DIVÓRCIO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DO TRIBUNAL
Sumário

I - Por força do disposto na alínea b) do artigo 3º do Regulamento (UE) 2019/1111, são competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro da nacionalidade de ambos os cônjuges.
II - O Regulamento (UE) 2019/1111 não serve para determinar a lei material aplicável, além do mais, às causas ou fundamentos do divórcio (veja-se o artigo 1781º do Código Civil) e isso porque para este efeito existe o Regulamento (UE) 1259/2010 do Conselho, de 20 de dezembro de 2010.

Texto Integral

Processo nº 348/23.6T8GDM.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 348/23.6T8GDM.P1 elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório

Em 24 de janeiro de 2023, com referência ao Juízo de Família e Menores de Gondomar, Comarca do Porto, AA instaurou ação especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra BB pedindo a dissolução do casamento celebrado entre si e o réu em 18 de agosto de 2018, com fundamento em divórcio.

Realizou-se uma infrutífera tentativa de conciliação.

Citado, o réu contestou suscitando, além do mais, a incompetência internacional do tribunal a quo em virtude de os cônjuges não terem residência, nem domicílio em Portugal à data da propositura da ação e por não terem sido praticados em Portugal os factos que servem de causa de pedir na ação ou algum facto que a integre.

A autora respondeu à contestação pugnando pela improcedência da exceção dilatória de incompetência internacional em virtude de autora e réu terem nacionalidade portuguesa.

Em 17 de novembro de 2023 foi proferido o seguinte despacho[1]:

Da exceção de incompetência internacional:

Aquando da apresentação da sua contestação, veio o réu arguir a exceção da incompetência internacional do presente juízo de família e menores para a decisão do pedido de divórcio aqui formulado.

Alegou para tanto, e em síntese, que muito embora autora e réu tenham casado em Portugal, dado que se conheceram em França; residiam em França; tiveram a filha em França; e os factos alegados pela autora na petição inicial, que consubstanciam a causa de pedir, ocorreram todos em França, sendo lá a residência habitual do casal, onde ambos viveram até novembro de 2022, no seu entender, e de acordo com o disposto no art.º 62.º do Código de Processo Civil e do art. 3º do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27.11 (Regulamento Bruxelas II bis), o Tribunal Português é internacionalmente incompetente para decidir da ação de divórcio relativo a dois cidadãos Portugueses com residência habitual e permanente em França e em que os factos integradores da causa de pedir ocorreram nesse país.

A autora veio em resposta pronunciar-se pela exceção dilatória arguida, pugnando pela sua improcedência, por entender que os tribunais portugueses são competentes para o conhecimento do presente divórcio porque os cônjuges têm ambos nacionalidade portuguesa.

Cumpre apreciar e decidir:

Discute-se nos presentes autos se deve ser deferida aos tribunais portugueses a competência internacional para julgar a presente ação de divórcio, referindo-se conexões com a ordem jurídica portuguesa e com a ordem jurídica francesa, pugnando a autora pela competência deste tribunal e o réu pela sua incompetência internacional.

Como explicam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (in Manual de Processo Civil’, 2.ª edição, pág. 198) “A competência internacional designa a fração do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as ações que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras”

A infracção das regras da competência internacional do tribunal determina a incompetência absoluta do tribunal (art. 96º, al. a) do CPC) e configura uma exceção dilatória (art. 577º, al. a)) de conhecimento oficioso (art. 97º, al. a) e 578º do CPC) que implica a absolvição do réu da instância (art. 99º, al. a), nº1 e 278º, nº1 al. a) ambos do CPC).

Do explanado nos articulados constata-se que a presente ação apresenta efetivamente diversos elementos de conexão – o local do casamento (Portugal), a nacionalidade da autora e do réu (ambos portugueses), a residência do réu (França); a residência habitual dos cônjuges quando viviam juntos (França); o lugar da prática dos factos alegados na petição inicial que integram a causa de pedir (França), a residência da autora (Portugal) – que se relacionam, quer com o ordenamento jurídico português, quer com a ordem jurídica francesa, podendo-se concluir que este conflito é plurilocalizado.

De acordo com o disposto no artigo 37º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto, que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território, esclarecendo no seu nº2 que a lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais.

Por sua vez, o artigo 38º da referida LOSJ estipula que a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe (princípio da perpetuatio fori ou jurisdictionis), sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei, (nº1), ou de direito ocorridas, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa (nº2).

O artigo 59º do Código de Processo Civil determina que “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.

Urge, portanto, averiguar se existem tratados, convenções, regulamentos comunitários ou leis especiais ratificadas ou aprovadas, que vinculem internacionalmente os tribunais portugueses, porque prevalecem sobre os restantes critérios (cfr. também o artigo 8.º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, que esclarece que as regras internacionais se integram no ordenamento jurídico do Estado).

Neste âmbito existia o Regulamento (CE) 2201/2003 de 27.11 (Regulamento Bruxelas II bis), relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, que foi invocado quer pelo réu, quer pela autora, sendo que cada um deles o interpretou de forma diferente.

Acontece que o referido Regulamento foi revogado pelo Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25.06, com efeitos a partir de 01.08.2022, sendo aplicável às ações judiciais intentadas, aos atos autênticos formalmente exarados e aos acordos registados em 01.08.2022 ou numa data posterior (cfr. artigos 104º, nº1 e 100.º, n.º 1).

Dado que a presente ação deu entrada em juízo a 24.01.2023, é com base no Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25.06, que se verifica a competência internacional deste tribunal.

Tal Regulamento EU (2019/1111 do Conselho), à semelhança do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27.11 (Regulamento Bruxelas II bis) fixa, no seu artigo 3º, a competência geral para divórcio, separação e anulação do casamento, estipulando que:

“São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro:

a) Em cujo território se situe:

i) a residência habitual dos cônjuges,

ii) a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida,

iii) a residência habitual do requerido,

iv) em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges,

v) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos um ano imediatamente antes da data do pedido, ou

vi) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos durante seis meses imediatamente antes do pedido e se for nacional do Estado-Membro em questão; ou

a) Da nacionalidade de ambos os cônjuges.

Este artigo enumera sete critérios de competência, de aplicação alternativa, sem fixar qualquer ordem de precedência entre eles.

No caso dos autos, quer a autora, quer o réu têm nacionalidade portuguesa.

Está assim verificado o pressuposto para que os tribunais portugueses sejam competentes para decidir e julgar a presente ação de divórcio, pois que se encontra preenchido o critério de competência previsto na alínea b) do referido artigo 3º do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25.06 - a nacionalidade de ambos os cônjuges. É que basta a existência deste critério (desta conexão com a ordem jurídica portuguesa, e ainda que fosse a única), que no caso é a da nacionalidade, para determinar a competência internacional dos tribunais portugueses.

Neste sentido vejam-se os seguintes acórdãos dos tribunais superiores (disponíveis in www.dgsi.pt), os quais, ainda que se refiram ao artigo 3º do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de novembro, têm aqui pertinência pois o artigo 3º do Regulamento EU (2019/1111 do Conselho) que supra se analisou é quase uma “cópia” daquele, onde se retiraram as exceções da Irlanda e Reino Unido, após o “brexit”, e radica precisamente nos mesmos pressupostos:

- o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.05.2020, processo nº4435/19.7T8BRG.G1, onde se lê: “Como tem sido clarificado pela jurisprudência: “Estabelecendo o artº 3º, nº1, do Regulamento (CE) 2201/2003 de 27 de Novembro, três critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado-Membro para de uma ação de Divórcio poder conhecer, sendo um o da residência habitual, o outro o da nacionalidade de ambos os cônjuges e, finalmente, o terceiro, o do domicílio comum, verificando-se um deles (o da Nacionalidade de ambos os cônjuges) e apontando ele para Portugal, ter-se-á, forçosamente, que julgar o tribunal português onde a ação foi interposta como o competente (internacionalmente) para a julgar.” (cf acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo nº 3355/13.3TBVIS-A.C1 de 07/01/2014 e do Tribunal da Relação de Évora, no processo 1330/16.5T8FAR.E1 em 12/15/2016- sendo estes e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano-).

- o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.02.203, processo nº 4398/21.9T8LSB.L1-8, onde se lê: “(…) sendo Portugal um Estado-Membro da UE, a competência internacional dos tribunais nacionais para preparar e julgar a presente acção tem de ser aferida de acordo com as regras de competência internacional consagradas no referido respectivo art.º 3.º, n.º 1, als. a) e b), e nunca à luz da legislação processual civil interna (nomeadamente, os art.ºs 62.º e 63.º do CPC).

Ora, nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art.º 3.º do Regulamento n.º 2201/2003, a nacionalidade comum de ambos os cônjuges é, por si só, suficiente para conferir competência internacional aos tribunais do Estado-Membro de que ambos os cônjuges sejam nacionais.

Donde se conclui, inequivocamente, pela competência internacional do tribunal recorrido para preparar e julgar a presente acção, sendo totalmente irrelevante o lugar do domicílio das partes ou o lugar da ocorrência dos factos que constituem a causa de pedir do divórcio.”

Nos termos e fundamentos expostos, uma vez que ambos os cônjuges têm nacionalidade portuguesa, e por via desse facto os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para decidir no âmbito da presente ação de divórcio, através do critério da nacionalidade de ambos os cônjuges previsto no artigo 3º, al. b) do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25.06, aqui aplicável, julgo improcedente a exceção da incompetência internacional deste tribunal invocada pelo réu.

Custas a cargo do réu, a atender a final.

Notifique”.

Em 13 de dezembro de 2023, inconformado com a decisão que precede, BB interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I - O presente recurso versa sobre matéria de direito vertida no despacho com a ref. 453879128, por via do qual o Tribunal a quo considerou-se internacionalmente competente para julgar a causa.

II - No entanto, no considerando (9) do seu preâmbulo, o Regulamento (CE) 2019/1111 do Conselho, ressalva que “[q]uanto às decisões de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, o presente regulamento apenas deverá ser aplicável à dissolução do vínculo matrimonial. Não deverá abranger questões como as causas do divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento ou outras eventuais medidas acessórias. As disposições do presente regulamento sobre reconhecimento não deverão abranger as decisões que rejeitam a dissolução do vínculo matrimonial”.

III - Tendo em consideração o vertido na petição inicial (ref. 34527870), o Tribunal recorrido fixou os seguintes temas da prova: “1. [v]iolação dos deveres de respeito, assistência e cooperação substanciada nos factos dos arts. 5.º a 35.º da petição inicial; 2. [s]eparação de facto do casal e momento em que ela ocorreu, substanciada nos factos dos arts. 36.º a 48.º da petição inicial; 3. [r]utura definitiva da relação entre Autora e Ré, substanciada nos factos que antecedem.”

IV - A violação dos invocados deveres de respeito, assistência e cooperação e o momento da separação de facto do casal são questões que concernem, de forma manifesta, às causas do divórcio pelo que, nos termos exarados no Regulamento (CE) 2019/1111, estão excluídas do âmbito da sua aplicação.

V - Portanto, os critérios fixados no art. 3.º do mencionado diploma, quer sejam alternativos, quer exista uma ordem de preferência, não são aplicáveis ao caso.

VI - Temos para nós, então, que para aferir a competência internacional das nossas instâncias, haverá a necessidade de analisar o preceituado no Código de Processo Civil relativamente a esta matéria.

VII - Reza o art. 62.º do CPC que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; b) ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integraram; c) quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

VIII - O art. 72.º do CPC estipula que, para as ações de divórcio e de separação de pessoas e bens é competente o tribunal do domicílio ou da residência do autor.

IX - À primeira vista, e não cotejando todos os factos desta lide, os Tribunais portugueses seriam internacionalmente competentes para julgar a presente ação de divórcio e todas as questões conexas, por força do estatuído no art. 72.º do CPC.

X - Sucede que a Autora, aqui Apelada, ao transferir a sua residência e domicílio para Portugal procurou, não só fugir das obrigações tributárias francesas, como também tornar os nossos Tribunais competentes quando não o eram.

XI - Essa postura designa-se por fraude à lei.

XII - A fraude à lei traduz a ideia de um comportamento que, mantendo a aparência de conformidade com a lei, obtém algo que se entende ser proibido por ela.

XIII - No direito português, não existem regras escritas de índole geral sobre a fraude à lei, nem na Constituição nem no Código Civil embora este último diploma regule algumas situações especiais de fraude à lei, além da que é objeto do art. 21 - são os casos, entre outros, do n.º 2 do art. 418 e do art. 2067 - referindo ainda o CCivil no n.º 1 do art. 330, a fraude à lei como um modo de atuar proibido. Também sequer existe uma regra escrita de índole geral sobre a fraude à lei nos negócios jurídicos ou nos contratos, figuras cuja teoria geral costuma suscitar a referência à fraude à lei, embora esta transcenda o plano dos negócios jurídicos, podendo e devendo ser potencialmente aplicada à generalidade das situações jurídicas, independentemente da natureza da sua fonte.

XIV - Assim, como ponto de partida para apreciação do conceito de fraude à lei, trazemos à colação o expressamente estatuído no art. 21.º do Código Civil: “[n]a aplicação das normas de conflitos são irrelevantes as situações de facto ou de direito criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicabilidade da lei que, noutras circunstâncias, seria competente”.

XV - Descendo ao caso concreto, tanto Apelante (item 59.º da Contestação) como Apelada (item 39.º da Petição Inicial) admitem que, até 23 de Novembro de 2022, a residência habitual de ambos era a França e a presente ação de divórcio deu entrada no tribunal português em 24/01/2023.

XVI - Como consabido e na esteira do que é peticionado no apenso B, a Apelada, à revelia do Apelante, passou a fronteira com a filha de ambos e fabricou um domicílio/residência que inequivocamente nunca teve, visando eximir-se a todas as questões atinentes às obrigações fiscais francesas (o que, de per si, ofende a ordem pública internacional e o próprio direito fiscal europeu).

XVI - Com efeito, a Apelada criou uma situação de facto com o intuito fraudulento de obter a competência internacional de um tribunal que, se não fosse tal manobra, não teria.

XVII - Assim, deverá ser considerado irrelevante o domicílio/residência atual da Apelada e relevante para efeitos de determinação da competência do tribunal o que sempre fora a sua residência habitual: a França (art. 72.º do CPC).

Não foram oferecidas contra-alegações.

Em 22 de janeiro de 2024 foi proferido despacho a determinar o desentranhamento das alegações de recurso oferecidas por BB com fundamento na falta de pagamento da taxa de justiça e multa devidas.

Em 08 de fevereiro de 2024 BB interpôs recurso de apelação contra o despacho que precede.

Em 23 de abril de 2024 foi proferida decisão a dar sem efeito o despacho proferido em 22 de janeiro de 2024, sendo o réu notificado para esclarecer se mantinha interesse no conhecimento do recurso interposto em 08 de fevereiro de 2024; foi proferida sentença julgando a ação procedente.

Em 03 de maio de 2024, BB ofereceu o seguinte requerimento:

BB, Réu nos autos em epígrafe, atenta a decisão que antecede, vem, mui respeitosamente, informar que mantém interesse no recurso submetido a 13/12/2023 (ref. 37560349) (doc. 1), ficando sem efeito recurso da decisão que determinou o seu desentranhamento, atenta a correção da respetiva decisão proferida em sede de jurisdição voluntária.

Em 11 de junho de 2024 foi proferido despacho a admitir o recurso de apelação interposto em 13 de dezembro de 2023, com subida nos próprios autos, em virtude de a sentença final ter já transitado em julgado, e com efeito meramente devolutivo.

Recebidos os autos nesta Relação, uma vez que o objeto do recurso admitido[2] tem natureza estritamente jurídica, com o acordo dos restantes membros do coletivo, dispensaram-se os vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.

2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

Da incompetência internacional do tribunal a quo.

3. Fundamentos de facto

Os factos necessários e pertinentes para conhecimento do objeto do recurso constam do relatório deste acórdão e resultam dos próprios autos que, nesta vertente adjetiva, têm força probatória plena.

4. Fundamentos de direito

Da incompetência internacional do tribunal a quo

O recorrente sustenta a incompetência internacional do tribunal recorrido abonando-se para tanto com o teor do ponto 9 do Regulamento (UE) 2019/1111 de 25 de junho de 2019 que exclui do âmbito da aplicação do citado regulamento as causas do divórcio; que em princípio deveriam ser aplicadas ao caso dos autos as normas de competência interna e só o não devem ser porque a competência dos tribunais portugueses foi provocada pela autora em fraude à lei, deslocando o seu domicílio de França para Portugal, por razões de ordem fiscal.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no artigo 59º do Código de Processo Civil, “[s]em prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.”

No caso em apreço, importa atentar no Regulamento (UE) 2019/1111, de 25 de junho de 2019, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, L 178/1, de 02 de julho de 2019, aplicável, além do mais, ao divórcio (artigo 1º, nº 1, alínea a) do Regulamento 2019/1111) e especialmente no que dispõe a alínea b) do artigo 3º deste instrumento normativo.

Por força da previsão que se acaba de citar, são competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro da nacionalidade de ambos os cônjuges, nacionalidade comum portuguesa que não foi posta em causa.

Contudo, o recorrente objeta que de acordo com o considerando (9) do Regulamento em apreço, sendo o divórcio objeto destes autos fundado na violação de deveres conjugais, aquele instrumento normativo não é aplicável na hipótese em análise.

O considerando (9) do Regulamento (UE) 2019/1111[3] tem o seguinte teor:

Quanto às decisões de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, o presente regulamento apenas deverá ser aplicável à dissolução do vínculo matrimonial. Não deverá abranger questões como as causas do divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento ou outras eventuais medidas acessórias. As disposições do presente regulamento sobre reconhecimento não deverão abranger as decisões que rejeitam a dissolução do vínculo matrimonial.

Que dizer?

Parafraseando, com adaptações, parte do famoso poema de John Donne[4], nenhuma norma ou considerando é uma ilha isolada, mas antes parte de um mundo normativo tendencialmente congruente e desejavelmente solidário, ainda que com algumas fricções e irritações.

O considerando a que o recorrente se arrima apenas pretende evidenciar que o Regulamento (UE) 2019/1111 não serve para determinar a lei material aplicável, além do mais, às causas ou fundamentos do divórcio (veja-se o artigo 1781º do Código Civil) e isso porque para este efeito existe o Regulamento (UE) 1259/2010 do Conselho, de 20 de dezembro de 2010, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, L 343/10, de 29 de dezembro de 2010.

O artigo 1º, nº 1 do Regulamento (UE) 1259/2010 prescreve que é aplicável nas situações que envolvem um conflito de leis, ao divórcio e à separação judicial, desenvolvendo depois nos seus artigos 5º a 16º os diversos critérios para resolução de conflitos de leis nessas matérias.

E porque assim é, escreveu-se no considerando (10) do Regulamento (UE) 1259/2010 o seguinte:

O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regulamento deverão ser coerentes com o Regulamento (CE) nº 2201/2003 [este Regulamento foi o revogado pelo Regulamento 2019/1111]. Todavia, o presente regulamento não deverá ser aplicável à anulação do casamento.

O presente regulamento deverá ser aplicável apenas à dissolução ou suspensão do vínculo matrimonial. A lei determinada pelas normas de conflito de leis do presente regulamento deverá aplicar-se aos fundamentos de divórcio e de separação judicial.

Conclui-se assim que o considerando (9) do Regulamento (UE) 2019/1111 em que a recorrente se apoia não conforta a sua posição jurídica mas apenas evidencia que esse regulamento não resolve os conflitos de leis, além do mais, em matéria de causas ou fundamentos do divórcio pois que para tanto está precipuamente talhado o Regulamento (EU) 1259/2010, como antes se viu.

E existe fraude à lei que determine o afastamento da regra de competência internacional resultante da conjugação do disposto na alínea a) do artigo 62º do Código de Processo Civil e do artigo 72º do mesmo diploma legal?

Em bom rigor, o conhecimento deste fundamento da pretensão recursória do recorrente está prejudicado pois que pressupõe a inaplicabilidade da regra de competência internacional prevista na alínea b) do artigo 3º do Regulamento (UE) 2019/1111 e a aplicabilidade das normas internas sobre competência internacional dos tribunais portugueses, especialmente por efeito do denominado princípio da coincidência.

Ainda assim, para que não subsistam dúvidas sobre o exaurimento do conhecimento do objeto do recurso, dir-se-á que a aplicação de qualquer instituto jurídico implica a existência de um complexo fáctico a que possa ser reconduzido, não sendo bastantes para tanto as afirmações das partes desgarradas de qualquer suporte probatório.

As afirmações do recorrente de que a recorrida deslocou o seu domicílio para Portugal são meras alegações sem qualquer suporte probatório, porventura porque nunca antes havia sido arguida a fraude à lei.

Ora, embora a fraude à lei integre matéria de conhecimento oficioso, isso não significa que o seu conhecimento e eventual procedência dispense o que é requerido para a aplicação de qualquer instituto jurídico, nomeadamente, uma base factual que, qualificada juridicamente, permita a integração nessa figura legal.

No caso dos autos não existe qualquer prova de que a fixação de domicílio da recorrida em Portugal tenha sido motivada por razões de ordem fiscal.

Ainda que assim fosse, esse domicílio era inócuo para a questão da competência internacional dos tribunais portugueses, pois que para esse efeito e no caso concreto o que releva é a nacionalidade comum de ambos ex-cônjuges.

Face ao que antecede, conclui-se pela total improcedência do recurso, assim se confirmando a decisão proferida em 17 de novembro de 2023.

As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente pois que o recurso improcedeu totalmente (artigo 527º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil).

5. Dispositivo

Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto em 13 de dezembro de 2023 por BB e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida proferida em 27 de novembro de 2023.

Custas a cargo do recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.


***

O presente acórdão compõe-se de dez páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.


Porto, 10/3/2025
Carlos Gil
Teresa Pinto da Silva
Jorge Martins Ribeiro
__________________
[1] Notificado às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 20 de novembro de 2023.
[2] Não foi proferida qualquer decisão sobre o recurso interposto em 08 de fevereiro de 2024 na sequência do requerimento do recorrente de 03 de maio de 2024, apenas tendo sido referido em 07 de maio de 2024 o seguinte: “Vi o requerimento do réu, na sequência da notificação que lhe foi feita pelo tribunal, no âmbito do qual esclarece que não mantém o interesse no recurso por si interposto a 08.02.2024, atento o decidido no despacho de 23.04.2024, que deu sem efeito o despacho que determinou o desentranhamento das alegações do recurso por si interposto 13.12.2023 (relativamente à decisão do que julgou este tribunal competente para a presente causa), mantendo ainda assim o interesse neste último recurso.”
[3] Este considerando replica na quase integralidade o considerando (8) do Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho de 27 de novembro de 2003, publicado no Jornal Oficial 338 de 23 de dezembro de 2003 que dispunha o seguinte: “Quanto às decisões de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, o presente regulamento apenas deve ser aplicável à dissolução do vínculo matrimonial e não deve abranger questões como as causas do divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento ou outras eventuais medidas acessórias.”
[4] O poema em causa é o seguinte:

“Nenhum homem é uma ILHA isolada; cada homem é uma
partícula do CONTINENTE, uma parte da TERRA; se um
TORRÃO é arrastado para o MAR, a EUROPA fica
diminuída, como se fosse um PROMONTÓRIO,
como se fosse a CASA dos teus AMIGOS ou
a TUA PRÓPRIA; a MORTE de qualquer
homem diminui-me, porque sou
parte do GÉNERO HUMANO.
E por isso não perguntes
Por quem os
Sinos dobram
Eles dobram
por TI.”