REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
Sumário


I. No conjunto dos casos submetidos à apreciação dos tribunais, impõe-se distinguir os casos simples dos casos difíceis (“hard cases”), que não se compadecem com operações de aplicação do direito de tipo fundamentalmente subsuntivo e nos quais se impõe especial ponderação dos interesses que norteiam e foram causais da lei.
II. Está em causa uma situação de facto cujo tratamento jurídico de forma alguma se pode considerar simples ou evidente, envolvendo antes indiscutível complexidade: um acidente de trabalho que consistiu em o sinistrado ter sido atropelado pela sua própria viatura, depois de a ter imobilizado num local em que o piso é inclinado, isto sem desligar o motor do veículo, nem colocar a mudança oposta ao sentido da inclinação do piso e sem assegurar a travagem manual completa e correta do veículo, sendo que a curta distância existia um local de parqueamento.
III. Com efeito, o caso convoca problemáticas e figuras jurídicas de relevância central no domínio dos acidentes de trabalho, como é o caso da descaracterização do acidente devido a negligência grosseira do sinistrado [cfr. art. 14º, nº 2, b), da LAT], figura de contornos não totalmente precisos e cuja importância se encontra transversalmente presente em praticamente todas as áreas do direito e que, especificamente para efeitos de descaracterização do acidente de trabalho, se encontra definido no art. 14º, nº 3, do mesmo diploma, com recurso a múltiplos conceitos indeterminados de alcance muito discutido na doutrina e na jurisprudência.
IV. Neste contexto, considerando que a densificação dos conceitos envolvidos se revela da maior acuidade e que nos encontramos perante uma situação com indiscutível dimensão paradigmática, é patente que in casu a intervenção do STJ é suscetível de se traduzir numa melhor aplicação do direito, reforçando a segurança, certeza e previsibilidade na sua interpretação e aplicação e dessa forma contribuindo para minimizar – numa matéria da maior relevância prática e jurídica – indesejáveis contradições entre decisões judiciais.

Texto Integral


Processo n.º 91/20.8T8LRA.C1.S1 (revista excecional)

MBM/JG/JES


Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.



1. AA interpôs ação especial, emergente de acidente de trabalho, contra LIBERTY SEGUROS, S.A. e CITREZE TRANSFORMAÇÃO E COMÉRCIO DE CARNES, LDA.

2. A ação foi julgada procedente na 1ª Instância.

3. Interposto recurso de apelação por ambas as rés, o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC) decidiu:

a) Julgar a apelação da R. Citreze totalmente improcedente, deste modo confirmando, nesta parte, a sentença impugnada;

b) Julgar a apelação da R. Liberty totalmente procedente e, assim: absolver as rés do pagamento da pensão anual fixada entre 09.07.2021 e 06.01.2023; fixar a pensão anual e vitalícia por IPATH a partir 09.07.2021.

4. A R. Citreze veio interpor recurso de revista excecional, com fundamento no art. 672º, nº 1, a) e b), do CPC, sustentando, essencialmente, que o acidente de trabalho em causa deve ser descaraterizado, em virtude de se dever, exclusivamente, a negligência grosseira do autor.

5. O autor contra-alegou.

6. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso de revista excecional.

Decidindo.


II.


7. Com relevância para a decisão, a matéria de facto fixada na decisão recorrida é a seguinte:

(…)

2- O autor foi vítima de um acidente, no dia 08.01.2019, quando se encontrava no seu local de trabalho e sofreu atropelamento, pela sua própria viatura, sofrendo esmagamento contra o cais de descarga da empresa..

3- Aonde se tinha deslocado a fim de fechar a torneira de segurança, conforme é habitual, para depois sair das instalações.

4- O autor imobilizou o seu veículo na rampa situada à saída das instalações da empresa, na zona junto à vedação e portão de saída.

5- No local o piso é inclinado em sentido descendente na direção do cais onde o sinistrado se dirigiu a fim de fechar a torneira de segurança.

6- O veículo - uma pick-up com peso de cerca de 2000 kg -, atendendo à inclinação da rampa, deslizou e veio a embater no autor atropelando-o conforme 2, junto à torneira de segurança onde se encontrava.

7- A distância entre o local em que o autor imobilizou a viatura e o local do embate é de poucos metros.

8- O autor não havia desligado o motor do veículo, nem colocou a mudança oposta ao sentido da inclinação do piso e não assegurou a travagem manual completa e correta do veículo.

9- A curta distância do local onde ocorreu o acidente, situado na lateral do edifício, existe um local de parqueamento de veículo, situado na lateral do edifício.

(…)


III.


8. Nos termos e para os efeitos do art. 672.º, n.º 1, a), reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes:

“Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.ª Secção).

– Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2).

– “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2).

“Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2).

– Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1).

“Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02-02-2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).

9. Em especial a doutrina e jurisprudência anglo-saxónicas, distinguem, duas categorias de casos submetidos à apreciação dos tribunais: os casos simples (“easy cases”) e os casos difíceis (“hard cases”), que não se compadecem com operações de aplicação do direito de tipo fundamentalmente subsuntivo e nos quais se impõe especial ponderação dos interesses que norteiam e foram causais da lei, sendo certo que esta é sempre “resultante dos interesses de ordem material (…) que em cada comunidade jurídica se confrontam uns aos outros e lutam pelo seu reconhecimento”.1

Na verdade, “quanto mais complexos são os aspetos particulares do caso a decidir, tanto mais difícil e mais livre se torna a atividade do juiz, tanto mais se afasta da aparência da mera subsunção”.2 “Este é desde logo o caso em que a lei lança mão dos denominados conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais. Aqui apresenta-se somente um quadro muito geral que o juiz, no caso concreto, terá de preencher mediante uma valoração adicional”. 3

Na verdade, cada vez mais frequentemente tendo em conta a crescente complexidade das relações sociais, «a lei não é diretamente aplicável, mas estabelece balizas e fornece referências para o modo como a norma do caso deve ser obtida. Face ao texto legal, distingue Fikentscher entre um” limite de sentido literal” e um “limite de sentido normativo”». 4

10. Está em causa uma situação de facto cujo tratamento jurídico de forma alguma se pode considerar simples ou evidente, envolvendo antes indiscutível complexidade.

Com efeito, o caso convoca problemáticas e figuras jurídicas de relevância central no domínio dos acidentes de trabalho, como é o caso da descaracterização do acidente devido a negligência grosseira do sinistrado [cfr. art. 14º, nº 2, b), da LAT], figura de contornos não totalmente precisos e cuja importância se encontra transversalmente presente em praticamente todas as áreas do direito e que, especificamente para efeitos de descaracterização do acidente de trabalho, se encontra definido no art. 14º, nº 3, do mesmo diploma, com recurso a múltiplos conceitos indeterminados de alcance muito discutido na doutrina e na jurisprudência.

Neste contexto, considerando que a densificação dos conceitos envolvidos se revela da maior acuidade e que nos encontramos perante uma situação com indiscutível dimensão paradigmática, é patente que in casu a intervenção do STJ é suscetível de se traduzir numa melhor aplicação do direito, reforçando a segurança, certeza e previsibilidade na sua interpretação e aplicação e dessa forma contribuindo para minimizar – numa matéria da maior relevância prática e jurídica –indesejáveis contradições entre decisões judiciais.

Com prejuízo da apreciação do segundo fundamento invocado pela recorrente, vale por dizer que no caso em apreço se verifica o condicionalismo previsto no art. 672.º, nº. 1, a), do CPC, justificando- se, por conseguinte, a admissão excecional da revista.


IV.


11. Nestes termos, acorda-se em admitir a recurso de revista excecional em apreço.

Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 12.03.2025

Mário Belo Morgado, relator

Julio Manuel Vieira Gomes

José Eduardo Sapateiro

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1. Cfr. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Gulbenkian, 2ª edição, pág. 59.↩︎

2. Ibidem, pág. 129.↩︎

3. Ibidem, pág. 140.↩︎

4. Ibidem, pág. 168.↩︎