AÇÃO DE ALIMENTOS
DÍVIDA DE ALIMENTOS
JUROS
Sumário

I - De acordo com o disposto no art. 2006.º CC, os alimentos são devidos desde a proposição da ação. A ação considera-se proposta quando a petição inicial seja recebida na secretaria – art. 259.º CPC. Em caso de alimentos a menores, são os mesmos devidos desde que foi proposta a ação de alimentos, retroagindo o dever de os prestar fixado em sentença final (não obstante terem existido alimentos provisoriamente fixados) ao momento inicial em que foi pedida a fixação daqueles.
II - Todavia, pedindo a exequente apenas os juros contados desde a sentença condenatória, serão apenas estes que contabilizarão.

Texto Integral

Processo: 6712/23.3T8MAI-A.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AA, com domicílio em ..., França, intentou execução especial por alimentos, a 21/12/2023, para pagamento de quantia certa, com base em sentença condenatória, contra BB, residente na Rua ..., em ..., tendo em vista a cobrança da quantia exequenda de € 9.300,00, a título de capital, € 1.000,83, por juros de mora, desde o trânsito em julgado da decisão, e € 25,00 por taxa de justiça, respeitante a alimentos devidos e não pagos ao filho de ambos, CC[1].

Na sequência da penhora de depósitos bancários e subsequente citação, veio o executado, por apenso, deduzir embargos à execução, invocando, para o efeito e em síntese:
A exequente contabilizou pensão de alimentos, à razão de € 150,00/mês, desde 2015, quando o valor em dívida é, de acordo com a decisão condenatória, desde 2018, até aos 18 anos do filho de ambos (em 2018), o que equivale a vinte e oito prestações, que ascendem a € 4.200,00, devendo os juros moratórios serem contabilizados sobre tal quantia, sendo que a exequente, ao contrário do decidido, nunca facultou ao executado o seu IBAN para que este efetuasse o pagamento.

A embargada apresentou contestação, dizendo que a obrigação de alimentos é devida desde 30.8.2015 e que tal obrigação respeita não apenas ao filho CC, mas igualmente à filha DD (ou DD). A decisão executiva, datada de 2021, abranger também os alimentos devidos e fixados no processo relativo a responsabilidades parentais, cuja interposição remonta a 30.8.2021, tendo aí sido fixados alimentos de € 200,00, por mês para ambas as crianças. De modo que, à data da instauração da ação executiva eram devidos alimentos de € 8.600,00 (valor que deve ser considerado ao invés do constante do requerimento executivo), correspondentes a € 900,00 (para a filha DD, cuja maioridade foi atingida a 2.4.2016) e € 3.600,00 (para o filho CC, contados da data já mencionada, até meados de 2018) e mais € 4.200,00, desde 18.6.2018, à razão de € 150,00/mês. Os juros sobre a quantia devida à filha DD contabilizam-se desde a sua maioridade, até à propositura da ação executiva, pelo que os juros deverão ser corrigidos para € 1.885,94. Impugna o demais constante da petição de embargos.

Veio a ser proferido saneador-sentença, datado de 23.9.2024, julgando improcedentes os embargos e ordenando à exequente que juntasse, à ação executiva, requerimento retificando a quantia exequenda, o que esta fez por requerimento apresentado na execução, a 1.10.2024.

Pelo embargante foi apresentado recurso, pugnando este pela sua absolvição do pedido executivo, com base nos argumentos que assim sintetizou em conclusões:
I. O saneador/sentença proferido no presente processo, considerou factos assentes, que não o eram, e por via disso, não foi feita uma ponderação e um julgamento adequado.
II. A matéria de facto e de direito julgada no processo 3291/18.1T8MTS-A e decidida por sentença em Fevereiro de 2021, transitou em julgado.
III. A sentença que julgou improcedentes os embargos, por violar o que foi decidido em 2021, violou o princípio do trânsito em julgado.
IV. Foi assim violado o princípio do trânsito em julgado previsto no Artigo 628º C. P. Civil.
V. Foi igualmente violado o princípio da exceção do não cumprimento previsto no Artigo 428º do Código Civil, princípio esse que facultava ao recorrente a possibilidade de não proceder ao pagamento da pensão de alimentos em face da total ausência do cumprimento da obrigação por parte da mãe dos menores em facultar o IBAN ou qualquer outro meio de prova.
VI. Foi igualmente violado o disposto no Artigo 615, n.º 1, al. c) C.P.Civil padecendo a sentença de nulidade por força da inexistência de qualquer fundamentação jurídica nessa mesma decisão.

Não foram apresentadas contra-alegações.

OBJECTO DO RECURSO:

- Da nulidade da sentença, prevista no art. 615.º/1 c) CPC;

- Da pretensa impugnação da decisão de facto;

- Da violação do caso julgado;

- Da exceção de não cumprimento.

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FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentos de facto

Em primeira instância foram dados como provados os seguintes factos:

a) DD nasceu no dia ../../1998 e é filha de BB e de AA;
b) CC nasceu no dia ../../2002 e é filho de BB e de AA;
c) Os requeridos foram casados entre si e estão separados desde 2013, data em que a requerida se ausentou para França com a DD e o CC;
d) Em 30/08/2015, foi instaurado o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais com o n.º 4071/15.7T8MTS;
e) No dia 6 de setembro de 2017, foi aí proferida decisão que regulou provisoriamente o exercício das responsabilidades parentais relativas ao CC, fixando-se a residência do jovem junto da progenitora, um regime de convívio com o progenitor, ficando ainda o progenitor obrigado ao pagamento da quantia de 100,00€ a título de alimentos devidos aos seus filhos, quantia essa a atualizar, anualmente, a partir de janeiro de 2018, pelo montante de 1,00€[2];
f) O processo foi então apensado a ação de divórcio, passando a correr termos com o n.º 3294/18.1T8MTS-A;
g) Por sentença ali proferida em 24/02/2021, foi o aqui embargante condenado no pagamento da quantia mensal de 150,00€ (cento e cinquenta euros), a título de alimentos devidos ao filho, que pagará desde a data da interposição da presente ação e até ao mês de outubro de 2020, através de transferência bancária para o IBAN que a mãe lhe fornecer ou através de qualquer outro meio idóneo de pagamento[3].
Para além disso, está ainda demonstrado, por ter sido afirmado no requerimento executivo, sem impugnação do embargante, resultando ainda de documento autêntico junto aos autos:
h) a sentença condenatória referida em g) transitou em julgado em 20/4/2021.

Da nulidade da sentença:

Considera o recorrente ser nula a decisão recorrida, invocando o disposto no art. 615.º/1 c) do CPC – dispositivo que considera viciada a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a oposição ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne e decisão ininteligível – argumentando que a mesma padece de fundamentação de direito.

O vício em causa respeita à estrutura da sentença quando exista violação do silogismo judiciário, impondo os factos uma diferente apreciação jurídica, ou sendo a decisão incompreensível por suscitar dúvida ou incerteza ou se revelar pouco clara.

Sendo assim, não se verifica a nulidade que é feita derivar da dita al. c).

À falta de fundamentação de direito refere-se a al. b) – falta total de especificação dos fundamentos de direito. É essa completa omissão que constitui vício original da sentença.

Já a insuficiência da fundamentação de direito não determina a nulidade e sendo que, mesmo a incorrer em tal vício, sempre operaria a regra da substituição prevista no art. 665.º CPC.

No caso, não ocorre ausência total de fundamentação de direito.

Essa fundamentação existe e está suficientemente destacada no texto da sentença.

Poderá entender-se que se trata de uma fundamentação sintética, o que seria até de louvar se, em todo o caso, se tivessem enunciado, mesmo telegraficamente, os preceitos legais donde se retira a conclusão de direito segundo a qual os alimentos são devidos desde a data da propositura da ação (mas sendo que a sentença executiva o disse expressamente) e que, quanto ao IBAN, a obrigação de fornecer não constitui motivo para desonerar o devedor da obrigação de indemnização correspondente à mora, ou seja, nos juros a forfait.

Improcede, por isso, a repontada nulidade.

Da pretensão impugnação da matéria de facto

Afirma o recorrente, em I. das conclusões, ter a sentença dado como provados factos que o não eram.

Apesar de não intitular esta alegação como impugnação da decisão de facto e a fim de não ficarem por decidir todas as questões colocadas em recurso (ou implícitas nestes), sempre diremos que, com tal alegação, não foram cumpridos os ónus de impugnação previstos no art. 640.º: falta da indicação dos concretos pontos de facto incorretamente julgados (n.º 1/1); os meios probatórios que impõem decisão distinta (n.º 1 b); e a decisão de facto que deveria ser proferida (n.º 1 c).

Sendo assim, é de indeferir liminarmente a putativa impugnação de facto.

Refira-se, contudo, que sendo a prova apenas documental, nesta instância já reproduzidos a parte dos documentos donde se extraem alguns dos factos dados por assentes.


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Fundamentos de direito

Não vemos em que medida o saneador-sentença infringiu o caso julgado constituído pela sentença condenatória que a exequente veio apresentar como título executivo.

Recorde-se que título executivo – segundo o requerimento inicial da execução – é apenas e tão só, a sentença que condenou o embargante a pagar alimentos ao filho, então menor, CC.

Essa sentença é a que se encontra acima descrita nos pontos g) e h) dos factos provados.

Ora, a exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa (arts. 580.º e 581.º do CPC) e a sua infração ocorre quando se decida de mérito, posteriormente, sobre a relação material controvertida (art. 619.º CPC).

A decisão recorrida que colocou termo aos embargos, julgando-os improcedentes, não decidiu sobre a fixação de alimentos devidos ao filho CC, como ocorreu com a sentença que constitui título executivo.

Quando muito, a sentença sob recurso e, com ela, o requerimento executivo, poderiam ter extravasado os limites condenatórios fixados na sentença executiva com o que o vício não seria o da violação do caso julgado mas sim a ultrapassagem do título executivo e, a essa luz, a inexistência ou inexequibilidade do título (art. 729.º a) CPC) quanto ao valor a mais que eventualmente tenha sido liquidado pela exequente e aceite pela sentença de embargos.

Por outro lado, a argumentação de recurso a este propósito obnubila o que está expresso na sentença condenatória, proferida a 24.2.2021 e transitada a 20.4.2021.

Conforme se lê literalmente do dispositivo dessa sentença, ficou o embargante condenado a pagar ao filho CC € 150, 000, por mês, desde a data da propositura da presente ação.

E qual foi a data da propositura da ação de responsabilidades parentais onde se insere esta sentença final?

A sentença condenatória di-lo:

Desconhecendo-se a data em que cessou a sua formação, serão os alimentos fixados devidos desde a interposição da ação, nos termos previstos no art. 2006º do Cód. Civil até à data em que perfez dezoito anos, que ocorreu no mês de outubro de 2020.

E, antes disso, no relatório, afirmou a mesma sentença o seguinte:

Por apenso aos autos de divórcio sem consentimento intentou o Ministério Publico em representação dos menores DD e CC, a presente ação de regulação das responsabilidades parentais contra BB e AA.

Não há, pois, dúvida que, referindo o disposto no art. 2006.º CC – segundo o qual os alimentos são devidos desde a proposição da ação (a ação considera-se proposta quando a pi seja recebida na secretaria – art. 259.º CPC) – e mencionando que a ação foi proposta pelo MP, a sentença só pode estar a referir-se à ação instaurada a 30.8.2015 (à qual, inicialmente, correspondeu um número e veio, após apensação, a corresponder outro), sendo que, em 30.8.2015, CC tinha a idade de 13 anos e não de 16, como errada e manifestamente referiu a sentença executiva. Lapso ostensivo que deve ler-se de forma retificada (art. 249.º CC), inexistindo qualquer razão legal (muito ao contrário) para dispensar o pai de contribuir com alimentos para o filho menor desde agosto de 2015 a 18.6.2018, data em que o recorrente entende ter-se iniciado o processo de regulação das responsabilidades parentais).

Teríamos assim que, seriam devidos € 150, 00, mensais, desde 30.8.2015 e até 31.10.2020 (art. 279.º c) do CC), o que equivaleria a 62 meses, num total de € 9.300,00.

De todo o modo, baseando-se em cálculos que se afastam do rigor objetivo da lei e dos cálculos matemáticos, a exequente veio, em contestação, reduzir o seu pedido a € 3.400,00 + 4.200,00, num total de € 7.600,00, e, além disso, contabilizou juros a partir da data do trânsito em julgado da sentença condenatória, sendo somente a estes que se referirá a ação executiva.

Recorde-se que a execução inicial não se refere nunca aos alimentos devidos à filha DD, apenas mencionando a sentença que condena o executado a pagar alimentos ao filho, desde a propositura da ação. Por isso, quando refere que corrige o requerimento executivo e aí acrescenta uma outra obrigação executiva (a relativa à filha DD), a exequente está, afinal, a cumular execuções (art. 709.º CPC), que foi o que acabou por fazer no requerimento que apresentou à execução em outubro de 2024.

De modo que, face à redução do pedido executivo relativo aos alimentos devidos ao filho CC e quanto a capital, serão parcialmente procedentes os embargos, reduzindo-se a quantia executiva, neste tocante, a € 7.600,00.

Finalmente, quanto à exceção de não cumprimento, a mesma não ocorre, como é óbvio.

A obrigação de pagamento do executado não decorre de um contrato bilateral, contrato este que é pressuposto da aplicação do disposto no art. 428.º CC que permite que, nos contratos bilaterais, quando não houver prazos distintos para cumprir, cada um dos contraentes recuse cumprir a sua obrigação enquanto o outro não cumprir a sua.

Um contrato bilateral pressupõe a manifestação de vontade, inerente à obrigação que assume, por parte de cada contraente. Isso sucederia, por exemplo, em caso de transação (arts. 1248.º a 1250.º CC).

Neste caso, as obrigações foram impostas pelo tribunal, por uma decisão judicial e não estabelecidas entre as partes, mediante contrato.

De modo que o problema da exceção de não cumprimento não se coloca.

Não vemos, por outro lado, como pode o devedor considerar não verificada a mora, quando o cumprimento da obrigação continuada periódica estava sujeito a prazo certo, também ele periódico (art. 805.º/2 a) CC).

Já quanto à aplicação do disposto no art. 804.º/2 CC – situação que sequer foi aventada em recurso – não existem dúvidas de que o cumprimento da obrigação de alimentos através de transferência bancária (para conta cujo Iban a exequente não terá fornecido) era apenas uma das possibilidades ao dispor do exequente que não alegou ter estado impossibilitado de o fazer por qualquer outro meio, mormente consignação em depósito, contacto direto com o processo, pedido de informação nesse sentido, contacto direto com a exequente, etc…

Não tendo o recorrente alegado a impossibilidade de cumprimento da prestação por meio diferente da transferência bancária, sendo certo que a sentença lhe abriu a possibilidade de o fazer por qualquer outro meio idóneo, mesmo admitindo que o Iban lhe não haja sido comunicado pela exequente (o que esta impugna – art. 18.º da contestação), não alegou o devedor – sobre quem recai o ónus de alegar e demonstrar o pagamento ou a sua impossibilidade – ter procurado cumprir a sua obrigação por qualquer outro meio idóneo que se tenha frustrado assim criando a impossibilidade prevista no art. 804.º/2 CC. Recorde- se que, também quanto à mora, por se tratar de um ilícito obrigacional, se presume a mesma culposa (art. 799.º/1), logo atribuível ao devedor, competindo a este (e não à exequente) alegar e provar que o cumprimento não procede de culpa sua (cfr. Maria da Graça Trigo e Mariana Martins, anotação III, ao art. 804.º do Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Universidade Católica, 2018, p. 1125).

Dispositivo

Pelo exposto, decidem os juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, reduzir a quantia exequenda para o valor de € 7.600,00, acrescido de juros legais moratórios, devidos desde o trânsito da sentença condenatória e até ao integral cumprimento.

Custas dos embargos na proporção do decaimento, custas do recurso pelo recorrente (art. 527.º/1 parte final do CPC.


Porto, 10/3/2025
Fernanda Almeida
Eugénia Cunha
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo[Voto de vencido (art. 663.º/1 do CPC)
Embora concordando em tudo o mais, não acompanho o entendimento que fez vencimento, sem prejuízo do elevado respeito que lhe é devido, quanto à questão dos juros moratórios, pelos seguintes motivos.
1) Nesse ponto, creio que assumem a maior importância os factos que o executado trouxe aos embargos, em conjugação com aqueles que resultam demonstrados face aos elementos disponíveis do processo.
É certo que, no recurso, o embargante enquadrou a defesa da sua posição em sede de excepção do não cumprimento, a que aludem os arts. 428.º e segs. do CC, de forma manifestamente errada, visto que tal instituto somente respeita aos contratos e, dentre estes, aos contratos “chamados bilaterais ou sinalagmáticos”, caracterizados por acarretarem para as partes prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra, que nada têm de comum com a decisão judicial de fixação de alimentos.
No entanto, tal enquadramento constitui mera qualificação jurídica, na qual, como é sabido, o tribunal actua livremente e não está sujeito às alegações das partes (art. 5.º/3 do CPC).
Ora, a verdade é que a análise dos autos demonstra, no plano factual, que o recorrente alegou na petição de embargos que apenas não procedeu ao pagamento das pensões porque a exequente nunca lhe facultou qualquer IBAN para esse efeito.
E que, na contestação aos embargos, a exequente nada disse a respeito dessa alegação, não exercendo o ónus da impugnação previsto no art. 574.º/1 do CPC e, por isso, que o facto em questão se deva ter admitido por acordo, nos termos do nº2 desse preceito legal.
Com efeito, neste ponto, deve salientar-se, a título prévio, que também a Relação está vinculada, na apreciação dos articulados, a tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo (arts. 607.º/4 e 663.º/2 do CPC), ao ponto de lhe ser imposto o dever de alteração da decisão, entre o mais, se os factos tidos como assentes o impuserem (art. 662.º/1 do CPC).
Mais: a aplicação do ónus da impugnação especificada aos embargos de executado, segundo pensamos, constitui forçosa consequência do disposto no art. 732.º/2 do CPC, que manda seguir nesse âmbito “os termos do processo comum declarativo”.
Resultando ainda da conjugação desse com o preceito legal do art. 732.º/3, o qual, remetendo para o regime dos arts. 567.º e 568.º do mesmo CPC, significa a subordinação, como defende a doutrina, a “idêntico efeito prático” que a remissão para o ónus da impugnação que a lei anteriormente estabelecia de modo expresso (cfr. J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, Depois da Reforma da Reforma, 5.ª ed., p. 207).
E também da análise da jurisprudência resulta o reconhecimento, ainda que tácito, da admissibilidade da aquisição dos factos por acordo das partes nos embargos de executado, como se infere dos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10/7/2019, no processo 1906/11.7TBMAI-B.P1, relatado por Paulo Dias da Silva, e de 19/12/2023, no processo 22473/22.0T8PRT-A, da autoria de Ana Paula Amorim, ambos disponíveis na citada base de dados.
Por isso, a única ressalva à aplicação do efeito cominatório para a falta de impugnação da matéria de facto na contestação aos embargos de executado, como consequência lógica da sua umbilical ligação à execução, cujo prosseguimento visa impedir, no todo ou em parte, ocorre se os factos afirmados pelo embargante se encontrarem em oposição com os expressamente alegados pelo exequente no requerimento executivo (art. 732.º/3 do CPC).
Sucede, porém, que no caso dos autos essa excepção à admissão dos factos não pode operar, pois no requerimento executivo não houve referência à questão da falta de indicação do IBAN para o executado realizar o pagamento das prestações, mas apenas a afirmação de que “não procedeu o Executado ao pagamento devido, nem no momento do vencimento da obrigação, nem quando interpelado para tal”.
Segundo pensamos, essa não constitui uma alegação expressamente feita em sentido contrário à falta de indicação do IBAN.
Tal como, a nosso ver, a alegação do art. 18 da contestação aos embargos (no demais, vertido na presente oposição à execução, pugna-se pela total improcedência dos presentes embargos, por enfermarem de total falta de fundamento, reputando-os como não provados, e julgando-os improcedentes, não permitindo ao executado furtar-se ao pagamento das pensões de alimentos devidas aos filhos menores, em sede de regime provisório no âmbito do processo de 2015, cuja vigência termina, com o inicio do processo de 2018, e decisão final proferida em 20/04/2021- ambas juntas aos autos de execução, e cuja junção igualmente se promove nos presentes autos) não traduz impugnação da referida factualidade.
2) Em conjugação com esse facto, resulta dos autos que, no segmento decisório da sentença que constitui o título executivo, foi fixado que a prestação alimentícia será paga (…) através de transferência bancária para o IBAN que a mãe lhe fornecer ou através de qualquer outro meio idóneo de pagamento.
Para além disso, a exequente mudou de residência para França, onde tem domicílio actualmente, como resulta do requerimento executivo, já havia sido consignado na sentença em execução e emerge dos factos considerados provados na decisão recorrida, na alínea c): Os requeridos foram casados entre si e estão separados desde 2013, data em que a requerida se ausentou para França com a DD e o CC.
Ora, perante este quadro factual, o enquadramento jurídico apropriado, na apreciação do recurso, não é a excepção do não cumprimento dos contratos, mas, isso sim, à luz das variantes possíveis na definição da mora do credor e da mora do devedor.
3) Nos termos do art. 804.º/2 do Código Civil, o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.
Por outro lado, segundo o disposto no art. 813.º do CC, o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.
Na análise comparativa destes dois institutos, o Supremo Tribunal de Justiça já decidiu que “diferentemente do que ocorre com a mora do devedor, em que a lei exige que haja culpa sua, a mora do credor não depende de existência de culpa sua, isto é, não se exige que a sua não aceitação da prestação ou a omissão da sua colaboração sejam censuráveis” (cfr. Acórdão de 27/5/2021, tirado no processo 101/19.1T8ANS-A.C1.S1, relatado por Fernando Bapstista e acessível na citada base de dados).
Acrescentando que o “preenchimento de cada uma das hipóteses a que alude o artº 813º do CC (ou seja: a fixação dos termos em que o credor devia ter aceitado ou a determinação dos actos que devia ter praticado) faz-se atendendo às regras que, para o caso concreto, forem ditadas pela aplicação do princípio da boa-fé (n.º 2 do artigo 762.º, Cód. Civil)”.
E “quando o artº 813º do CC fala na falta dos actos necessários ao cumprimento da obrigação, quer-se apenas referir àqueles cuja prática incumbe ao credor – não, positivamente, àqueles que o obrigado deva praticar”.
4) No caso dos autos, assente que a exequente não forneceu ao executado o IBAN necessário para a transferência bancária e que mudou de residência, para o estrangeiro, com os filhos, antes de qualquer decisão (provisória ou definitiva) sobre as responsabilidades parentais, é de concluir que o primeiro ficou impedido de pagar o valor fixado por alimentos pela primeira forma fixada na decisão em execução.
É certo que, de acordo com essa sentença, existia uma forma alternativa de cumprimento da obrigação, radicada em qualquer outro meio idóneo de pagamento.
Todavia, a nosso ver, essa alternativa parece claramente pensada para uma situação de acordo dos progenitores, que a subsistência do conflito denuncia não existir no caso em apreço, traduzindo, no fundo, a determinação de que o pagamento seja feito por qualquer meio idóneo que os pais acordarem, prevalecendo, na falta de acordo, a transferência para IBAN que a mãe lhe fornecer.
Nesta interpretação, por isso, creio que deveria ser reconhecida a existência de mora da exequente, como credora, por não ter disponibilizado o IBAN indispensável para pagamento e inexistir acordo sobre outra forma para tal, com a inerente exclusão dos juros moratórios da quantia exequenda, por força do art. 814.º/2 do Código Civil, com a parcial procedência dos embargos e do recurso.
Justificando-se a aplicação ao caso do entendimento doutrinal segundo o qual, “independentemente da oferta, o credor constitui-se em mora se não praticar os actos necessários ao cumprimento da obrigação”, posto que, “esta modalidade” vigora “em relação às obrigações de conteúdo positivo”, nas quais “o credor tem sempre de cooperar, quando mais não seja para receber ou aceitar a prestação”, pelo que, “há mora do credor, se ele não praticar os actos necessários ao cumprimento” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4.ª ed., p. 85).
Tal como a ideia de que a cooperação do credor essencial ao cumprimento e cuja falta é susceptível de o fazer incorrer em mora “pode traduzir-se em simples acto de aceitar a prestação, mas pode ainda assumir outras expressões: apresentar-se o credor, ele próprio ou um seu representante, no lugar convencionado para a prestação (domicílio do devedor ou outro local), exercer o direito de escolha numa obrigação genérica ou alternativa, passar quitação, restituir o título da dívida” (cfr. M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., p. 1080).
5) Contra este entendimento, a posição que fez vencimento objectou que “exequente que não alegou ter estado impossibilitado de o fazer por qualquer outro meio, mormente consignação em depósito, contacto direto com o processo e pedido de informação nesse sentido, contacto direto com a exequente”.
Não acompanhamos, porém, com o devido respeito, esta argumentação.
Quanto à consignação em depósito, creio que o argumento prova demasiado e, afinal, em sentido contrário ao que prevaleceu, visto que, como a doutrina tem entendido sem divergências que conheçamos, essa consignação pressupõe justamente a existência de mora do credor, para além de constituir um meio facultativo para o devedor e ao qual ele lançará mão, se quiser, para livrar-se da obrigação (cfr., por todos, Almeida Costa, Ob. cit., pp. 1081-2).
E relativamente ao contacto com o processo ou com a exequente, porque, para além de se tratarem de faculdades de livre utilização, nada garante que produzissem resultados úteis e, para além disso, decisivamente, porque não contendem com o reconhecimento da mora do credor.
6) Todavia, mesmo sem interpretar o segmento decisório no sentido acima exposto no ponto 5, e ainda que se entendesse que a alternativa do qualquer outro meio idóneo de pagamento, no segmento decisório da sentença dada à execução, colocaria do lado do embargante o dever de, empregando um nível elevado de diligência e criatividade, encontrar uma forma possível e segura de fazer chegar o valor fixado a título de alimentos a França e à exequente, creio que não existe culpa do executado.
O que, afastando a existência de mora do devedor, implicaria igualmente a desconsideração dos juros de mora na quantia exequenda, como efeito da impossibilidade de aplicação do regime previsto nos arts. 804.º e segs. do CC.
Na verdade, como se viu, para a mora do devedor, a lei exige que haja culpa sua (cfr. Acórdão do STJ de 27/5/2021, acima citado).
Por outro lado, verificada uma situação objectiva de falta de cumprimento, a existência de culpa do devedor, necessária para a mora, “deve ser aferida em face das circunstâncias concretas do caso e pela diligência de um bom pai de família ou homem médio” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/4/2013, de Cristina Coelho, processo 292/10.7TBPTS).
7) Vertendo ao caso dos autos, verifica-se, em primeiro lugar, que a omissão da exequente quanto à disponibilização do IBAN, inviabilizando o pagamento por transferência bancária, tornou mais onerosa, desnecessária e injustificadamente, a realização da prestação por parte do executado, certo que ambos os sujeitos da obrigação residem em países diferentes.
Para além disso, constata-se que foi a exequente quem deu causa a essa residência diferenciada, susceptível de agravar as dificuldades de cumprimento, visto que, como está provado, em 2013 ela ausentou-se para França com os filhos (alínea c) da matéria de facto), o que fez sem previamente cuidar da definição das responsabilidades parentais dos então menores, as quais, por isso, como resulta da sentença dada à execução, só conheceram regulação provisória, com fixação da residência dos filhos no domicílio da mãe, em 2017.
Deste modo, pode considerar-se a ocorrência de uma alteração posterior do domicílio do credor, face ao momento em que se constituiu a obrigação de alimentos, em 2015, segundo o art. 2006.º do CC, susceptível de tornar razoável que o cumprimento da prestação se fixasse no domicílio do devedor.
Trata-se, aliás, de situação de manifesta similitude com o regime previsto no art. 775.º do referido diploma, segundo o qual, “se tiver sido estipulado, ou resultar da lei, que o cumprimento deve efectuar-se no domicílio do credor, e este mudar de domicílio após a constituição da obrigação, pode a prestação ser efectuada no domicílio do devedor, salvo se aquele se comprometer a indemnizar este do prejuízo que sofrer com a mudança”.
Assim, creio que a conduta da exequente agravou por uma dupla via, e de forma sensível, a dificuldade no cumprimento da obrigação do lado do executado, seja por inviabilizar a sua forma mais expedita e menos onerosa, que é a transferência bancária, seja porque determinou que ela tivesse de ser feita no seu domicílio, em França, impedindo, de facto, a sua realização no domicílio do devedor.
8) Acresce, para afastar a culpa do executado, indispensável à mora, todo o circunstancialismo subjacente à definição da obrigação de alimentos.
Como resulta da sentença dada à execução, o processo de regulação das responsabilidades parentais foi iniciado pelo Ministério Público, em representação dos menores DD e CC, alegando em síntese que os menores são filhos dos requeridos; a requerida abandonou o lar conjugal em agosto de 2013 levando consigo os menores; desde então o requerido não sabe onde os filhos se encontram (…).
A DD Perfez 18 anos na pendência da ação, tendo os autos prosseguido quanto a ela com vista à fixação da prestação alimentar (…).
Realizada a conferência a que alude o artº 35º do RGPTC não foi possível obter o acordo quanto à regulação das responsabilidades parentais, por a ela não ter comparecido a requerida.
Foi proferida sentença que regulou o exercício das responsabilidades parentais relativas ao CC, julgando extinta a instância relativa à DD, por entretanto ter atingido a maioridade e não se encontrar a estudar.
A progenitora (…) notificada para informar em que data (mês e ano) cessou a formação do filho, nada disse.
Entretanto, como o jovem CC completou 18 anos no passado dia 04/10/2020, (…) foi extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais (…), na vertente da residência e das vistas, prosseguindo só para a definição do valor da prestação alimentícia.
9) Constata-se, pois, que de um processo instaurado porque a exequente se ausentou para França, em 2013 e, desde então, o requerido não sabe onde os filhos se encontram, nem tem como contactá-los, não foi possível a regulação definitiva das responsabilidades parentais, pois entretanto os filhos atingiram a maioridade, e apenas restou a fixação de alimentos, em benefício de quem tinha começado por adoptar o comportamento ilícito que justificou a sua instauração.
Tudo marcado por uma postura de manifesto desinteresse e inércia por parte da exequente, a qual, após se ausentar para França, sem previamente tratar da regulação das responsabilidades parentais, não tomou qualquer iniciativa destinada a resolver o caso, não compareceu às diligências designadas pelo tribunal, nem respondeu a notificações que este lhe dirigiu e, por fim, não apresentou sequer o IBAN necessário para que a obrigação de pagamento fosse cumprida através da primeira modalidade prevista na decisão judicial.
Pelo que, a nosso ver, neste quadro global, à luz de todas as relevantes circunstâncias do caso concreto, na perspectiva da diligência de um homem médio ou bom pai de família, não se evidencia como censurável que o executado tenha aguardado, para cumprir, que a exequente lhe enviasse os elementos de identificação bancários a que estava adstrita.
Ou dito de outro modo, não seria razoavelmente exigível ao executado, face a todas as circunstâncias do caso, uma conduta mais diligente e dispendiosa para, contra a inércia e o desinteresse da exequente, lograr o pagamento.
10) Em situação idêntica, a jurisprudência já decidiu que “não havendo a necessária actuação colaborante por parte dos credores, tendo-se já aprestado a devedora a cumprir, remetendo para o efeito, uma carta com a/r aos credores, endereçada para a morada por estes disponibilizada nos autos, que os credores não receberam, temos que a mora ou atraso no cumprimento da obrigação de entrega não é da devedora, mas dos credores, nos termos do art.º 813º do Código Civil” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4/7/2019, da autoria de Oliveira Abreu no processo 20324/16.4T8PRT-A.P2.S1 e acessível na citada base de dados).
Assim, a única distinção para a situação versada no aresto, no confronto com o nosso caso, reside no facto de ter sido prevista outra forma de pagamento, mas sem concretização de qual seria, e de não haver notícia de o executado ter enviado uma comunicação a solicitar os dados de identificação da conta bancária, em acréscimo à determinação da sentença.
Todavia, mesmo que esta diferença fosse susceptível de colocar em dúvida a existência de mora do credor, a identidade restante entre as situações seria já bastante para, a nosso ver, concluir que, face às circunstâncias do caso, a atitude do devedor que aguardou a iniciativa da contraparte para cumprir não justifica juízo de censura.
11) Por fim, excluiria os juros peticionados da quantia exequenda porque os factos apurados nos autos evidenciam que, no período que decorreu desde o trânsito em julgado da sentença de alimentos até à instauração da execução, justamente aquele que se considerou na obrigação de juros, a exequente permaneceu em igual atitude de inércia e desinteresse na prestação, como se extrai do período significativo, de quase três anos, que mediou entre a sentença, proferida a 24/2/2021, e o início da execução, apenas submetida em juízo a 21/12/2023.
Estas são, em síntese, as razões da nossa divergência, restritamente quanto à questão dos juros, face ao entendimento que fez vencimento no acórdão.]
___________________
[1] Para melhor compreensão, passamos a reproduzir parcialmente o requerimento executivo:
[2] Para melhor compreensão passamos a reproduzir a parte da decisão (junta com a contestação de embargos), proferida naqueles autos de regulação das responsabilidades parentais:
Terceiro
-----Tanto para a DD como para CC o progenitor contribuirá com a quantia mensal de €100,00 (cem euros), para cada um dos seus filhos, perfazendo a totalidade €200,00 (duzentos euros) a pagar até ao dia oito de cada mês por transferência bancária para IBAN a indicar pela progenitora ou outro meio de pagamento idóneo.---
Quarto
----As contribuições mensais previstas no número anterior serão anualmente actualizadas, no montante de € 1,00 (um euro), a partir do Janeiro de 2018.-
[3] Sentença junta com a contestação de embargos e na qual se lê, entre o mais, o seguinte:
A DD perfez 18 anos no decurso do processo, porquanto já não se encontrava a estudar, considerando a sua maioridade e a cessação da sua formação, decidiu o Tribunal não fixar a prestação alimentar a seu favor a cargo do requerente, posto que se não verificavam os pressupostos enunciados nos arts.
1880.º e 1905.º, n.º 2 do Código Civil.
Prosseguiram os autos apenas quanto ao jovem CC, a fim de que se procedesse à sua audição, em cumprimento do Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, audição que foi determinada por despacho de fls. 569.
Entretanto, o jovem CC completou 18 anos no passado dia 04/10/2020, tendo atingido a maioridade.
Assim sendo, declara-se extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas ao CC na vertente da residência e das vistas, nos termos do disposto no art. 277.º, al. e) do CPC, aplicável ex vi do art. 33º do RGPTC, prosseguindo os autos, para fixação de alimentos.
(…)
6. Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos julga-se a acção parcialmente procedente e por via dela fixa-se a quantia devida a titulo de alimentos pelo requerido a favor do jovem CC:
- a quantia mensal de 150,00€ (cento e cinquenta euros), que pagará desde a data da interposição da presente ação e até ao mês de outubro de 2020, através de transferência bancária para o IBAN que a mãe lhe fornecer ou através de qualquer outro meio idóneo de pagamento.