INVENTÁRIO
VOCAÇÃO SUCESSÓRIA
DIREITO DE REPRESENTAÇÃO
REPÚDIO DA HERANÇA
Sumário

I – A vocação sucessória apenas se verifica no momento de abertura da sucessão, só neste momento se solidificando, sendo por isso por referência a tal momento que a vocação sucessória prevalente se faz ou se retrotrai;
II – Para haver lugar ao direito de representação previsto no art. 2039º do C.Civil importa que se verifique uma impossibilidade de aceitação ou um repúdio da herança ou legado, por parte de sucessível com designação prioritária, bem como que existam e sejam capazes no momento da abertura da sucessão descendentes desse sucessível;
III – Deste modo, se aquando da abertura da sucessão o sucessível repudiante não tinha descendentes, não tinha, consequentemente, quem lhe sucedesse por direito de representação, do que resulta que se aquele sucessível só vier a ter filhos depois da abertura da sucessão e que a esta data ainda não estivessem concebidos (art. 2033º nº1 do C. Civil) não se verifica o direito de representação deles em relação a tal sucessível.

Texto Integral

Processo: 55/20.1T8PVZ-C.P1

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: Maria de Fátima Almeida Andrade

2º Adjunto: Carlos Gil

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

No âmbito do inventário a que se procede por óbito de AA, falecido a ../../1996, a que se cumulou o inventário por óbito de BB, sua esposa, falecida a ../../2021, que corre termos sob o nº55/20.1T8PVZ no Juízo Local Cível ..., foi, a 31/1/2024, proferido o seguinte despacho:

Da ilegitimidade de CC e DD:

Cumprido o contraditório relativamente à excepção em presença, importa decidir da legitimidade de CC e DD para figurarem como interessadas directas na partilha.

Apreciando.

Nos termos do art.º 1085.º, n.º 1 do CPC, “têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo: a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro”.

É pacífico que são interessados directos na partilha os herdeiros que são directamente beneficiados pela partilha (art.º 2101.º, n.º 1 do CPC).

Ora, a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor (art.º 2031.º do Cód. Civil).

Aberta a sucessão, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozem de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade (art.º 2032.º, n.º 1 do Cód. Civil). Este chamamento consiste na vocação sucessória.

De acordo com o art.º 2033.º do Cód. Civil, na parte que nos interessa, “têm capacidade sucessória, além do Estado, todas as pessoas nascidas ou concebidas ao tempo da abertura da sucessão, não exceptuadas por lei”.

Da concatenação o art.º 2032.º, n.º 1 e 2033.º do Cód. Civil pode retirar-se a existência de três pressupostos cumulativos da vocação sucessória: (i) a titularidade pelo sucessível, chamado, de designação sucessória prevalente no momento da abertura da sucessão; (ii) a existência; e (iii) a capacidade, para efeitos sucessórios, desse sucessível naquele momento.

Após a vocação sucessória, tem lugar a aceitação ou o repúdio da herança pelos sucessíveis titulares de designação prevalente, cujos efeitos se retrotraem à data da abertura da sucessão.

Isso mesmo decorre dos art.ºs 2050.º, n.º 2 e 2062.º do Cód. Civil, sendo que neste último preceito legal se prevê que o sucessível repudiante se considera “como não chamado (…) salvo para efeitos de representação (…)”.

O direito de representação existe quando a lei chama os descendentes de um herdeiro a ocupar a posição daquele que não pôde ou não quis aceitar a herança (art.º 2039.º do Cód. Civil).

Não quer aceitar a herança o herdeiro que a repudia, pela forma exigida para a alienação da herança (art.º 2063.º do Cód. Civil), ou seja, mediante escritura pública ou documento particular autenticado, no caso de a herança abranger imóveis (art.º 2026.º do Cód. Civil e art.º 22.º do DL n.º 116/2008, de 04/07).

Vistas e articuladas as normas sobreditas, cremos que se impõe concluir que, no caso de os primeiros sucessíveis – ou alguns deles – não quererem aceitar a herança, por a terem repudiado, são chamados os sucessíveis subsequentes que existam à data da abertura da sucessão, por direito de representação.

Neste sentido, refere Capelo de Sousa: “sendo no momento da abertura da sucessão que tem lugar a vocação sucessória, daí decorre que os pressupostos da mesma vocação (a titularidade da designação sucessória prevalente, a existência ou personalidade jurídica do chamado e a sua capacidade sucessória) têm de verificar-se naquele momento, decidindo-se aí a aptidão sucessória e os termos em que são efectivamente chamados à sucessão os que eram apenas designados sucessórios por lei, testamento ou contrato.(…) Nesta conformidade, o n.º 1 do art.º 2033.º exige que os sucessíveis sejam nascidos ou concebidos ao tempo da abertura da sucessão.

Ainda segundo o mesmo autor, discorrendo especificamente sobre o direito de representação por repúdio, para haver este direito, importa que existam e sejam capazes no momento da abertura da sucessão descendentes do sucessível repudiante com designação prioritária (sublinhado nosso).

O entendimento que propugnamos é igualmente adoptado por Cristina Araújo Dias, ao referir que são (…) pressupostos da vocação: 1) a titularidade pelo chamado da designação sucessória prevalente no momento da morte; 2) a sua existência; 3) a sua capacidade sucessória” e, bem assim, que “(…) será chamado aquele que já tenha uma certa existência jurídica no momento da abertura da sucessão e que a continue a ter depois da abertura. Isto significa, portanto, que este pressuposto da existência exige uma existência posterior do chamado (o chamado deve sobreviver ao de cuius, ainda há de existir no momento da morte do autor da sucessão) e uma existência anterior do chamado (o chamado já há de existir no momento da morte do de cuius)”.

Perante o enquadramento legal e as considerações que antecedem, entendemos que a DD e CC não devem figurar como interessadas directas na partilha do seu avô, AA.

Com efeito, aquele inventariado AA faleceu em ../../1996 e à data do respectivo óbito não era nascida nem concebida nenhuma das filhas de EE, sendo que DD nasceu em ../../2003 e CC nasceu em ../../2008.

Posto isto, ainda que o repúdio de EE tenha sido outorgado em 11/01/2012 e a essa data já fossem nascidas DD e CC, cremos patente que estas não existiam nem tinham capacidade sucessória à data da abertura da sucessão e, como tal, em consequência do repúdio do seu pai, não podiam ter sido chamadas a assumir a posição de sucessível do seu pai, por direito de representação.

A norma constante do art.º 2039.º do Cód. Civil tem de ser sistematicamente interpretada, por forma a que se harmonize com as demais que dispõem acerca da abertura da sucessão e dos pressupostos da vocação sucessória dos sucessíveis. Se ninguém discutiria que os descendentes em 2.º grau do repudiante não podiam ser tratados da mesma forma que os seus descendentes em 1.º grau, por haver que compaginar o art.º 2039.º do Cód. Civil com o art.º 2135.º ex vi do art.º 2157.º do mesmo diploma legal, cremos que também é indiscutível que a lei teria de balizar o momento temporalmente relevante para a consideração dos descendentes de sucessível repudiante, sob pena de intolerável incerteza e insegurança jurídicas.

A ilegitimidade passiva tem como consequência a absolvição da instância (art.º (art.ºs 577.º, al. e) e 278.º, n.º 1, al. d) do CPC).

Nestes termos e com os fundamentos que antecedem, declaro que DD e CC não têm legitimidade para figurar como interessadas directas no inventário para partilha da herança aberta por óbito de AA e, consequentemente, absolvo as mesmas da instância.

De tal decisão veio interpor recurso DD, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. Tendo o autor da herança em causa nos autos, AA, falecido em ../../1996, tendo-lhe sucedido como seu filho, entre outros sucessores, EE e tendo este seu filho, em 11-01-2012, em violação do art. 2059.º, n.º 1, do Cód. Civil, repudiado á herança do referido pai, então, no exercício e por efeito do direito de representação, cabe às filhas do repudiante, DD e CC, assumir naquela herança a posição que cabia ao repudiante.

2. O facto das referidas filhas do repudiante terem nascido após o óbito do autor da herança, tal facto não é impeditivo dessa representação e da assunção, pelas referidas filhas, da posição hereditária que cabia ao repudiante, seu pai, naquela herança.

3. Ao julgar as referidas filhas do repudiante como parte ilegítimas para o processo de inventário supra referenciado e ao absolvê-las da instância de tal processo, com fundamento do facto delas não serem ainda nascidas á data do óbito do inventariado, autor da herança em causa, o Tribunal recorrido interpretou incorrectamente e violou as normas dos artigos 2039.º a 2045.º, 2049.º, n.º 3, 2062.º e 2067.º, todos do Cód. Civil.”

Pelo Ministério Público foram apresentadas contra-alegações, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há apenas uma questão a tratar: apurar se DD, filha de EE, deve figurar no inventário como interessada na herança aberta por óbito de AA.


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II – Fundamentação

Os dados a ter em conta, ainda que resultem do despacho recorrido, são os seguintes (conforme documentos juntos aos autos):

- AA faleceu em ../../1996;

- EE, seu filho, por escritura de 11/1/2012 outorgada no Cartório Notarial do Dr. FF, em ..., repudiou a herança daquele;

- DD e CC são filhas de EE, tendo a primeira nascido a ../../2003 e a segunda nascido ../../2008.

Vamos então ao tratamento da questão enunciada.

Com a morte de AA, ocorrida a ../../1996, abriu-se nesse momento a sua sucessão (art. 2031º do C. Civil).

Nessa sequência, como se preceitua no art. 2032º nº1 do C. Civil, são chamados à titularidade das suas relações jurídicas “aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade”, assim se dando conta dos “pressupostos, cumulativos e de verificação simultânea, da vocação sucessória: (1º) a titularidade pelo sucessível, chamado, de designação sucessória prevalente no momento da abertura da sucessão, (2º) a existência e (3º) a capacidade, para efeitos sucessórios, desse sucessível naquele momento” (citamos, como aliás se faz na decisão recorrida, Rabindranath Capelo de Sousa, in “Lições de Direito das Sucessões”, Volume I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1990, págs. 209 e 210; o sublinhado é nosso).

Note-se ainda que, como refere aquele mesmo autor (ob. cit., pág. 226), aquele chamamento ou vocação sucessória, como decorre daquele art. 2032º, “apenas se verifica no momento de abertura da sucessão, só neste momento se solidificando a designação sucessória” (sublinhado nosso), sendo por isso por referência a tal momento (ob. cit., págs. 239 e 240) “que a vocação sucessória prevalente se faz”(nº1 daquele preceito) “ou se retrotrai” (nº2 daquele preceito) e que, portanto, é naquele momento “que se imobiliza e consolida a hierarquia das designações sucessórias, que o escalonamento dos designados, até então instável e em permanente evolução, se fixa, e se apuram as pessoas que em concreto vão ser chamadas à titularidade das relações jurídicas do falecido, desde que reúnam ainda os restantes pressupostos da vocação sucessória, ou sejam, a existência jurídica e a capacidade”.

Tendo aquele filho do autor da herança repudiado esta – isto é, não a tendo aceitado –, os efeitos de tal repúdio, como se prevê no art. 2062º do C.Civil, “retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia, salvo para efeitos de representação”.

A ressalva efetuada na parte final deste preceito convoca a análise do direito de representação sucessória, previsto assim no art. 2039º do C. Civil: “Dá-se a representação sucessória, quando a lei chama os descendentes de um herdeiro ou legatário a ocupar a posição daquele que não pôde ou não quis aceitar a herança ou legado”.

Será que, no caso, tendo a abertura da sucessão ocorrido a ../../1996, o repúdio ocorrido a 11/1/2012 e tendo a filha do repudiante e recorrente DD nascido a ../../2003, há representação sucessória desta em relação ao seu pai, enquanto sucessível naquela herança aberta por morte do seu avô?

A resposta é negativa, como no mesmo sentido se decidiu na decisão recorrida.

Efetivamente, na sequência do que já se disse atrás sobre a vocação sucessória e sua solidificação no momento da abertura da sucessão e como, mais uma vez, e de forma bem clara, refere Rabindranath Capelo de Sousa (ob. cit., págs. 312 e 313), “para haver lugar ao direito de representação em qualquer espécie de sucessão importa que se verifique uma impossibilidade de aceitação ou um repúdio da herança ou legado, por parte de sucessível com designação prioritária, bem como que existam e sejam capazes no momento da abertura da sucessão descendentes desse sucessível” (o itálico está assim no texto)[1].

Isto é, é sempre por referência ao momento da abertura da sucessão que há que equacionar a existência de direito de representação em análise, pois por força do art. 2062º os efeitos do repúdio retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão e, por força do nº2 do art. 2032º e do art. 2039º, a igual momento se retrotrai a devolução a favor dos representantes.

Assim, e como decorre da conjugação do art. 2062º – em que o sucessível repudiante se considera como não chamado à abertura da sucessão “salvo para efeitos de representação” – com o art. 2039º, cujo conteúdo e alcance se veio de analisar, para efeitos de representação tudo se passa como se o sucessível que repudiou fosse também chamado aquando da abertura da sucessão, embora já não por si mas representado pela pessoa ou pessoas à altura seus descendentes.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, Volume VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 60), “o representante, ocupando embora a posição jurídica que competiria ao representado, a quem ele sucede é ao autor da sucessão, e não ao representado”.

Deste modo, se aquando da abertura da sucessão aquele sucessível repudiante não tinha descendentes, não tinha, consequentemente, quem lhe sucedesse por direito de representação, do que resulta que se aquele sucessível só vier a ter filhos depois da abertura da sucessão e que a esta data ainda não estivessem concebidos (art. 2033º nº1 do C. Civil) não se verifica o direito de representação deles em relação àquele sucessível.

Ora, esta é exatamente a situação dos autos, pois a abertura da sucessão ocorreu a ../../1996 e a filha do sucessível repudiante ora recorrente apenas veio a nascer no ano de 2003 (e a outra filha – não recorrente – no ano de 2008).

Não podia suceder ao autor da sucessão – por direito de representação de seu pai – porque, pura e simplesmente, não existia nem estava concebida aquando da abertura da sucessão.

Na sequência do se veio de expor, há que julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.

As custas do recurso ficam a cargo da recorrente, que nele decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário a si concedido.


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário a si concedido.


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Porto, 10/3/2025

Mendes Coelho

Fátima Andrade

Carlos Gil

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[1] Sem prejuízo porém, quanto a tal existência e capacidade, e como refere o mesmo autor em nota de rodapé (nº457), da regra de os descendentes nascituros concebidos terem direito de representação embora sujeito à condição legal de virem a nascer (arts. 2033º nº1 e 66º nº2 do C. Civil) e, por outro lado, dos requisitos complementares de capacidade posteriores à abertura da sucessão e previstos nos arts. 2034, al. d), e 2035º, nº2, do C. Civil.