I- A Lei nº 122/2015 de 1 de Setembro veio estipular no nº 2 do artº 1905 que a obrigação de alimentos, prevista no artº 1880 do C.C., se mantém para depois da maioridade e até que o filho complete 25 anos de idade, salvo se o respectivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.
II- Cabe ao progenitor devedor dos alimentos, a fim de obstar a esta obrigação ou fazê-la cessar, o ónus de alegar e provar que:
-o processo de educação ou formação profissional do filho foi concluído antes de este perfazer os 25 anos ou foi voluntariamente interrompido por este;
-a falta de razoabilidade da obrigação alimentícia.
III-A obrigação de alimentos cessa quando o credor de alimentos viole de forma grave os deveres de respeito e consideração para com o seu progenitor, por ser irrazoável que este os continue a prestar (artsº 1874 e 1880 do C.P.C.)
IV- Entende-se que existe uma violação grave e objectiva dos deveres de respeito para com o seu progenitor, que justifica a cessação da obrigação de alimentos, as condutas da requerente que integram uma ofensa de direitos de personalidade do progenitor – publicando conteúdos ofensivos da honra e consideração a este devidas, em plataformas digitais de largo alcance - e de direitos patrimoniais, ao apagar e alterar dados de uma rádio de que este era administrador e da qual retirava proventos.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Recorrente: AA
Recorrido: BB
Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves
Juízes Desembargadores Adjuntos: Luís Miguel Caldas
Luís Miguel Carvalho Ricardo
Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
Mais requereu que a referida prestação fosse paga até ao oitavo dia de cada mês e que fosse anualmente actualizada de acordo com a taxa de inflacção divulgada pelo INE.
Para tanto, alega que completou 18 anos no dia ../../2021, é estudante, encontrando-se a frequentar a Licenciatura ... na Escola Superior ..., no Instituto Politécnico ... e que desde que o seu pai saiu de casa deixou parcialmente de contribuir para as suas despesas, sendo estas no valor mensal de € 150,00 a título de alimentação, vestuário, calçado, assistência médica e telefone; € 155,00 a título de renda pelo quarto onde vive; € 40,00 de comparticipação nas despesas da casa; € 50,00 em livros e material escolar; € 60,00 em transportes e € 697,00 em propinas, cujo pagamento é feito em dez prestações mensais.
Invoca ainda que não trabalha, nem aufere quaisquer rendimentos e que a exigência da comparência no curso torna praticamente incompatível o exercício de qualquer trabalho em part-time e que a sua mãe não tem meios económicos para a sustentar, auferindo o progenitor montantes decorrentes de concertos em que participa e recebendo da sua família o montante mensal de € 2.000,00.
Mais invoca que actualmente não possui as condições económicas para suportar o pagamento de uma prestação alimentícia à sua filha e que esta tem violado de forma grave e reiterada os deveres de respeito para consigo, podendo tal violação constituir causa de cessação da obrigação de prestar alimentos, pugnando pela sua absolvição.
“A sentença recorrida violou:
- a al. c) do nº 1 do artigo 2013.º do Código Civil, bem como o disposto no artigo 1880.º do Código Civil.
Com efeito:
1.º - ainda que a ora recorrida tenha violado algum dos seus deveres para com o progenitor, factos uns e outros que ocorreram circunscritos a um período de 2022, ano da separação de facto dos progenitores da ora recorrente, o Tribunal considerou provado que, após essas datas – cfr. Factos provados 19) “O requerido pagou as propinas de janeiro a outubro de 2023 e de janeiro a julho de 2024” e ainda 20) “Que o requerido pagou o alojamento até 2024.”;
2.º - ora tal comportamento por parte do ora recorrido – ao pagar tais prestações após as ocorrências que o Tribunal considerou fundamentais para afastar a obrigação de pagamento de alimentos-, revelam claramente um perdão por banda do ora recorrido pelos factos que a ora recorrente tenha eventualmente praticado, típicos da condescendência dos pais para com as atitudes dos filhos adolescentes ou no início da fase adulta como no presente caso pois que á data dos factos a ora recorrida ainda que de maioridade, com 19 anos de idade, está em período de formação;
3.º - com efeito, á luz das regras do direito, o ora recorrido não estava obrigada a satisfazer tais prestações no decurso dos anos de 2023 e 2024, porém continuou, de forma voluntária e mês após mês a satisfazer aquelas necessidades de sua filha;
4.º - aliás, em sede de tentativa de conciliação ocorrida a 24/05/2024, o ora recorrido declarou:
“Pelo requerido foi dito que tem pago o quarto da filha na quantia mensal de165,00€, pagando ainda a propina mensal de 65,00€, quantia essa que se compromete a continuar a pagar.
Disse que existe uma má relação entre pai e filha, pretendendo contestar a ação, sem prejuízo de vir a fazer acordo. “;
5.º - tal significa, á luz das regras da experiência comuns, que pese seja o ora recorrido a classificar a sua relação com a filha como “má”, e pese embora tais comportamentos possam ter “enxovalhado e muito ofendido” não foram suficientemente graves para determinar que o ora recorrido fizesse cessar de forma voluntária a prestação de auxílio monetário à filha: nem no ano de 2023, de janeiro a outubro, nem no ano de 2024 de janeiro a julho no pagamento das propinas e do alojamento, isto é respetivamente 1 (um) e 2 (dois) anos após a ocorrência dos factos que a sentença considerou como integrantes da exclusão – da obrigação de pagamento da prestação alimentícia – fundamentada na al. c) do nº1 do artigo 2013.º do Cód. Civil.
6.º- Ora, parece-nos claro que se assim é, não pode a sentença recorrida descurar aquele posterior comportamento do ora recorrido – mantendo o cumprimento de prestações alimentícias á sua filha- e considerar que os fatos praticados pela ora recorrente excluem aquele seu dever, precisamente porque os referidos pagamentos comportam intrinsecamente por parte do pai um perdão à filha pelos factos ocorridos. A atitude do pai, ao efetuar os referidos pagamentos sem qualquer obrigação legal porquanto não forma fixados alimentos provisórios, expressa o seu amor incondicional pela filha, a sua condescendência pelos comportamentos da filha proporcionando-lhe alguns dos meios necessários para que aquela conclua a sua formação, ainda que o comportamento da filha não seja, ou possa não ser o desejável, e que, não obstante, ainda que sem retorno do comportamento afetivo da filha sempre a apoiou.
7.º- Por outro lado aquela atitude até pode eventualmente ser qualificada objetivamente como falta de respeito, mas essa atitude face ao comportamento do pai ao assumir as referidas despesas de propinas e alojamento não assume perante o pai, e como tal não poderá assumir perante o Tribunal, gravidade suficiente que justifique a cessação do dever de prestar alimentos, por parte do pai.
8.º- Dito de outra forma, e recuperando o afirmado no acórdão de 22/6/2021 do Tribunal da Relação de Coimbra (relatado por Luís Cravo e disponível em www.dgsi.pt), parece “inquestionável o entendimento de que aquando da atribuição de alimentos, não se devem considerar situações de mérito ou desmérito, na medida em que os alimentos não são equiparáveis a uma recompensa ou sanção”. E, por isso, é que “é insofismável o entendimento de que só cessará o direito a alimentos ao filho maior se por culpa grave houver um comportamento deste que se traduza na prática intencional do facto invocado como fundamento para o pedido de alimentos ou a invenção intencional de condições propícias a esse facto, sendo que a prática de qualquer outro acto pelo filho maior, mesmo que a provocação ao progenitor ofensor, não lhe retira o direito de peticionar alimentos com base nas faltas do progenitor, embora deva ser tido em consideração na apreciação a gravidade dessas faltas em conformidade com o princípio da razoabilidade” (que emerge do art.º 1880º do Código Civil). Numa outra formulação, constante do acórdão de 8/3/2012 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Maria de Deus Correia, disponível em www.dgsi.pt e igualmente referido na sentença recorrida), “o amor incondicional dos pais pelos filhos exige que os primeiros lhes proporcionem os meios necessários para singrarem na vida, mesmo quando os filhos não têm o comportamento que deles é esperado”. E se assim é, tal comportamento só pode ser considerado como gravemente violador do dever de respeito do filho maior para com o progenitor obrigado aos alimentos (para efeitos de justificar a cessação dessa obrigação) na medida em que não mais seja razoável continuar a exigir ao progenitor que suporte as despesas desse filho maior, enquanto não concluir o seu percurso escolar e formativo.
Ora, a sentença recorrida ao considerar cessada a obrigação de pagamento de prestação alimentícia violou de forma grosseira o disposto na al. c) do nº 1 do artigo 2013.º do Código Civil, bem como o disposto no artigo 1880.º do Código Civil.
PELO EXPOSTO,
A sentença proferida ser anulada e substituída por outra que condene o Réu, ora recorrido, na totalidade do pedido formulado pela ora recorrida, isto é no pagamento a título de pensão de alimentos do valor mensal de 300,00€ (trezentos euros), a que acresce o pagamento de metade das despesas de saúde. Mais se requer que:
A. A referida prestação seja paga à requerente até ao oitavo dia de cada mês;
B. O requerido pague 50% do valor anual das propinas, na data do vencimento de cada prestação, até o requerente concluir os estudos;
C. A pensão de alimentos seja anualmente actualizada de acordo com a taxa de inflação divulgada pelo INE. assim se fazendo
JUSTIÇA!”
Foram interpostas contra-alegações pelo progenitor, pugnando pelo indeferimento do recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“1.º A Recorrente instaurou contra o ora Recorrido uma acção de alimentos a filho maior, que o ora Recorrido contestou e na sequência do julgamento, o Tribunal a quo, veio a absolver o Recorrido do peticionado pela ora Recorrente.
2.º A Recorrente não se conformando com a sentença proferida, veio dela interpor recurso.
3.º Sucintamente, entende a Recorrente que ainda que tenha violado algum dos seus deveres para com o progenitor, o facto deste ter pago despesas relacionadas com as propinas e com o alojamento daquela entre 2023 e 2024, revela “(...) claramente um perdão por banda do ora recorrido pelos factos que a ora recorrente tenha eventualmente praticado, típicos da condescendência dos pais para com as atitudes dos filhos adolescentes ou no início da fase adulta como no presente caso pois que á data dos factos a ora recorrida ainda que de maioridade, com 19 anos de idade, está em período de formação (...)”.
4.º Não obstante, salvo melhor opinião, entendemos que não assiste qualquer razão à Recorrente.
5.º Pois a factualidade apurada e supra mencionada, revelam, sem margem de dúvida, uma violação grave de respeito, por banda da Recorrente, relativamente ao Recorrido, seu pai, atentatória da sua personalidade moral, que ofende a dignidade pessoal, o respeito e a consideração que lhe são devidos pela Recorrente, sua filha.
6.º Com efeito, a Recorrente com tais comportamentos e outros que se vieram a concretizar/demonstrar, mesmo após a acção de alimentos, violou gravemente o dever de respeito devido ao seu pai, sendo tal conduta censurável do ponto de vista ético-jurídico, fundamentando a cessação da obrigação alimentar deste.
7.º Caso assim não se considerasse, estar-se-ia a premiar o comportamento censurável da Recorrente que vê o requerido apenas como sujeito de deveres e a desprezar outros valores, mormente o de respeito pela personalidade moral do mesmo, o que não se pode considerear como aceitável.
8.º A tudo isto, acresce o facto da Recorrente não ter qualquer relação com o pai, sendo que todos os contactos que tem são apenas com o interesse em exigir dinheiro e faltar ao respeito
ao pai.
9.º Sendo certo que não informa o pai sobre a sua situação escolar, não presta informações sobre o local em que reside, etc.
10.º Acresce que, com a própria acção de alimentos, a Recorrente não se coíbiu de fazer afirmações cujo intuito foi e é de apenas denegrir a imagem do pai, ora Recorrido.
11.º Veja-se a este propósito o alegado pela Recorrente na sua petição, designadamente, artigos 7.º, 13.º, 15.º, 24.º, 25.º, 43.º.
12.º Onde a Recorrente procura criar uma imagem negativa do seu pai, fazendo crer que este deixou de a auxiliar financeiramente e que é apenas graças à sua mãe que mantém os estudos.
13.º Não obstante, se verificar que é precisamente por causa do apoio do seu pai que se manteve a estudar, conforme os factos provados 19) e 20).
14.º Deste modo, dispõe o artigo 1880.º do Código Civil que: “Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete”.
15.º Decorre deste preceito que os pais são obrigados a prover ao sustento dos filhos e a assumir as despesas relativas à segurança, saúde e edução em relação aos filhos maiores ou emancipados, desde que:
a) no momento em que eles atingirem a maioridade ou forem emancipados, não tenham ainda completado a sua formação profissional;
b) seja razoável exigir aos pais o cumprimento dessa obrigação;
c) os filhos não ultrapassem o tempo normalmente requerido para que tal formação se complete.
16.º Ora, na situação dos autos não foi fixada uma prestação de alimentos durante a menoridade da requerente, uma vez que o divórcio dos pais ocorreu na sua maioridade (cf. factos provados em 1), 3) e 4)).
17.º No entanto, a Recorrente atingiu a maioridade no dia ../../2021 (cf. facto provado em 1)) e o processo de educação da requerente não se mostra concluído, tanto mais que está a frequentar o ensino superior (cf. facto provado em 5)).
18.º Deste modo, estão preenchidos os requisitos supra mencionados em a) e c), ou seja, a Recorrente encontra-se a frequentar curso superior, não tendo ainda, face à factualidade provada e à idade da requerente, decorrido tempo excessivo para tal.
19.º Pelo que, em princípio, importaria fixar uma prestação de alimentos a favor da Recorrente.
20.º Não obstante, a Recorrente encetou comportamentos que se traduzem numa violação grave do dever de respeito por parte de uma filha para com um pai, podendo e devendo tal violação constituir causa de cessação da obrigação de prestar alimentos.
21.º Com efeito, estipula o artigo 2013.º, n.º 1, al. c), do Código Civil que:
«A obrigação de prestar alimentos cessa:
c) Quando o credor viole gravemente os seus deveres para com o obrigado».
22.º Ora, a violação grave dos deveres gerais a que se refere o supra citado artigo e que impendem sobre o alimentado para com o alimentante, tendo por base o dever especial que impende sobre os pais para com os seus filhos e vice versa, ínsita no artigo 1874.º do Código Civil, apenas relevam se estiver em causa uma violação objectivamente grave desses deveres, nos quais se inclui o de respeito, a aferir com base no caso em concreto.
23.º Assim, o dever mútuo ou recíproco de respeito é entendido como dever de consideração pela vida, pela integridade física e pela personalidade moral de duas pessoas.
24.º Ora, como flui do artigo 1874.º do Código Civil, pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência.
25.º Importa, portanto, apurar no caso concreto que comportamentos são esses e se os mesmos se traduzem na aludida violação e se a mesma se afigura grave, estando assim reunidas as condições legais para a cessação da obrigação de prestar alimentos, por parte do pai, ora Recorrido.
26.º Com efeito, resultou demonstrado que a 19 de Setembro de 2022, a partir do perfil da CC, ex-cônjuge do requerido, no Facebook, a requerente alterou indevidamente os dados da página da Rádio ..., do qual era o administrador, apagando-lhe indevidamente as fotos, informações e alterando o horário de funcionamento como: «permanentemente fechado», bem como alterou a página do instagram da Rádio ... como «putas» e que com este comportamento o Recorrido se sentiu enxovalhado e muito ofendido.
27.º Mais se apurou que em data não concretamente apurada a Recorrente enviou mensagem para o grupo «...» consignando, em suma, o seguinte:
- que o seu pai, era um agressor, correndo um processo de violência doméstica contra o mesmo por agressões a si e á sua mãe;
- que desde a queixa saiu fugida de casa, juntamente com a sua mãe e irmã de 9 anos, porquanto ele ameaçou matar a mãe caso ela voltasse;
- que não lhe transfere um cêntimo sequer para comer ou qualquer outra coisa;
- que chegou a presenciar o requerido a falar de si e da sua mãe, inclusive num evento de «forró» no parque verde em que o colectivo esteve presente, deturpando histórias e mostrando ilegalmente um vídeo da sua mãe de sutiã e cuecas e onde alega estar a sofrer de violência pelas mãos dela.
28.º Grupo este que tinha um grande alcance, chegando a inúmeras pessoas.
29.º Ora a factualidade apurada e supra mencionada, revela, sem dúvida, uma violação grave de respeito, por parte da Recorrente, relativamente ao Recorrido, seu pai, atentatória da sua personalidade moral, que ofende a dignidade pessoal, o respeito e a consideração que lhe são devidos pela requerente.
30.º “Ao adoptar tais comportamentos, conscientes, voluntários, e sem qualquer justificação aceitável, pois dos autos não resultam elementos que o justifiquem, ou pelo menos que a tomem compreensível à luz do senso comum e, consequentemente, diminuíam sensivelmente a sua culpa, a requerente violou gravemente o dever de respeito devido ao seu pai, com o conteúdo acima referido, sendo tal conduta censurável do ponto de vista ético-jurídico, fundamentando a cessação da obrigação alimentar deste.”
31.º Caso assim não se considerasse, estar-se-ia a premiar o comportamento censurável da Recorrente que vê o Recorrido apenas como sujeito de deveres e a desprezar outros valores, mormente o de respeito pela personalidade moral do mesmo, o que não se considera aceitável.
32.º E não se diga que o facto do Recorrido ter pagado as propinas entre Janeiro a Outubro de 2023 e de Janeiro a Julho de 2024 e por ter pagado o alojamento até 2024, que tal revela “(...) claramente um perdão por banda do ora recorrido pelos factos que a ora recorrente tenha eventualmente praticado, típicos da condescendência dos pais para com as atitudes dos filhos adolescentes ou no início da fase adulta como no presente caso, pois que á data dos factos a ora recorrida ainda que de maioridade, com 19 anos de idade, está em período de formação (...)”.
33.º Pois, não apenas a Recorrente praticou, pelo menos os factos acima enunciados, como nunca pediu desculpas por tais comportamentos, tendo demonstrado em sede de audiência e julgamento, que não tem qualquer relação com o pai e que não pretende ter uma relação com o pai, sendo certo que os contactos que enceta com o mesmo são apenas com o fito de lhe cobrar dinheiro para a satisfação das suas despesas.
34.º E porque assim é, salvo melhor opinião, não parece razoável exigir que um pai que é visto pela Recorrente como mera fonte de rendimentos, continue a prover ao sustento, saúde e educação de uma filha maior quando esta não cumpre, em relação a ele, os apontados deveres de respeito (cf. Ac. TRP de 17-02-94, CoI. Jur. Ano XIX, T -1, p.240).
35.º Desde logo, pelo modo como se dirige ao Recorrido, aos emails acusatórios, às várias situações em que procurou afectar o bom nome e a honra do pai, seja pelos ataques nas redes sociais, seja em vários momentos em que a Recorrente e o Recorrido se encontraram em eventos sociais, bem como, pelo facto de não prestar quaisquer informações sobre a sua situação escolar e sobre a sua vida no geral.
36.º Assim, verificamos que não há qualquer relação entre pai e filha e a que há, verificamos não existir qualquer respeito por parte da Recorrente, havendo efectivamente uma violação grave do dever de respeito para com o Recorrido, pelo que tal deverá constituir causa de cessação da obrigação de prestar alimentos após a maioridade, nos termos do art. 1874º do C.Civil.
37.º Pelo que apenas podemos concluir que a Recorrente violou gravemente o dever de respeito para com o pai, não sendo, por isso razoável que este lhe preste alimentos até completar os seus estudos, conforme estabelece o disposto nos artigos 1905.º, n.º 2 e 2013.º, n.º 1, al. c), ambos do Código Civil.
38.º E assim e nestes concretos termos esteve bem o Tribunal a quo ao ter julgado a acção improcedente por não provada e consequentemente ter absolvido o ora Recorrido.
TERMOS EM QUE, O RECURSO DA RECORRENTE NÃO DEVE PROCEDER E, CONSEQUENTEMENTE, DEVERÁ A DOUTA SENTENÇA MANTER-SE, FAZENDO-SE A HABITUAL
JUSTIÇA!”
***
QUESTÕES A DECIDIR
Nestes termos, a única questão a decidir consiste em apurar se a credora de alimentos violou de forma grave reiterada os deveres de respeito para com o seu progenitor, por forma a integrar a previsão do artº 2013, nº1, al. c) do C.C., como defendido pelo tribunal recorrido.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1) AA está registada como filha de BB e de CC e como tendo nascido a ../../2003.
2) Em outubro de 2018, os pais da requerente, juntamente com esta e com os dois irmãos, DD e EE, mudaram-se para Portugal, para aqui se estabelecerem em definitivo.
3) BB e CC encontram-se separados de facto desde ../../2022, vivendo separados desde então.
4) BB e CC encontram-se divorciados, na presente data, por sentença transitada em julgado, no âmbito do processo n.º 4200/23...., que correu termos no Juiz ..., do Juízo de Família e Menores ....
5) AA é estudante, encontrando-se a frequentar a Licenciatura ... na Escola Superior ..., no Instituto Politécnico ....
6) Gasta com alimentação, vestuário, calçado e assistência médica, uma média mensal de valor não concretamente apurado.
7) Vive em quarto arrendado, tendo pago a título de renda no período de 31-10-2023 e 01-10-2023 a quantia de € 155,00 (cento e cinquenta e cinco euros) e uma média de € 40,00 (quarenta euros) na comparticipação das despesas da casa.
8) No ano lectivo de 2023/2024 incorreu em despesas a título de propinas no montante anual de € 697,00 (seiscentos e noventa e sete euros).
9) A exigência da comparência no curso referido em 5), torna praticamente incompatível o exercício de qualquer trabalho em part-time.
10) A requerente não trabalha.
11) CC exerce a profissão de técnica de actividades culturais, auferindo um vencimento correspondente ao Indexante dos Apoios Sociais e ajudas de custo.
12) CC paga mensalmente uma renda de casa no valor de € 460,00 (quatrocentos e sessenta euros).
13) BB desempenha a actividade profissional de músico, por conta própria.
14) Encontra-se a frequentar o Doutoramento ..., na Faculdade ..., da Universidade ....
15) Todos os meses lhe são transferidos pela família montantes de valor não concretamente apurado mas entre os € 1.500,00 (mil e quinhentos) e os € 2.000,00 (dois mil euros).
16) O requerido paga uma propina mensal no âmbito do doutoramento aludido em 14), no valor de € 142,50 (cento e quarenta e dois euros e cinquenta cêntimos).
17) Paga a título de renda de habitação, o valor mensal de € 600,00 (seiscentos euros).
18) A que acresce o valor referente aos consumos de electricidade no valor mensal de € 80,00 (oitenta euros), do consumo de água e da utilização do telefone e telemóvel, de valores mensais não concretamente apurados, sendo que neste último se enquadra o telemóvel do filho DD.
19) O requerido pagou as propinas da requerente, no valor mensal de € 65,00 (sessenta e cinco euros) de janeiro a outubro de 2023, dezembro de 2023 e de janeiro a Junho de 2024.
20) O requerido pagou o alojamento da requerente, no valor mensal de € 155,00 (cento e cinquenta e cinco euros) até julho de 2024.
21) O requerido paga a propina mensal do seu filho DD, no valor de € 70,00 (setenta euros).
22) O pai do requerido foi operado e foi diagnosticado à mãe a doença de Parkinson, passando os mesmos a necessitar de maiores cuidados.
23) No dia 08 de março de 2022, o requerido foi ao dia da mulher que teve lugar na Praça ....
24) A 19 de setembro de 2022, pelas 23h26m, a partir do perfil da CC, ex-cônjuge do requerido, no Facebook, a requerente alterou indevidamente os dados da página da Rádio ..., do qual era o administrador, apagando-lhe indevidamente as fotos, informações e alterando o horário de funcionamento como: «permanentemente fechado», bem como alterou a página do instagram da Rádio ... como «putas».
25) Com este comportamento o requerido sentiu-se enxovalhado e muito ofendido.
26) Em data não concretamente apurada a requerente enviou mensagem para o grupo de whatsapp do «...» com o seguinte teor «Olá gente, tudo bem? É extremamente desconfortável porém aimda de extrema importância ter que abordar isso. Esse homem de chapéu na foto é meu pai, agressor que está atualmente com processo de violência doméstica na justiça após 2 décadas agredindo a mim e a minha mãe.
Não sei mais oq é preciso dizer, pois apesar de sentir q só essa info basta, venho sentindo que constantemente devo me explicar. Enfim, sou parte do coletivo desde que cheguei aqui em Portugal e adoraria que este continuasse não só a ser um espaço seguro para mim (que não é enquanto meu pai agressor estiver presente), como também um espaço coerente para com o seu ethos.
Desde a queixa, dia 2 de julho desse ano, eu, minha mãe e minha irmã de 9 anos saímos fugidas de casa. Ele segue com o dinheiro q tb é da minha mãe, a casa, comprou outro carro e enfim, movimentos clássicos e infinitamente tristes da violência machista.. enquanto isso, não me transferiu 1 cêntimo sequer para comer ou qualquer outra coisa. Minha mãe, desempregada, está sobrevivendo de doações da família dela e apoios estatais (bem basicos) daqui.
Tudo isso pra contextualizar a gravidade da coisa.
Já cheguei a presenciar ele falando de mim e da minha mãe, inclusive no evento de forró no parque verde em que o coletivo esteve presente, deturpando histórias e mostrando ilegalmente um vídeo da minha mãe de sutiã e calcinha em q ele alega estar sofrendo violência pelas mãos dela.
To explicando tudo isso pq to cansada de estar na frente das pessoas e falar de coração e feridas abertas do que passei desde sempre e basta um vídeo, um fragmento de momento decorrente de 20 anos de violência, que meu pai consegue fazer as pessoas "sem saber quem está certo".
Imparcialidade é política, bem como voto nulo.
Pode ser a primeira vez q alguns de vcs passam a saber sobre isso, mas infelizmente, sei que outres aqui, que na teoria dividem os mesmos valores, não só sabem, como ESCOLHEM olhar feio para minha mãe e dar literalmente palco para o meu pai.
Não da para estarem mais em cima do muro... ou pelo menos, que o coletivo se posicione contra a violência machista e não só grite "NÃO PASSARÃO!" em dias de manifestação. Saímos fugidas pq ele ameaçou matar a minha mãe caso ela voltasse.»
27) Na primeira semana de outubro de 2022, o programa da Rádio ... que era transmitido pela Rádio ... há alguns anos, foi retirado da grelha.
28) A requerente não tem qualquer relação de pai/filha com o requerido e apenas fala com este para lhe cobrar dinheiro.
Da prova produzida em audiência de julgamento não resultou provado que:
a) O valor que gasta com o descrito em 6) é de € 150,00 (cento e cinquenta euros);
b) Em livros e diverso material escolar como fotocópias e material para artes plásticas, a requerente gasta uma média de € 50,00 (cinquenta euros);
c) A requerente se desloca a Coimbra todos os fins de semana e cada bilhete proveniente das ... até Coimbra tem um custo de € 11,20 (onze euros e vinte);
d) As despesas da requerente são, com muito esforço e sacrifícios, pagas pela sua mãe, que muitas vezes recorre a ajuda de amigos;
e) CC tem a seu cargo o restante agregado familiar, que inclui os filhos DD e EE;
f) O requerido aufere um rendimento mensal por conta dos variados concertos que lhe são requisitados como intérprete de saxofone;
g) A requerente não aufere quaisquer rendimentos, nem tem qualquer experiência profissional;
h) A requerente apenas tem conseguido subsistir através de ajudas da mãe e amigos.
i) O requerido paga a título de pensão de alimentos, relativamente à sua filha EE, a quantia mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), mais o valor de cerca de €100,00 (cem euros) mensais quando a filha fica consigo.
j) Os consumos de água aludidos em 18), ascendem à quantia de € 80,00 (oitenta euros) por mês;
k) A utilização do telefone e telemóvel referida em 18) ascendem ao valor de cerca de € 85,00 (oitenta e cinco euros) por mês e que neste valor se enquadre o telemóvel da requerente;
l) Em virtude de assaltos à sua habitação o requerido viu-se obrigado a contratar os serviços de alarme no valor de € 45,00 (quarenta e cinco euros);
m) Em virtude das necessidades do seu doutoramento, o requerido tem a obrigação de se deslocar ao longo do país, o que tem um custo mensal mínimo de € 200,00 (duzentos euros) mais € 75,00 (setenta e cinco euros) em portagens;
n) O requerido gasta com os seus custos normais de vida cerca de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros);
o) Por conta do referido em 22) os pais do requerido deixaram de o conseguir apoiar nos moldes descritos em 15);
p) No dia aludido em 23) e nas circunstâncias de lugar aí descritas a requerente quando falava no megafone, a apontar para o pai, aqui requerido disse em praça pública para toda a gente ali presente, que aquele era «abusador» e «agressor» dela.
q) O descrito em 27) ocorreu em função de um processo que a requerente levou ao conhecimento dos mesmos.
r) No fim de Outubro ou início de Novembro de 2022, a requerente foi ao Ateliê..., espaço cultural de Coimbra, e contou as mesmas, factos após o qual, cessaram as negociações de parcerias que estavam a decorrer entre o requerido e aquele espaço cultural.
s) Em 03-03-2023 a requerente enquanto puxava pela mãe da sua irmã e filha do requerido, olhou para este e disse: «morre….vem EE, não fica falando com este verme escroto! Sai de perto desse lixo!».
t) Em outra ocasião, enquanto o requerido falava com a sua filha EE, a requerente falou em voz alta, o seguinte: «Só faz merda mesmo, só faz merda!»
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Esta realidade alterou-se após a revolução de 25 de Abril de 1974, com a adopção de um conjunto de princípios fundamentais delimitadores da esfera de actuação do legislador ordinário[5], corporizados na Constituição da República Portuguesa de 1976, como o da solidariedade familiar e o da igualdade, decorrente da imposição de idênticos direitos e deveres a ambos os progenitores, de educação e manutenção dos seus filhos (artº 36 nº5)[6] e a consagração constitucional do direito ao ensino e formação profissional dos jovens (cfr. artºs 70 e 74)[7].
A Reforma do Código Civil pelo D.L. 496/77 de 25 de Novembro visou a compatibilização do ordenamento civil com estes princípios constitucionais (cfr. artº 293 nº1 e 3 da CRP)[8], introduzindo um conjunto de preceitos legais de protecção da família e dos filhos[9], incluindo o dever de ambos os progenitores contribuírem para o sustento de filho maior ou emancipado (artºs 1879 e 1880 do CC), dever que subsiste ainda que um deles esteja inibido de exercer as responsabilidades parentais (artº 1917 do CC).
Esta obrigação de alimentos a filho maior ou emancipado, também denominados de “educacionais” por contraponto aos fixados a menores com vista ao seu sustento, para além dos requisitos gerais, constantes do artº 2004 do CC, obedecia ainda a três pressupostos específicos: não haver o filho maior completado a sua formação, a razoabilidade da imposição dos alimentos aos progenitores e a conclusão desta formação no tempo normalmente requerido para o efeito, conceitos indeterminados, a definir jurisprudencialmente[10].
Tratando-se de regime inovador[11], não foi pacífico na sua aplicação, dividindo-se a doutrina e jurisprudência entre aqueles que entendiam que a obrigação de alimentos fixada na menoridade - decorrente de acordo ou decisão judicial no âmbito da regulação de poder paternal - caducava com a maioridade do alimentado e aqueles que entendiam que esta obrigação de alimentos se mantinha após a maioridade, cabendo ao obrigado à sua prestação o dever de intentar acção para a sua cessação.
Para a primeira posição, que fez vencimento na nossa jurisprudência[12], cabia ao filho, maior ou emancipado, demandar o(s) progenitor(es) obrigado(s) à sua prestação, com o consequente ónus de prova da verificação dos requisitos gerais (constantes do artº 2004 do CC) e específicos (constantes do artº 1880 do CC) para a atribuição de alimentos. Em defesa desta posição, invocavam-se argumentos de ordem formal, decorrentes de uma interpretação literal do artº 1412 do CPC (aprovado pelo D.L. 44.129 de 28 de Dezembro de 1961 e mantido pelo D.L. 329-A/95 de 12 de Dezembro) e por se entender que a obrigação de alimentos devida a filhos menores decorria do exercício das responsabilidades parentais, que se extinguiam com a maioridade.
Já a maioria da doutrina[13] e parte da nossa jurisprudência[14] rejeitavam a cessação automática dos alimentos fixados na menoridade, quer por esta não constar das causas de caducidade previstas no artº 2013 do CC, quer ainda por da letra do nº2 do artº 989 do CPC decorrer que a maioridade ou emancipação, não impedia a conclusão dos processos pendentes para fixação de alimentos devidos a menor.[15] Esgrimiam ainda razões sociais decorrentes de, com a antecipação da idade legal da maioridade e como efeito directo das políticas prosseguidas no sentido de promover o acesso ao ensino superior, a maioria dos jovens prosseguir os seus estudos após os dezoito anos, carecendo da atribuição de meios de subsistência. Por último, a manutenção destes alimentos, prevenia a eventual disrupção de laços familiares, resultante da interposição de acções, visando a sua fixação, pelos filhos contra o(s) seu(s) progenitor(es).
Esta controvérsia cessou com a publicação da Lei nº 122/2015 de 1 de Setembro, na qual, ao introduzir-se um nº2 ao artº 1905 do CC se explicitou, de forma inequívoca, que se mantém para depois da maioridade a pensão fixada em benefício do filho maior durante a sua menoridade e até que perfaça os 25 anos (pondo fim à indefinição temporal que resultava do regime anterior).
Não sendo exemplo da melhor técnica legislativa a introdução de um novo número a este preceito, ao invés de se alterar o próprio artigo 1880, desta alteração resulta assente que cabe ao progenitor obrigado a alimentos, o ónus de alegar e provar, em acção intentada para o efeito, as causas de extinção da obrigação, ou seja, que:
-o processo de educação ou formação profissional do filho maior se concluiu antes daquela data[16];
-que foi livremente interrompido pelo filho maior; ou ainda
-a irrazoabilidade da sua exigência, mormente por o filho maior deles não necessitar, ou por o obrigado à sua prestação não ter meios para os prestar (por recurso aos princípios gerais constantes do artº 2004 do C.C.), ou ainda pela violação grave dos deveres de respeito impostos pelo artº 1874 do C.C.
Pode ainda ocorrer que não estejam fixados alimentos ao filho maior, por a separação dos progenitores ocorrer já após a maioridade ou por, ainda que não tenha ocorrido separação nem divórcio, o filho maior carecer de alimentos no decurso da sua formação profissional.
Neste caso, o artº 989 nº1 do CPC dispõe que se segue, com as necessárias adaptações, o regime previsto para os menores, mediante a instauração de uma acção de jurisdição voluntária com vista à fixação destes alimentos.
Em qualquer caso, ao progenitor obrigado a prestá-los, cabe o ónus de alegar e provar os requisitos que obstam à fixação de alimentos ou que determinam a sua cessação, nomeadamente a violação grave de deveres de respeito pelo credor dos alimentos que tornem irrazoável, à luz de critérios objectivos, que se mantenha a obrigação de alimentos.
Com efeito, a introdução no âmbito do artº 1880 do C.C., do critério especial da razoabilidade “tem como resultado que esta não pode ser interpretada num sentido puramente económico, atendendo apenas ao binómio das possibilidades económicas de quem presta e das necessidades de quem pede. O relevo dos fatores objetivos para o prolongamento da obrigação não afasta necessariamente a relevância dos demais pressupostos. Da aplicação do critério da razoabilidade deve resultar uma ponderação mais alargada do que os critérios gerais, a que não pode ser estranha a consideração do princípio de que pais e filhos se devem mutuamente respeito, auxílio e assistência.”[17]
Neste sentido, tem sido entendimento jurisprudencial dominante que se “pode/deve ponderar a inobservância dos deveres dos filhos para com os pais, em particular, o desrespeito dos deveres de auxílio, assistência e respeito do filho maior para com o progenitor obrigado, como circunstâncias conformadoras do an e do quantum da obrigação/prestação alimentar (…) sem prejuízo (…) da eventual e natural imaturidade, irreflexão ou impulsividade do jovem adulto ser uma circunstância que também tem que ser tomada em conta e que, até certo ponto e dentro de certos limites, deve ser reputada como um circunstância relevante/desculpante.”[18], embora, como nos elucida Remédio Marques[19], não por apelo ao artº 2013, nº1 al. c) do C.C., uma vez que não é este preceito aplicável à obrigação de alimentos devida a filhos maiores, por sobre ela versar preceito especial, constante do artº 1880 do C.C., sendo antes de recorrer ao critério da razoabilidade nele ínsito, tendo em conta que, de acordo com o disposto no artº 1874 do C.C. “Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência.”
Com efeito, a introdução no âmbito do artº 1880 do C.C. de uma clausula de razoabilidade, a ser aferida casuisticamente, terá também de ser relacionada com os deveres que decorrem do artº 1874 do C.C., sob pena de ser redundante, conforme se defendia já em Ac. da R.P., de 17/02/94[20], uma vez que “a ponderação de tais parâmetros já está explícita no ... art. 1885º, nº 1, e nos arts. 2004º e 2005º, nº 2, do Cód. Civil. Por isso pensamos que tem que lhe ser dado um alcance mais vasto, a que não pode ser estranha a ponderação do princípio de que os pais e filhos se devem mutuamente respeito, auxílio e assistência – art. 1874º do Cód. Civil.”
Nesta medida, o dever de respeito obriga cada sujeito da filiação a não violar os direitos de personalidade e patrimoniais do outro[21]. Não basta, para se considerar verificado este critério, a mera invocação de conflitos, desentendimentos entre pais e filhos decorrentes ou do processo de separação ou de imaturidade, ou da diferença geracional[22]. Conforme refere Rute Teixeira Pedro[23], nesta fórmula aberta caberão “desde logo, os comportamentos que traduzam a violação grave dos deveres gerais que recaem sobre todos os sujeitos de respeitar as posições jurídicas oponíveis erga omnes tutelados delitualmente e que correspondem, de forma sintética à titularidade dos direitos absolutos (nomeadamente direitos reais e direitos de personalidade (…) Só uma inobservância qualificada – que revista gravidade objectiva – desses deveres poderá constituir causa de cessação da obrigação de alimentos.”
Neste conspecto, a violação dos deveres de respeito, auxílio e assistência por parte do credor de alimentos tem de assumir gravidade tal que justifique que o progenitor ofendido ou agredido fique desonerado da sua prestação, por ser irrazoável impor-lhe que assegure a satisfação das necessidades educacionais e de sustento do filho maior.
Como se refere em Ac. deste Tribunal de 21/05/19[24] “o facto da filha e progenitor não se relacionaram, sem que esteja sequer determinado que tal situação é exclusivamente imputável à filha, não permite concluir que há uma falta de respeito da parte desta para com o seu progenitor e não torna, só por si, desrazoável a manutenção de tal obrigação por parte deste último.”
Mais recentemente, veio defender-se neste mesmo Tribunal, em Acórdão proferido em 22/06/2021[25] que só se justificaria a cessação do direito a alimentos quando “por culpa grave houver um comportamento deste que se traduza na prática intencional do facto invocado como fundamento para o pedido de alimentos ou a invenção intencional de condições propícias a esse facto, sendo que a prática de qualquer outro ato pelo filho maior, mesmo que a provocação ao progenitor ofensor, não lhe retira o direito de peticionar alimentos com base nas faltas do progenitor, embora deva ser tido em consideração na apreciação a gravidade dessas faltas em conformidade com o princípio da razoabilidade.”
Temos para nós, como defendido no Ac. da R.P. de 04/07/2024[26] que a cessação da prestação de alimentos por violação do dever de respeito, “pressupõe uma conduta grave e ponderosa que permita concluir, do ponto de vista social, pela inexigilidade dessa obrigação”, o que ocorre quando da factualidade apurada resultar uma situação de grave violação dos direitos de personalidade ou dos direitos patrimoniais do progenitor. No caso em apreço, a prática de actos por parte da filha maior que constituem um crime de dano - alteração e destruição de conteúdos de uma rádio de que este era administrador e dos quais auferia proventos - e de ofensas à honra e consideração devidas ao seu progenitor – apelidando-o de agressor, imputando-lhe ameaças e agressões e violação dos seus deveres como marido e pai - de modo público porque efectuadas um plataforma de whatsapp de grande divulgação, facilmente acessível, constituem violações graves do dever de respeito devido ao seu progenitor, não lhe sendo razoável, nestas circunstâncias, exigir que providencie pelo sustento, saúde e educação da filha maior, em conformidade com o estabelecido no art. 1880 do C.C.
II-Da relevância das prestações efectuadas voluntariamente pelo progenitor, após a prática destes factos.
Alega, no entanto, a requerente que, já após os factos que lhe são imputados, o progenitor pagou as suas propinas e o quarto que ocupa, pelo que se terá de entender que perdoou e retirou relevância a estes comportamentos.
Ora, não se pode considerar, da factualidade assente, que o progenitor perdoou a requerente, ou sequer, que a conduta deste, ao invocar a violação dos deveres de respeito por parte da sua filha para obstar ao pagamento da prestação alimentícia, viola os deveres de boa fé, exigidos pelo artº 334 do C.C. e constitui assim um abuso do direito (de obstar à obrigação).
Isto porque, da factualidade assente nada se retira no sentido de que o progenitor tenha desvalorizado o comportamento da requerente, não lhe atribuindo importância, ou que tenha “perdoado” a requerente, conforme esta alega. A natural preocupação de um progenitor por uma filha, ainda que com comportamentos indignos, justificará que este, apesar destas ofensas, satisfaça algumas despesas da requerente, sem que desta assunção voluntária, decorra a obrigação de suportar, proporcionalmente, todas as despesas de educação e sustento da filha maior.
Por outro lado, cabendo ao progenitor, em acção intentada pela filha maior, o ónus de alegar e provar a irrazoabilidade da exigência de prestação destes alimentos, não se pode considerar que, pese embora os pagamentos voluntários de algumas despesas de educação e sustento da sua filha maior, tenha renunciado ao seu direito à invocação dos comportamentos desrespeitosos desta, ou que tenha criado na sua filha a convicção de que estes comportamentos não seriam impeditivos do pagamento da prestação de alimentos a cargo deste progenitor, por forma a considerar-se que actua o progenitor em abuso de direito.
A gravidade dos comportamentos da requerente para com o seu progenitor, sem qualquer justificação revelada nos autos, torna irrazoável que possa esperar que este mantenha para com ela deveres alimentícios.
Improcede assim o recurso interposto pela requerente.
DECISÃO
[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Mesmo na vigência do anterior Código Civil de 1867, defendia-se o prolongamento da obrigação de prestação de alimentos a filho maior até à conclusão dos seus estudos, mas como um dever de ordem moral a cargo dos progenitores, cfr. MARQUES, J.P. Remédio, Algumas Notas Sobre Alimentos (devidos a Menores), Coimbra Editora, 2000, pág. 292 (nota 384).
[4] De acordo com dados recolhidos da Pordata, em www.pordata.pt.
[5] ANDRADE, José Carlos Vieira, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª ed., pág. 169.
[6] Dever até então unicamente a cargo do progenitor masculino (artº 1881 nº1 a) do CC).
[7] Posteriormente concretizadas por medidas de combate ao analfabetismo, de que são exemplo a atribuição de bolsas de estudo a alunos carenciados, constantes dos D.L. nº 129/93 de 22 de Abril e da Lei 113/97 de 16 de Setembro (Lei de Bases do Ensino Superior).
[8] Cfr. resulta do preâmbulo deste diploma “11. Foi no domínio do direito da família que os novos princípios proclamados pela Constituição impuseram alterações mais vastas e profundas. A igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, nomeadamente no que toca à manutenção e educação dos filhos (artigo 36.º, n.º 3, da Constituição) e o princípio de que os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação (artigo 36.º, n.º 4) desde logo importavam a revisão de largos sectores da disciplina do casamento e de praticamente toda a disciplina da filiação. Deve, de resto, notar-se que na última década se tem assistido em quase todos os países europeus a profundas alterações do direito da família, determinadas pelo triunfo do princípio da igualdade entre os cônjuges e pela revisão de muitas das soluções tradicionais em matéria de filiação.”
[9] Alargando-se a protecção da família e eliminando a descriminação entre filhos nascidos no seio do matrimónio e filhos nascidos fora do matrimónio, cfr. artºs 1878 e 1879 e segs. do CC de 66, explicitando-se no preâmbulo do aludido diploma legal que “A razão está em que o Código assentava a disciplina da constituição da filiação e a dos efeitos desta na distinção entre filhos legítimos e ilegítimos. Afastada, por imposição constitucional, tal distinção, impunha-se alterar radicalmente a estrutura geral do Código neste domínio.”
[10] Na definição do que constitui “exigência razoável” e “tempo normalmente requerido”, pronunciou-se a jurisprudência de forma mais ou menos concordante, eg. Acs. do STJ de 23/04/97, in BMJ nº 469, pág. 563, do TRL de 27/04/95, C.J. 1995, Tomo II, págs. 125 e segs. e do TRG de 12/07/11, proc. nº 423/10.7TBBCL.G1.
[11] Com existência noutros ordenamentos jurídicos europeus como o italiano que, no artº 147 do CC estipulava como dever de ambos os progenitores “di mantenere, instruire ed educare la prole”, dever que não cessava com a maioridade, cfr. GIACOMO, Anna Maria, in “Riflessioni sull'obbligo di mantenimento del figlio maggiorenne: l'esperienza italiana”, in Lex Familiae, ano 6, nº 12, 2009, pág. 47, “Nell'ordinamento italiano il dovere dei genitori di mantenere il figlio (…) non cessa automaticamente con il raggiungimento della maggiore età da parte del figlio, ma, di norma, si protrae ben oltre il compimento del diciottesimo anno di età (…) Sostanzialmente, il prolungamento dell'obbligo di mantenimento del figlio oltre il raggiungimento della maggiore età, non è altro che la garanzia affinché sia completato il processo di educazione e d'istruzione sancito dall'articolo 147 del Codice Civile e dall'art. 30 della Costituzione”. No ordenamento francês, o artº 342 nº2 do CC previa que “La pension peut être due au-delà de la majorité de l`enfant, s`il este encore dans le besoin, à moins que cet état ne luis soit imputable à faute”. Em Espanha, o artº 142, 2º parágrafo, prevê a manutenção destes alimentos “cuando não haya terminado su formacion por causa que no le sea imputable” - cfr. MADEIRA, Laura Fernandes, “Obrigação de Alimentos Devida a Filhos Maiores de Idade no âmbito do art. 1880 º do Código Civil (Perspectiva do Processo Civil)”, Revista do Ministério Público, Ano 36, nº 142, 2015 (págs. 122,123 (nota1).
[12] Em especial no nosso Supremo Tribunal de Justiça, de que são exemplo os Acs. do STJ de 23/01/03 (proc. nº 02B4379); de 31/05/07 (proc. nº 07B1632); de 22/04/08 (proc. nº 08B389); de 02/10/08 (proc. nº 08B472).
[13] Vide SOTTOMAYOR, Maria Clara, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, 6ª ed., págs. 373/375; XAVIER, Rita Lobo, “Responsabilidades Parentais no século XXI”, Revista Lex Familiae, ano 5º, nº10, 2008, págs. 17 a 23; MARQUES, J.P. Remédio, Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores), ob. cit., págs. 293 e segs; COSTA, Maria Inês Pereira, Obrigação de Alimentos Devida a Filhos/as Maiores que Ainda Não Completaram a Sua Formação – Uma Visão Comparada de Crítica ao Critério da Razoabilidade, Universidade Católica, Porto, Agosto 2013.
[14] Cfr. os Acs. do STJ, de 25/03/2010, (proc. nº 7957/1992.2.P1.S1 (com voto de vencido); do TRP de 09/03/06 (proc. nº 0630895); de 06/12/04 (proc. nº 0456219); do TRC de 3 de Maio de 2011 (Proc. n.º 223/06.9TMCBR-D.C1) e do TRG de 19 de Junho de 2012 (Proc. n.º 599-D/1998.G1).
[15] No qual se estabelecia expressamente que a obrigação de alimentos a filhos maiores ou emancipados seguiria, com as necessárias adaptações, o regime previsto para os menores, cfr. nº2 deste preceito legal, dele resultando que “Tendo havido decisão sobre alimentos a menores ou estando a correr o respectivo processo, a maioridade ou a emancipação não impedem que o mesmo se conclua e que os incidentes de alteração ou de cessação dos alimentos corram por apenso.”
[16] Considerando-se como incluídos no âmbito da formação profissional os mestrados de Bolonha e o doutoramento, cfr. SOTTOMAYOR, Maria Clara, ob.cit., pág. 333; na jurisprudência Ac. do TRP de 24/10/11 proferido no proc. nº 1967/10.6TJVNF.P1, de que foi relatora Maria Adelaide Domingos, disponível em www.dgsi.pt.
[17] COSTA, Maria Inês Pereira da, ob. cit. pág. 35.
[18] Acórdão do TRC de 19/12/17, acima citado e Ac. do TRC de 21/04/15, relatora Inês Moura, proc. nº 1503/13.2TBLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[19] REMÉDIO MARQUES, João Paulo, obra citada, pág. 311: refere a este respeito que “…cabe observar que o disposto no artº 2013.º/1, alínea c), do CC será inaplicável à obrigação em análise, por isso mesmo que, por um lado, tal se justifica pelo escopo essencialmente educativo da perduração deste dever para além da menoridade e, por outro, na característica da não reciprocidade, por cujo respeito se plasmou a Reforma de 1977, esta específica obrigação alimentar.”
[20] CJ, Ano XIX, 1994, Tomo I, págs. 240/241.
[21] PINHEIRO, Jorge Duarte, Direito da Família Contemporâneo, Gestlegal, 4ª edição, Pág. 269.
[22] No mesmo sentido vide Acórdão de 24/09/2020, proferido no proc. nº 8992/14.6T8LSB-C.L1-, relatado pela ora Relatora e Ac. da R.L. de 13/04/23, proferido no proc. nº 3755/18.2T8BRR-B.L1-6, de que foi relator Adeodato Brotas. Ainda na doutrina Sottomayor, Clara, ob cit. pág. 377.
[23] PEDRO, Rute Teixeira, Código Civil Anotado, Coordenação Ana Prata, vol. II, pág. 921.
[24] Proferido no proc. nº 279/07.7TBCLB-J.C1, de que foi relator Luís Cravo, disponível em www.dgsi.pt.
[25] Proferido no proc. nº 2351/06.1TBFIG-F.C1, de que foi relator Luís Cravo, disponível em www.dgsi.pt.
[26] Proferido no proc. nº 19453/19.7T8PRT-C.P1, de que foi relator Paulo Duarte Teixeira, disponível em www.dgsi.pt.