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CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
ACORDO DE VONTADES
Sumário
I – Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção. II - Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 01/09/2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos, razão pela qual a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado devendo, assim, eliminar-se da fundamentação factual os pontos que neles se contenham meras conclusões. III - Atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil). IV- Não obstante haja situações em que um contrato pode afetar terceiros estranhos à relação contratual (como por exemplo: estipulações a favor de terceiro-artigo 443.º, cessão de posição contratual-artigo 424.º e sub-rogação legal ou convencional artigos 592.º e 593.º todos do CCivil), em princípio, esse terceiro não pode ser obrigado por um contrato que não assinou nem, em regra, pode dele beneficiar ou ser prejudicado (cf. artigo 406.º, nº 2 do CCivil). V - A cessão da posição contratual é um negócio cujo efeito típico principal consiste na transferência da posição contratual, no estádio de desenvolvimento em que se encontrava no momento da eficácia do negócio, de uma das partes do contrato para outra. VI - São requisitos da cessão da posição contratual: 1. que se trate de um contrato bilateral; 2. que tenha lugar o consentimento do outro contraente–que pode ser dado antes ou depois da cessão (ver art.º 424.º, n.º 2, do CCcivil). VII - Apesar da cessão da posição contratual pode nascer de forma tácita (cf. artigo 217.º do CCivil), desde que se verifiquem factos concludentes que revelem, de forma inequívoca, a intenção de ceder e de aceitar a posição contratual, bem como o consentimento da contraparte original [como por exemplo: a)- O cessionário começa a cumprir as obrigações do contrato como se fosse parte nele; b)- A contraparte aceita e reconhece a substituição sem se opor; c)- O cedente afasta-se da relação contratual e a contraparte passa a tratar o cessionário como o novo titular da posição contratual] ela não ocorre automaticamente por meros factos isolados, mas sim através de um acordo de vontades entre o cedente e o cessionário, com o consentimento da contraparte original. Sem esse acordo e consentimento, não há cessão válida. VIII- Os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Texto Integral
Processo nº 1269/22.5T8AVR.P1-ApelaçãoOrigem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo Central Cível de ...
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr.ª Ana Paula Amorim
2º Adjunto Des. Dr.ª Ana Olívia Loureiro
5ª Secção
Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
AA, residente na Rua ..., ..., ..., intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra: 1º - Massa Insolvente de A..., Unipessoal, Lda.,representada pela Senhora Administradora de Insolvência, com domicílio profissional na Rua ...., ...; 2º - B..., Lda.,com sede na Rua ..., ... pedindo:
a) que se reconheça a validade e a eficácia da resolução contratual declarada pela A. perante a A..., Unipessoal, Lda., reportando-se tal resolução ao contrato de compra e venda celebrado entre a A. e a A..., Unipessoal, Lda., 1ª Ré;
b) a condenação das Rés a pagar à A. a quantia recebida a título de sinal, em dobro, no montante de € 56.970,00, acrescida de juros vencidos desde a citação das Rés e vincendos até efetivo e integral pagamento, bem como de custas;
c) ou, em alternativa, a condenação das Rés a restituírem o valor de € 28.485,00 pago pela A. a título de enriquecimento sem causa.
Articula, para o efeito, que outorgou com a 1ª Ré A..., a 04/05/2018, um “Contrato de Compra e Venda com reserva de propriedade”, através do qual esta Ré lhe vendeu uma casa modular da marca Kitur, identificada na cláusula 8ª do referido contrato, pelo preço de € 94.950,00, que pretendia que fosse colocada no prédio de que é proprietária descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...98/20080227 da freguesia ....
Em 07/05/2018, entregou à 1ª Ré, a título de sinal, a quantia de € 28.485,00.
Ficou estipulado na cláusula 4ª do Contrato que a preparação do terreno-preparação para as fundações, a execução das mesmas em betão necessárias para a fixação da casa modular, o desenvolvimento dos projetos de arquitetura e de especialidades, o acompanhamento do processo de licenciamento junto das entidades competentes até levantamento da licença de construção bem como a obtenção do certificado energético seriam da responsabilidade da 1ª Ré.
Acontece que, nenhuma das RR. deu início a quaisquer trabalhos de preparação do terreno, designadamente, à construção das fundações em betão necessárias para a fixação da casa modular, sendo que a Ré B... era a empresa responsável pela execução da obra e laborava nas instalações da A..., sitas no concelho de Águeda.
Na sequência da conduta de total inércia assumida pela A... e pela B..., deixou de ter interesse na aquisição da casa modular e resolveu o contrato de compra e venda, tendo comunicado tal facto à Ré A... por notificação judicial avulsa.
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A Ré Massa Insolvente de A..., Unipessoal, Lda., na contestação que apresentou, excecionou a sua ilegitimidade por ter sido declarada insolvente, por decisão transitada em julgado à data da propositura da presente ação e impugnou, por desconhecimento, todos os factos articulados na petição inicial.
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A Ré B..., Lda., contestou nos seguintes termos: não participou em quaisquer negociações com vista à celebração do contrato junto com a petição inicial, não outorgou e/ou assumiu qualquer obrigação decorrente do mesmo e também não existiu qualquer cessão de posição contratual.
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A A., na resposta, defendeu que a exceção de ilegitimidade da 1ª Ré não pode proceder por se encontrar pendente, à data da propositura da presente ação, o incidente de qualificação da insolvência.
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A Ré Massa Insolvente de A... Unipessoal, Lda., foi absolvida da instância por falta de personalidade, por despacho proferido a 22/03/2023.
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Tendo o processo corridos os seus regulares termos foi, a final, proferida decisão que, julgando improcedente a ação, absolveu a Ré B..., Lda. do pedido.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso apresentado nada mais, nada menos do que 20 páginas (das 43 que compõem a peça recursiva) de conclusões que são a cópia integral do corpo alegatório e que aqui nos abstemos de reproduzir.[1]
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
No seguimento destas são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir: a)- saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto; b)- decidir em conformidade face ao julgamento da impugnação da matéria de facto, ou não sofrendo alteração a fundamentação factual saber se a sua subsunção jurídica se encontra ou não correta.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1 - A Ré A..., Unipessoal, Lda., teve o NIPC ...97, e teve como objeto: indústria, design e fabrico de estruturas e componentes em aço, madeira e alumínio; fabricação e venda de pré-fabricados, casas modulares e caravanas residenciais; design e fabricação de mobiliário de interior e exterior; construção civil e obras públicas, aluguer e/ou arrendamento e compra e venda de bens imóveis, revenda dos adquiridos para esse fim; mediação imobiliária; construção de piscinas e respetiva mecânica, empreitadas de jardinagem e de manutenção, compra e venda de materiais de construção e mobiliário, terraplanagens e movimentação de terras, construção e reconstrução de moradias e prédios para venda, reparação de edifícios, empreitadas, subempreitadas, execução de projetos de arquitetura e todas as especialidades inerentes, fiscalização de obras, aluguer de máquinas com ou sem condutor, empreitadas de limpeza e de manutenção ligeiras e industriais, empreitadas de serralharias ligeiras e industriais; representação comércio e aluguer de artigos de turismo e de lazer, exploração de turismo rural, hotel, restaurante, bar, animação turística, organização de eventos culturais, artísticos e desportivos; exploração de parques de campismo; compra e venda de veículos automóveis e acessórios, reparação de veículos automóveis; fabrico de sistemas de caixilharia em alumínio, aço e madeira; exploração agrícola e vinícola – fls. 10/12v. (A).
2 - A sociedade A..., Unipessoal, Lda., foi declarada insolvente por sentença proferida, a 06/01/2022, no processo ... do Juízo de Comércio de Lagoa, transitada em julgado a 31/01/2022 – fls. 11 e fls. 86/91 (B).
3 - Neste processo foi proferido, a 24/02/2022, despacho de encerramento do processo de insolvência determinado por insuficiência da massa insolvente, nos termos dos arts. 39.º, nº 7, alínea b), e 232.º, ambos do CIRE, despacho esse que transitou em julgado a 22/03/2022 (fls. 86 e fls. 90) (C).
4 - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...98/20080227 da freguesia ..., o seguinte prédio: urbano, situado na Rua ..., ..., ..., com a área total e descoberta de 308 m2, composto por terreno para construção, a confrontar, do norte, com lote ...20..., do sul, com arruamento, do nascente, com lote ...10, e, do poente, com lote ...08. Inscrito na matriz sob o artigo ...70 – fls. 22v./23 (D).
5 - Este prédio foi inscrito, pela AP. ...0 de 2008/02/27, a favor de BB, casado com AA no regime de comunhão de adquiridos, por divisão de coisa comum – fls. 22v. (E).
6 - A A. e A..., Unipessoal, Lda., outorgaram, a 04/05/2018, “Contrato de Compra e Venda com reserva de propriedade”, junto a fls. 21/21v., do qual constam (além do mais que não interessa reproduzir) as seguintes cláusulas:
1º - a 1ª contraente (A..., Unipessoal, Lda.), no exercício da sua atividade social de fabricação e venda de pré-fabricados, casas modulares, caravanas residenciais e mobil homes, vende à 2ª contraente (a ora A.) uma Casa Modular da marca Kitur, devidamente identificada na cláusula 8ª do presente contrato–cláusulas 1ª e 2ª.
2º - O preço da venda é de € 94.950,00 e será pago da seguinte forma:
a) o valor do sinal é de € 28.485,00 será pago por transferência bancária a 07/05/2018;
b) a quantia de € 28.485,00 será paga no momento em que a 1ª Contraente tiver a estrutura do bem objeto do contrato pronta em fábrica, devendo para o efeito avisar a 2ª Contraente da data exata com pelo menos três dias de antecedência;
c) a quantia remanescente de € 37.980,00 será paga antes da descarga da casa modular e após esta ser conferida pela 2ª Contraente – cláusula 3ª.
3º - São da responsabilidade da 1ª Contraente a preparação do terreno - preparação para as fundações, a execução das mesmas em betão necessárias para a fixação da casa modular, o desenvolvimento dos projetos de arquitetura e de especialidades, o acompanhamento do processo de licenciamento junto das entidades competentes até levantamento da licença de construção bem como a obtenção do certificado energético – cláusula 4ª.
4º - São da responsabilidade da 2ª Contraente a ligação da casa às redes elétricas, de água e de saneamento, o pagamento de todas as taxas junto das entidades oficiais envolvidas no processo de licenciamento e na certificação energética, bem como a licença de utilização, logo que estejam a pagamento. E ainda os itens que tenham de ser revistos neste contrato por imposição do RGEU específico e PDM do Seixal que provoquem custos adicionais – cláusula 4ª.
5º- A Casa Modular vendida será entregue até 90 dias após a obtenção da licença de construção, no lugar da Rua ..., ..., ..., comunicando a 1ª à 2ª Contraente o dia em que ocorrerá a entrega com o mínimo de 5 dias de antecedência – cláusula 5ª.
6º - Em caso de incumprimento do presente contrato por qualquer das partes contraentes, a parte contraente não faltosa poderá, em alternativa:
a) ou resolver o contrato e exigir da parte contraente faltosa a indemnização prevista no art. 442.º, nº 2, do C. Civil;
b) ou requerer a execução específica do contrato, nos termos do art.º 830.º do citado Código;
c) considerar-se-á incumprimento do contrato a falta de cumprimento do presente, ou de quaisquer obrigações nele estipuladas, nos 90 dias posteriores à carta registada denunciando o seu incumprimento, a parte em causa não puser termo à sua falta de cumprimento–cláusula 7ª (F).
7 - A A. pretendia que a casa modular da marca Kitur identificada em 6 dos Factos Provados fosse colocada no prédio identificado em 4 dos Factos Provados (G).
8 - A A. requereu a notificação judicial avulsa de A..., Unipessoal, Lda., a fim de lhe ser dado conhecimento de que: 1º - a requerente considera resolvido o contrato de compra e venda celebrado a 04/05/2018, referente à venda de uma casa modular da marca Kitur, conforme melhor identificada no aludido contrato; 2º - a requerente/compradora considera que perdeu, definitivamente, o interesse na prestação devida e, consequentemente, resolvido definitivamente o contrato se a requerida/vendedora não puser fim ao seu incumprimento nos 90 dias a contar da receção desta interpelação; 3º-decorrido este prazo, a requerente/compradora exigirá da parte faltosa, a requerida/vendedora, a devolução do sinal (€ 28.485,00) em dobro (€ 56.970,00)– fls. 33/40 (H).
9 - A Senhora Oficial de Justiça lavrou certidão negativa, informando que: a) se tinha deslocado ao local onde se situava e encontrava instalada a A..., Unipessoal, Lda., e não tinha logrado localizar a mesma, tendo apurado que a A..., Unipessoal, Lda., se havia deslocado para o Norte, há já bastantes meses; b) no âmbito das suas funções profissionais tinha recebido naquele dia para afixar um Edital, nessa mesma morada e para a mesma Requerida, de um processo de Insolvência vindo do Juízo de Comércio de Lagoa, com o nº ...–fls. 39v. (I).
10 - Após vários contactos estabelecidos, entre a A. e o Sr. CC, que se apresentou como diretor comercial a exercer funções no Departamento Comercial/Gestor de projetos de A..., Unipessoal, Lda., foi por aquele, em representação desta, enviado à A., em 27 de março de 2018, uma proposta respeitante à planta idealizada, ficha técnica, garantia e fotos da casa modular da marca Kitur proposta.
11 - A A. entregou a A..., Unipessoal, Lda., a título de sinal, a quantia de € 28.485,00, por transferência bancária, para a conta indicada pela A..., Unipessoal, Lda., com o IBAN ...89 (fls. 22).
12 - Para o pedido de licenciamento de obras, junto da Câmara Municipal do Seixal, foi pelo marido da A. mandatado, a 15/12/2020, o Arquiteto DD (fls. 23v.).
13 - Este técnico foi indicado pela A..., Unipessoal, Lda., à A. e, referenciado por aquela como sendo o arquiteto responsável pelos projetos da A... enquanto representante da marca Kitur.
14 - O arquiteto DD foi, sempre, na qualidade de técnico da A..., desde a primeira hora, o interlocutor com a Divisão Administrativa de Urbanismo da Câmara Municipal do Seixal e, igualmente, com a A..
15 - A A. pagou na Câmara Municipal do Seixal as competentes taxas, no valor de € 780,27, e transferiu para a conta da referida Câmara Municipal o valor de € 981,15 pedido a título de caução respeitante à operação urbanística de obra de edificação em causa, e remeteu os respetivos comprovativos ao arquiteto DD, como solicitado por este.
16 - A competente e obrigatória “Comunicação Prévia” foi solicitada em tempo na Câmara Municipal do Seixal, à qual foi atribuído o número ...6/2021 e, consequentemente, foi admitida pelos serviços camarários por despacho número ...06/VMJM de 17/06/2021, válida por 12 meses, com início em 25/06/2021.
17 - No Livro de Obras Particulares licenciadas ou objeto de comunicação prévia n.º ...6/2021 (Processo de Obras n.º ...1/R/03, emitido pela Câmara Municipal do Seixal), a empresa responsável pela execução da obra é a Ré B..., Lda., titular do Alvará n.º ...50 e como Diretor de Obra consta EE, técnico responsável inscrito com o n.º ...18.
18 - Nem a A... nem a B... deram início a quaisquer trabalhos de preparação do terreno, designadamente, à construção das fundações em betão necessárias para a fixação da casa modular.
19 - A Ré B... era a empresa responsável, perante a Câmara Municipal do Seixal, pela execução da obra.
20 – A Ré B... passou a laborar, a partir de início de setembro de 2020, nas instalações da A..., sitas no concelho de Águeda.
21 - O Sr. CC (funcionário da A... até finais de agosto de 2020 e funcionário da B... a partir de então) deixou de responder aos contactos da A..
22 - Contactado o arquiteto DD (funcionário da A... até funcionário da A... até agosto de 2020 e funcionário da Ré B... entre setembro de 2020 e maio de 2023) acerca do ponto de situação e desenvolvimento do processo de licenciamento da casa da A., este dizia que o processo ou estava dependente da assinatura do responsável do alvará, ou dos documentos do diretor de fiscalização, todos eles técnicos da Ré B....
23 - Em junho de 2021 o arquiteto DD, em conversa telefónica com a A., diz-lhe que quem vai construir a casa modular é a Ré B..., que não se preocupasse com o nome pois as duas empresas “eram o mesmo”, a casa ia ser feita na mesma.
24 – A casa, porém, nunca foi construída.
25 - A A. insistia nos contactos, pediam-lhe para aguardar contacto, que nunca acontecia.
26 - Em setembro de 2021, o Sr. CC atendeu o telefone e disse à A. que já não era nada com ele, mas sim com o FF, o “dono” da A....
27 - Na sequência da conduta de total inércia assumida pela A... e pela B..., a A. deixou de ter interesse na aquisição da casa modular.
28 - A A. reclamou, nos autos de Insolvência de pessoa coletiva nº ..., o seu crédito de € 56.970,00, a título de capital, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor até integral pagamento, mas recebeu a informação da Senhora Administradora de que a insolvência tinha sido declarada com caráter limitado e que o processo de insolvência se encontrava encerrado.
29 - Em meados de 2020, a A... estava com dificuldades financeiras.
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Factos não provados
Não se provou que:
a) a B... tenha assumido perante a A. e a A... a vinculação de ter de cumprir perante a A. as obrigações decorrentes da celebração do contrato identificado em 6 dos Factos Provados;
b) tenha existido qualquer cessão da posição contratual;
c) em meados de 2020, o legal representante da A..., Sr. FF, solicitou ao representante da B... ajuda para construir as casas que tinha contratualmente assumido;
d) em face desse pedido, a referida A... e a B... estabeleceram uma parceria, na construção de casas móveis, ficando o representante da A... de “prestar contas” das casas que ia acabando para dividir com a contestante, o lucro dessas apurações;
e) essas contas não foram prestadas, e a B... chegou à conclusão que, a parceria que tinha com a A... só lhe trazia prejuízos;
f) até que, em agosto de 2021, a parceria acabou;
g) após o fim da parceria, o Sr. FF levou consigo toda a documentação que tinha sobre as casas e comunicou à B... que iria ser a A... a concluir todas as obras.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em: a)-saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões a Autora/apelante impugna a decisão da matéria de facto, alegando que o tribunal recorrido julgou incorretamente as alíneas a) a d) da resenha dos factos não provados.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Autora/apelante, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
As alíneas a) a d) têm respetivamente a seguinte redação: “a) a B... tenha assumido perante a A. e a A... a vinculação de ter de cumprir perante a A. as obrigações decorrentes da celebração do contrato identificado em 6 dos Factos Provados; b) tenha existido qualquer cessão da posição contratual; c) em meados de 2020, o legal representante da A..., Sr. FF, solicitou ao representante da B... ajuda para construir as casas que tinha contratualmente assumido; d) em face desse pedido, a referida A... e a B... estabeleceram uma parceria, na construção de casas móveis, ficando o representante da A... de “prestar contas” das casas que ia acabando para dividir com a contestante, o lucro dessas apurações”.
Na motivação da decisão da matéria de facto o tribunal recorrido e sobre a as referidas alíneas da resenha dos factos não provados, discorreu do seguinte modo: “Nº 19 dos Factos Provados e alíneas a) e b) dos Factos Não Provados: a A. e a testemunha BB, nos respetivos declarações e depoimento, disseram, apenas, que quando a A. recebeu o livro de obras apercebeu-se que a empresa que do mesmo constava como sendo a responsável pela execução da obra era a ora Ré B.... O arquiteto DD, inquirido sobre tal facto, disse à A. que que não se preocupasse com o nome, que as empresas A... e a B... eram a mesma coisa. Tanto as declarações da A. como o depoimento da testemunha BB nos pareceram credíveis. Mas, não foi apresentada qualquer prova de a Ré B... se ter vinculado a cumprir perante a A. as obrigações decorrentes da celebração do contrato identificado em 6 dos Factos Provados, nem de ter existido uma cessão de posição contratual entre a A... e a B.... (…) Alíneas c) a g) dos Factos Não Provados: a testemunha GG disse que havia uma “parceria” e que o Sr. CC injetava dinheiro na empresa todos os meses desde que começaram a parceria, mas não soube explicar que “parceria” era essa, nem se percebe qual seja. Conforme reconheceu esta testemunha a B... começou a laborar nas instalações que eram aquelas onde laborava a A... e os funcionários desta passaram a ser funcionários da B.... Por sua vez, o FF, sócio-gerente da A..., celebrou um contrato de trabalho com a B... e passou a gerir esta empresa. A B... ficou responsável pela marca Kitur desde setembro de 2020. Assim sendo, não se percebe que “pareceria” poderia existir”.
Importa, desde logo, dizer que as als.) a) e b) supratranscritas não contém qualquer realidade factual, sendo meramente conclusivas.
Com efeito elas expressam uma interpretação jurídica sobre a assunção de obrigações pela Ré B..., Lda. perante a Autora, ou seja, em vez de simplesmente descrever fatos de forma objetiva, a frase já contém uma conclusão sobre a vinculação jurídica da B... às obrigações do contrato mencionado, antecipando uma apreciação ou juízo de valor que caberia ao tribunal realizarpartir de factos objetivos que tivessem sido alegados e provados, dito de outro modo, o uso da expressão "assumido a vinculação de ter de cumprir" implica um juízo sobre a obrigação decorrente do contrato, o que vai além da simples exposição de um facto.
Conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada.
Dito de outro modo, só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova.[5]
Segundo elucida Anselmo de Castro[6] “são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, depois acrescentando que “só, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objeto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”.
Ora, no caso em apreço como já acima se referiu o citado ponto envolve uma conclusão que teria de ser retirada de outra materialidade alegado no sentido exposto.
O artigo 607.º, nº 4 do CPCivil[7] dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.
Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência“[8].
Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito“[9].
Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.
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Como assim, nunca os referidos pontos poderiam constar do elenco dos factos provados, devendo, aliás, ser excluídos da resenhas dos factos não provados, por integrar o thema decidendum (verificação de uma eventual cessão de posição contratual) entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão.[10]
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Aliás, ainda que assim não fosse, a apelante, em retas contas, limita-se a dizer que a Ré B..., Lda. tinha conhecimento do contrato em causa.
Ora, uma coisa é ter conhecimento do contrato outra, completamente distinta, é ter assumido as obrigações decorrente desse contrato.
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Analisemos agora as alíneas c) e d) da resenha dos factos não provados.
Como será objeto de análise mais detalhada, a matéria factual das citadas alíneas não tem qualquer relevância em termos de solução jurídica do pleito.
Com efeito, ainda que tivesse sido estabelecida qualquer parceria entre ambas as sociedades para a construção das casas que a sociedade A..., Unipessoal, Lda. contratualmente tinha assumido, isso não em nada contenderia com os contratos de compra e venda das casas modulares celebrados por esta sociedade com terceiros, o cumprimentos desses contratos continuava a ser da responsabilidade da A..., Unipessoal, Lda. e não da Ré B..., Lda.ª, ou seja, a eventual parceria funcionaria apenas nas relações internas entre e A..., Unipessoal, Lda. tivesse entabulados com terceiros, ou seja, de tal matéria não se retira que tenha existido qualquer cessão da posição contratual em relação ao contrato identificado em 6º) dos factos provados, fundamento em que a apelante estriba a demanda em relação à Ré B..., Lda..
Desta forma, atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
Como refere Abrantes Geraldes,[11] “De acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objeto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) n) Abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
Bem pode dizer-se, pois, que a impugnação da decisão sobre matéria de facto, neste conspecto, é mera manifestação de “inconsequente inconformismo”[12], razão pela qual nos abstemos de a reapreciar relativamente às alíneas em questão.[13]
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Improcedem, assim, as conclusões 1ª 6ª e 8ª a 39ª formuladas pela apelante. *
A segunda questão que vem posta no recurso prende-se com: c) saber se a subsunção jurídica da factualidade que o tribunal recorrido deu como assente se encontra ou não corretamente efetuada.
Ora, permanecendo inalterada a fundamentação factual nada temos a censurar a subsunção jurídica que dela fez o tribunal recorrido.
Alega a apelante na sua conclusão 7ª que a matéria de facto dada como provada nos autos, bem como os documentos juntos aos mesmos, só por si, implicavam, necessariamente, decisão diversa da recorrida.
Importa sopesar que o que releva para efeitos de aplicação do direito é, efetivamente, apenas a factualidade que consta da respetiva fundamentação e não qualquer outra.
Isto dito, vem provado nos autos que Autora/apelante e A..., Unipessoal, Lda., outorgaram, a 04/05/2018, “Contrato de Compra e Venda com reserva de propriedade”, junto a fls. 21/21v., do qual constam (além do mais que não interessa reproduzir) as seguintes cláusulas:
1º - a 1ª contraente (A..., Unipessoal, Lda.), no exercício da sua atividade social de fabricação e venda de pré-fabricados, casas modulares, caravanas residenciais e mobil homes, vende à 2ª contraente (a ora A.) uma Casa Modular da marca Kitur, devidamente identificada na cláusula 8ª do presente contrato – cláusulas 1ª e 2ª.
2º - O preço da venda é de € 94.950,00 e será pago da seguinte forma:
a) o valor do sinal é de € 28.485,00 será pago por transferência bancária a 07/05/2018;
b) a quantia de € 28.485,00 será paga no momento em que a 1ª Contraente tiver a estrutura do bem objeto do contrato pronta em fábrica, devendo para o efeito avisar a 2ª Contraente da data exata com pelo menos três dias de antecedência;
c) a quantia remanescente de € 37.980,00 será paga antes da descarga da casa modular e após esta ser conferida pela 2ª Contraente–cláusula 3ª.
Daqui resulta, sem margem para qualquer tergiversação, que partes no citado contrato de compra e venda (cf. artigo 874.º e ss. do CCivil) foram a Autora e a sociedade A..., Unipessoal, Lda.
Portanto, era na esfera jurídica quer da Autora/apelante quer A..., Unipessoal, Lda. que os direitos e obrigações decorrentes dessa relação contratual se repercutiam.
O princípio da relatividade dos contratos, consagrado no artigo 406.º, n.º 2 do Código Civil Português, estabelece que os contratos só produzem efeitos entre as partes que os celebraram, salvo disposição legal em contrário.
Isso significa que um terceiro não pode ser obrigado por um contrato que não assinou nem, em regra, pode dele beneficiar ou ser prejudicado.
Como assim, o contrato celebrado entre a Autora e a sociedade A..., Unipessoal, Lda. é “res inter alios acta” em relação à Ré B..., Lda.
Ainda assim, não obstante o referido princípio geral, há situações em que um contrato pode afetar terceiros, como por exemplo: Estipulação a favor de terceiro (artigo 443.º do Código Civil)–Quando as partes convencionam expressamente que um terceiro pode beneficiar do contrato. Cessão de posição contratual (artigo 424.º do Código Civil)–Quando uma das partes transmite a sua posição contratual a um terceiro, com o consentimento da outra parte. Sub-rogação legal ou convencional (artigos 592.º e 593.º do Código Civil)–Quando um terceiro assume os direitos e obrigações de uma das partes.
A cessão da posição contratual que a Autora/apelante invoca para fundamentar a responsabilidade da Ré B..., Lda., regulada nos arts. 424.º e ss. do CCivil, constitui, nas palavras de Mota Pinto[14], “o meio dirigido à circulação da relação contratual, i. é, à transferência ‘ex negotio’ por uma das partes contratuais (cedente), com consentimento do outro contraente (cessionário), do complexo de posições activas e passivas criadas por um contrato”.
É a faculdade concedida a qualquer dos contraentes-cedente-, em contratos com prestações recíprocas, de transmitir a um terceiro-cessionário-a sua inteira posição contratual, isto é, o complexo unitário constituído pelos créditos e dívidas que para ele resultaram do contrato, desde que o outro contraente- o cedido- consinta na transmissão (art.º 424º do CCivil.[15]
Existe, pois, por um lado, “o contrato de cessão da posição jurídica de certo contraente, o contrato que opera a transmissão dessa posição, que é o instrumento dela; e há, por outro, o contrato (básico) donde nasceu a posição (complexo de direitos e deveres) que um dos contraentes (cedente) transmite a terceiro”.[16]
O efeito típico principal da cessão do contrato, caracterizador da sua função económico-social, é a transferência da posição contratual, no estádio de desenvolvimento em que se encontrava no momento da eficácia do negócio, de uma das partes do contrato para outra.
Verifica-se a extinção subjetiva da relação contratual, quanto ao cedente, sendo a mesma relação adquirida pelo cessionário e permanecendo idêntica, apesar desta modificação de sujeitos. O cedente perde os créditos em relação ao cedido, fica liberado das suas obrigações em face dele, igualmente se passando as coisas quanto aos demais vínculos inseridos na relação contratual. Todas essas situações subjetivas, ativas e passivas, cujo complexo unitário, dinâmico e funcional, constitui a chamada relação contratual, passam a figurar na titularidade do cessionário.[17]
Na cessão, além das vontades dos intervenientes diretos na transmissão, exige-se o consentimento do contraente cedido, que tanto pode ser prestado antes como depois da celebração do contrato de cessão.[18]
Sem esse consentimento, o negócio não adquire plena eficácia[19].
Se o consentimento for prestado antes, para que a cessão produza efeitos, torna-se necessário que seja levada ao conhecimento do cedido (por meio de notificação, que é uma simples declaração unilateral, embora recetícia) ou que ele a reconheça (expressa ou tacitamente)-art.º 424.º, nº 2 do C.Civil.
A cessão da posição contratual implica, nos termos referidos, a existência de dois contratos: o contrato-base e o contrato-instrumento da cessão, que é o realizado para transmissão de uma das posições derivadas do contrato-base.
Este contrato que serve de instrumento à transmissão da posição contratual nem sempre é do mesmo tipo, podendo revestir a fisionomia de uma compra e venda, doação, dação em pagamento ou outro contrato oneroso inominado. Diz-se, por isso, que é um negócio policausal, um contrato de causa variável; não é um negócio abstrato.[20]
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Postos estes breves considerandos, importa sopesar que a cessão da posição contratual não ocorre automaticamente por meros factos isolados, mas sim através de um acordo de vontades entre o cedente e o cessionário, com o consentimento da contraparte original. Sem esse acordo e consentimento, não há cessão válida.
Ora, do quadro factual que dimana dos autos não tem respaldo esse acordo de vontades para que se possa dizer que entre as partes ocorreu a cessão na posição contratual do contrato de compra e venda a que se refere o ponto 6º-) dos factos provados.
O que vem provado são factos isolados (cf. pontos 17., e 18. a 20. do elenco dos factos provados) que não exprimem, por nenhuma forma, o devir dessa relação negocial.
Evidentemente que não se põe em causa que o contrato de cessão da posição contratual pode nascer de forma tácita (cf. artigo 217.º do CCivil), desde que se verifiquem factos concludentes que revelem, de forma inequívoca, a intenção de ceder e de aceitar a posição contratual, bem como o consentimento da contraparte original.
Efetivamente, uma cessão tácita pode ocorrer, por exemplo, quando: a)- O cessionário começa a cumprir as obrigações do contrato como se fosse parte nele; b)- A contraparte aceita e reconhece a substituição sem se opor; c)- O cedente afasta-se da relação contratual e a contraparte passa a tratar o cessionário como o novo titular da posição contratual.
Ora, no elenco dos factos provados e, concretamente dos suprarreferidos, neles não se colhe qualquer dos citados comportamentos.
Desde logo porque a Ré B..., Lda. (eventual cessionária) não cumpriu qualquer das obrigações do contrato de compra e venda celebrado entre a Autora/apelante e sociedade A..., Unipessoal, Lda., pois que, vem provado, nem esta nem em a B..., Lda. deram início a quaisquer trabalhos de preparação do terreno, designadamente, à construção das fundações em betão necessárias para a fixação da casa modular, nem a mesma foi construída-fases em que se decompunha o cumprimento do contrato- (cf. pontos 18. e 24. dos factos provados).
Para além disso, nenhum facto se encontra provado nos autos que revele que a Autora/apelante tenha aceitado e reconhecido qualquer substituição na relação contratual, e que tenha passado a tratar a B..., Lda. como o novo titular da posição contratual, nem que a sociedade A..., Unipessoal, Lda. se tenha afastado da relação contratual.
Aliás, o que provado é que a Autora/apelante sempre estabeleceu os seus contactos, após a celebração do contrato, com a sociedade A..., Unipessoal, Lda. e, concretamente, através dos seus funcionários, arquiteto DD e o Sr. CC, que se apresentou àquela como diretor comercial a exercer funções no Departamento Comercial/Gestor de Projetos da sociedade em causa e para quem (sociedade) a apelante transferiu, a título de sinal, a quantia de € 28.485,00 (cf. pontos 10. a 14., 21. E 26. dos factos provados).
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E contra isso não se argumente que no Livro de Obras Particulares licenciadas ou objeto de comunicação prévia n.º ...6/2021 (Processo de Obras n.º ...1/R/03, emitido pela Câmara Municipal do Seixal), a empresa responsável pela execução da obra é a Ré B..., Lda., titular do Alvará n.º ...50 e como Diretor de Obra consta EE, técnico responsável inscrito ... (cf. ponto 17 dos factos provados).
Como já noutro passo se referiu a relação negocial (contrato de compra e venda) estabelecida entre a apelante e a sociedade decompunha-se de duas fases a saber: a)-construção da casa modelar[21]; b)- a preparação para as fundações, a execução das mesmas em betão necessárias para a fixação da casa modular, o desenvolvimento dos projectos de arquitetura e de especialidades, o acompanhamento do processo de licenciamento junto das entidades competentes até levantamento da licença de construção bem como a obtenção do certificado energético.
Como assim, ainda que no Livro de Obras Particulares licenciadas ou objeto de comunicação prévia n.º ...6/2021 constasse que a empresa responsável pela execução da obra era Ré B..., Lda., ou seja, pela execução constante da al. b) suprarreferida daí não se segue que isso representasse ou pudesse sugerir uma eventual cessão da posição contratual.
Na verdade, isso, não exclui a hipótese de que a sociedade A..., Unipessoal, Lda. tivesse subcontratado, ou solicitado por qualquer outra forma negocial, com a referida Ré a execução dessa fase e, portanto, relação contratual (qualquer que tenha sido a forma adotada para o efeito) que nada tem que ver com uma eventual cessão da posição contratual no contrato originário, celebrado entre a apelante e a sociedade A..., Unipessoal, Lda..
Da mesma forma e como noutro já se referiu ainda que as alíneas c) e d) da resenha dos factos não provados constassem da fundamentação factual, se poderia concluir pela referida cessão da posição contratual.
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Vem depois a apelante alegar (cf. conclusão 53ª) que mesmo que assim não se entendesse, isto é, que não estávamos perante uma cessão de posição contratual, ao menos deveria o tribunal a quo ter sido considerado que estávamos perante uma promessa de exoneração de dívida, prevista no n.º 3 do artigo 444.º do Código Civil.
Acontece que, como supra se consignou, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”-artigo 608.º, nº 2 do CPCivil.
A problemática prende-se com a delimitação do objeto do recurso, ou seja, com os poderes do Tribunal da Relação na apreciação dos recursos de apelação.
Conforme sinteticamente refere Castro Mendes[22], em relação ao objeto do recurso, duas soluções são possíveis.
Primeira: entender-se que o “Objecto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.”
Segunda: defender-se que o “Objecto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ser proferida.”
A primeira hipótese remete para um sistema de reexame, que permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidenda pelo tribunal a quo, isto é, permite um novo julgamento, eventualmente com recurso a factos novos e novas provas; enquanto o segundo caracteriza um sistema de revisão ou de reponderação, o qual apenas possibilita o controlo da sentença recorrida, ou seja, apenas permite aferir se a decisão é justa ou injusta, considerando os dados fácticos e a lei aplicável, tal como o juiz da 1.ª instância possuía no momento em que proferiu a decisão.
Apesar de não existirem sistemas absolutamente “puros”, ou seja, que apenas apliquem um ou outro sistema “tout court”, a doutrina e a jurisprudência portuguesa têm entendido que “O direito português segue o modelo do recuso de revisão ou ponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseados nos factos alegados e nas provas produzidas perante este.”[23]
Por via disso, repetidamente os tribunais superiores têm afirmado que os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Por esse motivo, se entende que não é lícito invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido.
Esta regra decorre, designadamente, dos artigos 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5 do CPC, apenas excecionada quando a lei expressamente determine o contrário[24] ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso.[25]
A questão reside, pois, em saber o que se entende por questões de facto ou direito já submetidas à apreciação do tribunal recorrido.
É comum mencionar-se a este respeito que “questões” não são argumentos, raciocínios jurídicos ou juízos de valor expostos na defesa das teses controvertidas em litígio, reservando-se tal menção apenas para os fundamentos fáctico-jurídicos em que as partes assentaram as suas pretensões, ou seja, para as questões que na perspectiva substantiva apresentam pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Em relação à parte ativa, atender-se-á à causa de pedir e pedido e em relação à parte passiva, às exceções deduzidas.
É este, aliás, o raciocínio que subjaz à nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPCivil quando prescreve a obrigatoriedade do juiz se pronunciar sobre as questões colocadas à sua apreciação.
Tentando, agora, aplicar estes considerandos ao caso presente, verifica-se que a Autora/apelante nunca aduziu tal questão, sendo que, se trata de questão na perspetiva substantiva apresenta pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Estamos, assim, perante argumentação nova que nunca tinha sido defendida pela apelante, o que coloca o tribunal ad quem perante um novo julgamento, na medida em que este, na reponderação que iria fazer da decisão proferida, não se encontra em situação idêntica àquela em que se encontrou o juiz da 1.ª instância, sendo certo que se trata de questão que não é de conhecimento oficioso.
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Aliás, mesmo que assim não fosse, não se divisa como o quadro factual provados nos autos podia integrar a factie species do artigo 444.º, nº 3 do CCivil, prevista no capítulo dos contratos a favor de terceiro.
Na verdade, como retirar dessa fundamentação que a Ré B..., Lda. se comprometeu perante a A..., Unipessoal, Lda. a desonerá-la da obrigação de construir a casa modular para a apelante, cumprindo tal obrigação no seu lugar?
Como retirar do ponto 17.) dos factos provados a assunção dessa obrigação?
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Improcedem, assim, todas as restantes conclusões formuladas pela apelante e, com elas, o respetivo recurso.
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IV-DECISÃO Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela Ré apelante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 10 de março de 2025
Dr. Manuel Fernandes
Dr.ª Ana Paula Amorim
Dr.ª Ana Olívia Loureiro
__________________________ [1] Como ensina o Conselheiro Amâncio Ferreira in Manual dos Recursos em Processo Civil”, 7ª Ed., págs. 172 e 173 “Expostas pelo recorrente, no corpo da alegação, as razões de facto e de direito da sua discordância com a decisão impugnada, deve ele, face à sua vinculação ao ónus de formular conclusões, terminar a sua minuta pela indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão”. Ou como diz Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 359, “As conclusões são “proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação”. Ora, nada disso fez o recorrente, que se limitou a reproduzir nas conclusões, excetuadas alterações pontuais, o corpo alegatório devidamente numerado. Aliás, diga-se, só não se rejeita o recurso porque o STJ vem entendendo, ao contrário do que defendemos, que isso não é motivo para tal. [2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348. [3] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt. [5] Cfr. Acórdãos de 23.9.2009, Proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1, Bravo Serra; e, mais recentemente, reiterando igual entendimento jurisprudencial: de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Pinto Hespanhol; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Sampaio Gomes; de 29/04/2015, Proc.º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Fernandes da Silva; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Fernandes da Silva; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, Pinto Hespanhol; todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj. [6]In Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269. [7] No que diz respeito aos factos conclusivos cumpre observar que na elaboração do acórdão deve observar-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º CPCivil aplicáveis ex vi artigo 663.º, nº 2 do mesmo diploma legal.
[8] José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui pinto Código de Processo Civil–Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 606.
[9] Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda. 1985, pág. 648. [10] Cf., entre outros, Ac. STJ de 28-01-2016, Proc. nº 1715/12.6TTPRT.P1.S1, António Leones Dantas, in www.dgsi.pt. [11] In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e atualizada pág. 297. [12] A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”; Almedina, 5.ª edição, 169. [13] Importa lembrar que no preâmbulo do Dec. Lei n.º 39/95, de 15 de fevereiro (pelo qual foi introduzido o segundo grau de jurisdição em matéria de facto) o legislador fez constar que um dos objetivos propostos era “facultar às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reação contra eventuais (…) erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito (…)” (negrito e sublinhados nossos). [14] In Cessão da Posição Contratual, reimpressão, Coimbra, 1982, pp. 71-72. [15] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª ed., p. 578. [16] Antunes Varela, Ob. Cit., 393. [17] Cf. Mota Pinto, obra citada pág. 450. [18] Discute-se se esse consentimento é elemento integrante do negócio–o acordo entre o cedente e o cessionário dá origem a um negócio in itinere, cujo aperfeiçoamento–não apenas a sua eficácia–é subordinado ao consenso do outro contraente, sendo este, portanto, um elemento constitutivo de um contrato plurilateral (cf. Mota Pinto, ob. cit., pp. 194 e 195); ou se o consentimento é apenas um elemento exterior, posterior à plena formação do contrato–admitindo-se que o consentimento possa ser dado depois da celebração do contrato, pode concluir-se que o legislador considera o contrato de cessão constituído, mesmo que ainda falte o consentimento do contraente cedido (Carvalho Fernandes, A Conversão dos Negócios Jurídicos, 870, 871; cf. também Antunes Varela, ob. cit., 400; Ribeiro Faria, Direito das Obrigações, Vol. II, pág. 647). [19] Antunes Varela, Ibidem; Mota Pinto, ob. cit., pág. 477. [20] Antunes Varela, ob. cit., pp. 394 e 395. [21] Aliás, o que foi objeto de venda foi uma Casa Modular de marca Kitur (cf. ponto 6. dos factos provados). [22] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, pág. 24. Veja-se, também, Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, AAFDL, 1982, pág. 172 e Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º. Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, pág. 7-8. [23] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, 8.ª edição, pág. 147. [24] Veja-se, assim, o disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPCivil que permite a supressão de um grau de jurisdição, desde que verificados os pressupostos ali mencionados. [25] Conforme se alude expressamente na parte final do n.º 2 do artigo 608.º do CPCivil.