RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO DA PRIVAÇÃO DO USO DO VEÍCULO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário

I - O dano da privação do uso de um automóvel sinistrado deve ser indemnizado independentemente da prova do valor locativo de outro com idênticas caraterísticas e do facto de o lesado dispor de outro automóvel que pôde usar durante o período de privação;
II - É adequado fixar em 20 € diários a indemnização pela privação do uso de veículo automóvel ligeiro que era usado diariamente pela lesada para o exercício da sua profissão e para transporte da sua filha menor.
III - O dano consubstanciado no pânico sofrido por sinistrada no momento do acidente e pelas dores sofridas nesse momento e nos dias subsequentes bem como nas dificuldades em conduzir e adormecer nos dias que se seguiram ao sinistro é merecedor de tutela do direito por via indemnizatória.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo número 11148/22.0T8PRT.P1, Juízo Local Cível do Porto, ...

Recorrentes:

AA e BB.

Recorrida: A..., S.A. – Sucursal em Portugal.

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeira adjunta: Maria de Fátima Almeida Andrade

Segunda adjunta: Eugénia Cunha

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1. Em 20-06-2022 AA e BB, menor, representada pela primeira autora e por CC, propuseram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra a “B..., Companhia de Seguros, S.A.” (ora A..., S.A. – Sucursal em Portugal) pedindo a condenação da ré no pagamento a cada uma das autoras das seguintes quantias:

“A) à 1ª Autora, a título indemnizatório:

i) uma quantia global não inferior a €37.189,98, (trinta e sete mil cento e oitenta e nove euros e noventa e oito cêntimos) acrescida de juros ao dobro da taxa legal contados da citação até efetivo pagamento, e que integra:

a) A quantia de 29.100,00€ (vinte e nove mil euros), equivalente ao valor da aquisição do veículo, por todos os danos materiais sofridos, incluindo a desvalorização do veículo decorrente do acidente;

b) A quantia não inferior a 1.449,63€ (mil, quatrocentos e quarenta e nove euros e sessenta e três cêntimos) pelo parqueamento do veículo PX na oficina C..., Lda.

c) A quantia não inferior a 24,60€ (vinte e quatro euros e sessenta cêntimos) pelos serviços de reboque do veículo PX;

d) A quantia não inferior a 20,75€ (vinte euros e setenta e cinco cêntimos) pelo atendimento médico permanente realizado no Hospital Privado ... S.A;

e) A quantia que vier a ser equitativamente fixada pelo tribunal pela privação do uso do veículo, que não deverá ser inferior a 4.095,00€ (quatro mil e noventa e cinco euros);

f) A quantia não inferior a €2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros) a título de demais danos não patrimoniais da 1.ª A.;

Caso assim não se entenda,

i) uma quantia global não inferior a €33.601,72 (trinta e três mil seiscentos e um euros e setenta e dois cêntimos) acrescida de juros ao dobro da taxa legal contados da citação até efetivo pagamento, e que integra:

a) A quantia não inferior a 20.284,19€ (vinte mil, duzentos e oitenta e quatro euros e dezanove cêntimos) referente ao valor da reparação com peças originais;

b) A quantia não inferior a 1.449,63€ (mil, quatrocentos e quarenta e nove euros e sessenta e três cêntimos) pelo parqueamento do veículo PX na oficina C..., Lda.

c) A quantia não inferior a 227,55€ (duzentos e vinte e sete euros e cinquenta e cinco cêntimos) por reparações adicionais no veículo PX;

d) A quantia não inferior a 24,60€ (vinte e quatro euros e sessenta cêntimos) pelos serviços de reboque do veículo PX;

e) A quantia não inferior a 20,75€ (vinte euros e setenta e cinco cêntimos) pelo atendimento médico permanente realizado no Hospital Privado ... S.A;

f) A quantia que vier a ser equitativamente fixada pelo tribunal pela privação do uso do veículo, que não deverá ser inferior a 4.095,00€ (quatro mil e noventa e cinco euros);

g) A quantia que se vier a apurar de desvalorização do veículo após o acidente, mas que não deverá ser inferior a €5.000,00 (cinco mil euros);

h) A quantia não inferior a €2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros) a título de demais danos não patrimoniais da 1.ª A.;

Caso também assim não se entenda:

ii) uma quantia global não inferior a €24.697,53 (vinte e quatro mil seiscentos e noventa e sete euros e cinquenta e três cêntimos) acrescida de juros ao dobro da taxa legal contados da citação até efetivo pagamento, e que integra:

a) a quantia não inferior a 11.380,00€ (onze mil, trezentos e oitenta euros) pelo valor da reparação com peças de marca branca;

b) A quantia não inferior a 1.449,63€ (mil, quatrocentos e quarenta e nove euros e sessenta e três cêntimos) pelo parqueamento do veículo PX na oficina C..., Lda.

c) A quantia não inferior a 227,55€ (duzentos e vinte e sete euros e cinquenta e cinco cêntimos) por reparações adicionais no veículo PX;

d) A quantia não inferior a 24,60€ (vinte e quatro euros e sessenta cêntimos) pelos serviços de reboque do veículo PX;

e) A quantia não inferior a 20,75€ (vinte euros e setenta e cinco cêntimos) pelo atendimento médico permanente realizado no Hospital Privado ... S.A;

f) A quantia que vier a ser equitativamente fixada pelo tribunal pela privação do uso do veículo, que não deverá ser inferior a 4.095,00€ (quatro mil e noventa e cinco euros);

g) A quantia que se vier a apurar de desvalorização do veículo após o acidente, mas que não deverá ser inferior a €5.000,00 (cinco mil euros);

h) A quantia não inferior a €2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros) a título dos demais danos não patrimoniais da 1.ª A.;

B) Ser a Ré condenada a pagar à 2ª Autora, a título indemnizatório quantia não inferior a 5.115,87€ (cinco mil, cento e quinze euros e oitenta e sete cêntimos), acrescida de juros ao dobro da taxa legal contados da citação até efectivo pagamento, a título de danos não patrimoniais e que integra

a) Quantia não inferior a 5000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais;

b) Quantia não inferior a €115,87 (cento e quinze euros e oitenta e sete cêntimos), referente aos custos do serviço de urgência.”.

Alegaram, em síntese, terem sofrido danos decorrentes de um acidente de viação causado por culpa exclusiva do condutor do veículo de matrícula “..-..-ZC”, cujo proprietário celebrara com a ré contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

2. A ré contestou em 19-09-2022, impugnando a descrição do acidente constante da petição inicial bem como a extensão e quantificação dos danos.

3. Em 09-01-2023 foi dispensada a realização da audiência prévia e foi proferido despacho de fixação do valor da causa, de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Foram admitidos os requerimentos instrutórios entre eles a realização de perícia para avaliação do veículo da primeira autora e a desvalorização do mesmo após o acidente.

4. O relatório pericial foi junto aos autos a 19-10-2023 e a audiência de julgamento foi designada para 14-03-2024 e teve continuação a 09-05-2024.

5. Em 19-06-2024 foi proferida sentença pela qual se julgou a ação parcialmente procedente e se condenou a ré a pagar à primeira autora a quantia de 9 219,62€, acrescida de juros calculados à taxa de 4% ao ano desde 30 de junho de 2022 até efetivo e integral pagamento e à segunda autora a quantia de 600,00€, acrescida de juros calculados à taxa de 4% ao ano desde a presente data até efetivo e integral pagamento.


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II - O recurso:

É desta sentença que recorrem as autoras, pretendendo a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação, com a consequente condenação da ré no pagamento de: 17 854, 23 € para indemnização dos danos decorrentes da reparação do veículo automóvel da primeira e da sua desvalorização; 4 095 € pelo dano de privação do uso do automóvel em que seguiam; 2 500 € para ressarcimento dos danos não patrimoniais da primeira autora; e 5 000€ para indemnização dos danos não patrimoniais da segunda autora.

Para tanto, alegam o que sumariam da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

“1. Na sentença ora recorrida, há erro de julgamento quanto à matéria de facto, pois, a prova produzida em audiência, e que se mostra gravada, aponta inequivocamente no sentido de deverem ser integrados na matéria assente, factos que, tendo sido alegados, sendo relevantes para a boa decisão da causa, resultaram também provados em audiência, tendo o tribunal errado ao considerá-los não provados, nomeadamente a partir das declarações de parte da 1.ª Autora, do depoimento da testemunha DD e das declarações do legal representante da 2.ª autora, conjugadas com basta prova documental existente nos autos, em particular a participação de acidente e as fotografias do acidente e dos veículo, juntos com a petição inicial.

2. Atentas as declarações de parte da 1.ª Autora entre os minutos 00:00:01 e 00:03:40, entre os minutos 00:10:55 e 00:14:00 e entre os minutos 00:37:30 e 00:40:25, todos da gravação áudio do sistema habilus, bem como o depoimento da testemunha DD entre os minutos 00:01:00 e 00:04:15 da referida gravação, tudo acima transcrito, conjugadas com a participação de acidente de viação e as fotos do acidente e dos veículos juntos com a PI, determinam a necessidade de reformular, em sede de recurso, a decisão da matéria de facto dando como não provado o ponto 14 (matéria assente) e como provada a seguinte factualidade:

14.- O “PX” circulava na via de circulação do meio, em manobra de ultrapassagem.

14. a.- O “PX” seguia à velocidade de 75 km/h.

14. b.- O condutor do “ZC”, ao aperceber-se do embate mencionado na alínea 8), travou.

14. c.- E reduziu a velocidade.

14. d.- O condutor do “ZC” mudou a direcção para passar a circular na via central sem sinalizar a mudança.

14. e.- O “PX” foi embatido quanto o “ZC” invadiu a faixa do meio.

Isto porquanto,

3. Quanto à dinâmica do acidente, a testemunha DD depôs de modo claro, escorreito, sem lapsos de memória e sem qualquer dúvida sobre o modo com o acidente aconteceu, sendo particularmente interessante sublinhar que o acidente acorreu à sua frente, com a visão plena sobre toda a dinâmica – o que é confirmado pelas fotografias juntas ao processo onde se pode ver o carro vermelho, da testemunha, mesmo

junto ao acidente, em plena via.

4. Não pode merecer qualquer credibilidade o depoimento da testemunha EE, pois, nas palavras do próprio tribunal, julga-se que não se pode dizer ser uma testemunha inteiramente desinteressada, pois que pelo menos tem o interesse moral de afirmar a sua ausência de culpa. Foi, por isso, o seu depoimento valorado mas sem deixar de o sopesar em razão de tal interesse.

5. Além da falta de credibilidade desta testemunha EE, cujo depoimento foi claramente defensivo e pouco ou mesmo nada espontâneo, acresce a circunstância de que a versão que apresenta – que é a versão da Ré – não se mostra sustentada por qualquer outro elemento probatório.

6. Atentas as declarações da 1.ª Autora entre os minutos 00:22:10 e 00:23:00, da gravação áudio do sistema habilus, conjugadas com as declarações de CC, que prestou depoimento enquanto legal representante da 2.ª Autora, entre os minutos 00:03:00 e 00:05:10 da gravação áudio do sistema habilus, tudo acima transcrito, deve ser adicionado o seguinte ponto à matéria de facto provada, na medida em que é matéria alegada na petição inicial (artigo 90.º):

32. a) - O veículo da marca “Toyota”, modelo ..., é um clássico e funciona a gasolina.

7. Há também erros de julgamento na matéria de direito, quer quanto à questão da responsabilidade, que quanto aos danos.

8. Há manifesto erro de julgamento, porquanto, face à matéria que se entende dever considerar provada, nomeadamente os factos 14. a 14. e), a responsabilidade pela produção do acidente, recai, por inteiro, no condutor da viatura ZD.

9. Está provado, além do mais, que “PX” circulava na via de circulação do meio, em manobra de ultrapassagem, a uma velocidade de 75 km/h e que o condutor do “ZC”, ao aperceber-se do embate mencionado na alínea 8) da matéria prova, travou, reduziu a velocidade, manobrou o “ZC” mudando a direcção para passar a circular na via central sem sinalizar a mudança e, em consequência, o “PX” foi embatido quanto o “ZC” invadiu a faixa do meio.

10. Ao ter mudado de direcção, sem sinalizar, invadindo a via onde circulava o PX, impedindo a sua marcha, o condutor do ZC violou o disposto nos artigos 11.º, n.º 2, 14.º n.º 2 e, em particular, no 35.º, n.º 1, do Código da Estrada, onde se pode ler que “o condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito”.

11. Tendo também ficado provado que o risco de circulação do veículo de matrícula “..-..-ZC” por danos causados a terceiros estava transferido para a ré pela apólice n.º ...70, a responsabilidade pelos danos causados recai, por inteiro, sobre a Ré.

12. Donde, deve a decisão recorrida ser nesta parte revogada e substituída por outra que conclusa pela responsabilidade total na produção do acidente pelo condutor do ZC e, em consequência, decidir-se pela condenação daRé na reparação integral de todos os danos decorrentes do acidente, os quais, no que tange aos danos materiais, totalizam pelo menos a quantia de €17.854,23 (factos provados 16 a 26 da matéria assente), valor em que a Ré deverá ser condenada, devendo a decisão, também nesta parte, ser revogada e substituída por outra que conclua nestes exactos termos.

13. Quanto ao dano de privação do uso, há também erro de julgamento, no caso quanto ao valor diário fixado, pois, face à factualidade provada (pontos 27 a 33, incluindo o novo ponto 33.a), e também atento o valor de mercado do aluguer diário de um veículo com idênticas características, não é equitativo um valor diário inferior a 35,00 € (trinta e cinco euros).

14. Deve, assim, também nesta parte a decisão ser revogada e substituída por outra que condene a Ré no pagamento à 1.ª Autora de uma quantia total de €4.095,00€ (dois mil novecentos e vinte e cinco euros) pelo dano de privação do uso (117 dias x 35 euros).

15. Há, do mesmo passo, erro de julgamento quanto aos danos físicos da 1.ª Autora, pois tendo ficado provada a existência de danos (pontos 34 a 36 da matéria assente), os quais são juridicamente relevantes e atendíveis, não pode o tribunal a quo substituir, ilegalmente, um juízo jurídico por um juízo de ordem moral.

16. Deve, assim, a decisão ser, também desta parte, revogada e substituída por outra que condene a Ré a ressarcir a 1ª Autora pelos danos morais causados, cujo valor deverá ser equitativamente fixado pelo Tribunal de recurso mas que, no entendimento da 1ª Autora, não devem ser inferiores a 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros à taxa legal contados da citação até efectivo e integral pagamento.

17. Há outrossim erro de julgamento quando o Tribunal a quo conclui, quanto aos danos morais da 2.ª Autora, adequado e proporcional fixar a compensação relativa aos danos não patrimoniais sofridos pela segunda autora em 1.200,00€, pois, tendo em conta a factualidade provada, nomeadamente a idade da 2.ª autora, ainda criança, o aparato do acidente, os danos provados, a compensação não deve ser inferior a 5.000,00€ (cinco mil euros), acrescida de juros, devendo a decisão ser revogada e substituída por outra que

condene a Ré em conformidade.

18. Devem formular-se as mesmas conclusões jurídicas, quanto ao dano de privação do uso e aos danos morais de ambas as autoras, caso o Tribunal ad quem entenda– o que apenas por hipótese teórica se considera – que não deve ser alterada a decisão sobre matéria de facto.

19. A sentença recorrida é, pois, ilegal, por violar, nomeadamente, o disposto no artigo 483.º do Código Civil.

20. A presente Apelação deverá, pois, ser julgada totalmente procedente e, em consequência revogada a sentença recorrida, devendo a mesma ser substituída por decisão que condene nos termos atrás especificados nos pedidos formulados pelas AA.

Vossas Excelência, contudo, julgarão, com Douto suprimento, como for de Direito e Justiça!”


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A Ré contra-alegou defendendo a confirmação da sentença.


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III – Questões a resolver:


Em face das conclusões do Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1. A alteração dos factos dados por provados nas alíneas 14 e 32 (passando a provados, sob tais alíneas, os factos julgados não provados nas alíneas a) a f) e s));
2. Procedendo tal pretensão, a imputação do acidente ao comportamento culposo e ilícito do condutor do veículo de matrícula ..-..-ZC;
3. Caso proceda tal pretensão, a condenação da ré no montante de 17 854, 23 € devido para a indemnização dos danos decorrentes da reparação do veículo, da sua desvalorização e do seu reboque e aparcamento;
4. A alteração do valor fixado para ressarcimento do dano de privação do uso do veículo automóvel da primeira autora;
5. A alteração dos valores fixados para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos por ambas as autoras.

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IV – Fundamentação:

Foram os seguintes os factos selecionados pelo tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa (destacar-se-ão desde já aqueles que o Recorrente pretende que sejam alterados):

1) No dia 16 de junho de 2019, pelas 16h45, na Via de Cintura Interna (A...0), ao Km ..., no sentido .../..., em ..., no Porto, a chegar ao ramal de saída para Matosinhos/..., ocorreu um embate entre o veículo da marca “BMW”, ..., modelo ..., matrícula “..-PX-..”, propriedade da primeira autora e conduzido pela própria, e o veículo da marca “Mercedes”, modelo ..., com a matrícula “..-..-ZC”, propriedade de FF e conduzido por EE.

2) A segunda ré seguia no veículo “PX”, no banco traseiro.

3) A Via de Cintura Interna (VCI) é uma via rápida, com perfil de autoestrada, que dispõe de dois sentidos de marcha divididos entre si por um separador central de faixas em betão.

4) Cada sentido de marcha possui três vias de circulação.

5) O pavimento estava seco.

6) Não existiam quaisquer obras a obstruir a circulação.

7) A velocidade máxima permitida no local é de 80Km/h.

8) Num momento prévio e a montante, por referência aos momentos que antecederam o embate, havia ocorrido um outro embate envolvendo três veículos na via da direita no sentido ... – ....

9) O “ZC” circulava no sentido ... – ..., na via de circulação do lado direito.

10) O “PX” circulava no mesmo sentido,

11) À velocidade de pelo menos 75 km/h.

12) O condutor do “ZC”, ao aproximar-se do ramal de saída para Matosinhos, apercebeu-se do embate mencionado na alínea 8).

13) E virou à esquerda, passando a circular na via do meio para ultrapassar os veículos acidentados.

14) O “PX” embateu com a sua frente/lateral, sobre o lado direito, na parte traseira/lateral, sobre o lado esquerdo, do “ZC”.

15) Com a força do embate, o “ZC” foi projetado para a frente e, rodopiando sobre si mesmo, acabou imobilizado com a traseira virada para o separador central e na via de circulação da esquerda.

16) Com o embate, o veículo “PX” ficou danificado na parte frontal e lateral direita à frente.

17) A reparação do veículo ascendia a 20.284,19€.

18) A reparação do veículo importou a substituição de peças e a realização de trabalhos ao nível de mecânico, de chapa e pintura.

19) A autora optou pela reparação com peças de marca branca e em segunda mão.

20) A autora suportou com a reparação do “PX” o valor de 11.380,00€.

21) A reparação do “PX” foi concluída no dia 11 de outubro de 2019.

22) O “PX” esteve imobilizado desde o dia do embate até 11 de outubro de 2019.

23) O “PX” valia à data do embate quantia não superior a 22.000,00€.

24) Com o embate e a reparação o veículo ficou desvalorizado em 5.000,00.

25) A autora suportou a quantia de 1.449,63€ com o parqueamento na oficina.

26) E a quantia de 24,60€ pelo serviço de reboque.

27) Não foi facultado à autora um veículo de substituição.

28) A primeira autora é advogada.

29) A primeira autora utilizava o veículo “PX” nas suas deslocações pessoais e profissionais.

30) O “PX” é um veículo a gasóleo.

31) A primeira autora realizava uma média de 1.380 km por mês com o veículo.

32) No período de 16 de junho a 11 de outubro de 2019, a autora utilizou o veículo da marca “Toyota”.

33) A autora pagou de prémio de seguro do veículo “PX” a quantia de 315,33€.

34) Por causa do embate, a primeira autora sentiu dores no momento do embate e dores de cabeça nos dias subsequentes.

35) Sentiu dificuldade em conduzir nos dias seguintes e em adormecer por causa das perturbações que o embate lhe causou.

36) Com o embate, a primeira autora vivenciou um momento de pânico.

37) A primeira autora pagou a quantia de 20,75€ pelo atendimento médico no “Hospital Privado ... S.A.”.

38) A segunda autora foi transportada ao “Centro Hospitalar ...”, no Porto.

39) A segunda autora sofreu ferimentos no ombro e braço esquerdo.

40) Tais ferimentos causaram-lhe dores.

41) A segunda autora sentiu dificuldades em adormecer sozinha nos dias seguintes.

42) A segunda autora sente-se ansiosa com a presença de outros veículos que se aproximam quando viaja com os progenitores.

43) A segunda autora nasceu no dia ../../2013.

44) À data do embate o risco de circulação do veículo de matrícula “..-..-ZC” por danos causados a terceiros estava transferido para a ré pela apólice n.º ...70.


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Não resultou provado que:

a.- O “PX” circulava na via de circulação do meio, em manobra de ultrapassagem.

b.- O “PX” seguia à velocidade de 75 km/h.

c.- O condutor do “ZC”, ao aperceber-se do embate mencionado na alínea 8), travou.

d.- E reduziu a velocidade.

e.- O condutor do “ZC” mudou a direcção para passar a circular na via central sem sinalizar a mudança.

f.- O “PX” foi embatido quanto o “ZC” invadiu a faixa do meio.

g.- O “PX” embateu no “ZC” sem que a condutora “PX” tivesse tempo para travar ou desviar-se.

h.- O “PX” seguia na faixa da direita, atrás do “ZC”.

i.- O “ZC” seguia a uma velocidade inferior a 60 km/h.

j.- O “PX” seguia a uma velocidade superior a 90 km/h.

k.- Quando a condutora do “PX” se apercebeu dos veículos imobilizados na via da direita virou à esquerda para passar a circular pela via do meio.

l.- O que fez sem sinalizar a manobra.

m.- O embate ocorreu quando o “ZC” se encontrava ao lado do primeiro veículo acidentado na faixa direita.

n.- Após o embate, a condutora do “PX” perdeu o controlo do veículo.

o.- A reparação do veículo ascendia a pelo menos 32.525,15€.

p.- A reparação do “PX” importou a colocação de peças e a realização dos trabalhos discriminados no art. 61.º da petição inicial.

q.- O valor do salvado ascendia a 9.333,00€.

r.- A reparação do “PX” custou mais 227,55€ por reparações adicionais decorrentes do embate para além do provado na alínea 20).

s.- O veículo da marca “Toyota”, modelo ..., funciona a gasolina.

t.- A autora pagou de IUA no ano de 2019 a quantia de 259,49€.

u.- O aluguer diário de um veículo de idênticas caraterísticas ao “PX” ascende a 35,00€.

v.- Até à presente data, a primeira autora sente ansiedade e receio em conduzir e em ser conduzida.

w.- A segunda autora sofreu ferimentos nas costelas.

x.- As dores nas costelas duraram uma semana após o embate.

y.- A dificuldade em adormecer sozinha referida em 41) durou meses.

z.- O custo da assistência em urgência à segunda autora no Hospital ... ascende a 115,87€.


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1. Da alteração da matéria de facto constante da alínea 14 dos factos provados (e consequente passagem a provados dos factos enumerados nas alíneas a) a f)).

As autoras censuram o teor da alínea 14 dos factos provados, pela qual se julgou assente apenas que “O “PX” embateu com a sua frente/lateral, sobre o lado direito, na parte traseira/lateral, sobre o lado esquerdo, do “ZC””. Pretendem que se julguem provados os factos descritivos da dinâmica do acidente que alegaram na petição inicial e constam das alíneas a) a f) dos factos não provados. As mesmas têm o seguinte teor:

“a. O “PX” circulava na via de circulação do meio, em manobra de ultrapassagem.

b.- O “PX” seguia à velocidade de 75 km/h.

c.- O condutor do “ZC”, ao aperceber-se do embate mencionado na alínea 8), travou.

d.- E reduziu a velocidade.

e.- O condutor do “ZC” mudou a direcção para passar a circular na via central sem sinalizar a mudança.

f.- O “PX” foi embatido quanto o “ZC” invadiu a faixa do meio.”.


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As apelantes indicaram as alíneas da matéria de facto que impugnam, o sentido da decisão que sobre elas pretendem que seja proferida, os meios de prova em que sustentam a sua pretensão e as razões da sua discordância. Estão, assim, cumpridos os ónus impostos pelo artigo 640.º, número 1 do Código de Processo Civil.

O Tribunal a quo motivou da seguinte forma sua convicção quanto à forma como ocorreu o embate entre os dois veículos (da autora e o segurado na ré):

“No que respeita à dinâmica do acidente (factos julgados nas alíneas 14. e a. a n.), a formação da convicção assenta na apreciação e valoração do auto de participação do acidente, no confronto com as fotografias relativas ao local do acidente e aos veículos, bem como das declarações de parte da autora e dos depoimentos de EE, de GG e de DD, incluindo o documento relativo ao registo da versão do acidente prestado por esta perante os serviços de averiguação da “D...”.

Veja-se:

Do confronto da versão de cada uma das partes com o auto de participação do acidente, muito em especial o que se colhe do croqui quanto ao posicionamento dos veículos, dos destroços e o rasto de travagem, suscitam-se desde logo dúvidas:

Primeiro: os destroços do embate situam-se para além do terceiro veículo acidentado (o “VG”) e não do primeiro (o “QX”), o que indicia que ao contrário das versões das partes quanto ao local do embate – das autoras que o mesmo se deu mal o “ZC” passa a circular na via do meio) e da ré de que o “ZC” estava a ultrapassar o primeiro veículo – o embate se deu mais à frente. É certo que os destroços, animados também da velocidade veículos que incorporavam, sempre tenderiam a cair mais à frente mas não se vê como tantos metros (ou seja, entre a distância que medeia o primeiro veículo acidentado e para lá do último, o que seriam, a avaliar pelas medições, cerca de 20 a 25m).

Segundo: têm-se sérias dúvidas quanto ao rasto de travagem apontado ao veículo “ZC”, desde logo porque referente a um único rodado, não tendo a testemunha HH mais sabido esclarecer quanto a tal menção do que isso lhe ter sido indicado. Por quem? Com que razão de ciência? O veículo “ZC” foi embatido a trás, pelo que mesmo com o estrago do apoio da roda traseira esquerda retractado nas fotografias não o impediria de, travando, ficar marcado o rasto dos dois pneus da frente.

E tal objecção vale mesmo para a hipótese de aquele ser um rasto de arrastamento, na hipótese de o local do embate ser junto ao veículo “QX” e ser desde aí arrastado, o que em todo o caso continuava a não se coadunar com o local dos destroços.

Mas mais: se o embate tivesse ocorrido logo quando o “ZC” estava a par do “QX”, então mal se percebe que aquele tivesse seguido tendencialmente em recta 13 metros e depois é que, sem mais, tivesse começado a rodopiar; e também não se encontra sentido lógico para, estando já na via do meio, travar antes de ser embatido. Aliás, o comportamento normal seria, estando já a circular na via do meio, manter a velocidade ou até imprimir uma velocidade superior, como, de forma concordante, a testemunha EE referiu, isto é, negando ter travado.

Estas dúvidas não foram dissipadas pela prova testemunhal: tal-qual se fez notar na análise daqueles dois outros depoimentos, suscitaram-se sérias dúvidas quanto à correcta percepção e memória dos factos das testemunhas.

A testemunha DD nem sequer se apercebeu que o acidente relativo aos três veículos da via direita foi prévio; chegou em julgamento a atestar que aconteceu depois. Não se tendo ficado com dúvidas de que esteve no local, tanto que o seu veículo foi retractado nas fotografias, bem se percebeu pelo seu depoimento que todo o impacto que o acidente teve para si foi o veículo “ZC” ter rodopiado à sua frente e, felizmente, ter conseguido travar a tempo, sensibilizando-se com a situação da primeira autora que tinha uma criança ferida.

O depoimento da testemunha GG não foi inteiramente coincidente com o relato que fez perante a PSP, vertido no auto de participação do acidente, mas o próprio reconheceu dúvidas e falta de memória quanto à dinâmica do acidente porque a sua atenção ficou focada no próprio embate em que participou.

Desta forma, ficando apenas com as declarações de parte da autora e da testemunha EE, ou seja, dos condutores dos veículos, e não merecendo qualquer deles mais credibilidade do que o outro, julgou-se apenas como provado o facto da alínea 14) com referência ao retractado nas fotografias, impondo-se no mais, julgar não provados os demais factos alegados por cada uma das partes relativos à dinâmica do acidente.”

As apelantes sustentam que dos depoimentos de DD e da primeira autora, que transcreveram nas partes que tiveram por relevantes, resulta que o acidente ocorreu porque o veículo de matrícula ZC, que seguia na faixa da direita no mesmo sentido da autora, circulando esta na faixa central, entrou nesta no momento em que a autora passava à sua esquerda, atravessando-se à sua frente sem que a mesma tivesse tido oportunidade de se aperceber de tal manobra e, sequer, travar.

Foram ouvidos os dois depoimentos indicados, no confronto com a prova documental consistente no auto de participação do acidente. Perante o teor desses depoimentos foi, ainda, julgado necessário ouvir os depoimentos das testemunhas GG e EE ambos testemunhas presenciais do acidente usando do poder /dever de investigação oficiosa a que alude o artigo 640.º, número 2 b) do Código de Processo Civil.

Das declarações da autora resultou a seguinte descrição do acidente: a mesma seguia pela faixa central, depois de passar pelo radar de velocidade, a menos de 80 k por hora e na faixa à sua direita seguia uma fila de carros “bastante espaçados” em direção à saída de acesso ao .... De um momento para o outro, de forma que não conseguiu antever, “um vulto” surgiu à sua direita, tendo sofrido embate muito forte, os seus airbags dispararam o carro dela imobilizou-se. Quando saiu do carro viu o ZC atravessado à sua frente e só então viu que do lado direito, à sua frente, tinha havido outro embate. Mais tarde, contudo, veio a admitir que momentos antes de ser embatida ainda se apercebera da travagem dos carros que seguiam à sua frente, na faixa da direita, mas que logo de seguida, quase de imediato, foi embatida. Explicou que o seu carro ficou virado para a direita porque a sua roda direita da frente bloqueou a direção com o embate. A filha estava assustada e a preocupação da autora foi “ligar para o 112”. Disse que a estrada ficou cortada e que não falou com ninguém, apenas se recordando de uma senhora que a veio ajudar e que deu atenção à sua filha enquanto ela fazia a chamada.

Quanto ao condutor do veículo que “se atravessou à sua frente”, com quem ainda tentou falar, segundo a depoente, ficou muito alterado e não reconhecia qualquer culpa no embate, tendo sido rude.

Especificou a autora que o embate se deu a trezentos ou quarocentos metros antes da saída para o ... e que não teve oportunidade de travar nem de se tentar desviar do veículo que surgiu pela sua direita. Confirmou que o tempo estava bom e o piso seco e disse desconhecer que veículo teria feito os rastos de travagem observados pelo órgão de polícia criminal no local, reiterando que seus não seriam pois não chegou a travar.

Disse, ainda, em face da participação do acidente, ter ficado perplexa com o que leu porque não tinha falado com nenhuma das testemunhas e porque os depoimentos deles constantes eram de pessoas que teriam sido, segundos antes, intervenientes num outro acidente não acreditando que tivessem visto o seu.

A mesma, contudo, já tinha dito e admitiu de novo, que não se apercebeu do acidente à sua frente, quando e como aconteceu, o que apenas deduziu posteriormente do que viu após o seu embate. Estando absolutamente assente que tal embate e travagens bruscas, à sua frente e, segundo ela à sua direita, ocorreram nos segundos que antecederam o embate do PX no ZC ficam fundadas dúvidas sobre a atenção que a autora prestava ao trânsito à sua frente. Note-se que, ao contrário do que afirmou, se a autora seguisse, também ela, na faixa da direita, atrás do ZC, e apenas tivesse mudado de direção quando este também o fez, seria mais facilmente compreensível que não tivesse visto o acidente que acabara de ocorrer à sua frente, na mesma faixa, por ter outros carros, nomeadamente o ZC, na sua linha de visão entre o local onde estava e tal sinistro.

Ora a autora descreveu que só depois de sair do seu carro, viu os outros automóveis embatidos, que estavam à sua direita, muito próximos do local onde ela foi ficou parada. Em face ao local onde estavam esses automóveis reiterou que achava impossível que os seus condutores tivessem visto o seu acidente.

Já quanto à testemunha DD, que a auxiliou com a sua filha, afirmou a autora que circularia, pelo que constatou depois, atrás de si e à sua esquerda.

Confrontada com o teor do auto de participação de que resulta que o embate do seu automóvel ocorreu após o local onde já estavam imobilizados os outros veículos acidentados à sua direita (todos seguindo no mesmo sentido), disse que não estava a contradizer o teor desse auto. Todavia, se assim tiver ocorrido, como resulta do auto, a mesma não teria qualquer razão na afirmação de que os condutores desses automóveis não podiam ter visto o seu acidente por ter ocorrido atrás deles. Ora, de acordo com o croquis do auto de notícia o embate entre o automóvel da autora e o ZC, aconteceu já após o local em que tinha ocorrido o acidente anterior, na faixa central, local onde estavam os vestígios do embate (e como adiante se verá um desses condutores disse que o embate entre o PX e o ZC foi ao seu lado).

Confrontado este depoimento com o croquis do acidente é manifesto que os destroços dispersos na faixa central e provenientes do embate do PX com o ZC, estão para além do local em que os demais veículos acidentados ficaram imobilizados, à direita, sendo lógica a conclusão a que chegou o Tribunal a quo de que era verosímil que o embate objeto dos autos tenha ocorrido já depois de ambos os veículos nele intervenientes terem passado o anterior embate.

Também dos depoimentos prestados pelos demais condutores e constantes do auto de participação resultou infirmado o teor das declarações da autora.

Como resulta dos depoimentos (que terão sido prestados por escrito) transcritos no auto de notícia o condutor do veículo de matrícula VG afirmou perante o órgão de polícia criminal que o PX seguia atrás de si e lhe embateu na lateral esquerda traseira e que outro automóvel, que seguia na faixa central em excesso de velocidade, perdeu o controlo e lhe bateu também bem como noutros veículos.

O condutor do automóvel de matrícula QX, por sua vez, alegou que o condutor do VG vinha na faixa central a efetuar ultrapassagem e decidiu subitamente mudar para a direita, travando, o que provocou a travagem “a fundo” do automóvel de matrícula RP que ia à frente do depoente. Para não embaterem nele os dois carros que seguiam atrás de si desviaram-se para a faixa do meio (o PX e o ZC) tendo o primeiro batido no segundo.

A condutora do RP, por sua vez, confirmou que o VG seguia na faixa central, em ultrapassagem, quando decidiu mudar para a faixa da direita travando a fundo o que a levou, também a ela, a travar para evitar embater-lhe, tendo ficado a poucos centímetros da sua traseira. O QX, todavia, que seguiria atrás desta depoente, não conseguiu travar de forma a evitar embater na traseira do seu automóvel (RP). Só depois disto, dois outros veículos que também seguiam pela direita atrás dos embatidos (o PX e o ZC) se desviaram para a faixa central tendo o primeiro embatido no segundo.

Estes depoimentos prestados de imediato e perante o órgão de polícia criminal contrariam frontalmente o da autora (quer o que prestou no momento perante o órgão de polícia criminal, quer o que prestou em audiência de julgamento).

A autora alegou que a testemunha DD queria sair do local depois de ter prestado auxílio à sua filha e que, por isso, foi atrás dela pedindo-lhe o contacto, que a mesma lhe deu. Todavia, não explicou porque não deu tal contacto ao órgão de polícia criminal apesar de dizer que este ainda demorou a chegar, o que admitiu mesmo que possa ter sucedido já depois da referida DD ter deixado o local.

A testemunha DD começou por afirmar que seguia na faixa mais à esquerda atrás dos automóveis de matrícula ZC e PX, por essa ordem, e que seguiam o primeiro à direita e o segundo na faixa central, tendo o primeiro embatido no segundo, após o que rodopiou duas vezes e foi embater com a traseira no separador central à sua frente.

Disse que ambos estavam à sua frente quando embateram entre si, pelo que viu tal embate e que este aconteceu logo que o ZC entrou na faixa central. Na sua opinião, o mesmo terá mudado de faixa porque quis, sem ver que à sua esquerda já circulava o PX. Tal testemunha afirmou mesmo que não havia nenhum obstáculo na faixa da direita à frente do ZC, estando os carros que ali circulavam em andamento. Tal alegação é frontalmente desmentida por todas as dos demais condutores sendo unânime entre eles que tinha acabado de ocorrer um embate na faixa da direita quando ocorreu o embate, posterior, entre o PX e o ZC. Repetidamente perguntada sobre tal versão a mesma reiterou que não viu mais nenhum outro acidente à sua frente antes do embate que descreveu. Só depois, disse, viu que, entretanto, também ocorrera mais à frente (em relação ao ponto onde ela se imobilizou) um outro embate à direita. Todavia das fotografias do local do acidente juntas com a petição inicial é visível que o PX e o ZC ficaram parados à frente do veículo da depoente e também vários metros à frente dos demais carros embatidos na faixa da direita. Tal testemunha acabou por afirmar que já não se recordava bem do acidente porque já tinham passado quatro anos sobre a sua ocorrência, mas reiterou que à frente do ZC, à direita, não havia carros parados quando aquele iniciou a mudança para a faixa central.

Esta versão, por oposta à dos demais condutores e por acompanhada da alegação de falta de memória sobre o acidente não mereceu credibilidade bastante a que se corroborasse o alegado pela autora.

Tal testemunha também afirmou que “do sítio em que estava” não conseguia dizer qual a parte do ZC bateu no PX. Tal afirmação, de quem disse que seguia atrás e à esquerda de ambos e viu claramente o acidente é de estranhar. Se a mesma viu o ZC a mudar de faixa e a bater de imediato no PX, não se entende como pode afirmar não saber parte do ZC foi embatida. A testemunha DD, confrontada com a estranheza da sua afirmação de que viu o embate quando não sabia, afinal, em que parte do ZC o mesmo ocorrera, alterou o que antes afirmara e disse, então, que viu o ZC a virar para a esquerda, e, depois, a rodopiar à sua frente pelo que concluiu que “em algum sítio bateu”. Tal afirmação deixou fundadas dúvidas sobre se viu efetivamente o embate, tanto mais tendo em conta que também não viu o outro acidente que antes tinha ocorrido à sua frente, que todos os demais condutores afirmaram ter sido anterior ao que é objeto dos autos. Da parte final do seu depoimento apenas resulta, assim, com alguma segurança, que viu o ZC mudar da faixa da direita para a central e já não por onde seguia a autora, conduzindo o PX, e nem como foi o embate entre ambos.

A referida testemunha disse, ainda, ter deixado o seu contacto ao órgão de polícia criminal antes de sair do local, mas nunca ninguém a ter ouvido naquele momento ou noutro. Todavia, do auto de participação não consta a identificação de tal testemunha apesar de ali se referir a indicação de outra, além dos vários condutores ouvidos (II) e de se exarar que foi tentada, ainda, a inquirição de um passageiro, de nacionalidade ..., que seguia no automóvel de matrícula VG.

EE disse ser condutor do veículo de matrícula ZC. Admitiu que seguia pela faixa da direita porque queria sair em direção ao ... e que à frente dele ocorrera um choque em cadeia o que o levou a desviar-se para a faixa do meio “da qual vem uma outra viatura da Drª AA que me dá por trás e me leva de zorro”. Afirmou que já depois de estar a circular na faixa central é que foi embatido por trás, pelo ZC, e disse desconhecer se a autora vinha já a circular nessa faixa central ou se se tinha desviado, como ele, para tal faixa a partir da faixa da direita. Reiterou, todavia, que quando mudou para a faixa central não vinha nenhum carro a circular na mesma logo atrás de si, tendo tido tempo de verificar o trânsito e sinalizar a manobra antes de se desviar para a esquerda. Admitiu que o seu automóvel foi embatido na lateral esquerda parte traseira e no canto esquerdo traseiro, mas desconhecer que parte do veículo da autora lhe embateu. Mais adiante, todavia, perante as fotografias dos veículos que lhe foram exibidas, admitiu que a autora lhe embateu com a parte frontal direita do seu carro.

Disse que foi embatido em plena faixa central, já depois de ter ultrapassado o último dos carros embatidos/parados a sua direita. Tal versão é inteiramente consentânea com o teor do auto de notícia e o local de embate indicado no seu croqui. Segundo tal condutor o mesmo apenas travou quando viu esse acidente após o que se desviou para a faixa central e não voltou a travar – nem precisava porque, segundo ele, tinha a fixa à esquerda livre quando nela entrou -, negando que os rastos de travagem no local fossem do seu carro. Disse que só depois de embatido na traseira foi levado de rastos. Foi seguro em afirmar que acionou o “pisca” e verificou que a faixa central estava livre antes de nela ingressar e que só quando nela já circulava é que foi embatido por trás, tendo “ido de zorro e ficado atravessado”.

Afirmou que todos os condutores dos demais carros acidentados tinham dito, após o acidente, que fora o PX a embater no seu carro, alegando que tal aconteceu uns segundos depois do embate entre eles, que estariam provavelmente a sair ou prestes a sair dos carros recém embatidos quando viram o segundo embate. Tal testemunha foi confrontada com fotografias do local do acidente não podendo, nessa parte, acompanhar-se o que disse por não se saber em cada momento o que lhe estava a ser exibido. A dado passo, contudo, o mesmo confirmou que a posição dos veículos na foto correspondia àquela em que tinham ficado após o embate.

Foi, ainda, confrontado com as fotografias juntas como documento número 6 da petição inicial de que resulta que a parte embatida do PX é a frente direita (canto do farol e sobre a roda direita), tendo o ZC sido embatido na lateral esquerda, tendo marcas de embate na porta traseira direita, sobre a roda traseira desse lado e na parte posterior a tal roda. O condutor do ZC disse que não bateu no separador central depois de ser embatido e se despistar, tendo apenas sido embatido pelo PX.

Ora, os danos na parte lateral do ZC, em toda a sua metade lateral traseira, e na frente (canto) lateral direita do PX são compatíveis com a versão do acidente trazida a juízo pela autora na parte em que a mesma descreveu que seguia pela faixa central e ter sido o ZC a “atravessar-se” à sua frente quando mudou de faixa, da direita para a esquerda. Tais danos não são, de todos, compatíveis com um embate traseiro que descreveu o condutor do veículo seguro na ré.

Tais danos, contudo, também não são incompatíveis com a versão apresentada pelos condutores dos veículos de matrícula QX e RP no dia do acidente, já que ambos descreveram o acidente ao órgão de polícia criminal de forma coincidente quanto à alegada mudança, em simultâneo, dos dois automóveis (PX e ZC) da faixa mais à direita para a central para se desviarem dos veículos embatidos à sua frente. Dependendo do momento exato em que se deu a mudança de faixa de cada um desses automóveis e da posição em que o que seguia à frente (o ZC) já estivesse ao desviar-se para a sua esquerda quando o seguinte (PX) também iniciou tal mudança, podiam os danos de ambos ter ocorrido como se revela nas fotografias juntas com a petição inicial.

GG, condutor do veículo de matrícula QX que já depusera perante o órgão de polícia criminal nos termos acima sumariados confirmou em audiência de julgamento ter prestado o seu depoimento por escrito a pedido de um agente e reiterou que um “uber”, à frente dele, entrou subitamente na faixa da direita travando a fundo, vindo da fixa central, o que obrigou o condutor do automóvel que seguia à frente do depoente a travar a fundo o que ele próprio não fez, não tendo conseguido evitar o embate na traseira do referido automóvel. Atrás dele, disse, um carro desviou-se para a berma direita e outro, que não identificou, para a esquerda onde veio a ocorrer outro acidente.

Disse que “uns dois segundos” depois de ter embatido no carro à sua frente, dois outros automóveis embateram entre si à sua esquerda, tendo-os visto a rodopiar e recordava que imediatamente atrás de si um veículo se desviou para a berma direita evitando embater-lhe. O embate dos dois veículos que viu depois do seu próprio acidente ocorreu, segundo ele, na faixa central e ao seu lado tendo ido ambos parar mais à frente depois de terem batido no “rail”. Tal depoimento não foi idêntico ao que prestou perante o órgão de polícia criminal, com o qual foi confrontado. Quando o mesmo lhe foi lido confirmou que fora aquele o seu depoimento perante o órgão de polícia criminal, mas já não ter a mesma memória (já nem se recordava qual dos dois veículos era conduzido pela autora), do acidente por ter sido há cinco anos. Confirmou que poucos metros antes do local onde ocorreram os embates havia um radar de velocidade e que não tinha memória de nenhum veículo seguir com velocidade excessiva.

Em face destes meios de prova conclui-se que o Tribunal a quo apreciou a prova de forma adequada, valorando os vários depoimentos de acordo com o que deles resultou e com a sua comparação com os demais e o teor do auto de participação do acidente e das fotos juntas com a petição inicial.

De facto, sendo muito diversas as versões do acidente apresentadas pelas várias testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, a autora, e também as prestadas perante o órgão de polícia criminal logo após o acidente, ficam fundadas dúvidas sobre a forma como concretamente seguiam o ZC e o PX nos instantes que antecederam o embate, sendo apenas seguro afirmar que o PX seguia atrás do ZC tendo embatido com a sua frente direita na lateral esquerda posterior e na traseira esquerda deste o que ocorreu depois do condutor do ZC passar a circular na faixa central saindo da faixa da direita para se desviar dos veículos acidentados à sua frente e quando já seguia ao lado destes. Não se sabendo em que local e a que distância circulava, nesse momento, o PX, não pode concluir-se que o ZC invadiu a sua linha de trânsito de forma inesperada e sem sinalizar tal manobra.

Conclui-se, assim pela improcedência da censura dirigida à alínea 14 dos factos provados (mantendo-se, em consequência, como não provadas as alíneas a) a f) dos factos não provados, cujo teor as apelantes pretendiam ver julgado provado sob a alínea 14).


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As apelantes impugnaram, ainda, a decisão do tribunal a quo de dar como não provado o facto constante da alínea s) que pretendem que passe a provado.

O mesmo tem o seguinte teor:

O veículo da marca “Toyota”, modelo ..., funciona a gasolina.

Da alteração desta alínea pretendem as apelantes retirar uma alteração do valor diário fixado pelo Tribunal a quo para ressarcimento da privação do uso do automóvel da primeira autora, veículo esse a gasóleo, que deixou de usar até que ficou reparado (durante 117 dias), para o que entendem relevante que se conclua que o outro automóvel por si usado (Toyota ...) funciona a gasolina.

Salvo o devido respeito, tal alegação não tem qualquer relevância para a fixação da indemnização pela imobilização do veículo acidentado. O que foi pedido, na parte em que as apelantes recorrem, foi o ressarcimento do dano decorrente da impossibilidade de uso do PX durante 117 dias e não qualquer indemnização decorrente de despesas acrescidas decorrentes do uso de outro veículo (presumindo-se que o interesse das apelantes é de que se conclua que o uso de veículo a gasolina importou mais despesas para a primeira autora).

Como infra se verá o dano de imobilização deve ser indemnizado enquanto dano na esfera patrimonial do lesado que viu limitada uma das faculdades decorrentes da propriedade de um bem: o seu uso.

As apelantes, aliás, também defendem que independentemente da alteração deste facto, deve ser alterada a indemnização fixada em primeira instância pela privação do uso. No que, como infra melhor detalharemos, têm inteira razão.

Assim, conclui-se pela inutilidade da reapreciação da prova quanto à pretendida alteração da alínea s) dos factos não provados para provada, pois da mesma não resulta qualquer facto relevante para a apreciação do objeto do recurso.

E, nos termos do previsto no artigo 130º do Código de Processo Civil, não é lícito realizar no processo atos inúteis.

Como vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, “(…) nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil.”[1].

Pelo que, nessa parte, não se conhecerá da impugnação da matéria de facto.


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2- As apelantes sustentaram o pedido de condenação da ré no pagamento de 17 854, 23 € - valor que entendem ser o devido para a indemnização dos danos decorrentes da reparação do veículo, da sua desvalorização e do seu reboque e aparcamento -, na alteração da matéria de facto relativa à dinâmica do acidente, ou seja, na passagem a provados dos factos julgados não provados sob as alínea a) a f).
Procedendo tal pretensão, pretendiam a imputação do acidente ao comportamento culposo e ilícito do condutor do veículo de matrícula ..-..-ZC.

Assim, não tendo sido alterados os factos de que as apelantes faziam depender a imputação do sinistro a uma conduta ilícita e culposa do condutor do veículo cujo contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel foi celebrado com a ré, não pode proceder a sua pretensão de revogação da sentença recorrida.

Em face do elenco dos factos provados o Tribunal a quo concluiu que não podia afirmar-se que o acidente tinha ocorrido na decorrência de qualquer comportamento ilícito e culposo do condutor do ZC (nem da autora). Pelo que, com inteira razão, foi aplicado o disposto no artigo 506.º do Código Civil que dispõe o seguinte: “1. Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar. 2. Em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores.”

Em face da aplicação, inteiramente justificada, deste preceito, decidiu-se na sentença recorrida fixar que cada um dos dois veículos acidentados contribuiu em igual medida para o sinistro pelo que a primeira autora apenas deve ser indemnizada em 50% do valor que se conclua ser o adequado ao ressarcimento dos seus danos. Decisão que, em face da não alteração do elenco dos factos provados, é de manter.

Somado o custo da reparação do PX (11 380 €), a desvalorização do mesmo por causa do acidente (5000€) e os custos que a primeira autora suportou com o seu aparcamento e reboque (1 449, 63 € e 24, 60 € respetivamente), a autora terá direito, como se decidiu, a 8 927, 11 € para ressarcimento desses danos, valor assim calculado: (11 380 € + 5 000 € + 1449, 63 €+ 24, 60 €):2 = 8 927, 11 €.

É, assim de manter o decidido na sentença recorrida, no que tange a tal indemnização.


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3 - O dano da privação do uso do automóvel da primeira autora.

A este propósito ficou provado que a mesma fazia uso diário do veículo de matrícula PX, percorrendo com ele uma média mensal de 1.380 km. Mais se provou que o mesmo ficou impossibilitado de circular entre a data do acidente e a data em que veio a ser reparado, ou seja, em 11 de outubro de 2019 (facto julgado provado na alínea 22), num total de 117 dias e que nesse período a mesma teve de fazer uso de um outro veículo.

É hoje entendimento pacífico que a mera privação do uso de um bem de que se é proprietário é um dano indemnizável. O dano ressarcível é o da indisponibilidade de um bem que, se não fosse a lesão, poderia ser usado[2].

Como se sumaria no acórdão desta Relação de 12-09-2024[3], em formulação com que concordamos inteiramente: “A mera privação da possibilidade do uso de um bem de que se é proprietário constitui um dano indemnizável. Se alguém tem uma casa deve poder utilizá-la como bem lhe aprouver, seja habitando-a ou arrendando-a. E mesmo que não a habite de forma contínua.

II - O maior ou menor grau dessa privação é que já necessita de concretização factual (por exemplo, frequência e tipo de utilização) para se poder aquilatar de um maior ou menor montante indemnizatório.”.

Como se pode ler em sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 8773/2016[4]O STJ vem decidindo, maioritariamente, no domínio da responsabilidade extracontratual emergente de acidente de viação que a privação do uso de um veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, que o art. 1305.º do CC lhe confere de modo pleno e exclusivo, bastando, para o efeito, que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava.”

A indemnização desse dano é devida ao lesado independentemente da prova de que deixou ou não de fazer certas deslocações e dos custos que teve para as fazer (dano esse, emergente, que pode também ser ressarcido[5]).

Não podendo ser quantificado o valor da indemnização por tal privação do uso do PX com base na teoria da diferença prevista no artigo 566.º, número 2 do Código Civil, é pacífico na jurisprudência o recurso ao critério da equidade, que pode e deve ser baseado nos elementos objetivos que resultem dos autos. Pode, nomeadamente, ter interesse aferir o valor locativo de um bem idêntico àquele cujo uso ficou restringido - o que não ficou provado nos autos -, independentemente da alegação e prova de que tal locação ocorreu e o uso que efetivamente era dado ao mesmo. A fixação da indemnização por equidade deve, ainda, ter em conta as decisões judiciais conhecidas (publicadas) em situações idênticas e no mesmo período temporal, por forma a evitar arbitrariedade e tratamento muito desigual de situações semelhantes.

Ora, olhando à jurisprudência mais recente (apenas do último ano) em que se fixou indemnização pela privação do uso de veículos automóveis ligeiros, encontramos dois acórdãos em situações muito semelhantes à dos autos que revelam a fixação de um valor muito superior ao fixado na sentença recorrida (o quádruplo daquele). São eles:

1. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24-09-2024, em que foi fixado um montante diário de 20 €[6]; e

2. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-11-2025, em que também se fixou um valor diário de 20 €[7].

Em face destes arestos (e tendo em conta que, antes deles foi frequente durante vários anos, ver atribuída a indemnização diária, fixada com base na equidade, em 10 € diários, valor que só recentemente passou a ser aumentado), é de concluir que é manifestamente parco o valor diário de 5 € fixado em primeira instância. Ali se ponderou o facto de a lesada ter usado outro veículo o que, contudo, pelas razões melhor descritas acima, não nos parece que possa redundar na conclusão de é menor o dano da privação do uso do veículo acidentado. Salvo o devido respeito, tal facto será relevante para aferir outros danos indemnizáveis, como sejam o dos custos decorrentes da substituição do veículo ou dos incómodos daí resultantes. Mas não diminuiu/aumenta o dano consubstanciado na privação de uso do veículo que o lesado habitualmente usava.

Assim, e em conclusão, entende-se ser de alterar para o montante de 20 € por dia a indemnização devida pela privação do uso do automóvel da autora que, assim, tem direito a ver a ré condenada a pagar-lhe a quantia de 1 170 € assim calculada: (117 dias x 20 €):2 = 1 170 €.

Sobre tal quantia serão devidos juros à taxa legal desde 30 de junho de 2022 até efetivo e integral pagamento, como fixado em sentença.


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4. As apelantes pedem, ainda, que sejam aumentadas as indemnizações fixadas para ressarcimento dos danos não patrimoniais de ambas, passando a indemnização da primeira autora a ser fixada em 2 500 € e a da segunda em 5 000 €.

Com relevo para tal decisão provou-se o seguinte:

“34) Por causa do embate, a primeira autora sentiu dores no momento do embate e dores de cabeça nos dias subsequentes.

35) Sentiu dificuldade em conduzir nos dias seguintes e em adormecer por causa das perturbações que o embate lhe causou.

36) Com o embate, a primeira autora vivenciou um momento de pânico.

(…)

38) A segunda autora foi transportada ao “Centro Hospitalar ...”, no Porto.

39) A segunda autora sofreu ferimentos no ombro e braço esquerdo.

40) Tais ferimentos causaram-lhe dores.

41) A segunda autora sentiu dificuldades em adormecer sozinha nos dias seguintes.

42) A segunda autora sente-se ansiosa com a presença de outros veículos que se aproximam quando viaja com os progenitores.

43) A segunda autora nasceu no dia ../../2013”.

Em face destes factos o Tribunal a quo concluiu que as dores que se provou que a autora sentiu no momento do acidente e nos dias seguintes não consubstanciaram lesão na sua integridade físico-psíquica merecedora de reparação. Concluiu, ainda, que o facto de a autora ter sentido dificuldade em conduzir nos dias seguintes ao acidente e vivenciado um momento de pânico, não assume gravidade bastante que justifique compensação por danos não patrimoniais à luz do artigo 496.º, número 1 do Código Civil.

Discordamos deste entendimento.

No que tange ao ressarcimento por danos não patrimoniais a solução legal vigente entre nós optou por uma cláusula geral, expressa no artigo 496º do Código Civil, que, todavia, tutela apenas os danos mais graves excluindo a compensação de meros incómodos, transtornos ou aborrecimentos.

Ora, ficou provado que a primeira autora viveu um momento de pânico por causa do acidente e ficou com dores que lhe dificultaram a condução e o sono por alguns dias. A mesma teve de acompanhar a sua filha, de seis anos de idade, que sofreu ferimentos com o acidente. Donde, não concordamos com a qualificação destes padecimentos como não merecedores da tutela do direito. Os mesmos têm gravidade bastante para que devam ser ressarcidos.

Como refere Dario Martins de Almeida[8], ao distinguir o dano pela sua gravidade o legislador não quer com isso significar que apenas seja suscetível de compensação o dano que apresente um carácter excecional, insuportável ou exorbitante - a gravidade de, por exemplo uma determinada dor física, é normalmente aferida pela sua relativa intensidade ou profundidade, conforme as circunstâncias de cada caso.

O ressarcimento do dano não patrimonial tem o seu cômputo afastado de raciocínios aritméticos, caracterizando-se, aliás, por não ser verdadeiramente indemnizável pois o que se procura apenas é compensar a vítima lesada, permitindo-lhe, designadamente, ter acesso a um valor monetário que de alguma forma reduza a dimensão do seu sofrimento, sendo que este é associado a perdas diretamente derivadas do acidente e tidas por irreparáveis.

Reiterando e retomando o que acima se salientou sobre a utilidade de consulta de jurisprudência publicada (e o mais atual possível) em que se fixem indemnizações por danos idênticos, por forma a evitar arbitrariedade, encontramos os seguintes acórdãos com eventual relevo para a fixação da compensação dos danos não patrimoniais de ambas as autoras:

1. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28-05-2013, em que se fixou em 500 € a indemnização para cada um de dois menores que, segundo no banco de trás do veículo acidentado, sofreram “um enorme susto, o que lhes causou muita ansiedade e sofrimeto e que ainda hoje têm medo de viajar em veículos automóveis”[9];

2. deste Tribunal, de 23-11-2023, em que se fixou em 3000 € a indemnização devida a sinistrada que foi atropelada numa passadeira pelo “susto, medo e angústia” decorrentes da mera eclosão do acidente[10].

3. deste Tribunal, de 20-02-2025 em que foi mantida em 10 000 € a indemnização fixada pelos danos não patrimoniais a sinistrada de vinte e oito anos de idade que sofreu um défice temporário de 404 dias, um quantum doloris de 3 numa escala de 7 e susto e angústia com o acidente e suas consequências, um défice permanente de 2 pontos, necessidade de tratamentos de fisioterapia, cefaleias, cervicalgia dificuldades de sono, toma de medicação para a dor, e tem maior dificuldade em tocar órgão, tendo reduzido a atividade como organista, e em executar tarefas domésticas e de higiene, como pegar em pesos e lavar o cabelo[11].

A sentença recorrida seguiu, como vimos, o entendimento de que os danos que a primeira autora sofreu não eram, pela sua gravidade, merecedores da tutela do direito e que a indemnização a fixar à segunda autora pelos danos não patrimoniais que sofreu devia ser fixada em 1 200 €. Pelas razões já acima partilhadas entende-se que também os danos sofridos pela primeira autora são merecedores da tutela do direito.

Olhando aos factos provados e aos antecedentes jurisprudenciais acima convocados e tendo em conta que o padecimento da primeira autora foi temporário e durou apenas alguns dias e que a segunda autora sofreu apenas alguns ferimentos ligeiros que não demandaram tratamento nem conduziram a qualquer sequela, bem como nela permanecia, à data da audiência de julgamento, o medo de viajar de automóvel, entende-se que são adequadas as seguintes quantias para ressarcimento dos danos não patrimoniais das apelantes:

1. A quantia de 1000 € para a primeira autora;

2. A quantia de 2 500 € para a segunda autora.

Tais valores, em face da repartição da responsabilidade operada na sentença, serão reduzidos a 50% pelo que a ré será condenada a pagar à primeira autora a quantia de 500 € e à segunda o valor de 1 750 €.

Sobre tais quantias serão devidos juros à taxa legal desde a presente data, como fixado em sentença.

V – Decisão:

Julga-se parcialmente procedente o recurso e, em consequência, revoga-se parcialmente a sentença recorrida nos seguintes termos:

1. Condena-se a ré a pagar à autora a quantia de 1.170€ para indemnização do dano de privação do uso do seu automóvel (em vez da quantia de 292, 50 € arbitrada na sentença), a que acrescem juros à taxa legal desde 30 de junho de 2022 até efetivo e integral pagamento;

2. Condena-se a ré a pagar à primeira autora a quantia de 500 € para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos, a que acrescem juros à taxa legal desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

3. Condena-se a ré a pagar à segunda autora a quantia de 1 750 € para indemnização dos danos não patrimoniais (em vez do montante de 600 € fixado na sentença), a que acrescem juros à taxa legal desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

Confirmando-se o demais decidido.

Custas por recorrentes e recorrida na proporção dos seus decaimentos, nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.

Porto, 10-03-2025

Ana Olívia Loureiro

Fátima Andrade

Eugénia Cunha



__________________
[1] Conforme consta do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2021, tirado no processo 27069/18.3T8PRT.P1.S1 disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/199600/. No mesmo sentido se decidiu em mais recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de setembro de 2023, tirado no processo 2509/16.5T8PRT.P1.S1e disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/218090/, onde se pode ler:Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto se entender que os concretos factos objecto da impugnação, atentas as circunstâncias do caso e as várias soluções plausíveis de direito, não têm relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual puramente gratuita ou diletante.”.
[2] Abrantes Geraldes afirma que “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização” in Indemnização do Dano Privação do Uso, Almedina, 2001, página 39.
[3] TRP 9522/22.1T8VNG.P1.
[4] De 14-12-2016, disponível em STJ 2604/13.2TBBCL.G1.S1.
[5] Em acórdão de 28-09-2021, disponível em STJ 6250/18.6T8GMR.G1.S1, o Supremo Tribunal de Justiça em  afirmou, como vem fazendo a jurisprudência de todos os tribunais superiores, que o lesado “não necessita, por isso, de provar direta e concretamente prejuízos efetivos, como, por exemplo, que deixou de fazer esta ou aquela viagem de negócios ou de lazer, que teve de utilizar outros meios de transporte (táxi, transportes públicos, etc.) com o custo correspondente. Tudo isso estará abrangido pela privação do uso do veículo a ressarcir nos termos referidos ou, em última análise, se necessário, segundo critérios de equidade, sem prejuízo de se poder, evidentemente, alegar e provar outros danos emergentes ou lucros cessantes”.
[6] Disponível em TRC 3106/20.6T8VIS.C2.
[7] Acórdão desta secção disponível em TRP 431/23.8T8MTS.P1.
[8] Da Responsabilidade Civil em Matéria de Acidentes de Viação, Almedina 3ª edição, p. 130.
[9] Acórdão TRC 1721/08.5TBAVR.C1.
[10] Acõrdão TRP 1548/21.9T8PVZ.P1.
[11] Acórdão TRP 1781/21.3 T8PVZ.P2