I. A relevância jurídica prevista no art. 672.º, nº 1, a), do CPC, pressupõe uma questão que apresente manifesta complexidade ou novidade, evidenciada nomeadamente em debates na doutrina e na jurisprudência, e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa assumir uma dimensão paradigmática para casos futuros.
II. Os interesses de particular relevância social respeitam a aspetos fulcrais da vivência comunitária, suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação.
MBM/JG/JES
I.
2. A ação foi julgada parcialmente procedente na 1ª Instância, tendo a R. sido condenada a pagar à A.:
a) A quantia de 199.417,69 €, relativa a diferenças salariais (anos de 2011 a 2021), com referência ao que a A. auferia antes da cedência do estabelecimento comercial Hotel 1..., acrescida de juros de mora;
b) A quantia de10.000,00 €, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais resultantes da diminuição ilícita da sua categoria;
c) “Indemnização pelas diferenças da pensão de reforma por invalidez da autora em resultado da redução da remuneração de janeiro de 2011 até à data da cessação do contrato, a liquidar em incidente de liquidação”.
3. Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Évora (TRE) confirmou esta decisão.
4. A R. veio interpor recurso de revista excecional, com fundamento no art. 672º, nº 1, a) e b), do CPC, suscitando as seguintes questões:
i) – “A quem compete o ónus da prova da concreta remuneração que se aufere pelo exercício de uma dada categoria – in casu Diretora de Hotel – quando, a par destas funções, se exercem outras funções profissionais – designadamente as de Presidente do Conselho de Administração de uma empresa integrada no mesmo grupo?”
ii) – “Pode um empregador ser condenado a pagar diferenciais remuneratórios a um seu trabalhador apenas com base na carreira retributiva global considerada pela Segurança Social para efeitos de atribuição de uma pensão de invalidez ou, pelo contrário, tal condenação só pode ocorrer quando efetivamente esteja comprovada a remuneração auferida pelo trabalhador pelo exercício das funções próprias da categoria profissional para que havia sido contratado?”
iii) – “O histórico da carreira retributiva de um trabalhador existente na segurança social é, por si só, prova suficiente para se considerar que todas as remunerações registadas provêm do exercício das mesmas funções?”
iv) – “A circunstância de se ter passeado menos tempo com o marido e se ter passado a ser uma pessoa mais ansiosa é um dano que assume gravidade suficiente para merecer tutela do direito? Em caso afirmativo, que montante é justo, equitativo e proporcional em termos de ressarcimento desse dano?”
5. A autora não contra-alegou.
6. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso.
7. Está em causa determinar se o recurso de revista excecional deve ser admitido no tocante às questões elencadas em supra nº 4.
E decidindo.
1) A A. tem 64 anos de idade, é reformada e iniciou a sua vida profissional como trabalhadora da “F..., S.A.” (…)
2) A F..., S.A. foi a primeira proprietária da unidade hoteleira designada por “Hotel 1...”, na cidade de ..., na qual a A. trabalhou desde a sua construção até ao ano de 2012.
3) O Hotel 1... é atualmente detido pela R. (…);
(…)
13) A autora trabalhou para a F..., S.A. desde 1986 até 21.12.2010, com um interregno entre 1998 a 2002, período em que trabalhou para outra sociedade do grupo - a O..., S.A.
(…)
16) A Autora acumulou as funções e responsabilidades de Diretora do Hotel 1... com as de Presidente do Conselho de Administração da sociedade comercial denominada “O..., S.A.” no período temporal compreendido entre março de 2000 e setembro de 2007.
(…)
18) No dia 21 de dezembro de 2010, foi celebrado um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, por escritura pública, mediante o qual a F..., S.A. vendeu à ora R. o prédio onde se encontrava instalado o “Hotel 1...” (…);
(…)
22) No dia seguinte ao da escritura de compra e venda do Hotel 1..., o gerente da ora R. (…) referiu à A. que, por motivos financeiros, não lhe ia conseguir pagar o mesmo que estava a receber anteriormente.
(…)
24) Assim, a partir do dia 31/12/2010 a A. passou a receber da R. a quantia de 1200,00€ (…) de salário até setembro de 2013 e a quantia de 1.250,00€ a partir de outubro de 2013 e até final do contrato.
25) Foi com alguma dificuldade que a A. continuou a dar suporte financeiro à sua filha, na altura estudante universitária.
26) Tendo as alterações no orçamento familiar impactado igualmente nos restantes membros do seu agregado.
27) Como foi o caso do marido da A., que teve de passar a trabalhar a tempo inteiro em vez de a tempo parcial e, desse modo, passou a estar menos presente no quotidiano familiar.
28) A A. deixou de passear com o seu marido com a frequência com que fazia, uma vez que passaram a estar mais limitados economicamente.
29) Tendo a alteração da sua situação económica sido desgastante para a A., passando a mesma a ser uma pessoa mais ansiosa, situação que se agravou quando lhe foram retiradas as funções de Diretora de Hotel.
(…)
33) Em data não concretamente apurada mas cerca de dois anos após a aquisição do Hotel 1... pela ré, esta determinou que a autora deixasse de exercer funções de “Diretora de Hotel” e passou a exercer apenas funções de “Diretora de Eventos”, sendo fisicamente transferida, sem qualquer justificação, para uma unidade hoteleira ao lado do Hotel 1... – O Hotel 2....
34) Toda esta situação provocou na A. desgaste emocional, sentindo-se esta humilhada e desconsiderada.
(…)
38) A A. passou à situação de reforma no referido dia 2 de dezembro de 2021.
39) Passando, a partir dessa data, a receber uma pensão de reforma, calculada unicamente com base nos rendimentos do seu trabalho.
(…)
– “Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.ª Secção).
– Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2).
– “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2).
– “Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2).
– Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1).
– “Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02-02-2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).
10. Quanto à primeira questão em causa [cfr. supra nº 4, i)], refira-se, antes do mais, que o acórdão recorrido a abordou nos seguintes termos:
“(…)
Igualmente se provou que a autora, entre março de 2000 e setembro de 2007, acumulou as funções e responsabilidades de Diretora do Hotel 1... com as de Presidente do Conselho de Administração da sociedade comercial denominada “O..., S.A.”, que era outra sociedade do grupo.
Todavia, a ré não alegou, nem logrou demonstrar, que as quantias pagas à autora anteriormente à venda do Hotel 1... à ré, contemplassem o pagamento dessas atividades acrescidas.
(…)
Deste modo, todas as quantias pagas à autora constituíam a contrapartida monetária pelas funções laborais exercidas.”
Em face das regras de repartição do ónus da prova, ínsitas no art. 342º, do C. Civil, não se vê que o critério seguido suscite qualquer dúvida e, muitos menos, qualquer dimensão problemática que justifique a intervenção do STJ, à luz das linhas jurisprudenciais expostas em supra nº 9.
E, quanto aos invocados interesses de particular relevância social, também é patente que não estão em causa “aspetos fulcrais para a vida em sociedade” (Ac. do STJ de 13.04.2021, P. 1677/20.6T8PTM-A.E1.S2), assuntos suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação (Acs. do STJ de 14.10.2010, P. 3959/09.9TBOER.L1.S1, e de 02.02.2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1), ou que “exista um interesse comunitário significativo que transcenda a dimensão inter partes” (Ac. do STJ de 29.09.2021, P. n.º 686/18.0T8PTG-A.E1.S2), sendo certo que nesta matéria “não basta o mero interesse subjetivo do recorrente” (Ac. do STJ de 11.05.2021, P. 3690/19.7T8VNG.P1.S2).
Quanto a este ponto, encontram-se inverificados, pois, os fundamentos da revista excecional contemplados nas alíneas a) e b) do n.º 1 do mencionado art. 672.º.
11. Nos termos em que agora são apresentadas, a segunda e terceira questões [cfr. supra nº 4, ii) e iii)] não foram suscitadas na apelação da ora recorrente, não tendo sido, consequentemente, objeto de decisão na Relação.
Com efeito, na apelação, a ré limitou-se a alegar que: “O douto Tribunal, ignorou os documentos que demonstram o registo histórico dos descontos para a Segurança Social da A., em que exatamente na data do exercício de Presidente do Conselho de Administração a O..., S.A., teve um acréscimo do vencimento em 2000 de 12.918,87€ para 18.340,9€ e em 2003 passou para 29.393,58€, quando iniciou exercício da função de administradora de facto da F..., S.A.”; “Não houve uma conscienciosa ponderação da análise da prova junta aos autos, nomeadamente o histórico dos vencimentos da A., que cumulou o exercício de funções de Presidenta do Conselho de Administração (2000) e de Administradora de facto da F..., S.A., com um vencimento anual de 30.743,25€, vencimento mensal de 2.195,94€”.
Concluindo: “49 – […] o Tribunal a quo ignorou os documentos que demonstram o registo histórico dos descontos para a Segurança Social da A., em que exatamente na data do exercício de Presidente do Conselho de Administração a O..., S.A., teve um acréscimo do vencimento de 12.918,87€ para 29.393,58€, entre 2000 e 2003, quando iniciou exercício da função de administradora de facto da F..., S.A..”
Assim, na apelação, a questão do histórico dos descontos para a segurança social surge, tão somente, a propósito da apreciação da prova efetuada pelo tribunal de 1.ª Instância (matéria subtraída da competência do STJ em matéria de recurso de revista), referindo a este propósito o acórdão recorrido: “[A] determinada altura das alegações e conclusões do recurso alegou ainda [a recorrente] que o tribunal a quo ignorou documentos relacionados com o histórico dos vencimentos auferidos pela autora. Todavia, não impugnou nenhum ponto específico do acervo fáctico relacionado com as retribuições auferidas pela autora.”
Decidiu, por isso, o TRE rejeitar esta (aparente) impugnação da matéria de facto por incumprimento do artigo 640.º, n.º 1, a), do CPC.
Vale dizer que o TRE nada decidiu no tocante ao direito à indemnização reconhecido na 1ª instância para ressarcir a diminuição do valor da pensão de reforma resultante da redução da retribuição da autora, sendo certo que os recursos, enquanto meios de impugnação das decisões judiciais (cfr. art. 627.º, n.º 1, CPC), apenas se destinam à reapreciação de questões anteriormente apreciadas pelo tribunal a quo.
Tais questões não podem, pois, ser invocadas em sede de revista excecional.
12. Por último, quanto à matéria enunciada em supra nº 4, iv).
Como claramente emerge do acórdão recorrido (maxime, a fls. 30), a indemnização por danos não patrimoniais arbitrada à autora, baseia-se no conjunto dos pontos 29, 33 e 34 dos factos provados, e não na “circunstância de [a autora] se ter passeado menos tempo com o marido” (a que se refere o ponto 28 da matéria de facto).
Inverificado o pressuposto argumentativo em que, neste âmbito, a recorrente baseava a sua pretensão, também nesta parte improcede, manifestamente, o peticionado.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 12.03.2025
Mário Belo Morgado, relator
Julio Manuel Vieira Gomes
José Eduardo Sapateiro