultante dos pontos 4, 17, 18 e 20 dos factos provados para concluir que «a privação do uso da viatura, é objectivamente causa adequada de prejuízo na esfera jurídica da A.»; «o dano de privação do uso do veículo, inibindo o dono de exercer sobre o mesmo os inerentes poderes, constitui uma efectiva perda, conferindo o sistema legal ao lesado o direito à reconstituição natural da situação»; «[i]ndependentemente da alegação/prova de lucros cessantes e/ou danos emergentes, a mera privação da possibilidade do uso de um veículo automóvel constitui um dano indemnizável, a ser ressarcido em termos de juízo de equidade»;
Antecipando desde já a nossa resposta, dir-se-á que a pretensão impugnatória é manifestamente infundada.
Veja-se que a materialidade fáctica controvertida em discussão mostra-se devidamente concretizada e delimitada. Está especificamente em causa apurar se, pelos serviços prestados à cliente EMP03... com a referida viatura que foi objeto de retenção pela Ré, «a Autora faturava em média e mensalmente a quantia de € 10.000,00 (…), gerando proventos mensais na ordem dos € 3.000,00, deduzidas todas as despesas de € 7.000,00 (…)».
Como bem decidiu a Mm.ª Juíza “a quo”, a «inverificação da faturação bruta e do resultado líquido da Autora com a utilização da viatura (…) resultou do facto de aquela não ter procedido à junção de suporte documental quanto ao alegado a esse respeito. Sendo a Autora sujeita a contabilidade organizada, ter-lhe-ia sido acessível anexar aos autos prova relativa à faturação mensal pelos serviços de transporte que prestava à EMP03... com a utilização da viatura que está em causa nestes autos, referente a meses anteriores à entrada nas instalações da oficina Ré para reparação, tanto mais que, segundo a própria, o vínculo com a cliente já era existente. Pelo que, não o tendo feito, consideraram-se insuficientes as referências efetuadas por EE, escriturário da Autora e filho do seu sócio-gerente, quanto a essas matérias, por, como se disse, não terem sido corroboradas por prova documental fidedigna e ao dispor da Autora».
Acresce que da conjugação da materialidade fáctica constante dos pontos 4, 17, 18 e 20 dos factos provados não é possível extrair o montante da facturação respeitante aos serviços prestados com a aludida viatura à cliente EMP03....
Por fim, as demais considerações explicitadas pela recorrente quanto ao âmbito e natureza do dano da privação do uso constituem meras asserções conclusivas ou jurídicas, que são de todo irrelevantes para o concreto apuramento da facticidade controvertida. No fundo para o efeito releva o que já consta do ponto 20 dos factos provados.
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Artigo 11.º da petição inicial:
“A descrita conduta da Ré não é conforme o uso e os costumes”.
Pugna a recorrente pelo aditamento da referida materialidade, afirmando que, não obstante o Tribunal “a quo” não ter dado resposta, nem de provado, nem de não provado a esta matéria, «a prova produzida incidiu sobre a matéria e foi abordada por uma testemunha, mecânico de profissão, especializado em reparação de veículos pesados, sem qualquer contraprova da Ré».
A questão em apreço foi já objeto de pronúncia aquando da apreciação das nulidades da sentença, cuja fundamentação, por razões de economia processual e a fim de evitar repetições fastidiosas e inúteis, se dá aqui por integralmente reproduzida.
Como aí se ajuizou, a matéria que a recorrente pretende ver aditada ao elenco dos factos provados - a conduta da Ré [de exigir o pagamento do preço da reparação do veiculo como condição de levantamento] não é conforme o uso e os costumes” – é manifestamente conclusiva, visto não retratar uma ocorrência da vida real, pelo que nada há a censurar ao facto da sua não inclusão quer nos factos provados, quer nos factos não provados.
Ainda que assim não se entendesse, sempre se diria que o (único) meio de prova erigido pela recorrente para alicerçar a sua pretensão impugnatória – depoimento da testemunha GG – é manifestamente insuficiente à demonstração da mencionada alegação (conclusiva).
O referido interveniente acidental, mecânico por conta própria desde 1998, que presta serviços em camiões pesados, instado se era “normal, em reparações deste tipo de veículos, exigir-se o prévio pagamento para levantar a viatura”, respondeu depender “do momento. Normalmente, se são [clientes] habituais, só quando se manda a factura, não exigimos o pagamento anteriores».
E à pergunta formulada: «P: Portanto, não considera normal e nem habitual dizer: Desculpe, tem que pagar primeiro, senão não levanta o camião?»
Respondeu: - «Habitualmente não».
Mais disse que, normalmente, repara, envia a factura, o cliente levanta a viatura e o pagamento é posterior, «acontece ao longo de 30 dias».
Todavia, em sede de contra-instância confrontado com a hipótese do cliente lhe ter ficado a dever um serviço de reparação e de ter tido necessidade de recorrer ao tribunal a fim de cobrar o respetivo crédito e de, posteriormente, o cliente lhe voltar a solicitar um serviço, respondeu que nessa situação não deixaria levantar o camião sem o respetivo pagamento.
Ou seja, ainda que tenha reportado um tratamento especial para os clientes habituais, a verdade é que não deixou de referir que, em caso de um litígio anterior com o cliente – em que, regra geral, estes não voltam a aparecer na oficina, como expressamente referiu –, nessa hipótese faria depender a entrega da viatura do prévio pagamento.
Seja como for, por referência às regras da experiência comum e da normalidade da vida, e contrariamente ao que a recorrente pretende fazer valer, resulta que no ramo da reparação automóvel o uso e os costumes são o de que, por regra, o levantamento da viatura fica condicionado ao pagamento da reparação, posto só desse modo o empreiteiro/mecânico poder fazer valer o seu direito de retenção.
Por conseguinte, nada tendo sido provado que contrarie essa prática comum, sempre o pretendido aditamento da matéria seria de julgar improcedente.
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Em conclusão, com exceção da eliminação da al. b) dos factos não provados – dando origem à formulação do ponto 25 dos factos provados nos termos supra explicitados[23] –, mantém-se inalterada a demais matéria de facto impugnada.
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3. - Da ilegitimidade do exercício do direito de retenção.
Não vem posta em causa a qualificação do contrato em apreço como contrato de empreitada[24], na definição dada pelo art. 1207.º do Código Civil (CC), nos termos do qual “empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço”.
Como é sabido, o contrato de empreitada caracteriza-se da seguinte forma: a) pela existência da obrigação de uma das partes (empreiteiro) proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho que executa com autonomia em relação ao credor; b) que esse resultado se traduza na realização de uma obra em coisa imóvel ou móvel corpórea; c) que tenha como contrapartida um preço.
É essa, justamente, a espécie desenhada pelos factos provados.
De facto, no âmbito destes autos mostra-se provado que as partes celebraram entre si um acordo nos termos do qual a Ré obrigou-se em relação à Autora a realizar uma certa obra (reparação de uma avaria do veículo da marca ..., modelo .../P, de matrícula ..-EP-.., ao nível de motor), mediante um preço, estabelecendo-se, assim, entre elas um contrato de empreitada (art. 1207º do CC).
E, subscrevendo-se o aduzido na sentença recorrida, o facto de ter ficado convencionado que seria a Autora a fornecer as peças de substituição não desqualifica o contrato como empreitada, porquanto o art. 1210.º, n.º 1, do CC, apesar de estabelecer, como regra, que os materiais e utensílios necessários à execução da obra devem ser fornecidos pelo empreiteiro, admite a existência de convenção em contrário.
Na sentença recorrida, entendeu-se legítimo o exercício do direito de retenção da viatura (por para da Ré/empreiteira) até a realização do pagamento do preço, o que determinou a improcedência do pedido indemnizatório formulado pela autora, pelo menos até à realização da empreitada.
Do assim decidido discorda a autora, concluindo pela ilegitimidade do exercício do direito de retenção, porquanto:
- Previamente à prestação dos serviços, não existiu orçamento e as partes nada convencionaram quanto ao regime de preço, modo e prazo do seu pagamento.
- É indevido o prévio pagamento do preço, por tal consubstanciar o aditamento, unilateral, por parte da ré, de termos, cláusulas ou condições ao negócio jurídico, sendo que não consta que a A. tenha aceite essa condição;
- Além de que a Ré nem sequer apresentou à A. um preço, mas uma mera estimativa (ou pro-forma), tendo apenas procedido à emissão da factura muitos meses depois;
- Atenta a especificidade da empreitada (art. 1211.º, n.º 2 do Código Civil), faz apelo ao art. 3º, nº 2, iv), da Directiva 2011/7/EU, transposta para o art. 4º, nº 3, alínea d) e nº 4 do Dec. Lei n.º 62/2013;
- A Ré não alegou - nem provou - que a A. tenha aceite a obra, tendo-se limitado a impedir a A. de levantar a viatura;
- Porque as partes nada estipularam, para que a Ré pudesse exigir da A. o pagamento prévio à entrega o veículo teria, em primeiro lugar, de lhe comunicar o preço e não uma mera estimativa e, em segundo lugar, obter da A. a aceitação da obra, o que não alegou e nem provou ter ocorrido;
- No caso, não foram alegadas e nem se verificam alguma das circunstâncias que importam a perda do benefício do prazo (art. 757.º, n.º 1 do CC);
- Não há direito de retenção quando a parte contrária preste caução suficiente, o que sucedeu no caso;
- A viatura retida pela Ré é instrumento de trabalho da A. ou um objecto indispensável ao exercício da sua actividade, não havendo direito de retenção relativamente a coisas impenhoráveis (art. 756.º, al. c) do CC);
- A exigência de prévio pagamento de uma “estimativa” ou “pro-forma” da realização de reparação, como condição de entrega da viatura, não é conforme o uso e os costumes, não apenas em Portugal, mas também nos demais países da União Europeia, onde é usual o pagamento diferido dos bens e serviços (geralmente 30 dias).
Pois bem, não obstante os diversos e variados argumentos aduzidos pela recorrente, a questão a decidir restringe-se a perscrutar se o invocado direito de retenção por parte do empreiteiro (Ré) é, ou não, legítimo/fundado.
Importa, por isso, fazer uma breve abordagem sobre o instituto jurídico em apreço a fim de ulteriormente, em função da facticidade apurada, nos centrarmos nos aludidos argumentos que servem de fundamento à apelação.
O direito de retenção resolve-se no direito conferido ao credor que, por determinadas circunstâncias, tiver em seu poder certa coisa pertencente ao seu devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir (pagar o que lhe deve), mas também de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores[25].
O direito de retenção, independentemente da sua fundamental valência de garantia real, é, igualmente, um meio de autotutela com um escopo coercitivo/compulsório, similar ao da excepção de não cumprimento, ao permitir, na sua hipótese mais típica, ao legítimo detentor ou possuidor de uma coisa móvel ou imóvel alheia, só cumprir o seu dever de restituição quando estiver extinta a obrigação do credor, ou seja, quando este estiver disposto a pagar as despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados (art. 754º do CC)[26].
A função de garantia é assegurada pelo direito de retenção por uma via dupla: através de um efeito compulsório, resultante da pressão psicológica que a situação jurídica da retenção exerce sobre o dono da coisa; pela possibilidade de realização pecuniária, relacionada com as faculdades executivas, com pagamento preferencial da coisa retida, nos termos reconhecidos ao credor pignoratício e ao credor hipotecário (arts. 758º e 759º do CC[27]).
Segundo o disposto no art. 754.° do CC, haverá direito de retenção sempre que três requisitos se verifiquem cumulativamente: i) o retentor retenha licitamente a coisa que deve restituir a outrem [art. 756º, alínea a)]; ii) o retentor, devedor da restituição da coisa, seja simultaneamente credor daquele a quem ela é devida; iii) o crédito a garantir esteja diretamente conexionado com a coisa detida (conexão directa, material ou objetiva), devendo resultar de despesas feitas por causa da coisa retida ou por danos por ela causados[28].
Recorrendo aos exemplos-escola, o arrendatário obrigado a restituir o imóvel no fim do prazo contratual, se não tiver havido renovação ou prorrogação do contrato, gozará do direito de retenção se o seu crédito resultar de obras de conservação do prédio (benfeitorias necessárias) ou de danos causados pelo ruir do imóvel; bem como o mecânico (devedor da obrigação de entrega da coisa) poderá reter o automóvel até que seja cumprida a obrigação de pagamento dos serviços de reparação nele realizados[29].
Assim, se, por ex., um mecânico tiver reparado uma viatura, pode retê-la enquanto o dono da viatura não pagar a respetiva reparação. De outra forma, não podendo recusar a entrega ao abrigo da excepção de não cumprimento, a não ser alargando-se o âmbito sinalagmático do contrato, o dono da viatura fica enriquecido sem causa[30].
O direito de retenção tem, então, manifestamente, uma função compulsória, pois que a recusa de entrega da coisa serve para compelir o devedor ao cumprimento, razão pela qual se afirma que a retenção é, lato sensu, uma garantia de cumprimento.
Nos termos do regime geral do direito de retenção, o retentor não pode invocar o seu direito enquanto o seu crédito não estiver vencido, só o podendo fazer antes do vencimento se se verificar algumas das circunstâncias que levam à perda do benefício do prazo (art. 757º, n.º 1, do CC).
O art. 754º do CC constitui uma verdadeira cláusula geral do direito de retenção, no qual se estabelecem as condições em abstrato necessárias para que a um crédito seja reconhecida essa garantia, enquanto que no art. 755º, sob a epígrafe “Casos especiais”, se enumeram algumas situações onde o credor goza de igual direito.
Este último normativo prevê um conjunto de casos específicos de direito de retenção em que não existe ou se dilui a conexão objectiva entre o crédito do detentor e a coisa detida do artigo 754º do CC, tratando-se, em regra, de créditos nascidos no seio duma relação contratual (transporte, mandato, depósito, como dato, contrato-promessa sinalizado), que levam a um importante alargamento do campo de aplicação desta figura e da sua importância prática[31].
O direto de retenção resulta diretamente da lei (e não de negócio jurídico) e não está sujeito a registo.
Por fim, dizer que – como bem se assinala na sentença recorrida – no elenco do art. 755º do CC não está previsto o caso do direito de crédito do empreiteiro.
O direto de retenção, a conceder ao empreiteiro, é controverso na jurisprudência e doutrina nacionais no âmbito da empreitada de direito privado (sobretudo em situações de construção de imóveis)[32][33].
A posição maioritária vai no sentido de reconhecer ao empreiteiro o direito de retenção sobre a obra construída, inserindo-se no âmbito da cláusula geral estabelecida no art. 754º do CC. A qualquer credor (incluindo ao empreiteiro) será reconhecido o direito de retenção, desde que preenchidos os requisitos do art. 754º do CC[34].
Com efeito, o empreiteiro está obrigado a entregar uma coisa e o crédito do preço resulta de despesas feitas por causa dessa coisa; são despesas de construção, modificação ou de reparação. Nem seria de admitir que se atribuísse direito de retenção a quem realizou benfeitorias e não se concedesse ao empreiteiro que constrói, modifica ou repara uma coisa[35].
Como referem Ferrer Correia e Joaquim Sousa Ribeiro[36], “a obrigação complexiva assumida pelo empreiteiro é (…) integrada por duas prestações, funcionalmente interligadas, mas que se apresentam com autonomia, sendo evidente a sua diferenciação estrutural; uma traduz-se numa prestação de facto, a outra numa prestação de coisa, numa obrigação de dar ou de restituir. Ora, é precisamente sobre este último tipo de obrigações – obrigação de entregar certa coisa – que pode incidir o direito de retenção, desde que, concomitantemente, estejam satisfeitos os restantes requisitos do artigo 754º. O que, no caso da empreitada, não pode sofrer contestação: por causa da execução da obra, que representa o cumprimento da obrigação de facere, o empreiteiro teve que suportar despesas. A situação corresponde inteiramente à primeira variante de conexão material prevista naquele artigo – crédito resultante de despesas feitas por causa da coisa – pelo que o empreiteiro pode recusar-se a entregar a obra, retendo-a em garantia do pagamento dessas despesas”.
Também a jurisprudência tem vindo a entender, de forma maioritária, que o empreiteiro goza do direito de retenção como garantia das despesas efectuadas para a concreção da coisa a restituir ou a entregar[37].
Feitas estas considerações de índole jurídicas, vejamos o caso concreto.
No tocante ao vencimento da obrigação de pagamento do preço da reparação da viatura desde logo se dirá concordarmos na íntegra com o que foi decidido na sentença recorrida.
Dispõe o n.º 2 do art. 1211º do CC que o «preço deve ser pago, não havendo cláusula ou uso em contrário, no acto de aceitação da obra».
A lei relaciona a aceitação da obra com o vencimento da prestação do preço, pois aquela, para além de outros efeitos, nos termos do art. 805º, n.º 1, do CC, corresponde a uma interpelação do dono da obra para efeitos do pagamento da quantia devida. Justifica-se que assim seja, pois é com a aceitação da obra que, por regra, opera a transferência da propriedade da obra para o dono da obra. Trata-se, todavia, de uma regra supletiva.
Porém, se o dono da obra, em razão dos vícios de que a coisa padece, a não aceita, não está adstrito ao pagamento do preço[38].
Como se explicitou na sentença recorrida, «não se apurou que tenha existido convenção das partes (aquando da formação do contrato) sobre o prazo em que deveria ser efetuada a obrigação de pagamentodo preço da reparação [ponto 10 dos factos provados]. Por outro lado, nada foi indicado sobre a existência de usos de facto no comércio da reparação automóvel de acordo com os quais o dono da obra beneficia de prazo, para além da aceitação da obra, para efetuar o pagamento do preço. Com efeito, o que a Autora invocou é que as partes não eram desconhecidas e que entre elas existia um relacionamento comercial, onde não lhe tinha sido exigido anteriormente o pagamento da reparação. No entanto, essa prática (particular) não integra a noção de usos relevantes para efeitos do disposto no artigo 1211.º/2, do CCiv, estando antes em causa nesta disposição costumes de facto observados por uma generalidade de pessoas num determinado âmbito (e, neste caso, numa determinada atividade) (cfr. ainda artigo 3.º, do CCiv)».
Pelo que, «não se tendo apurado a existência de uso de facto relevante nem havendo convenção das partes, o preço deveria ser satisfeito no momento da aceitação da obra».
Em jeito de (mero) complemento dir-se-á que o regime previsto no Dec. Lei n.º 62/2013, concretamente no art. 4º, n.ºs 3, al. d) e 4[39] – diploma que transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, que estabelece medidas contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais –, nenhuma relevância assume, no caso, para efeitos do apuramento do momento da aceitação da obra, bem como para afastar o invocado direito de retenção.
Sustenta, porém, a recorrente que a «Ré não alegou e nem dimana dos factos provados que a A. tenha aceite a obra», resultando antes dos autos que a Ré impediu a A. de levantar a viatura
A aceitação da obra corresponde a um acto de vontade pelo qual o dono da obra declara que a obra foi realizada a seu contento, ao mesmo tempo que reconhece a obrigação de a receber e de pagar o preço.
A aceitação pode ser expressa, tácita (art. 217º do CC) ou presumida por lei (art. 218º do CC).
Será tácita a aceitação quando há uma receção material da coisa, como, por exemplo, se o dono da obra vai buscar à oficina o veículo que lá foi reparado[40].
Pois bem, no caso sub júdice concluída a reparação da avaria da viatura e tendo-se a Autora apresentado na oficina para levantar a viatura – e não se mostrando provado que tenha sido questionada a verificação da obra (art. 1218º do CC) –, é de concluir que ocorreu por parte da dona da obra uma aceitação tácita da obra.
É certo que a autora foi impedida pela Ré de proceder ao levantamento da viatura, tendo esta exigido o prévio pagamento da quantia de € 9.330,22.
Esta recusa de entrega da coisa, a verificarem-se os demais requisitos, consubstancia o exercício do direito de retenção previsto no art. 754º do CC.
Não se tratou duma imposição-surpresa, pois que anteriormente a Autora já havia sido informada da necessidade do pagamento antes do levantamento da viatura.
Tenha ou não sido aceite aquela condição pela dona da obra, a verdade é que, verificados os respetivos requisitos, trata-se de um direito que assiste à Ré, que emerge diretamente da lei e não de um negócio jurídico, a fim de compelir o credor da obrigação de entrega a cumprir a sua obrigação de pagamento do preço da reparação.
Não há que trazer à colação o regime estalecido no art. 757º, n.º 1 do CC – exercício do direito de retenção antes do vencimento do crédito –, posto que o crédito do empreiteiro (prestação do preço) venceu-se com o acto de aceitação da obra, que se deu quando a Autora se apresentou na oficina da ré e pretendeu proceder ao levantamento da viatura reparada.
O impedimento do levantamento da viatura bem se compreende na medida em que, sendo requisito do direito de retenção que ao exercer esse direito o retentor tem de antes deter licitamente a coisa retida, a subsistência do direito pressupõe igualmente a manutenção dessa mesma detenção, porquanto se a coisa for entregue o direito de retenção extinguir-se-á (art. 761º[41] do CC).
Donde para fazer valer validamente o seu direito de retenção a retentora tinha de manter esse poder material sobre a coisa retida, não podendo proceder à entrega da viatura à autora, como era por esta pretendido.
E, como assertivamente se assinalou na sentença recorrida,«o direito de retenção não era incompatível com a faculdade de verificação da obra antes da sua aceitação, mas apenas com o levantamento definitivo da viatura (e realização da prestação da entrega em resultado do cumprimento do contrato de empreitada). Porém, a Autora não alegou que tenha pretendido exercer esse direito, e tal lhe tenha sido negado pela Ré; o que disse é que esta, ao recusar a entrega, inviabilizou a inspeção prévia à aceitação, argumento que não se acompanha, por a colocação em funcionamento poder ter sido pedida por aquela e efetuada sem a quebra do domínio de facto por parte da retentora».
Concretizando a facticidade apurada, verifica-se que: a Ré procedeu à reparação da viatura pertença da Autora, que está obrigada a entregar-lhe, por força do contrato de empreitada que celebraram (a primeira como empreiteira e a segunda como dona da obra); a Ré ainda não procedeu a essa entrega por ser titular de um direito de crédito sobre a autora, que esta se recusou a cumprir; e o direito de crédito da Ré resulta precisamente do não pagamento do preço da reparação da viatura.
Mostram-se, assim, verificados os três requisitos positivos do direito de retenção (a detenção lícita de uma coisa alheia que deva ser entregue a outrem, o apresentar-se o seu detentor, simultaneamente, credor da pessoa com direito à entrega, e a existência de uma conexão directa e material entre o crédito do detentor e a coisa detida).
Mais se verifica que: a retenção da viatura, por parte da Ré, resulta da sua qualidade de empreiteira da reparação da avaria, pelo que a coisa retida não foi obtida ilicitamente (antes lhe tendo sido entregue voluntariamente); e as despesas de que resulta o crédito da Ré foram realizadas de boa-fé, no cumprimento do celebrado contrato de empreitada.
Por outro lado, a sentença recorrida responde cabal e fundadamente relativamente às objeções apontadas ao facto de a Ré não ter sequer apresentado à A. um preço, mas uma mera estimativa (ou pro-forma), tendo apenas procedido à emissão da factura muitos meses depois.
Como aí se explicitou, resultou provado que a factura foi emitida no dia ../../2022.
Assim, a data da sua emissão não observou as disposições previstas no Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), nomeadamente o estabelecido nos arts. 29.º, n.º 1, al. b), 36.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, al. b), porquanto, estando a reparação concluída a 04.05.2022, a Ré deveria ter emitido a respetiva fatura no prazo de 5 (cinco) dias.
Contudo, essa «irregularidade, considerados os condicionalismos do caso concreto, não legitimava (…) a não realização do pagamento do preço, uma vez que a Autora nunca alegou que, estando disposta a proceder ao pagamento do serviço, a Ré se tenha recusado a emitir a fatura. O que alegou é que esta se recusou a entregar a viatura sem que fosse efetuado o pagamento do preço. Caso a Autora pretendesse realizar a prestação a seu cargo e a Ré não emitisse a fatura, a questão poderia, eventualmente, ser perspetivada a outra luz (nomeadamente, da exceção de não cumprimento); no entanto, como se disse, essa hipótese não se verificou: a retenção do veículo pela Ré deveu-se à falta do pagamento do preço por parte da Autora e a não realização do pagamento em nada teve a ver com a falta de emissão de fatura».
Por corresponder a uma leitura e interpretação ponderada e adequada dos factos apurados e do regime jurídico aplicável, subscreve-se e adere-se a tal fundamentação.
Aduz, ainda, a recorrente que a viatura retida pela Ré constitui um instrumento de trabalho da A. ou um objecto indispensável ao exercício da sua actividade, sendo, portanto, insusceptível de penhora, o que exclui o direito de retenção.
Sendo o direito de retenção um direito real de garantia, que atribui ao seu titular um direito a ser pago com preferência pelo valor da coisa retida, não pode ter por objeto uma coisa que não seja suscetível de ser penhorada (art. 756º, al. c), do CC). A execução judicial desta garantia pressupõe naturalmente a possibilidade de a mesma ser penhorada e vendida no contexto de uma ação executiva[42].
Estabelece o n.º 2 do art. 737.º do CPC que «[e]stão também isentos de penhora os instrumentos de trabalhos e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executado, salvo se» a «execução se destinar ao pagamento do preço da sua aquisição ou do custo da sua reparação» [al. b)].
A isenção de penhora prevista no n.º 2 do citado preceito normativo, como é sabido, visa obstar a que a penhora ponha em risco a situação ou possibilidade de sobrevivência do executado e radica em razões intrinsecamente pessoais.
Quanto aos instrumentos de trabalho e aos objectos indispensáveis ao exercício da sua actividade, deve assim concluir-se pela inaplicabilidade da excepção ali estabelecida às sociedades comerciais, dado que os interesses de protecção da dignidade humana que se encontram presentes na garantia de impenhorabilidade do património do devedor singular não tem fundamento axiológico ou paridade identitária no caso das pessoas colectivas[43].
Mas ainda que se sufragasse posição diversa, em caso de incumprimento do pagamento do preço da reparação (do veículo da marca ..., de matrícula ..-EP-..), a penhora executiva desse bem destinar-se-ia ao pagamento do preço da respectiva reparação e isso autoriza a possibilidade de apreensão da mesma, ao abrigo da disciplina contida na alínea b) do n.º 2 do art. 737º do CPC.
Donde sempre seria de julgar inverificado o requisito negativo do direito de retenção previsto no art. 756º, al. c) do CC.
Por fim, quanto à alegação da prestação de caução suficiente a fim de excluir ou afastar o direito de retenção[44], evidencia-se que esta foi apenas requerida com a dedução da propositura da ação[45], pelo que só a partir da verificação da validade e idoneidade da caução prestada poderia a mesma passar a produzir efeitos (substituição do direito de retenção pela caução prestada).
Sucede que, mercê da transação parcial homologada em sede de audiência prévia, na qual a Ré autorizou o levantamento da viatura retida, com a consequente extinção da instância quanto aos pedidos formulados em a) e b) na ação, e quanto ao pedido reconvencional, a questão atinente à prestação de caução suficiente mostra-se prejudicada, por inutilidade superveniente.
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Em suma, merecendo plena confirmação a (bem elaborada) sentença recorrida, improcede a apelação.
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4. Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527º do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as respetivas custas serão da responsabilidade da recorrente (art. 527º do CPC).
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VI. DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente (art. 527.º do CPC).
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Guimarães, 13 de março de 2025
Alcides Rodrigues (relator)
António Beça Pereira (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)
[1] O artigo 19.º está referido em duplicado na petição inicial. Aquele a que se responde na alínea 16) é o mencionado em segundo lugar. [2] Na decorrência da retificação do lapso de escrita determinada no despacho de 28/11/2024 (ref.ª ...08).
A primitiva alínea tinha seguinte redação:
19) Em 24.04.2022, aquela cliente comunicou à Autora o seguinte (artigo 24.º, da petição inicial): [3] Cfr. Conclusão 2ª. [4] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, p. 718. [5] Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª ed., Almedina, pp. 291/293. [6] Cfr., neste sentido, Acs. do STJ de 28/09/2017, proc. n.º 659/12.6TVLSB.L1.S1 (relatora Fernanda Isabel Pereira) e proc. n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1 (relatora Fernanda Isabel Pereira), Acs. da RP 24/10/2016 (relator Oliveira Abreu) e de 18/09/2017 (relator Manuel Domingos Fernandes) e Ac. da RE de 3/11/2016 (relatora Maria da Graça Araújo), todos acessíveis inwww.dgsi.pt. [7] Cfr., Ac. RP de 23/04/2018 (relator Jerónimo Freitas), in www.dgsi.pt. [8] Cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 206-207. [9] Cfr. Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, p. 270. [10] Cfr. Acs. do STJ de 1/10/2019 (relator Fernando Samões), de 28/09/2017 (relatora Fernanda Isabel Pereira), de 29/04/2015 (relator Fernandes da Silva), de 14/01/2015 (relator Fernandes da Silva), de 14/01/2015 (relator Pinto Hespanhol) e de de 9/09/2014 (relatora Maria Clara Sottomayor); na doutrina, Tiago Caiado Milheiro, In Nulidades da Decisão Da Matéria de Facto, www.julgar.pt., e Antunes Varela, “Juízos de valor da lei substantiva, o apuramento dos factos na ação e o recurso de revista”, CJ, Ano XX, tomo IV, pp. 7 a 14. [11] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos (…), p. 293. [12]Cfr. Henrique Antunes, “Recurso de apelação e controlo da questão de facto”, Colóquio (sobre o novo CPC), acessível através de www.stj.pt. [13] No sentido de que no processo civil a insuficiência da decisão de facto, quando isso faz com que esta, por essa razão, seja "deficiente", se enquadra no disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c) do CPC [cfr. Ac. do STJ de 22/03/2018 (relator Tomé Soares Gomes), Ac. RC de 20/01/2015 (relator Henrique Antunes), Ac. RP de 16/12/2015 (relator Manuel Domingos Fernandes), Ac. RL de 16/03/2016 (relator António Alves Duarte) e Ac. da RG de 13/05/2021 (relator Beça Pereira), todos in www.dgsi.pt.], conhecendo logo o tribunal “ad quem” a matéria de facto em causa se o processo já reunir os elementos necessários para esse efeito; tal vício não se traduz, assim, na nulidade da sentença prevista na al. d) [nem na al. b)] do n.º 1 do art. 615.º do CPC. [14] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I (…), p. 680. [15] E não, como por lapso na motivação da sentença se indicou, de 08.04.2022. [16] Na motivação existe manifesto lapso de escrita, evidenciado pelo contexto da declaração, devendo ler-se al. 22 onde consta al. 10 e al. 10 onde consta al. 22. [17] Cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 14/02/2017 (relator Garcia Calejo), in www.dgsi.pt. [18] Cfr. Ac. Rel. Porto de 14.04.94, CJ, 1994, T. II, pág. 213; António Santos Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol., 1997, p. 236 e J. P. Remédio Marques, in Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2007, p. 409. [19] Cfr. Acs. STJ de 8.2.66, 28.5.68, 30.10.70, 11.6.71, 23.6.73, 5.6.73, 23.10.73, 4.6.74, in Bol. M.J., respetivamente, 154-304,177-260, 200-254, 208-159, 218-239, 228-195, 228-239 e 238-211; José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2001, p. 630. [20] Cfr. Ac. da RL de 13/05/2009 (relator Ferreira Marques), in www.dgsi.pt.. [21] Cfr. Helena Cabrita, A fundamentação de facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, pp. 177/179. [22] Cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., Almedina, 2017, p. 354 e Helena Cabrita, A fundamentação de facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, pp.196/200. [23] Por se tratar de uma modificação muito limitada, dispensamo-nos de transcrever de novo toda a factualidade provada, devendo considerar-se alterados aqueles pontos nos seus precisos termos. [24] Que é uma modalidade de contrato de prestação de serviço – art. 1155º do Código Civil. [25] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 4ª edição, vol. II., Almedina, Coimbra, 1990, p. 560. [26] Cfr. José Carlos Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 3ª ed., Universidade Católica Editora Porto, 2011, pp. 198/199. [27] Recaindo o direito de retenção sobre coisa móvel, o respectivo titular goza dos direitos e está sujeito às obrigações do credor pignoratício, salvo pelo que respeita à substituição ou reforço da garantia (art. 758º)
Daí que ela será executada através do recurso à via judicial, por meio de ação executiva, recaindo a penhora sobre a coisa retida, que será depois vendida
Incindindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de, nos casos em que o crédito assegura o reembolso de despesas para a conservar ou aumentar o seu valor, ser pago com preferência aos demais credores do devedor (art. 759º). [28] Nas palavras de Almeida Costa, não pode afirmar-se, consequentemente, que o instituto seja admitido com absoluta generalidade, mas tão só dentro dos limites definidos pelo último dos mencionados requisitos. Tal conexão de créditos constitui o seu alicerce básico (cfr. Direito das Obrigações, 6ª edição, Almedina, 1994, p. 852). [29] Cfr. Margarida Costa Andrade e Afonso Patrão, A nova redação do art. 759º do Código Civil – Primeiras Impressões, in Cadernos de Direito Privado, n.º 85, janeiro/março 2024, p. 23. [30] Cfr. José Carlos Brandão Proença, obra citada, p. 199, que, nas lições, dá como exemplo não o do mecânico, mas sim o do relojeiro que procede à reparação de um relógio. [31] Cfr. Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2ª ed., 2017, Almedina, pp. 360/361 e Almeida Costa, obra citada, p. 853. [32] Cfr. No sentido negativo, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II., 4ª edição, Almedina, 1990, p. 563; Salvador da Costa, Concurso de Credores, 3ª edição, Almedina, 2005, pp. 214/215. [33] Cfr. No sentido positivo, João Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., Almedina, 2002, p. 342, Galvão Teles, Inocêncio, in “O Direito”, Anos 106.º-119.º – 19774-1987, pp. 13-34; Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, Almedina, 2000, pp. 347/349; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, 5ª ed., 2016, Almedina, p. 233; João Serras de Sousa, Código Civil Anotado, Vol. I (artigos 1º a 1250º), 2017, Almedina (Coord. Ana Prata), p. 1497. [34] Cfr. Pestana de Vasconcelos, obra citada, pp. 362/365. [35] Cfr. Pedro Romano Martinez, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações - Contratos em Especial, UCP/Editora, 2023, p. 791. [36] Cfr. Parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência; Ano XIII, 1988, Tomo I, pp. 17 a 23. [37] Cfr., a titulo exemplificativo Acs. do STJ de 05/05/2005 (relator Ferreira de Almeida), de 10/05/2011 (relator Gabriel Catarino), de 29/01/2014 (João Bernardo), in www.dgsi.pt. [38] Cfr. Pedro Romano Martinez, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações - Contratos em Especial (…), pp. 789/790. [39] Cujo normativo, sob a epígrafe “Transações entre empresas”, prevê: «3 - Sempre que do contrato não conste a data ou o prazo de vencimento, são devidos juros de mora após o termo de cada um dos seguintes prazos, os quais se vencem automaticamente sem necessidade de interpelação: a) (…) b) (…) c) (…) d) 30 dias após a data de aceitação ou verificação, quando esteja previsto, na lei ou no contrato, um processo mediante o qual deva ser determinada a conformidade dos bens ou serviços e o devedor receba a fatura em data anterior ou na data de aceitação ou verificação. 4 - Caso esteja previsto um processo de aceitação ou de verificação para determinar a conformidade dos bens ou do serviço, a duração desse processo não pode exceder 30 dias a contar da data de receção dos bens ou da prestação dos serviços, salvo disposição expressa em contrário no contrato e desde que tal não constitua um abuso manifesto face ao credor na aceção do n.º 2 do artigo 8.º, sem prejuízo do disposto em legislação própria sobre transações de bens alimentares». [40] Cfr. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, (…), p. 407. [41] Sob a epígrafe “Extinção”, estabelece o citado normativo:
“O direito de retenção extingue-se pelas mesmas causas por que cessa o direito de hipoteca, e ainda pela entrega da coisa”. [42] Cfr. Ana Taveira da Fonseca, Comentário ao Código Civil - Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, anotação ao artigo 756º, Universidade Católica Editora, 2018, p. 1015. [43] Cfr. Ac. da RE de 07/11/2019 (relator José Galo Tomé de Carvalho), in www.dgsi.pt., com citação de vasta e abundante doutrina e jurisprudência sobre o assunto. [44] Estipula o art. 756º, al. d) do CC que, «[n]ão há direito de retenção» «d) Quando a outra parte preste caução suficiente».
O que significa que o direito de retenção, ao contrário do que sucede com a exceção de não cumprimento do contrato, pode ser afastada mediante a prestação de uma caução. [45] Cfr. art. 20º da petição inicial e comprovativo do depósito autónomo do montante de € 9.330,22, a título de caução unto com esse articulado inicial.