INVENTÁRIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Sumário

I - À tramitação dos incidentes do processo de inventário, não especialmente regulados na lei, é aplicável, por força do disposto no nº1, do art. 1091º, do CPC, o estatuído para os incidentes – arts 292º a 295º, de tal diploma.
II - Quando tal contenda com as garantias das partes, justifica-se que, sempre que a redução de garantias ocorra, haja remessa para os meios comuns.
III - Na complexidade dos factos e insuficiência da prova, cuja ampliação e aprofundamento se imponha para a descoberta da verdade e a realização da justiça, têm os interessados no inventário de, para poder ser, com rigor e segurança, definido o direito, ser remetidos para os meios comuns (cfr. 1093º, do CPC).
IV - Requerendo a questão mais aprofundada instrução, não objeto de suficiente indagação incidental no processo de inventário, pode o juiz remeter os interessados para os meios comuns, que oferecem garantias processuais acrescidas, permitindo-se às partes, de modo mais ativo e eficaz influenciar a decisão - quer ao nível da alegação fáctica e contradição, quer ao nível das provas quer ao do enquadramento jurídico - nos moldes consagrados para as ações declarativas comuns, não balizadas pelos termos simplificados do incidente, e, assim, ser alcançada uma solução mais justa, por fruto da comparticipação colaborante de todos os interessados.
V - Embora uma decisão para ser justa tenha de ser empreendida com celeridade, nunca os interesses de celeridade se podem impor, de modo absoluto, à verdade material, sempre desejável, mesmo necessária e a buscar, para alcançar a justiça do caso concreto.

Texto Integral

Processo nº 1780/22.8T8VCD-H.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)

Tribunal de origem do recurso: Juízo de Família e Menores ...
Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Fátima Andrade
2º Adjunto: Des. Jorge Martins Ribeiro

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrida: BB

AA, Cabeça de casal nos autos de inventário em que é interessada BB, notificado do despacho que, tendo em conta os documentos apresentados pelo Cabeça de Casal e por não poder o Tribunal decidir de forma segura quanto aos créditos apresentados, remeteu as partes para os meios comuns, nos termos dos artºs 1104º e 1111º, do Código de Processo Civil, não se conformando com o mesmo, apresentou recurso de apelação, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:
“1- O despacho agora recorrido é nulo nos termos do art.615, nº1, al. d) do CPC, por omissão de pronúncia.
2- O tribunal a quo remeteu para os meios comuns a aprovação da Verba 3 do Passivo.
3- A aprovação da verba 3 do Passivo é uma questão de direito.
4- Neste momento, os autos contêm todos os elementos (de facto e de direito) necessários para que seja proferida decisão “de forma segura”.
5- A decisão do tribunal a quo de não julgar a questão de aprovação da verba nº3 do Passivo influi directamente no valor das tornas a pagar pelo Recorrente”.


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A Recorrida apresentou-se a responder, pugnando por que seja negado provimento ao recurso interposto e confirmado o despacho recorrido, sustentando que a afirmação do Recorrente de que existiu omissão de pronúncia, tendo, simplesmente, sido remetidas as partes para os meus comuns, não colhe, nem tem qualquer razão de ser e analisando a problemática e não poder julgar de forma segura, bem decidiu o Tribunal a quo ao remeter as partes para os meios comuns, tendo em conta a complexidade da causa e a redução das garantias das partes para que a concreta questão venha a ter a adequada solução.

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Pronunciou-se o Tribunal a quo no sentido de se não verificar nulidade da decisão porquanto não ocorreu omissão de pronúncia, mas remessa das partes para os meios comuns.

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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1 - Da nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, vício a que alude a al. d), do nº1, do art. 615º, do CPC.
2 - Da ilicitude da remessa dos interessados para os meios comuns.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos provados com relevância para a decisão, vicissitudes processuais, constam já do relatório que antecede, resultando a sua prova dos autos, acrescentando-se o seguinte:
1. A referida verba do passivo tem o seguinte teor:
verba 3
Compensações devidas pela Interessada BB pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos suportado apenas pelo Cabeça de Casal, designadamente Impostos, Condomínio, Prestações Crédito à Habitação e Prestações do Crédito Automóvel, Seguros, no valor a apurar no momento da partilha, …l”;
2. A interessada BB apresentou a reclamação junta os autos impugnando o passivo apresentado pelo cabeça de casal discriminado na verba 3, oferecendo prova (documental, depoimento de parte do cabeça de casal e testemunhal);
3. Apresentou-se, posteriormente, o Cabeça de Casal a discriminar os valores da referida verba e a alegar, designadamente:
- prestações do crédito à habitação;
- quotas do condomínio;
- prestações associadas a alegados seguros afirmados como relativos ao crédito habitação;
- prestações do crédito para aquisição do veículo automóvel;
- seguro automóvel;
- IUC;
juntando documentos, conforme resulta dos autos[1].
4. A interessada/apelada impugna tal verba.
5. O Tribunal recorrido proferiu despacho com o seguinte teor:
Tendo em conta os documentos apresentados pelo Cabeça de Casal, não podendo o Tribunal decidir de forma segura quanto aos créditos apresentados, pelo que decido remeter as partes para os meios comuns a discussão dos mesmos, nos termos dos artºs 1104º e 1111º do C.P.Civil”.


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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Da nulidade da decisão, por omissão de pronúncia.

Arguiu o Apelante, no recurso que apresentou, a nulidade da sentença, por padecer do vício de omissão de pronúncia, previsto na al. d), do nº1, do art.º 615.º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência.
Analisemos, em primeiro lugar, da invocada nulidade, pois que a mesma contende com a validade da própria decisão.
Começa-se por referir que as “Causas de nulidade da sentença”, são as que vêm, taxativamente, consagradas no referido preceito, o qual estabelece, na al. d), do nº1 que a sentença é nula quando “d) O juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar …”.
São as nulidades de sentença vícios intrínsecos (quanto à estrutura, limites e inteligibilidade) da peça processual que é a própria decisão (error in procedendo). Como vícios intrínsecos de tal peça processual, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito. Tais vícios não se confundem com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris). Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação das regras de direito e dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso[2].
E os vícios da sentença, taxativamente enumerados no referido preceito, respeitam uns à sua estrutura e outros aos limites da mesma, respeitando àquela os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação) e c) (oposição entre os fundamentos e a decisão) e a estes os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)”[3].
Analisemos o vício que lhe é apontado, consagrado na al. d), respeitante aos limites da sentença.
Na decisão, devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade, não a constituindo a omissão de consideração de linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado[4], dada, desde logo, a não sujeição do juiz às alegações das partes no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, n.º 3 do CPC)[5].
Assim, cabe distinguir “questões” das “razões ou argumentos”, pois que uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar e outra, diversa, é invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção. “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões”[6].
A não pronúncia pelo tribunal quanto a questões que lhe são submetidas determina a nulidade da sentença, não a sendo suscetível de determinar a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões e também a não determina a errada apreciação conferida a uma questão, qualquer que ela seja.
A nulidade da sentença, por omissão ou excesso de pronúncia, há de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta o dever do juiz de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
No caso não houve omissão de pronúncia, antes o tribunal remeteu as partes para os meios comuns, para que aí a questão pudesse ser decidida com maiores garantias das partes. Não omitiu o Tribunal pronúncia, antes, apreciando, decidiu, remeter as partes para os meios comuns, para que, aí, a questão possa ser decidida com maiores garantias.

Destarte, improcedem, as referidas conclusões da apelação, não padecendo a decisão do vício, previsto na al. d), do nº1, do art. 615º, nulidade por omissão de pronúncia, antes o Tribunal, proferindo decisão e usando da faculdade que lhe é conferida, remeteu as partes para os meios comuns.

Improcede, pois, a arguida nulidade da decisão.

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- Da ilicitude da remessa dos interessados para os meios comuns.

Insurgiu-se o apelante contra a decisão que remeteu os interessados para os meios comuns.
Ora, na verdade, à tramitação dos incidentes do processo de inventário, não especialmente regulados na lei, é aplicável, por força do disposto no nº1, do art. 1091º, o disposto nos artigos 292.º a 295.º. E suscitam-se, no âmbito do processo de inventário, questões, para cuja resolução se revelem inadequados os constrangimentos daquele processo (cfr. art. 1091º, nº1, a remeter para o regime dos incidentes), cuja tramitação difere da prevista para o processo comum ou para os processos especiais e, embora tais questões possam ser conhecidas no processo de inventário, pode justificar-se a remessa dos interessados para os meios comuns. Encontram-se nessa situação os casos em que para a apreciação das questões se revele inadequada a tramitação no processo de inventário para assegurar as garantias dos interessados, tendo em conta restrições probatórias e a menor solenidade associada a uma tramitação de cariz incidental, designadamente no que se reporta a meios de prova (v. arts 1091º e 1105º, nº3), a poder justificar que valores de segurança e justiça prevaleçam sobre os de celeridade. Na decisão a tomar impõe-se a ponderação das razões apresentadas no sentido da resolução incidental da questão e as vantagens da remessa para os meios comuns[7], sendo que tal remessa não é um “poder discricionário do juiz (…), não pode ser orientada por meras razões de comodidade ou de facilitismo; apenas se justifica quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto (situação diversa daquela em que a complexidade respeite a questões de direito que devem ser apreciadas pelo juiz no próprio processo de inventário, nos termos do art. 91º, nº1), a tramitação do inventário se revele inadequada por implicar, designadamente, uma efetiva redução das garantias dos interessados, por comparação com o que pode ser alcançado através dos meios comuns”[8].

Como se decidiu no Acórdão da Relação de Guimarães de 29/1/2015, relatado pelo Senhor Juiz Desembargador António Sobrinho, “o processo de inventário é o meio processualmente adequado para se dirimirem todas as questões que possam influenciar a partilha, designadamente no que toca aos bens que fazem parte da herança, e apenas se aí não puderem ser resolvidas é que as partes serão remetidas para os meios comuns"[9], podendo e devendo sê-lo, neste caso, pois que, como bem considerou o Tribunal a quo, se não dispõe dos elementos factuais que permitam definir, com segurança, a questão em apreço, entendendo não ser suficiente a prova produzida.

E a decisão sobre a remessa dos interessados para os meios comuns tanto pode ter lugar antes como depois da produção da prova; existem certas questões relativamente às quais se pode, desde logo, e sem qualquer risco, concluir que a índole sumária da prova a produzir no processo de inventário não permitirá aí decidir[10] e outras em que tal se revele, apenas, após a produção da prova oferecida.
No referido Acórdão da Relação de Lisboa de 28/4/2016, processo 359-09.4TBSRQ.L1-2, escreve-se “Nos termos do art. 1348 do CPC os interessados poderão reclamar contra a relação de bens (…) Consoante resulta do nº 3 do art. 1349 do mesmo Código, na sequência do atinente processado caberia ao juiz decidir sobre a pertinência da relacionação (…). Todavia, como decorre do art. 1350 quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente a decisão incidental das reclamações – o que sucede quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário por implicar redução das garantias das partes - «o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns».
Ora, pode suceder que o juiz, mesmo sem a produção de quaisquer provas, conclua que a questão suscitada tem uma complexidade que não é compatível com a índole sumária da prova a produzir no inventário, não a podendo aí decidir segura e conscientemente.
Dizia João António Lopes Cardoso, a propósito de tal matéria no âmbito das antecedentes disposições do CPC ([1]): «Pode suceder que o cabeça-de-casal tenha relacionado como pertencendo à herança bens que, efectivamente dela não fazem parte ou a respeito dos quais algum estranho se arrogue a respectiva propriedade (…) Também aqui poderão remeter-se os interessados para os meios comuns, na hipótese da prova a produzir se não compadecer com a natureza do processo de inventário». Referindo também ([2]) «que tudo deve ser examinado e decidido à luz de um são critério, já para não consentir que no inventário se resolvam questões de alta indagação, já para não excluir as que, aí, podem e devem obter solução adequada». Bem como que há certas questões em relação às quais «pode afoitamente concluir-se que a índole sumária da prova a produzir no processo de inventário não consentirá fazer decidir aqui», forçando a ter «como facilmente previsível a impossibilidade de as ver decididas no processo de inventário».
Face à nova redacção das disposições do CPC decorrentes da reformulação do processo de inventário, aplicáveis ao caso dos autos, continua a não dever excluir-se um juízo a priori antes de produzidas as provas. Mantendo João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso ([3]) o que foi transcrito e mencionando que o juiz deve formar juízo prévio sobre a possibilidade de a questão se dirimir no processo de inventário e que quando concluir que o desfecho natural do incidente será o da remessa das partes para os meios ordinários o proclamará antes de convidar as partes a produzir provas - «única forma de não causar despesas às partes, de abreviar o andamento do processo de inventário e não praticar actos inúteis que a lei processual proíbe».
Como resulta do suprarreferido, e continua a decorrer das regras que presentemente regulam o processo de inventário, nos casos em que se conclui que para a questão ser decidida com segurança e consciência exige uma aturada e complexa indagação, não compatível com a estrutura de um incidente, devem as partes ser remetidas para os meios comuns. Existem certas questões relativamente às quais se pode desde logo e sem qualquer risco concluir que a índole sumária da prova a produzir no processo de inventário não permitirá aí decidir.
Deste modo, a decisão sobre a remessa dos interessados para os meios comuns tanto pode ter lugar antes como depois da produção da prova. As diligências de prova resultariam em acto inútil se, perspectivando-se desde logo que face à complexidade da questão seria incompatível a decisão da mesma no âmbito do processo de inventário, mesmo assim se produzisse a prova para depois determinar aquela remessa”.
E a “remessa para os meios comuns supõe naturalmente uma necessária amplitude de garantias processuais, traduzidas na livre possibilidade de apresentação dos meios probatórios e da sua efectiva contradição, bem como na realização, judiciosa e pormenorizada, de audiência julgamento, tudo nos moldes genericamente previstos para as acções declarativas comuns, que extravasa totalmente os termos processualmente confinados, simplificados e relativamente condicionados da resolução das referidas questões de facto e de direito em sede meramente incidental”[11].
In casu, analisada a questão decidenda, a sua natureza e complexidade da prova bem pode o juiz formular um juízo sobre a possibilidade de a mesma poder ser dirimida no processo de inventário e, na negativa, maxime por carecer de indagação aprofundada, remeter os interessados para os meios ordinários abstendo-se de decidir, sendo que, à luz de um “são critério”, o julgador pode chegar à decisão de remeter os interessados para os meios comuns logo após a mera analise do requerimento do incidente ou, apenas, após a produção de prova.
No caso, entendeu o juiz ser complexa a questão e não serem os elementos documentais suficientes para uma decisão segura e remeteu os interessados para os meios comuns por não dispor de todos os elementos a habilitar a definição da questão em apreço. E foi por não dispor de elementos factuais que lhe permitissem definir, com segurança, a questão em apreço que remeteu os interessados para os meios comuns, sendo licita tal remessa para decisão da questão, dado o fundamento invocado: a complexidade da questão e não dispor o tribunal de prova que o habilite a decidir de forma segura.

Estamos, pois, ao nível dos pressupostos fácticos que permitiriam a subsunção jurídica do caso e da respetiva prova.

E ante a falta de prova consistente foram os interessados remetidos para os meios comuns.

“Havendo oposição unânime ao reconhecimento de dívidas, cabe ao juiz decidir sobre a sua existência e montante, desde que os documentos apresentados permitam a formulação de um juízo seguro sobre tal matéria (nº3). Se acaso houver necessidade de produzir provas, v.g. prova testemunhal, como, aliás, o permite o nº3 do art. 1105º, a decisão sobre a existência e o montante da dívida ocorrerá até à prolação do despacho previsto na al. a), do nº1, do art. 1110º, ou neste mesmo despacho. Fica salvaguardada, em qualquer dos casos, a possibilidade de os interessados serem remetidos para os meios comuns, quando não haja elementos que permitam uma decisão segura, nos termos do preceito geral do art. 1093º, embora tal não implique, por regra, a suspensão da instância no processo de inventário, que prosseguirá quanto à restante matéria”[12].

Atendendo às limitações da prova apresentada, não existe prova que, de forma segura, permita decidir. E não permitindo, por insuficiência, decidir, com segurança, no inventário, a questão, requerendo mais aprofundada instrução, averiguação e análise, que não pôde ser objeto de indagação incidental em tal processo, deve o juiz remeter os interessados para os meios comuns – cfr. artigo 1093.º, do Código de Processo Civil - que oferecem garantias processuais acrescidas, permitindo-se às partes, de modo mais ativo e eficaz influenciar a decisão - quer ao nível da alegação fáctica e contradição quer ao nível das provas quer ao da influência jurídica - nos moldes consagrados para as ações declarativas comuns, não balizadas pelos termos processualmente simplificados do incidente, e, assim, ser alcançada, quanto à questão, uma solução mais justa, por fruto da comparticipação colaborante dos interessados.
E embora para que uma decisão seja justa deva ser célere, nunca a celeridade pode ser conseguida, em termos absolutos, à custa da preterição da verdade material, sempre necessária a alcançar aquele fim.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelo apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.

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As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente dada a improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).

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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam, por maioria, em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


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Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

Porto, 10 de março de 2025

Assinado eletronicamente pelos Senhores Juízes Desembargadores

Eugénia Cunha

Fátima Andrade (vencida conforme voto que se anexa).

[Voto de vencida – art.º 663.º, n.º 1, in fine, do C.P.C.: Concordando com os considerandos jurídicos que justificam, no âmbito do processo de inventário, a remessa das partes para os meios comuns quando em causa está questão cuja complexidade factual torna inconveniente a sua apreciação neste processo, por a mesma implicar a redução das garantias das partes, afigura-se-me que no caso concreto tal complexidade ou redução da garantia de um processo equitativo entre os interessados se não verifica.

Na verdade está em causa o relacionamento de uma verba como passivo referente a despesas com impostos, condomínio, prestações de crédito à habitação e prestações de crédito automóvel, para além de seguros (pagamento de prémios) suportados pelo CC e relacionados com o património comum do casal relacionado como ativo. Passivo que este quantificou em requerimento de 11/11/24, defendendo dever a ex-cônjuge suportar metade de tais valores.

Juntou o CC prova documental. Esta não impugnada.

Apurar se os valores reclamados foram efetivamente suportados pelo CC reclamante não é em nossa opinião, desde já expressando respeito pela opinião que fez vencimento, matéria que exija nem larga, nem complexa indagação fáctica que justifique com fundamento na redução da garantia das partes, a remessa das mesmas para os meios comuns.

Aliás e afigurando-se ao tribunal a quo que algumas dessas despesas carecem ainda de prova adicional, poderá ao abrigo do disposto no artigo 411º do CPC ordenar as diligências que tiver por necessárias e oportunas.

Tudo o demais quanto à obrigação da ex-cônjuge em suportar as despesas reclamadas - obrigação que esta questionou - é questão de direito.

Nesta medida revogaria a decisão, para o tribunal a quo proceder em conformidade e conhecer a questão.].

Jorge Martins Ribeiro

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[1] Tem o referido requerimento o seguinte teor:
Vem proceder à discriminação dos valores constantes da Verba n° 3 do Passivo, conforme a seguir se expõe:
1- Relativamente ao crédito habitação, desde Outubro de 2022 (data em que foi proposta a acção de Divórcio sem Consentimento do Outro Cônjuge) até à presente data, o cabeça de casal pagou a quantia de 8 823,82€, a título de prestações de crédito à habitação, conforme comprovativos que junta, como doc.1
2- Ainda relativamente ao imóvel, o cabeça de casal pagou desde Outubro de 2022 até à presente data, a quantia de 500,00€ a título de quotas de condomínio, conforme comprovativos que junta, como doc.2.
3- Pagou ainda o cabeça de casal as prestações associadas aos prémios de seguros relativos ao crédito habitação, a saber Crédito imobiliário Vida Risco e Protecção Casa Mais, sendo valor total de seguro de vida 355,80 e o valor de 191,05 ao seguro casa, conforme comprovativos que junta, docs.3 e 4.
4- Posto isto, deve a Requerente ao cabeça de casal a quantia de €4 935,33 (quatro mil novecentos trinta cinco euros e trinta e três cêntimos) relativa ao pagamento de metade das prestações do crédito de habitação, quotas de condomínio e prémios de seguro, desde Outubro de 2022 (data em que foi proposta a acção de Divórcio sem Consentimento do Outro Cônjuge) até à presente data, valor este da responsabilidade da Requerente.
5- No que que diz respeito ao Crédito para aquisição do veículo automóvel, desde Outubro de 2022 (data em que foi proposta a acção de Divórcio sem Consentimento do Outro Cônjuge) até à presente data, o cabeça de casal pagou a quantia de €3760,65 (três mil setecentos sessenta euros e sessenta cinco cêntimos) a título de prestações, conforme comprovativos que junta, docs.5,6,7,8.
6- O cabeça de casa pagou ainda, na íntegra, o seguro automóvel e o IUC, no valor respectivamente de € 184,70 e €148,8l, conforme comprovativos que junta, docs.
7- Deve, pois, a Requerente ao cabeça de casal a quantia de €2 047,08 (dois mil e quarenta sete euros e oito cêntimos) relativa ao pagamento de metade das prestações do crédito automóvel, seguro e IUC, desde Outubro de 2022 (data em que foi proposta a acção de Divórcio sem Consentimento do Outro Cônjuge) até à presente data, valor este da responsabilidade da Requerente”.
[2] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI.
[3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág 735
[4] Ibidem, pág 737
[5] Neste sentido Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., págs. 142 e 143.
[6] Ibidem, págs. 55 e 143.
[7] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 547
[8] Ibidem, pág. 547 e seg.
[9] Ac. RG de 29/1/2015, proc. 2271/14.6TBBRG.G1, acessível in dgsi.net
[10] Ac. RL de 28/4/2016, proc. 359-09.4TBSRQ.L1-2, acessível in dgsi.net
[11] Ac. RL de 2/5/2017, processo 848/15.1T8VFX.L1-7, acessível in dgsi.net
[12] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, idem, pág. 576