DANO DA PRIVAÇÃO DO USO DO VEÍCULO
PERTURBAÇÃO DO NORMAL GOZO
Sumário

I - Segundo o entendimento que temos por mais alargado, quer na doutrina quer na jurisprudência, deve admitir-se que a simples perturbação do normal gozo de um determinado bem constitui um dano autónomo, independentemente da concreta demonstração do prejuízo ou lucro cessante.
II - Se é certo que os acordos de paralisação não têm de ser diretamente transponíveis para a convicção judicial, ou seja, não estando o tribunal vinculado aos valores protocolados, se o acordo é invocado pelo demandante e pretende que a indemnização seja fixada por referência ao mesmo, há de sê-lo na sua globalidade e nos seus limites temporais.

(Sumário da responsabilidade do relator)

Texto Integral

Processo n.º 15227/23.9T8PRT.P1

Relator – José Eusébio Almeida

Adjuntos – Teresa Sena Fonseca e José Nuno Duarte

Acordam na 3.º Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório

A..., Crl demandou B... – Companhia de Seguros, SA e pediu a condenação da ré no pagamento da quantia global de 20.883,96€, a título de indemnização pela privação do uso do veículo e pelos custos suportados com as alterações necessárias, realizadas no novo veículo adquirido para o tornar apto ao desempenho da função a que se destina, acrescida dos juros vincendos.

Fundamentou a sua pretensão na ocorrência de um acidente de viação e nos danos daí decorrentes. Concretamente, quanto a estes (e com relevo à apreciação do recurso) a autora veio sustentar:

- Após a vistoria aos prejuízos, ao abrigo do protocolo IDS (indemnização direta ao segurado) considerou a seguradora da autora (C...) desaconselhável proceder-se à reparação do veículo. A autora aceitou a indemnização por perda total do veículo, cujo pagamento foi realizado no dia 08/08/22 - - Cfr. Doc. 1

- Acontece que a autora teve o prejuízo resultante da privação do uso, danos esses igualmente indemnizáveis, cujo pagamento, não obstante o protocolo IDS e em caso de desacordo, é da responsabilidade da seguradora do veículo causador do acidente, ao abrigo do seguro da responsabilidade civil.

- Após o acidente o veículo ficou paralisado desde o dia 13/01/22, data do acidente, recebendo a Autora a indemnização no dia 08/08/22. Assim, a autora tem direito a ser indemnizada, a título de privação do de uso do seu veículo profissional de transporte de passageiros, durante o período de impossibilidade de circulação correspondente a 205 dias, que se traduz numa diminuição patrimonial que cumpre reparar/indemnizar.

- O veículo estava afeto ao serviço de táxi em dois turnos (diurno e noturno).

- A autora é associada da Federação Portuguesa do Táxi – Cfr. doc. 2

- O valor diário de imobilização para uma viatura com serviço de táxi, em dois turnos com a tipologia da sinistrada, de acordo com as regras estabelecidas no acordo celebrado entre a FPT (Federação Portuguesa de Táxi) e a APS (Associação Portuguesa de Seguradoras) foi fixada, no período compreendido entre 01 de março de 2021 e 28 de fevereiro de 2022, em 96,28€/dia, de 1 de março de 2022 a 25 de maio de 2022, em 97,40€/dia e de 25 de maio de 2022 a fevereiro de 2023 em 100,10€/dia – Doc. 3 e 4.

- Reclama, assim, título da privação do uso, tendo por referência esse acordo (seguido pelos tribunais na fixação da indemnização) a quantia global de 20.115,28€, assim discriminados: - 13/01/22 a 28/02/22 (46 dias ) – valor/dia 96,28€ - 4.428,88€ - 01/03/22 a 25/05/22 (85 dias) – valor/dia 97,40€ - 8.279,00€ - 26/05/22 a 08/08/22 (74 dias ) – valor/dia 100,10€ - 7.407,40€.

- Valor esse que, in casu, deverá tomar-se em consideração em sede de fixação da indemnização pela simples privação do dano. Deverá, assim, fixar-se a atribuição de uma indemnização respeitante ao período contabilizado pela privação do uso (205 dias), que se cifra em 20.115,28€.

- Além do dano de privação de uso, teve outros danos patrimoniais decorrentes do acidente: viu-se forçada a adquirir um novo veículo para transporte de passageiros, que teve necessidade de alterar e adaptar, despendendo a quantia global de 768,68€ - Docs. 6, 7,8,9,10 e 11.

A ré, regularmente citada, contestou, aceitando a sua responsabilidade civil pelo acidente de viação, mas não aceitando o valor indemnizatório peticionado.

Foi dispensada a realização da audiência prévia, fixado o objeto do processo e enumerados os temas da prova. Realizada a audiência de discussão e julgamento, proferiu-se a seguinte sentença: “Nestes termos, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência: - condeno a ré a pagar à autora a quantia global de 6.561,13 euros (seis mil quinhentos e sessenta e um euros e treze cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, contados desde a data da sua citação, às sucessivas taxas legais em vigor, situando-se atualmente em 4%, até integral pagamento, - no mais, vai a ré absolvida do pedido”.

II – Do recurso

Inconformada, a autora veio apelar. Pretende que seja “revogada a decisão recorrida, e substituída por outra que condene a Ré/Recorrida, a pagar à Autora, a título de privação do uso, a quantia de €20.115,28, tendo por referência os valores diários identificados no ponto 11 dos factos provados, desde a data do acidente até efetivo e integral pagamento, num total de 205 dias, acrescido dos respetivos juros, vencidos e vincendos, até integral pagamento”. Para tanto, conclui:

1 - Pediu a condenação da ré no pagamento da quantia de 20.115,28€, a título de indemnização pela privação do uso, desde a data do acidente (13.01.22), até à do pagamento da indemnização pela perda total (08.08.22), no total de 205 dias.

2 - O sinistro foi tramitado ao abrigo da IDS – Indemnização Direta ao Segurado, sendo que o veículo ficou paralisado desde o dia 13.01.22 e o pagamento da indemnização pela perda total foi realizada no dia 08/08/22 – (pontos 7 e 8 dos factos provados).

3 - Resulta dos factos provados que o veículo da recorrente ficou imobilizado após a data do sinistro; a existência de nexo causal entre a conduta ilícita do condutor e a referida imobilização e mais se provando que o veículo era utilizado no exercício da atividade comercial de transporte de passageiros, vulgo Táxi.

4 - Nesse sentido atribuiu-se ao condutor do veículo segurado na ré a culpa pela ocorrência do sinistro, e consequentemente, a responsabilidade daquela pela reparação dos danos causados.

5 - Ora, em caso de perda total, é devida a indemnização por privação do uso do veículo até ao momento em que seja satisfeita ao lesado a indemnização correspondente.

6 - A doutrina e a jurisprudência são claras quanto a esta matéria: - No caso de perda total, operando-se uma indemnização ou restituição equivalente, traduzida na entrega de uma quantia em dinheiro, a privação do uso subsiste até ao momento em que ao lesado seja satisfeita a indemnização correspondente (Acórdãos do STJ, de 21/05/2005 – processo 03B2246, e de 15/11/2011 – processo 6472/06.2TBSTB-E1, ambos em dgsi).

7 - Na realidade, a privação mantém-se enquanto o responsável não reparar o veículo, quando for caso disso, ou não indemnizar o lesado, pelo respetivo valor, pois só com a reparação ou com a indemnização cessará o dano e, por isso, só nessa altura pode deixar de falar-se em privação do uso.

8 - O veículo sinistrado era utilizado pela recorrente como instrumento de trabalho no exercício de atividade lucrativa de transporte de passageiros de “TÁXI”, pelo que que a privação do uso constitui um dano emergente indemnizável.

9 - Essa é a posição maioritária da doutrina e jurisprudência, pacificamente aceite, que reconhece a ressarcibilidade do dano pela simples privação do uso, sem necessidade de se provar a ocorrência de prejuízos decorrentes da privação, já que a imobilização de um veículo constitui um dano emergente – in casu a impossibilidade de prestação de serviços de transporte de táxi a terceiros dispondo a autora livremente do mesmo, retirando as suas utilidades (artigo 1305 do CC).

10 - A privação de utilização do veículo acarreta, per si, lesão do património, sendo a medida do dano definida, pelo valor que tem no comércio a utilização desse veículo durante o período em que o dono está dele privado (a perda da possibilidade de utilização do veículo quando e como lhe aprouver tem, claramente, valor económico, e não apenas quando outro veículo é alugado para substituir o danificado ).

11 - Falece, assim o entendimento preconizado na decisão recorrida, de que a privação do uso não constitui, per si, uma dano indemnizável, não tendo logrado a recorrida provar os prejuízos sofridos em consequência da paralisação, afastando-se a indemnização devida (página 10 da sentença).

12 - Argumentação aduzida na decisão, diga-se, contraditória, porquanto acaba de considerar devida a indemnização sem necessidade de se recorrer a critérios de equidade, aplicando-se os valores e o prazo previsto no acordo celebrado entre a FPT e a APS.

13 - Tem sido esse o entendimento da doutrina e dos nossos tribunais superiores (cujos sumários constam do corpo da alegação), destacando-se igualmente Menezes Leitão, in, Direito das Obrigações, Volume I, página 317, Cadernos de Direito Privado, anotação de Júlio Gomes, n.º 3. “ Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente - constituindo um facto notório ou resultando de presunções naturais a retirar da factualidade provada - para que se possa exigir do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar direta e concretamente prejuízos efetivos.”

14 - Com efeito, destinando-se o veículo da recorrente ao transporte de passageiros, certo é que o facto de deixar de circular acarretou prejuízos decorrentes dos serviços que deixou de prestar a clientes, tal resulta da matéria de facto dada como provada nos pontos 1.º, 8.º e 9.º.

15 - Esta ressarcibilidade autónoma do dano de privação de uso de veículo tem vindo a ser o entendimento da maioria dos acórdãos do STJ, como se colhe, a título de exemplo, dos seguintes: acórdão de 03.05.2011 (processo 2618/08.06TBOVR.P1, Relator NUNO CAMEIRA), de 21.04.2010 (processo 17/07.4TBCBR.C1.S1, Relator GARCIA CALEJO), de 05.07.2007 (processo 07B1849, Relator SANTOS BERNARDINO), de 08.05.2013 (processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1, Relator MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), de 23.11.2011 (Processo 397-B/1998.L1.S1, Relator ALVES VELHO), de 15.11.2011 (processo 6472/06.2TBSTB.E1.S1) e de 16.03.2011 (processo 3922/07.2TBVCT.G1.S1), ambos do Relator MOREIRA ALVES); acórdão 28/09/2021 (processo 6250/18.6T8GMR.G1.S1, Relator OLIVEIRA ABREU), de 17/06/2021 (processo 879/17.7T8EVR.E1.S1, Relator: JOÃO CURA MARIANO) e de 25/10/2018 (processo 49/16.1T8FND.C1.S1, Relator: FÁTIMA GOMES).

16 - Sucede que o tribunal fixou a indemnização pela privação do uso apenas pelo período de 60 dias, no valor 6.561,13€ euros, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, contados desde a data da sua citação, às sucessivas taxas legais em vigor, situando-se atualmente em 4%, até integral pagamento,

17 - Considerando os valores diários de referência peticionados pela recorrente para uma viatura com serviço de táxi, em dois turnos com a tipologia do veículo sinistrado, fixada, no período compreendido entre 1/3/21 e 28/2/22, em 96,28 euros/dia, de 1/3/22 a 25/5/22, em 97,40 euros/dia e de 25/5/22 a 2/2023 em 100,10 euros/dia, de acordo com as regras estabelecidas no acordo celebrado entre a FPT (Federação Portuguesa de Táxi) e a APS (Associação Portuguesa de Seguradoras).

18 - O tribunal sustentou a sua decisão de indemnizar a recorrente pelo período de 60 dias com base no artigo 3.º, n.º 9 do acordo de paralisação celebrado entre a Federação Portuguesa de Táxi e a Associação Portuguesa de Seguradores.

19 - O facto de a recorrente ser associada da Federação Portuguesa de Táxi, não significa que esteja vinculada ao acordo de paralisação celebrado entre a Federação Portuguesa de Táxi e a Associação Portuguesa de Seguradores.

20 - Na realidade, tal acordo não tem carácter vinculativo, podendo os associados, na verdade, optar pela sua aplicação, recebendo a indemnização limitada ao período de paralisação aí fixado, aceitando os termos, prazos e condições fixadas no acordo ou, ao invés, recorrer à via judicial reclamando o pagamento de uma indemnização correspondente ao período real e efetivo da paralisação, nos termos estatuídos na lei substantiva e nas decisões pacificas dos Tribunais Superiores.

21 - A não obrigatoriedade de não aceitação do acordo no caso de indemnização por paralisação do veículo decorre dos artigos 4.º, n.º 2, que dispõe que “O pedido relativo à paralisação deverá ser efetuado pela FPT à empresa de Seguros” e do artigo 5.º, n.º 1 que refere que “No caso de qualquer associado da FPT não aceitar as condições exaradas neste acordo, esta obriga-se a não patrocinar tal pretensão através dos seus serviços de contencioso”.

22 - Ora, in casu, a recorrente não solicitou à Federação Portuguesa de Táxi a sua mediação/intervenção para solicitar a indemnização pela paralisação do veículo pela perda total, sendo representada, por vontade própria, por mandatário legalmente constituído, concluindo-se pela sua intenção de não pretender ser ressarcida com base no acordo celebrado entre a FPT e a APS.

23 - Ademais, como é logico, se estivesse vinculada ao referido acordo, não faria sentido a recorrente estar a instaurar ação declarativa.

24 - O tribunal faz uma análise superficial e redutora dos factos, vinculando a recorrente a um acordo que, in casu, não aderiu, nem resulta dos autos factos que assim o demonstrem.

25 - Acresce que, para além de considerar, erradamente, não haver necessidade de recorrer às regras de equidade, por se aplicar (taxativamente) os valores e o prazo previsto no Acordo, refere que não seria necessário sequer discutir a inércia da recorrente no acompanhamento do processo junto da sua seguradora e a responsabilidade da ré no atraso na liquidação da indemnização (onde alegadamente não teve qualquer envolvimento no processo de averiguação de danos e nos atrasos dele decorrentes ).

26 - Não assiste razão ao julgador ao considerar que uma vez que o processo foi tramitado ao abrigo do IDS, caberia à autora acompanhar o processo, pelo que nenhuma responsabilidade poderia ser imputada à ré pelo atraso na liquidação da indemnização.

27 - Com efeito, a Convenção IDS é instrumento que apenas envolve as seguradoras que a subscreveram, funcionando assim como uma autêntica res inter alios acta relativamente aos sinistrados.

28 - Visa tal convenção operacionalizar em primeira linha os interesses das seguradoras, surgindo a seguradora do lesado como uma mera facilitadora ou intermediária no processo indemnizatório de que são partes únicas e verdadeiras o lesado e a seguradora do veículo mediante o qual se provaram os danos.

29 - Pelo que as consequências jurídicas do sinistro se repercutem sempre e apenas na pessoa da seguradora dita devedora, aqui ré.

30 - Assim, ao contrário do entendimento vertido na decisão recorrida, jamais poderia a ré escusar-se a reparar o dano causado pela privação do uso do veículo, com fundamento em razões atinentes à execução inter-partes (inter-seguradoras).

31 - Esta matéria tem vindo a ser discutida e decidida pelos tribunais superiores, sendo todos as decisões unânimes em referir que as implicações danosas emergentes do sinistro correm naturalmente por conta do obrigado à reparação do dano, independentemente de a regularização do sinistro ter sido tramitada ao abrigado do Protocolo IDS, (Vide Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 4.02.21 - processo n.º 112 80/17.2T8LRS.L1.S1, in dgsi).

32 - Face ao exposto, deverá ser alterada a decisão, na parte em que fixou o valor da indemnização pela privação do uso do veículo em 5.792,48€, condenando-se a ré a pagar à recorrente, a título de indemnização pela privação de uso do veículo de que é proprietária, a quantia peticionada - contabilizados desde a data do acidente até ao dia em que foi paga a indemnização, acrescida de juros de mora à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.

33 - O dever de a ré indemnizar a autora resulta do princípio da boa-fé, tal como plasmado no artigo 762 n.º 1 do Código Civil, representando uma transferência, para o campo contratual, do princípio neminem laedere.

34 - Violou o tribunal o disposto nos artigos 562 a 564 e 566, 762 n.º 1 e 1305, todos do Código Civil.

A ré respondeu ao recurso, sustentando a sua improcedência. Em síntese – e citamos – defende: “A autora poderia perfeitamente tentar fazer a prova, em sede de lucros cessantes, do valor que perdeu pela não utilização da viatura, até ser ressarcida. Porém, optou por invocar, pura e simplesmente, sem alegar qualquer prejuízo efetivo, a tabela anexa ao acordo de paralisação entre a Federação Portuguesa do Táxi e a Associação Portuguesa de Seguradores. Não deixa de ser um critério aceitável. Tem, no entanto, que ser aplicado de acordo com a filosofia subjacente ao programa contratual do protocolo que criou e fez nascer essa tabela. Foi o que a sentença fez”.

O recurso foi recebido nos termos legais. Os autos correram Vistos e nada se observa que obste à apreciação do seu objeto, o qual se reconduz a saber, atentas as conclusões da apelante, se a indemnização relativa à privação do uso devia ter sido fixada em montante diverso, e superior, concretamente no montante liquidado e pretendido pela apelante.

III – Fundamentação

III.I – Fundamentação de facto

O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos, que não se mostram impugnados, e relevam à apreciação do recurso:

(...)

5 - A ré assumiu a responsabilidade pelo acidente.

6 – Após a vistoria aos prejuízos sofridos, ao abrigo do protocolo IDS, a seguradora da autora (C...) considerou desaconselhável proceder-se à reparação do LF, orçamentada em 8.716,01 euros, fixando o valor venal do veículo em 6.550,00 euros e o valor do salvado em 666,00 euros e propondo o pagamento da uma indemnização global no montante de 5.884,00 euros.

7 - A autora aceitou a indemnização por perda total do veículo, cujo pagamento foi realizado no dia 08/08/2022.

8 - O veículo LF ficou paralisado desde o dia 13/1/2022.

9 - O LF estava afeto ao serviço de táxi em dois turnos - diurno e noturno.

10 - A autora é associada da Federação Portuguesa do Táxi.

11 - O valor diário de imobilização para uma viatura com serviço de táxi, em dois turnos com a tipologia do LF, de acordo com as regras estabelecidas no acordo celebrado entre a FPT (Federação Portuguesa de Táxi) e a APS (Associação Portuguesa de Seguradoras) foi fixada, no período compreendido entre 1/3/2021 e 28/2/2022, em 96,28 euros/dia, de 1/3/2022 a 25/5/2022, em 97,40 euros/dia e de 25/5/2022 a 2/2023 em 100,10 euros/dia.

14 - A regularização deste sinistro foi enquadrada no âmbito do sistema de Indemnização Direta ao Segurado (IDS) e, pese embora, a ré tenha assumido a responsabilidade pelo sinistro as diligências foram, realizadas pela "C..., S.A".

16 - No dia 17.1.2022, a ré assumiu a responsabilidade pela ocorrência do sinistro, informando o seu segurado que os danos seriam regularizados através da convenção IDS, sendo que o LF tinha o seguro de responsabilidade civil automóvel, válido à data do sinistro, contraído junto da referida “C...”.

18 - Ativada a convenção IDS, a “C...” relacionou-se diretamente com a autora, vindo, depois, a exigir o reembolso à ré.

19 - Deste modo, a responsabilidade pela peritagem e avaliação dos danos sofridos pelo veículo da autora foi da “C...”.

21 - Concluída a peritagem, a “C...” informou a autora do resultado da mesma, no dia 9.2.2022, ou seja, que o LF se encontrava em situação de perda total, tendo sido o seu valor patrimonial ou de substituição, imediatamente antes do sinistro, fixado em 6.392,00 euros, e o salvado em 666,00 euros, equivalendo a uma indemnização de 5.726,00 euros, ficando a autora com o salvado.

22 - A autora não concordou com a indemnização oferecida pela “C...”, pedindo uma indemnização total de 7.750,00 €, com o salvado incluído, através de missiva enviada no dia 17/2/2022.

23 - No dia 16/3/2022, a “C...” melhorou a sua proposta, com o objetivo de desbloquear uma solução extrajudicial, oferecendo 5.884,00€, ficando a autora com o salvado.

24 - A proposta foi aceite pela autora e no dia 6/5/2022 a “C...” enviou o recibo de indemnização, para ser assinado e carimbado pela autora, que o devolveu carimbado no dia 9/5/2022.

25 - No dia 4/8/2022, a autora informou a “C...” que ainda não havia recebido qualquer valor.

26 - O Acordo de Paralisação celebrado entre a Federação Portuguesa do Táxi e a Associação Portuguesa de Seguradores, no seu art. 3.º, n.º 9 estabelece que “Em caso de perda total do veículo, o período de paralisação será contado desde a data do acidente ou da data da receção da comunicação do acidente na empresa de seguros conforme previsto no ponto 2, até à data da efetiva regularização da substituição do veículo afeto à licença de aluguer, não podendo, no entanto, exceder 60 dias, contados a partir da data da definição de responsabilidade pela empresa de seguros e desde que não se verifique negligência por parte do lesado.”

27 - A “C...” ofereceu à autora pela privação do uso e adaptação do veículo, no dia 27/10/2022 a quantia global de 6.774,68 euros.

III.II – Fundamentação de Direito

O tribunal recorrido sentenciou a ação com a fundamentação que – pertinente à apreciação do recurso – sumariamente transcrevemos e sublinhamos: “Peticiona a autora (...) Indemnização pela privação do uso do LF desde a data do acidente – 13/1/2022 – até à data em que foi recebida a indemnização – 8/8/2022. (...) A jurisprudência divide-se no tocante aos pressupostos da obrigação de indemnizar pela privação do uso do veículo. (...) No caso de perda total escreveu-se no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/3/2022 que “(...) a privação do uso subsiste até ao momento em que ao lesado seja satisfeita a indemnização correspondente, pois só neste momento é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que o substitua”. (...) no caso concreto, considerando ser a autora associada da Federação Portuguesa de Táxis e o acordo estabelecido entre esta e a Associação Portuguesa de Seguradoras, não há que recorrer às regras da equidade, mas aplicar os valores previstos no acordo em questão e pelo prazo máximo nele previsto (60 dias), não cuidando de discutir sobre a inércia da autora no acompanhamento do processo junto da sua seguradora e a responsabilidade da ré no atraso na liquidação da indemnização (o qual, como se viu não lhe era, de todo em todo, imputável). Assim, o montante global devido à autora pela privação do uso ascende a 5.792,45 euros (13/1/2022 a 28/2/2022►46 diasx96,28€/dia = 4.428,88 euros; 1/3/2022 a 14/3/2022►14 dias x 97,40€/dia = 1.363,60 euros). Sobre as quantias devidas pela ré incidem juros de mora, contados desde a data da sua citação (...)”.

Apreciemos.

Comecemos por dizer que a apelante tem razão, quando refere a irrelevância do Protocolo de Indemnização Direta ao Segurado (Protocolo IDS) na esfera jurídica do lesado, continuando a seguradora responsável pelo sinistro adstrita à obrigação indemnizatória. Isso mesmo se sustenta em recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o qual, aliás, teve essencialmente por objeto a questão da privação do uso [acórdão de 10.12.24, Processo n.º 1821/21.6T8VNG.P1.S1, Relator, Conselheiro António Barateiro Martins, dgsi]: “I – O Protoloco de Indemnização Direta ao Segurado (Protocolo IDS) é uma mera convenção ou acordo subscrito entre seguradoras que “tem como finalidade acelerar a regularização de sinistros automóveis e simplificar os reembolsos entre as signatárias” (cfr. art. 2.º de tal Protocolo), ou seja, é um documento que tão só vincula as seguradoras que o subscreveram, não produzindo quaisquer efeitos sobre a esfera jurídica de terceiros/lesados. II – O Protocolo IDS significa que a seguradora responsável (que cobre a responsabilidade civil do seu segurado, culpado no sinistro) autoriza a seguradora do lesado a indemnizá-lo, o que esta faz por conta da seguradora responsável, ou seja, embora acionado o Protocolo IDS (isto é, participado o acidente pelo lesado à sua seguradora), continua a seguradora responsável a manter-se vinculada ao dever de regularizar o sinistro dentro dos prazos legais”.

Sem embargo, da leitura da sentença não podemos concluir que a questão do Protocolo IDS haja sido obstáculo à pretensão indemnizatória da apelante, ou sequer (o) obstáculo ao deferimento da pretensão quantificada pela apelante, a título de privação do uso do veículo.

Dizemos, ainda, que a apelante também tem razão ao sustentar que o entendimento mais alargado, na doutrina[1] e, especificamente, na jurisprudência vai no sentido de “admitir que a perturbação do gozo normal de um bem é configurável como um prejuízo patrimonial autónomo, independentemente da demonstração de um específico dano emergente ou lucro cessante” [Daniel Bessa de Melo, Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, 2025, pág. 25].

Sem embargo, da leitura da sentença não podemos concluir que foi diverso o entendimento do tribunal recorrido, uma vez que deferiu a pretensão da recorrente – sem que esta tenha alegado (e, por isso, demonstrado) um específico e concreto valor do dano, ainda que a tenha deferido em quantidade (valor) inferior ao pretendido.

Assim, a questão que o tribunal recorrido colocou e que, agora em sede de recurso, se recoloca é a da quantificação do dano da privação do uso, não da sua existência.

Quando está em causa – como aqui sucede – a perda (privação) do uso de um bem capaz de rentabilização económica ou, mais concretamente, de um bem destinado a uma atividade empresarial, a ressarcibilidade do dano haveria de calcular-se “segundo a teoria da diferença (art. 566, n.º 2)” [Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 63].

Efetivamente, sem se questionar que a indisponibilidade da coisa usada (ou usável) é fonte indemnizatória do lucro cessante, “tratando-se de um taxista impedido de exercer a sua profissão durante a reparação da viatura, terá direito a uma indemnização pelas viagens que deixou de realizar, descontadas as despesas com as quais ordinariamente arcava, nomeadamente gastos em combustíveis e portagens”[2].

No caso presente a autora veio invocar expressamente um “acordo de paralisação”, celebrado entre a Federação Portuguesa de Táxi e a Associação Portuguesa de Seguradoras.

É certo que tais acordos “não são diretamente transponíveis para o plano da convicção judicial” e, por outro lado, “os valores acordados foram contemplados para períodos de paralisação curtos, geralmente situados entre a participação do sinistro e o reconhecimento da perda total ou a conclusão das reparações, devendo excluir-se a sua aplicabilidade a paralisações que perdurem por vários meses”[3]. Neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5.03.24 [Processo n.º 786/21.0T8VIS.C2, Relatora, Desembargadora Maria João Areias, dgsi].

Mas sendo juridicamente correto o que acaba de ser dito ou, dito de outra forma, não estando o tribunal vinculado aos valores protocolados e não sendo também forçoso que o lesado tenha de demonstrar os lucros cessantes, importa, no entanto, ver com especial atenção a fundamentação da pretensão formulada pela recorrente.

Importa, pois, repetir os fundamentos da pretensão da recorrente, constantes da petição: “O veículo estava afeto ao serviço de táxi em dois turnos (diurno e noturno). A autora é associada da Federação Portuguesa do Táxi – Cfr. doc. 2. O valor diário de imobilização para uma viatura com serviço de táxi, em dois turnos, com a tipologia da sinistrada, de acordo com as regras estabelecidas no acordo celebrado entre a FPT (Federação Portuguesa de Táxi) e a APS (Associação Portuguesa de Seguradoras) foi fixada, no período compreendido entre 01 de março de 2021 e 28 de fevereiro de 2022, em 96,28€/dia, de 1 de março de 2022 a 25 de maio de 2022, em 97,40€/dia e de 25 de maio de 2022 a fevereiro de 2023 em 100,10€/dia – doc. 3 e 4. Reclama, assim, título da privação do uso, tendo por referência esse acordo (seguido pelos tribunais na fixação da indemnização) a quantia global de 20.115,28€, assim discriminados: - 13/01/22 a 28/02/22 (46 dias ) – valor/dia 96,28€ - 4.428,88€ - 01/03/22 a 25/05/22 (85 dias) – valor/dia 97,40€ - 8.279,00€ - 26/05/22 a 08/08/22 (74 dias ) – valor/dia 100,10€ - 7.407,40€. Valor esse que, in casu, deverá tomar-se em consideração em sede de fixação da indemnização pela simples privação do dano[4]. Deverá, assim, fixar-se a atribuição de uma indemnização respeitante ao período contabilizado pela privação do uso (205 dias), que se cifra em 20.115,28€”.

Parece-nos evidente que a recorrente, omitindo qualquer prejuízo concretamente verificado, fundou a sua pretensão no (concreto) Protocolo que (expressamente) invocou. Refere: “Reclama... tendo por referência esse acordo”, tal como acabámos de citar. Ora, não pode ter-se por referência um acordo, expressamente invocado, sem se considerar o tempo de paralisação nele previsto/limitado.

Daí que o tribunal recorrido tenha referido não se justificar o recurso à equidade, observando, como observou, a concreta pretensão formulada e o apoio em que a mesma se sustentava. Aliás, não cabe ensaiar o resultado de um eventual recurso à equidade, pois tal extravasaria o objeto do recurso, quando a apelante pretende – nesta sede, como pretendeu em primeira instância -, a aplicação do Protocolo.

Em suma, o tribunal aplicou o acordo (Protocolo) a pedido da recorrente. E não podia cindi-lo, numa aplicação parcial e (apenas) favorável à recorrente, sem o considerar globalmente.

Por ser assim, o recurso revela-se improcedente.

As custas do recurso, atento o decaimento, são devidas pela apelante – artigo 527 do CPC.

IV – Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Porto, 10.03.2025

José Eusébio Almeida

Teresa Sena Fonseca

José Nuno Duarte

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[1] Como refere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (Direito das Obrigações, Volume I, 13.ª Edição, Almedina, 2016, pág. 301), “Efetivamente, o simples uso constitui uma vantagem suscetível [de] avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano”. Paulo Mota Pinto (Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Volume I, Coimbra Editora, 2008, pág. 586), no entanto, não deixa de dizer: “É, porém, duvidoso que a perturbação da possibilidade abstrata de uso resultante da propriedade da coisa, do “jus utendi et fruendi” integrando o licere do proprietário (justamente porque integrante apenas de um licere), constitua logo, para além de um ato violador do direito (ilícito), um dano (uma lesão de um bem) que exija imediatamente uma proteção indemnizatória, independentemente das circunstâncias concretas”. 

[2] Daniel Bessa de Melo, Ob. cit., págs. 179/180. E conclui (pág. 180): “(...) a indemnização identificar-se-á com o lucro bruto que o lesado deixou de auferir”. 

[3] Daniel Bessa de Melo, Ob. cit., pág. 184.

[4] Negritos nossos.