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MANDATO FORENSE
CONSTITUIÇÃO OBRIGATÓRIA
RENÚNCIA
EFEITOS
CRÉDITO POR FORNECIMENTOS
COMPENSAÇÃO
Sumário
I - Sendo obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato não produz efeitos enquanto não decorrer o prazo de 20 dias, concedido ao mandante para constituir mandatário, como se retira do disposto no n.º 3 do art. 47.º do CPC, pelo que, a parte continua a ser assistida pelo mandatário renunciante, que continua vinculado às obrigações decorrentes do mandato forense. II - No contrato de fornecimento, uma das partes, o fornecedor, obriga-se: a fornecer bens ou serviços continuamente, mediante um preço (normalmente a pagar periodicamente); ou a fornecer bens ou serviços periódica ou reiteradamente, contraprestação pecuniária; ou, ainda, a celebrar futuros contratos onerosos (nomeadamente de compra e venda, de locação ou de prestação de serviços), quando solicitado pela contraparte. III - O crédito invocado para operar a compensação não tem de se mostrar aceite pela parte contra o qual se pretende fazer valer, nem tem de ser um crédito que previamente haja sido judicialmente reconhecido. Contudo, invocada por via de exceção, na contestação, a compensação fundada em crédito suscetível de ser reconhecido em ação de cumprimento, na hipótese de este não se poder ter por indiscutido, tal compensação só se poderá considerar eficaz caso na sentença a proferir esse mesmo crédito ativo venha a ser reconhecido.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Texto Integral
Apelação 651/23.5T8PVZ.P1
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
A..., S.L., sociedade comercial de direito espanhol (anteriormente com a denominação social B..., S.L.), instaurou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra
C..., UNIPESSOAL, LDA., pedindo a condenação da Ré no pagamento à Autora do montante de global de €55.955,86 (cinquenta e cinco mil, novecentos e cinquenta e cinco euros e oitenta e seis cêntimos), acrescido dos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento quer sobre o capital em dívida titulado pela fatura, quer sobre a indemnização reclamada, estes últimos a contar da citação e até efetivo e integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou que, no exercício da sua atividade comercial forneceu à ré determinadas mercadorias, tendo emitido a respetiva fatura que a ré apenas pagou parcialmente, estando em dívida o valor que reclama. Mais refere que sofreu prejuízos com a retenção de fornecimentos de outras mercadorias que não entregou à ré por receio que esta não pagasse, acabando por vender tais mercadorias a terceiros, por preço inferior.
Regularmente citada a Ré contestou, impugnando a factualidade tal como foi alegada pela autora, alegando que foi a autora que não cumpriu com a entrega de dois camiões de mercadorias que a ré havia encomendado, com determinadas condições, nomeadamente quanto ao preço, tendo a autora procedido à entrega de encomendas posteriores, a preços já mais elevados, sem entregar as encomendas anteriores ou emitir uma nota de crédito, pelo que a ré comunicou à autora que iria proceder à compensação do valor que considera ter pago em excesso, o que fez.
Conclui pedindo a improcedência da ação e a condenação da autora como litigante de má fé.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu julgar a ação parcialmente procedente e condenar a ré C..., UNIPESSOAL, LDA., a pagar à autora B..., S.L., o valor de 30.855,00€ (trinta mil oitocentos e cinquenta e cinco euros) acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de juro supletiva para os créditos das empresas comerciais, contados de 30/07/2021 (trinta de Julho de dois mil e vinte e um), absolvendo a ré do que mais foi pedido, e julgando improcedente o pedido de condenação da autora como litigante de má-fé.
Não se conformando com o assim decidido, veio a Ré interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Formulou, a recorrente, as seguintes conclusões das suas alegações: “1) Com presente recurso pretende-se, em primeiro lugar, invocar a nulidade da douta Sentença. 2) Mais se pretende a inclusão nos factos dados como provados de dois factos novos. 3) Pretendendo-se ainda impugnar a matéria de Direito. DA NULIDADE DA SENTENÇA: 4) Em 05.09.2024, a Ilustre Mandatária da Autora apresentou requerimento de renúncia ao mandato. 5) Em 06.09.2024, foi remetida pelo Tribunal a quo notificação à Autora, a dar conta da renúncia ao mandato e de que dispunha do prazo de 20 dias para constituir novo mandatário, com a advertência de que tal constituição é obrigatória. 6) A audiência de julgamento realizou-se no dia 11.09.2024. 7) A Autora rececionou a referida notificação em 18.09.2024, tendo o prazo de vinte dias terminado em 08.10.2024, sem que fosse constituído novo mandatário. 8) Não existia qualquer prazo em curso. 9) Em 03.10.2024, foi proferida a douta Sentença de que se recorre. 10) No nosso modesto entendimento, o Tribunal a quo deveria ter aguardado o decurso do prazo de 20 dias antes de proferir Sentença. 11) Caso a Autora constituísse novo mandatário poderia haver interesse da sua parte em praticar algum ato no processo após a constituição de novo mandatário, o que se viu impossibilitada de fazer, atenta a prolação de Sentença. 12) O Tribunal a quo deveria ter verificado se tal prazo já havia decorrido antes de proferir Sentença, sendo que na mesma não é efetuada qualquer menção à renúncia ao mandato, nem ao decurso do prazo para constituição de novo mandatário. 13) Ora, salvo melhor opinião, o Tribunal a quo deveria ter aguardado que tal prazo decorresse antes de proferir Sentença. 14) Trata-se de um vício que afeta a decisão proferida, tendo sido omitida uma formalidade de cumprimento obrigatório ou implicitamente dá-se cobertura a essa omissão. 15) O que na nossa modesta opinião constitui uma nulidade da Sentença, a qual se invoca para os devidos e legais efeitos. 16) Não tendo sido constituído novo mandatário a instância deveria ter sido declarada suspensa após o término do prazo sem que fosse constituído novo mandatário, conforme dispõe o artigo 47.º, n.º 3 alínea a) do CPC. 17) Assim, o Tribunal a quo ao ter proferido Sentença antes de decorrido tal prazo violou o disposto na lei, pelo que deverá ser declarada a nulidade da douta Sentença, o que se requer. Sem prescindir, DA MATÉRIA DE FACTO: 18) A Ré concorda e não impugna os factos dados como provados, bem como os factos dados como não provados. 19) Todavia, entende que o Tribunal a quo deveria ter incluído nos factos provados com interesse para a boa decisão da causa o seguinte: A) As encomendas eram feitas numa determinada data e eram sempre confirmadas pela Autora, por escrito, através de uma ordem de pedido enviada à Ré, contendo tal documento referência à data da encomenda, mercadoria a fornecer, quantidade e preço acordado. B) As mercadorias referentes às encomendas eram sempre entregues pela ordem cronológica em que eram efetuadas, da mais antiga para a mais recente, e acompanhadas de uma guia de transporte, sem preço, sendo que a fatura era enviada pela Autora à Ré em momento posterior. 20) Sobre esta matéria, prestaram depoimento as Testemunhas AA, BB e CC, cujas declarações foram gravadas através do sistema “H@bilus Media Studio”. 21) Por uma questão de simplicidade e economia processual, no que se refere ao relatado por estas Testemunhas em sede de audiência de discussão e julgamento, remete-se para as transcrições efetuadas supra. 22) Da análise dos depoimentos supra referidos e dos documentos juntos com a contestação sob os números 1 e 2 apresentada pela Ré, resulta claro que sempre que havia uma encomenda por parte da Ré existia uma ordem de pedido que lhe era enviada pela Autora, na qual consta a data em que a encomenda foi efetuada, o produto a fornecer, a quantidade e o preço acordado. 23) Resulta ainda provado que a entrega das matérias primas era acompanhada de uma guia de transporte, sem preço, sendo a fatura enviada posteriormente pela Autora. 24) As encomendas deveriam sempre ser entregues por referência cronológica à data em que eram aceites. 25) A primeira entrega a efetuar por parte da Autora dizia sempre respeito à encomenda mais antiga. 26) As mercadorias fornecidas pela Autora destinavam-se a ser integradas no processo de produção da Ré. 27) O custo das matérias primas influencia naturalmente o preço do produto produzido e comercializado pela Ré. 28) Para cálculo do preço das mercadorias que comercializa, a Ré contabiliza o preço das matérias primas, os custos de produção, a sua margem de lucro, por forma a acordar preços com os seus clientes. 29) Pelo que, facilmente se compreende a necessidade de as mercadorias serem entregues pela ordem cronológica da sua aceitação pela Autora e pelo preço acordado. 30) Assim, de acordo com os depoimentos das testemunhas supra citadas, que depuseram de forma credível, clara e coerente, bem como a prova documental supra referida, o Tribunal a quo teria ter dado como provado que as encomendas eram feitas numa determinada data e eram sempre confirmadas pela Autora, por escrito, através de uma ordem de pedido enviada à Ré, contendo tal documento referência à data da encomenda, mercadoria a fornecer, quantidade e preço acordado. 31) Mais deveria ter dado como provado que as mercadorias referentes às encomendas eram sempre entregues pela ordem cronológica em que eram efetuadas, da mais antiga para a mais recente, e acompanhadas de uma guia de transporte, sem preço, sendo que a fatura era enviada pela Autora à Ré em momento posterior. 32) Destarte, o Tribunal a quo, teria de ter dado como provado o seguinte: A) As encomendas eram feitas numa determinada data e eram sempre confirmadas pela Autora, por escrito, através de uma ordem de pedido enviada à Ré, contendo tal documento referência à data da encomenda, mercadoria a fornecer, quantidade e preço acordado. B) As mercadorias referentes às encomendas eram sempre entregues pela ordem cronológica em que eram efetuadas, da mais antiga para a mais recente, e acompanhadas de uma guia de transporte, sem preço, sendo que a fatura era enviada pela Autora à Ré em momento posterior. 33) Factos estes cuja inclusão nos factos dados como provados se requer. DA MATÉRIA DE DIREITO: 34) Atendendo à matéria de facto dada como provada, como não provada, bem como com a inclusão dos factos supra referidos nos factos dados como provados, como se requereu, nos termos em cujo entendimento somos de parecer que deve suceder, atenta a prova produzida, mas sem prescindir na eventualidade de não procederem as alterações supra, terá necessariamente de efetuar-se alteração na análise da matéria de Direito e consequentemente na apreciação do mérito da causa. 35) Estaremos perante um contrato de fornecimento de bens, mediante o qual a Ré solicitou por diversas vezes à Autora a entrega de matérias primas, numa determinada quantidade, sendo que esta se comprometeu a efetuar tal entrega mediante o pagamento do preço acordado. 36) Mediante este contrato, as partes acordaram que a Autora realizaria, a solicitação da Ré, entregas de matérias primas em determinadas quantidades, mediante contraprestação pecuniária acordada. 37) Trata-se de um contrato de execução contínua, que se prolonga no tempo, no qual a periodicidade das entregas é efetuada consoante as necessidades de matérias primas por parte da Ré, que oportunamente encomenda à Autora. 38) Não pode apreciar-se isoladamente cada um dos fornecimentos como contratos de compra e venda autónomos e independentes entre si, tal como fez o Tribunal a quo. 39) No contrato de fornecimento de bens a prestação característica é de execução reiterada, combinando as partes os produtos e quantidades que serão entregues, bem como os momentos em que o serão, e o preço e forma de pagamento dos vários fornecimentos. 40) É um contrato bilateral, emergindo dele ab initio duas obrigações principais sinalagmáticas, definindo-se tais contratos bilaterais ou sinalagmáticos como aqueles de que surgem obrigações para ambas as partes, unidas uma à outra por um vínculo de reciprocidade. 41) Vínculo este que surge logo no momento da celebração do contrato, como ligação entre as suas obrigações típicas (sinalagma genético) e perdura ao longo da existência do contrato, acompanhando-o nas suas vicissitudes (sinalagma funcional). 42) As relações comerciais entre Autora e Ré eram muito simples, a Ré fazia a encomenda e a Autora aceitando-a tinha a obrigação de fornecer as matérias primas de acordo com preços previamente acordados e constantes das ordens de pedido respetivas. 43) Durante todo o decurso de tempo em que perduraram as relações comerciais, a ordem de entrega das encomendas feitas pela Ré à Autora foi sempre respeitada, da mais antiga para a mais recente. 44) Estabelecendo-se assim uma parceria comercial duradoura e de confiança entre as partes. 45) A Ré sabia sempre qual seria a próxima encomenda a ser entregue. 46) Na situação em apreço não foi o que sucedeu. 47) A Autora incumpriu a ordem pela qual as encomendas deveriam ter sido entregues. 48) As variações de preço são de admitir com fundamento na lei da oferta e da procura. 49) O que não se aceita é que a Autora altere unilateralmente, sem dar qualquer justificação à Ré, a ordem de entrega das encomendas. 50) Bem sabendo que a entrega dos produtos encomendados a preços mais caros importaria necessariamente para a Ré um lucro menor na venda do produto acabado aos seus clientes ou até mesmo implicaria prejuízo. 51) A Ré para poder dar cotação de um produto a um cliente tem de conhecer os seus custos com a aquisição de matérias primas e de produção. 52) Pelo que, não é indiferente para a Ré receber da Autora um produto ao preço acordado de € 1,27/Kg a € 1,72/Kg ou a € 2,14/Kg. 53) Trata-se de uma diferença de preço que no primeiro caso ronda cerca de 35% a mais no preço de aquisição do produto e no segundo 68%. 54) Nos termos do o artigo 762.º, n.º 2 do Código Civil (CC) “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”. 55) Age de boa fé quem o faz com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, por via de uma conduta honesta e conscienciosa, com correção e probidade, sem prejudicar os interesses legítimos daquela (ver o Ac. do STJ de 28/09/2006, relatado pelo Exmo. Conselheiro Salvador da Costa, entre outros que abordam questões de boa fé). 56) Na negociação, na formação, bem como no cumprimento ou execução dos contratos e, bem assim, no exercício de direitos correspondentes, devem as partes conformar-se com o princípio da boa-fé, nos termos do vertido nos artigos 227.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2, ambos do CC. 57) A tutela da confiança, ponderada a economia e os riscos do contrato dos autos, a disciplina convencionada no mesmo, os seus legítimos interesses e as condutas adotadas, conduz-nos à conclusão de que a Autora não agiu de acordo com o princípio da boa fé. 58) O comportamento da Autora reconduz-se ao instituto jurídico do abuso de direito, que, como figura geral, está consagrado no artigo 334.º do CC, na vertente do denominado “venire contra factum proprium”, que se inscreve também no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adota uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes atuara. 59) A Autora ao não respeitar a entrega das mercadorias pela ordem em que foram encomendadas e pelos preços acordados não agiu de boa fé. 60) Nunca comunicou ou justificou a sua atuação perante a Ré. 61) Não cuidou de responder às solicitações da Ré para entrega das mercadorias aos preços acordados. 62) De igual forma, não respondeu à Ré quando esta lhe solicitou esclarecimentos e pediu a emissão de notas de crédito para reposição do contratualmente acordado. 63) A Autora pura e simplesmente ignorou as comunicações da Ré, pelo que não lhe restou outra solução que não fosse fazer um acerto de contas entre o contratualmente estabelecido e o crédito da Autora. 64) A Autora de imediato exigiu o pagamento do valor referente à compensação efetuada. 65) Na douta Sentença de que agora se recorre na fundamentação de Direito é referido e bem que a “Regra geral dos contratos é que devem ser cumpridos ponto por ponto (art. 406º, 1, CC). O incumprimento culposo da obrigação, quer seja definitivo quer temporário, gera a obrigação de indemnizar (art.s 798º e 804º, 1, CC).” 66) A Autora incumpriu o acordado com a Ré quanto à ordem dos fornecimentos e preços acordados. 67) Não honrou o compromisso assumido, procurando obter para si uma vantagem a que sabe não ter qualquer direito. 68) A Autora tinha conhecimento do destino a dar às matérias primas. 69) A Autora tem conhecimento das regras que ditam a gestão de uma empresa que visa o lucro. 70) Para que haja lucro, é necessária a certeza quanto às condições de preço de compra das matérias primas, custos de produção, distribuição, entre outros. 71) É por demais evidente que se a Ré encomenda uma matéria prima a um determinado preço e posteriormente aquando da entrega verifica que as condições de preço acordadas não foram respeitadas, sendo cobrado um preço mais elevado, o seu lucro vai diminuir na mesma proporção, sendo que poderá inclusive ter prejuízo. 72) Se a matéria prima que a Ré adquire à Autora sofre variação de preço inesperada não tem como refletir tal situação nas suas vendas, pois tem de honrar os compromissos assumidos com os seus clientes, sob pena de os perder. 73) São regras básicas das relações comerciais estabelecidas entre fornecedor e comprador. 74) A Autora incumpriu o acordado quanto ao fornecimento das matérias primas e dos preços acordados. 75) Pelo que, há incumprimento contratual por parte da Autora. 76) À Ré sempre assiste o direito de ser colocada na situação em que se encontraria caso o contrato de fornecimento de bens fosse pontualmente cumprido pela Autora. 77) O prejuízo sofrido pela Ré é referente ao valor que deixou de obter a título de lucro com a venda dos bens por si produzidos. 78) Este prejuízo é facilmente contabilizável e resulta da diferença entre o preço acordado para o fornecimento dos bens e o preço cobrado pela Autora, que se cifra em € 30.855,00. 79) A Ré tem direito a ser indemnizada pelo prejuízo sofrido. 80) O dano resulta claro da prova produzida e daquilo que é o normal acontecer nas relações comerciais, facto este que é do conhecimento geral e que não podia ser ignorado pelo Tribunal a quo, que negou à Ré o direito a ser ressarcida do prejuízo sofrido. 81) Assim, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não poderia ter decidido como decidiu, condenando a Ré no pagamento à Autora do valor de € 30.885,00. 82) Ao fazê-lo, fez uma errada aplicação do Direito, pois considerou cada uma das encomendas como um contrato de compra e venda autónomo e independente, quando estamos perante um contrato de fornecimento de bens, de execução contínua e que obedece às regras supra referidas. 83) Destarte, sempre assistirá à Ré o direito de fazer a compensação entre os valores de venda acordados e o crédito da Autora. 84) Ainda que assim não entenda, sempre teria de se reconhecer que estamos perante uma verdadeira situação de enriquecimento sem causa. 85) Verificam-se os pressupostos do enriquecimento sem causa: - Que haja um enriquecimento de alguém, - Que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição, - Que o enriquecimento careça de causa justificativa. 86) A Autora enriqueceu às custas da Ré, pois vendeu os produtos por valor mais alto do que o que foi acordado para a entrega de cada uma das encomendas. 87) A Ré pretende a restituição do valor cobrado a mais. 88) Além disso, como se verifica por tudo quanto aqui já se expos, não existe uma causa justificativa para esse enriquecimento por parte da Autora. 89) O propósito das ordens de pedido serem datadas, nomeados os produtos, quantidades a entregar, e preço acordado é para salvaguarda dos direitos de ambas as partes, para que fique estipulado de forma escrita o contrato de fornecimento. 90) A Autora age com nítida má-fé, procurando obter uma vantagem a que sabe não ter direito. 91) Salvo o devido respeito, com a douta Sentença proferida verifica-se um claro enriquecimento por parte da Autora e um empobrecimento por parte da Ré. 92) Nestes termos, deverá a douta Sentença ser substituída por uma outra que reconheça à Ré o direito de exercer a compensação de créditos, nos termos em que o fez. Nestes termos e nos mais de Direito que V. Ex.cia(s) doutamente suprirão, deve conceder-se provimento ao presente Recurso, e, em consequência: a) Ser declarada a nulidade da Sentença, Sem prescindir, b) Ser incluídos na matéria de facto dada como provada dois factos novos, nos termos supra expostos. c) Ser reconhecido à Ré o direito a fazer a compensação entre os valores de venda acordados e o crédito da Autora, nos termos em que o fez.”.
A Recorrida apresentou as suas contra-alegações, concluindo nos seguintes termos: “1. Não se verifica qualquer nulidade de sentença. 2. O artigo 615.º do CPC prevê as causas de nulidade de sentença sendo que o facto invocado pela Recorrente não se encontra previsto em nenhuma das suas alíneas. 3. Por outro lado, como tem decidido a jurisprudência “Sendo obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato não produz efeitos enquanto não decorrer o prazo de 20 dias, concedido ao mandante para constituir mandatário (n.º 3 do citado artigo 47.º), razão pela qual, a parte continua a ser assistida pelo mandatário renunciante, que continua vinculado às obrigações decorrentes do mandato forense.”. 4. Assim, quando a sentença foi proferida, a Recorrida ainda mantinha, como mandatária, a mandatária renunciante. 5. Não podendo proceder o argumento invocado pela Recorrente, não se verificando qualquer causa que conduza à nulidade de sentença. 6. Quer os documentos, quer a prova testemunhal produzida nestes autos, permitiram dar como provados os factos assim elencados na douta sentença, que não merece qualquer censura ou reparo. 7. Os factos que a Recorrente pretende dar como provados não foram alegados na Contestação da Recorrente, nem em qualquer articulado posterior. 8. O julgamento da matéria de facto está limitado aos factos articulados pelas partes, nos termos do artigo 5.º, n.º 2 do CPC. 9. Se determinados pontos não foram alegados pelas partes, nem constam do elenco dos factos provados e não provados constantes da sentença do Tribunal a quo, eles são insuscetíveis de constituir objeto de impugnação da decisão de facto dirigida a aditá-los à factualidade provada. 10. Tais factos não se demonstram minimamente pertinentes/relevantes, sendo insusctíveis de influir na decisão da causa. 11. Face aos factos provados e não provados, a matéria de facto, de direito e a decisão do Tribunal a quo, não merece qualquer censura ou reparo devendo manter-se integralmente. 12. As conclusões exercem a importante função de delimitação do objeto do recurso, e como tal sobre a Recorrente recaía o ónus de sintetizar a argumentação que apresente na motivação do recurso. 13. A Recorrente limita-se a repetir a motivação alegada, não se apresentando, as Conclusões, como a lei exige, concisas e precisas. Termos em que se deve manter a douta sentença.”.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela recorrente e pela recorrida, são as seguintes as questões a apreciar:
- Se a recorrente deve ser convidada a sintetizar as conclusões das suas alegações;
- Se ocorre algum motivo de nulidade da sentença, nomeadamente face à renúncia ao mandato por parte da ilustre mandatária da autora;
- Se ocorre erro de julgamento, devendo ser aditados os factos pretendidos, à matéria de facto provada;
- Decidir se em conformidade, face à alteração, ou não, da matéria de facto e subsunção dos factos ao direito, deve ser alterada a decisão de direito.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O Tribunal de 1ª Instância considerou provada a seguinte matéria de facto: 1 - No exercício da sua atividade, a Autora forneceu à Ré, diversas vezes, a seu pedido matéria-prima da sua especialidade: polietileno de baixa densidade. 2 - Por um fornecimento pedido e recebido pela ré, a autora emitiu a fatura n.º 211114, datada de 31.05.2021, com vencimento a 30.07.2021, no valor de €50.022,50. 3 - Desta factura a Ré pagou 19.167,50€. 4 – A ré foi interpelada para pagar o restante. 5 – A autora aceitou encomendas da ré posteriores às que motivaram a factura acima referida. 6 – A autora interpelou a ré para pagamento de 20.670€ montante em que calculou o prejuízo por ter vendido a um terceiro a um preço mais barato material encomendado pela ré. Da contestação 7 - Em 05/01/2021, a Ré encomendou à Autora e esta aceitou a encomenda das seguintes mercadorias: a) - EF601AA, com a descrição Westlake LDPE, na quantidade de 24000 Kg ao preço de € 1,27/Kg; e b) - EF412JM, com a descrição Westlake LDPE, na quantidade de 24000 Kg ao preço de € 1,27/Kg. 8 - As condições de qualidade, quantidade e preço foram acordadas pelas partes. 9 - Cada um dos artigos supra elencados, nas quantidades supra referidas, correspondem a um camião completo de mercadoria. 10 – A autora não entregou as mercadorias mencionadas em 7. 11 – Posteriormente à referida em 7, a ré fez outras encomendas á autora, dos mesmos materiais, mas como os preços das matérias-primas estava a subir, os preços ajustados foram mais elevados (1,72/kg e mais tarde a 2,14€/kg). 12 – Estas encomendas a preços mais elevados foram entregues. 13 - A Ré tentou por diversas vezes através de e-mail e conversas telefónicas resolver esta situação reclamando a entrega das encomendas referidas em 7 pelo preço combinado ou a emissão de notas de crédito para reflectir o respectivo preço em facturas de encomendas posteriores, cujos preços unitários eram superiores. 14 – Sem obter resposta da autora, a ré fez ela própria esse abatimento na factura mencionada em 2, a última em aberto. 15 – Para o efeito, a ré fez os seguintes cálculos: - no último camião recebido com mercadoria EF601AA o preço foi de 1,72€/kg, faltava um camião ao preço 1,27€/kg (referido em 7) cada camião corresponde a 23.375 kg, logo, (1,72€ - 1,27€) x 23.375 = 10.518,75€; - no último camião recebido com mercadoria EF412JM o preço foi de 2,14€/kg, faltava um camião ao preço 1,27€/kg (referido em 7) cada camião corresponde a 23.375 kg, logo, (2,14€ - 1,27€) x 23.375 = 20.336,25€; 10.518,75€ + 20.336,25€ = 30.855,00€ - valor não pago da factura mencionada em 2.
E deu como não provados os factos seguintes: 1 - A Autora continuou a aceitar as ordens de encomenda de materiais emitidas pela Ré, após o pagamento parcial da factura 2111114 cumprindo-as. 2 - Tendo a Autora, como tal, procedido à encomenda do material solicitado pela Ré. 3 - A manutenção da situação de incumprimento do pagamento do preço pela Ré obrigou a Autora a reter parte da mercadoria suprarreferida, nas suas instalações. 4 - A Autora não teve outra opção senão colocar de novo no mercado essa mercadoria e vendê-la efetivamente. 5 - A Autora apenas conseguiu vender a mercadoria retida a um preço muito inferior àquele que havia gizado com a Ré. 6 - A aquisição do material solicitado pela Ré, mais concretamente, do polietileno de baixa densidade, representou um custo para a Autora de €380.286,10 (trezentos e oitenta mil, duzentos e oitenta e seis euros e dez cêntimos). 7 - Com efeito, ao custo de aquisição, que ascendeu, a €353.940,00, pois que a quantidade de 102.000 Kg comprada a 04.04.2021 foi cobrada a €1,75 por quilograma e a quantidade de 102.000 Kg comprada a 21.05.2021 foi cobrada a €1,72 por quilograma, 8 - Acresce gastos de descarga a um preço de €265,00 por camião, sendo necessários 8 camiões para transportas os 204.000 Kg de material, num total de 2.120,00. 9 - E ainda a taxa legal tributária de 6,5%, num total de 23.006,10. 10 - Os dois despachos aduaneiros de importação, num total de 260,00 – conforme documento que se protesta juntar. 11 - E ainda o custo de transporte do porto até ao armazém, a um preço de €120,00 por camião, sendo necessários 8 camiões para transportas os 204.000 Kg de material, num total de 960,00 - conforme documento que se protesta juntar. 12 - Ou seja, o custo de aquisição do produto encomendado pela Ré foi de €380.286,10. 13 - Caso este material tivesse, de facto, sido vendido à Ré, pelo preço previamente definido entre as partes, a Autora arrecadaria, com a supramencionda venda, o valor de €405.660,00 (quatrocentos e cinco mil, seiscentos e sessenta euros). 14 - Pois que a encomenda do material foi feita a um preço de 2,00 e de 2,03 por quilograma. 15 - A Autora vendeu o material retido a terceiros pelo valor de €384.990,00 (trezentos e oitenta e quatro mil, novecentos e noventa euros).
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IV - MOTIVAÇÃO DE DIREITO
1. Da síntese das conclusões da recorrente
Nas suas contra-alegações diz a recorrida que nas conclusões a Recorrente se limita a repetir, quase integralmente, a motivação alegada, não se apresentando, como a lei exige, concisas e precisas, pelo que, entende que a recorrente deve ser convidada a sintetizá-las, conforme decorre do artigo 639.º, n.º 3 do CPC.
Ora, resulta o disposto no artigo 637.º, nº 2, 1ª parte do CPC, que “O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade (…); resultando do art. 639.º do mesmo diploma legal, quanto ao ónus de alegar e formular conclusões, que:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”.
Por sua vez, o art. 641.º, nº 2, al. b) do CPC dispõe, no que para o caso interessa, que findos os prazos concedidos às partes, o juiz aprecia os requerimentos apresentados, sendo o requerimento indeferido quando não contenha ou junte a alegação do recorrente ou quando esta não tenha conclusões.
Finalmente, prevê o art. 652.º, nº 1, al. a) do CPC que incumbe ao relator, designadamente, convidar as partes a aperfeiçoar as conclusões das respetivas alegações, nos termos do nº 3 do art. 639.º.
Posto isto, tem-se entendido que “a reprodução integral do anteriormente vertido no corpo das alegações, ainda que com meras alterações pontuais e intitulada de “conclusões”, não pode ser considerada para efeitos do cumprimento do dever de apresentação de conclusões do recurso nos termos estatuídos no artigo 639.º, n.º 1 do CPC. Equivalendo essa reprodução à falta de conclusões deve o recurso ser rejeitado nos termos estatuídos no artigo 641.º, nº 2, al. b), do CPC., não sendo de admitir despacho de aperfeiçoamento” – neste sentido, cfr. Ac. deste Tribunal da Relação do Porto, processo 18625/18.6T8PRT.P1, disponível no site da dgsi.
Isto porque são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, visando as mesmas a delimitação desse objeto mediante a enunciação concisa das questões a decidir e seus fundamentos. Importa, assim, aferir, em termos de proporcionalidade, se as conclusões apresentadas pela recorrente permitem, ainda que se afigurem pouco concisas, delimitar de uma forma inteligível, o objeto do recurso.
No caso do recurso em apreciação, embora extensas, as conclusões apresentadas pela recorrente não se confundem com as alegações, ainda mais extensas.
Aliás, as conclusões são claras quanto ao objeto do recurso, não deixando dúvidas sobre a sua delimitação, pelo que se considera que não se afigura necessário proceder à respetiva síntese.
2. Da nulidade da sentença
Nas suas alegações veio a recorrente invocar a nulidade da sentença, alegando que:
- Em 05.09.2024, a Ilustre Mandatária da Autora apresentou requerimento de renúncia ao mandato.
- Em 06.09.2024, foi remetida pelo Tribunal a quo notificação à Autora, a dar conta da renúncia ao mandato e de que dispunha do prazo de 20 dias para constituir novo mandatário, com a advertência de que tal constituição é obrigatória.
- A audiência de julgamento realizou-se no dia 11.09.2024.
- A Autora rececionou a referida notificação em 18.09.2024, tendo o prazo de vinte dias terminado em 08.10.2024, sem que fosse constituído novo mandatário.
- Em 03.10.2024, foi proferida a douta Sentença de que se recorre.
Entende, assim, que o Tribunal a quo deveria ter aguardado o decurso do prazo de 20 dias antes de proferir sentença, pelo que, tratando-se de um vício que afeta a decisão proferida, que consistiu na omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, constitui nulidade da sentença.
Apreciando:
O artigo 615.º do CPC prevê as causas de nulidade da sentença, sendo unânime considerar-se que “as nulidades da sentença são vícios intrínsecos da formação desta peça processual, taxativamente consagrados no nº 1, do art. 615.º, do CPC, sendo vícios formais do silogismo judiciário relativos à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento, de facto ou de direito, nem com vícios da vontade que possam estar na base de acordos a por termo ao processo por transação” (vide Ac. do TRG de 04.10.2018, disponível em dgsi.pt).
Ou seja, as nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC e reportam-se a vícios estruturais ou intrínsecos da decisão, também, designados por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.
Acresce que, vem sendo decidido pela Jurisprudência, e também assim temos decidido, que sendo obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato não produz efeitos enquanto não decorrer o prazo de 20 dias, concedido ao mandante para constituir mandatário, como se retira do disposto no n.º 3 do art. 47.º do CPC, pelo que, a parte continua a ser assistida pelo mandatário renunciante, que continua vinculado às obrigações decorrentes do mandato forense (neste sentido, cfr. Acórdãos deste Tribunal da Relação do Porto, de 27-11-2023, Proc. n.º 13284/21.1T8PRT-A.P1 e de 23-03-2020, Proc. 25561/15.6T8PRT-C.P1; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 30-03-2023, Proc. 755/22.1T8PTM.E1, entre outros; cfr., ainda, Tribunal Constitucional, 3ª Secção, Acórdão 671/2017 de 13 Out. 2017, Processo 929/2016, Relator: Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor, onde se decidiu que “A norma, segundo a qual a renúncia ao mandato não produz efeitos enquanto não decorrer o prazo de 20 dias, concedido ao mandante para constituir mandatário, não viola os princípios do acesso ao Direito e da tutela jurisdicional efetiva.”).
Não ocorre, pois, a invocada nulidade da sentença.
3. Do erro de julgamento de facto
Aceitando a matéria de facto dada como provada e não provada pelo Tribunal a quo, pretende a recorrente que sejam aditados à matéria de facto, outros dois factos que refere.
O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”.
O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação.
No caso concreto, o julgamento foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, a recorrente indica os factos que pretende ver aditados e os meios de prova que entende imporem tal aditamento, pelo que se mostram reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida.
Segundo ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225, e a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Código Civil.
E é por isso que o art. 607.º, nº 4 do CPC impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova.
Posto isto, cabe analisar se assiste razão à apelante, na parte da impugnação da matéria de facto, ou seja, se devem ser aditados os dois factos cujo aditamento pretende, e que são os seguintes: a) As encomendas eram feitas numa determinada data e eram sempre confirmadas pela Autora, por escrito, através de uma ordem de pedido enviada à Ré, contendo tal documento referência à data da encomenda, mercadoria a fornecer, quantidade e preço acordado. b) As mercadorias referentes às encomendas eram sempre entregues pela ordem cronológica em que eram efetuadas, da mais antiga para a mais recente, e acompanhadas de uma guia de transporte, sem preço, sendo que a fatura era enviada pela Autora à Ré em momento posterior.
Diz a recorrida, nas suas contra-alegações, que tais factos não devem ser aditados, desde logo, porque não foram alegados na contestação da recorrente, mas também porque não são relevantes para a decisão.
Ora, no que diz respeito ao primeiro dos factos cujo aditamento a recorrente pretende, não tem o mesmo interesse para a decisão, por nada de novo trazer aos factos já considerados como provados, uma vez que se mostra assente que “7 - Em 05/01/2021, a Ré encomendou à Autora e esta aceitou a encomenda das seguintes mercadorias: a) - EF601AA, com a descrição Westlake LDPE, na quantidade de 24000 Kg ao preço de € 1,27/Kg; e b) - EF412JM, com a descrição Westlake LDPE, na quantidade de 24000 Kg ao preço de € 1,27/Kg.”.
Este facto foi dado como provado porque foi referido pelas testemunhas arroladas pela ré/recorrida e resulta do teor dos documentos 1 e 2 juntos com a contestação, os quais atestam precisamente que era feita uma encomenda que era confirmada através de uma “ordem de pedido”, da qual constava a data da encomenda, a mercadoria a fornecer, a quantidade e o preço acordado.
Não havendo dúvidas sobre tal procedimento, desnecessário se torna aditar o facto em causa.
Quanto ao segundo facto, cujo aditamento a recorrente pretende, é certo que, tal como a recorrida refere, o mesmo não foi alegado nos autos, nomeadamente na contestação.
Como foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-12-2023, Processo 2017/11.0TVLSB.L1.S1, Relator: JOÃO CURA MARIANO (disponível em dgsi.pt), “I. A possibilidade de serem considerados factos não alegados pelas partes que resultaram da instrução da causa, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, exige que ambas as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre os factos aditados, o que inclui a possibilidade de produzir prova e contraprova sobre eles. II. Essa possibilidade só pode ser proporcionada se o tribunal, antes de proferir a sentença, sinalizar às partes os factos que, apesar de não terem sido por elas alegados, se evidenciaram na instrução da causa e sejam relevante para a decisão da mesma, permitindo que estas se pronunciem sobre eles e concedendo-lhes prazo para indicarem os meios de prova que pretendam produzir, relativamente aos factos aditados ao objeto do litígio.”.
Ora, nada disto aconteceu na situação dos autos, não tendo o facto em causa, porque não foi alegado, sequer sido incluído na matéria de facto provada ou não provada, pelo Tribunal a quo.
E assim sendo, entendemos dever ser rejeitada a impugnação da decisão sobre a matéria de facto que visa aditar ao elenco de factos provados, este facto não alegado, o qual, nos termos do disposto no art. 5.º, nº 1 do CPC, constitui mesmo um facto essencial à pretensão da ré/recorrida de ver proceder a sua versão dos factos em termos de exceção, embora na contestação acabe por não pedir a compensação do seu alegado crédito, fazendo-o apenas no recurso.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto.
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4. Decisão de Direito
Através da presente ação veio a autora/recorrida pedir, antes de mais, a condenação da ré/recorrente no pagamento de determinado valor, em concreto, a diferença entre o valor que a ré pagou (€19 167,50) e o valor da fatura nº 211114, de 31.05.2021, com vencimento em 30.07.2021, no valor de € 50 022,50, ou seja, pretende o pagamento do valor de € 30 855,00 (trinta mil oitocentos e cinquenta e cinco euros).
Embora a autora se refira ao contrato celebrado como contrato de compra e venda, o Tribunal a quo considerou o acordo existente entre as partes como um contrato de fornecimento.
Especificando este conceito de contrato de fornecimento, consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-02-2018, Processo 22131/15.2T8LSB.L1-7, Relator: HIGINA CASTELO, o seguinte:
“À expressão contrato de fornecimento podem reconduzir-se ocorrências contratuais de feições diversas que podemos agrupar nos seguintes modelos:
a) Contrato em que o fornecedor disponibiliza o seu produto em contínuo, durante um dado período ou sem termo determinado, obrigando-se a contraparte a pagar em função do que for consumindo ou retirando, sem prejuízo de poder também ser acordada uma prestação fixa, única ou reiterada, por essa disponibilidade;
b) Contrato pelo qual as partes acordam que o fornecedor realizará entregas de certos produtos e quantidades (ou prestará serviços), com dada periodicidade, durante um período de tempo ou sem termo determinado, mediante contraprestações pecuniárias;
c) Contrato-quadro no qual as partes (ou uma delas) se obrigam à celebração de contratos de execução (compras e vendas, prestações de serviços, locações), durante um dado período ou por tempo indeterminado, podendo regular com maior ou menor intensidade esses futuros contratos (sua cadência, preços, formas de pagamento, quantidades globais por período de tempo, locais de entrega, etc.).
Em todos os modelos há fornecimentos de bens ou serviços que se prolongam no tempo e há pagamentos desses bens ou serviços.
Nos modelos das alíneas a) e b), o objeto imediato do contrato é a obrigação de entrega ou disponibilização de bens ou de prestação de serviços, contra uma prestação pecuniária. Apenas o modelo da alínea c) se configura como contrato-quadro, cujo objeto imediato é a obrigação de celebrar no futuro os contratos de execução.
No modelo da alínea a), a prestação característica (a não pecuniária) é de execução contínua – uma obrigação do fornecedor de disponibilizar continuadamente, à mercê dos consumos que a outra parte for fazendo. São deste tipo os contratos de fornecimento de água, eletricidade, gás, redes de comunicações. Podem assim configurar-se outros contratos, como por exemplo alguns dos celebrados com os donos de pedreiras, para fornecimento de pedra ou areia. No da alínea b), a prestação característica é de execução reiterada, combinando as partes logo de início os produtos e quantidades que serão entregues (ou serviços que serão prestados) bem como os momentos em que o serão, e o preço e forma de pagamento dos vários fornecimentos.
Em ambos os casos, os contratos são bilaterais, emergindo deles ab initio duas obrigações principais sinalagmáticas. A categoria dos contratos bilaterais é maioritariamente identificada com a dos sinalagmáticos (sobre a sinonímia ou o afastamento dela, Higina Orvalho Castelo, O contrato de mediação, Almedina, 2014, pp. 307-9), definindo-se os contratos bilaterais ou sinalagmáticos como aqueles de que «nascem obrigações para ambas as partes, unidas uma à outra por um vínculo de reciprocidade (…). Este vínculo surge logo no momento da celebração do contrato, como ligação entre as suas obrigações típicas (sinalagma genético) e perdura ao longo da existência do contrato, acompanhando-o nas suas vicissitudes (sinalagma funcional)» (Inocêncio Galvão Telles, Manual dos contratos em geral, 4ª ed., Coimbra Editora, 2002, p. 485).
No modelo da alínea c), o contrato-quadro pode ser bilateral ou unilateral e o seu objeto imediato é a realização de outros contratos. O contrato-quadro de fornecimento será bilateral ou sinalagmático quando ambas as partes se obrigam a prestações principais típicas desse contrato-quadro: o fornecedor obriga-se a vir a celebrar os contratos de execução do fornecimento quando solicitado e a contraparte obriga-se, também, a solicitar os fornecimentos (em dada quantidade por período ou com certa regularidade). Quando assim é, o contrato-quadro de fornecimento é mais denso, podendo aproximar-se da distribuição integrada.
O contrato-quadro de fornecimento será unilateral quando se estipula apenas uma obrigação principal: a obrigação do fornecedor de celebrar os contratos de execução, quando solicitado. A contraparte não se obriga a efetuar encomendas (embora ao fazê-las dê início a novas relações contratuais, de execução, bilaterais ou sinalagmáticas, que para si geram obrigações de pagamento).
No contrato-quadro de fornecimento, as partes podem também definir as regras a que submeterão os futuros contratos de execução. Podem verificar-se, no entanto, contratos-quadro de fornecimento muito simples que comportam apenas a obrigação principal do fornecedor de fornecer (vir a celebrar os futuros contratos de execução), quando solicitado e de acordo com preços previamente indicados. O contrato-quadro de fornecimento (que, como afirmado, pode ser unilateral) é uma entidade distinta dos contratos de execução (bilaterais). O objeto imediato do contrato-quadro de fornecimento é a obrigação de celebrar no futuro os contratos que consubstanciam os desejados fornecimentos.”.
Nesse mesmo acórdão, se diz: “Nas palavras de Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Almedina, 2007, pp. 142-3, «o contrato de fornecimento caracteriza-se pelo carácter periódico ou contínuo da prestação não monetária (mercadoria, publicações, água, eletricidade, gás, telefone). (…) É frequente a qualificação doutrinária do contrato de fornecimento como subtipo da compra e venda. Mais adequada parece ser, porém, se a interpretação do contrato a tal não se opuser, a qualificação como contrato-quadro, no âmbito do qual se celebram múltiplos contratos de compra e venda ou de prestação de serviço».
E, ainda, “Segundo entendemos, e melhor exporemos adiante, no contrato de fornecimento, uma das partes (designada por fornecedor) obriga-se: a fornecer bens ou serviços continuamente, mediante um preço (normalmente a pagar periodicamente); ou a fornecer bens ou serviços periódica ou reiteradamente, contra prestação pecuniária; ou, ainda, a celebrar futuros contratos onerosos (nomeadamente de compra e venda, de locação ou de prestação de serviços), quando solicitado pela contraparte.
Trata-se de um contrato duradouro, com influência direta do tempo no conteúdo da prestação, pois o fornecedor obriga-se a ir prestando (eventualmente, celebrando os futuros contratos de execução) ao longo de um período de tempo, não tendo forma de cumprir antecipadamente, pois os futuros fornecimentos não podem, na lógica do contrato, ser efetuados todos de uma vez, desde logo porque a sua concretização – em termos de número, quantidades, tempos – apenas em momentos futuros e diversos será feita de acordo com as encomendas (ou consumos) a realizar pela contraparte. (sublinhado nosso).
(…)
A locução «contrato de fornecimento» adequa-se a uma extensa gama de relações que podem ir desde relações incipientemente contratuais até densos contratos próximos dos de distribuição integrada.”.
Posto isto, e voltando ao caso em apreciação neste recurso, resulta do conjunto dos factos provados que estamos perante um contrato de fornecimento simples, com a obrigação do fornecedor (autora) de fornecer, quando solicitado e nas quantidades e preço acordados para cada encomenda, pelo cliente, a mercadoria pretendida.
A este contrato devem, tendo em conta as suas características, ser aplicadas as regras do contrato de compra e venda, pelo que, nos termos do disposto no art. 879.º do Código Civil cabia à autora/recorrida fornecer a mercadoria, o que em relação à fatura em causa fez, e à ré/recorrente pagar o respetivo preço acordado, o que não fez na totalidade.
Ora, sobre o cumprimento das obrigações regem, para além da regulamentação específica atinente aos diversos tipos de contratos em particular, os princípios genéricos das obrigações estabelecidos nos arts. 406.º, nº 1 e 762.º do Código Civil, ou seja, de que o contrato deve ser pontualmente cumprido, no sentido amplo de que o cumprimento deve coincidir ponto por ponto, em toda a linha, com a prestação de que o devedor se encontra adstrito, e de que o devedor só cumpre a obrigação quando realiza integralmente a prestação a que está vinculado (princípio do cumprimento integral); e, ainda, de que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé (princípio da boa fé).
Por outro lado, ainda, nos termos do disposto no art. 799.º do Código Civil, presume-se a culpa do devedor relativamente ao incumprimento da obrigação.
Não cumprindo o réu a sua obrigação, tem o autor o direito de exigir a sua condenação judicial a pagar-lhe o valor em dívida (art. 817.º do Código Civil), bem como os prejuízos sofridos em consequência da falta de cumprimento (art. 798.º do Código Civil).
Os prejuízos neste caso consistem no valor em dívida e juros respetivos.
Posto isto, bem andou o Tribunal a quo ao condenar a ré/recorrente no pagamento do valor em falta, relativo ao preço da mercadoria que recebeu relativa à fatura identificada, e cujos termos foram acordados entre as partes.
No que diz respeito à encomenda feita pela recorrente, recebida pela recorrida, mas não fornecida, datada de 05-01-2021, resulta da factualidade provada que efetivamente tal contrato não foi cumprido pela autora.
Contudo, a fim de se ver ressarcida de qualquer prejuízo que tenha sofrido, teria a ré/recorrente que ter alegado e provado todos os requisitos da responsabilidade contratual, nos termos do art. 798.º do Código Civil, formulando o respetivo pedido, o que não fez.
Quanto à alegada compensação que a ré/recorrente diz ter efetuado unilateralmente e que será o motivo pelo qual não pagou a totalidade da fatura reclamada pela autora/recorrida, há que ter em conta o disposto no art. 847.º do Código Civil, quanto aos requisitos para que possa ser feita a compensação, sendo, desde logo, necessário que o crédito da pessoa que pretende fazer a compensação, seja exigível judicialmente (al. a), do nº 1, do art. 847.º do CC).
Segundo Antunes Varela (Código Civil Anotado, 4ª edição, pág. 202) “Para que o devedor se possa livrar da obrigação por compensação, é preciso que ele possa impor nesse momento ao notificado a realização coativa do crédito (contra crédito) que se arroga contra este”, ideia que o dito art. 847.º, nº 1 concretiza, “explicitando os corolários que dela decorrem: o crédito do compensante tem de ser exigível judicialmente e não estar sujeito a nenhuma excepção, peremptória ou dilatória, de direito material”, dizendo-se “judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à ação de cumprimento e à execução do património do devedor (art. 817º).”
Na mesma linha se pronunciam Menezes Cordeiro (“Da Compensação no Direito Civil e no Direito Bancário”, pág. 113) e Menezes Leitão (Direito das Obrigações, 2002, vol. II, pág. 196), entendendo que o crédito é judicialmente exigível, quando, no momento em que pretende operar a compensação, o compensante esteja em condições de opor ao devedor a realização coativa do seu crédito, o que nos remete para o já referido art. 817.º do Código Civil, preceito que, inserido em Secção com a epígrafe “Realização Coactiva da Prestação”, dispõe que “não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis do processo.”.
Este requisito, de o crédito de quem pretende exercer a compensação ser exigível judicialmente, deve ser interpretado nos termos em que foi decidido pelo Ac. do TRC, de 03-12-2009, processo 436/07.6TBTMR.C1, com o qual concordamos, e onde se refere que “II – O requisito de compensação que se traduz na necessidade de o crédito ser exigível judicialmente, significa tão só que o mesmo deve ser susceptível de ser reconhecido em acção de cumprimento, assim se concordando plenamente com o entendimento plasmado no Ac. da Rel. Porto de 9/05/2007 (in Col. Jur., Ano 2007, tomo III, pg. 172). IV – Ou seja, o crédito invocado para operar a compensação (crédito activo) não tem de se mostrar aceite pela parte contra o qual se pretende fazer valer – e também não tem de ser um crédito que previamente haja sido judicialmente reconhecido. V – Invocada por via de excepção, na contestação, a compensação fundada em crédito activo susceptível de ser reconhecido em acção de cumprimento, na hipótese de este não se poder ter por indiscutido tal compensação só se poderá considerar eficaz caso na sentença a proferir esse mesmo crédito activo venha a ser reconhecido.”.
No mesmo sentido vai a decisão proferida no Acórdão do TRE, de 20-10-2016, processo 119/14.0TBABT-A.E1, onde se decidiu que: “1. O conceito de contracrédito judicialmente exigível, a que alude a primeira parte da alínea a), do n.º1, do art.º 847º do Cód. Civ., basta-se com a possibilidade do crédito do executado sobre o exequente, estar vencido e não pago, facultando-lhe o recurso imediato à tutela judicial, tanto por via da instauração de acção declarativa condenatória no cumprimento do contracrédito, como de acção executiva, havendo para o efeito o suficiente título executivo. 2. Tese que se nos afigura consentânea com a redacção da alínea h), do n.º1, do art.º 729º do NCPC, que veio permitir que o contracrédito a compensar, seja provado por qualquer meio, mesmo sendo deduzido no âmbito de uma oposição à execução baseada em sentença. 3. Demonstrada a interpretação harmónica do disposto na primeira parte da alínea a), do n.º1, do art.º 847º do Cód. Civ., com o disposto na h), do n.º1, do art.º 729º do NCP, torna-se evidente que no âmbito da oposição à execução baseada noutro título, regulada pelo art.º 731º do NCPC, o credor pode deduzir Oposição à Execução por Embargos, alegando contracrédito vencido e não pago, a compensar com o crédito exequendo, que poderá provar por qualquer meio admissível em processo declarativo.”.
Ou seja, num caso como o que se encontra em apreciação, em que o alegado crédito do compensante não se mostra ainda reconhecido judicialmente e não é aceite pela parte contrária, tem que ser reconhecido na ação onde a compensação é invocada, para poder ser eficaz.
Ora, no caso, o Tribunal a quo apreciou essa questão no sentido da sua improcedência.
E bem.
De facto, se é certo que a autora incumpriu o contrato relativamente à encomenda de 05-01-2021, certo é também que a ré/recorrente incumpriu, por sua vez, o contrato celebrado posteriormente, a um preço diferente.
Sucede que, para a ré/recorrente poder compensar o crédito que diz ter sobre a aurora/recorrida, teria, como já referido, que alegar e provar os requisitos da responsabilidade civil contratual, sendo certo que em relação ao referido incumprimento por parte da autora, não alegou nem demonstrou ter sofrido qualquer dano, já que, embora não tenha recebido a encomenda, também nada pagou por conta da mesma.
Por outro lado, as contas que a ré/recorrente faz para de alguma forma dizer que sofreu um dano e, como tal, tem um crédito sobre a autora, não podem aceitar-se, já que o preço da encomenda que recebeu e não pagou na totalidade, foi acordado entre as partes, não tendo a ré feito prova, até porque não o alegou devidamente, que recaía sobre a autora a obrigação de não fornecer outras encomendas posteriores, enquanto não tivesse fornecido as anteriores.
O que resulta da matéria de facto provada é que a ré foi fazendo outras encomendas, apesar de não ter recebido ainda a encomenda em falta, sabendo que encomendava mercadorias a preços superiores, acordados com a autora.
Não tem, assim, direito a fazer a compensação do alegado crédito, crédito cujo valor, aliás, nem sequer provou.
E será que a autora atuou de má fé e em abuso de direito, ao enviar as encomendas posteriores, a um preço mais elevado, não enviando a encomenda anterior de preço mais baixo?
Sobre o conceito de boa fé, diz-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-05-2012, Processo 2841/03.8TCSNT.L1.S1, Relator: LOPES DO REGO, que:
“1. O conceito normativo de boa fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos distintos: no sentido de boa fé objectiva, enquanto norma de conduta, ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efectivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral; e no sentido de boa fé subjectiva ou psicológica, isto é, como consciência ou convicção justificada de se adoptar um comportamento conforme ao direito e respectivas exigências éticas.”.
No caso, até poderia considerar-se que a autora estaria a atuar em abuso de direito se a recorrente tivesse logrado provar que as mercadorias referentes às encomendas eram sempre entregues pela ordem cronológica em que eram efetuadas, da mais antiga para a mais recente, o que não sucedeu, sendo certo que, como se disse supra, tal não foi sequer alegado pela ré na sua contestação.
Assim sendo, tendo a ré continuado a fazer e receber encomendas apesar de não ter ainda recebido a anterior, sem que se tivesse provado que existia algum acordo no sentido de que não seria enviada uma encomenda sem ter sido enviada uma anterior, não pode concluir-se que a autora/recorrida atua em abuso de direito, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé.
E também não se verifica uma qualquer situação de enriquecimento sem causa, já que a mercadoria que a autora enviou à ré, foi por esta recebida e foi faturada ao preço acordado.
De qualquer modo, trata-se de uma questão nova que apenas agora foi invocada pela ré/recorrente, pelo que não pode ser conhecida por este Tribunal, já que os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão, mas não para obter decisões de questões novas, que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido. As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos que se destinam a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida (cfr. neste sentido, Ac. STJ, de 08-10-2020, Processo 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1, em dgsi.pt).
Por tudo quanto se deixa exposto, improcede o recurso na totalidade.
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V - DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante (art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC).
Porto, 2025-03-06.
Manuela Machado
Isoleta de Almeida Costa
António Paulo Vasconcelos