ACIDENTE DE TRABALHO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
SINAL DE STOP
Sumário


I - Para que se verifique a descaraterização do acidente com base na negligência grosseira é necessária a prova de que ocorreu um ato ou omissão temerária, reprovável e indesculpável em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, é também preciso provar que o acidente ocorreu exclusivamente por causa desse comportamento.
II - Resultando dos factos provados que a sinistrada não parou no sinal de STOP existente no local e prosseguiu o seu trajeto, correndo o risco gratuito de uma manobra que envolvia o sério perigo e colisão com outros veículos, que circulassem na Estrada Nacional 205, tal conduta é de considerar como altamente temerária e configura negligência grosseira e resultando ainda da factualidade apurada que a sinistrada cortou a linha de transito do veículo que circulava naquela estrada nacional, não dando hipótese ao condutor de evitar o embate, impõe-se concluir que o comportamento da sinistrada foi a causa exclusiva do acidente.

Texto Integral


I – RELATÓRIO

AA, residente na Rua ..., ..., ..., ..., intentou ação especial emergente de acidente de trabalho contra “EMP01..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.” com sede na Rua ..., ..., ..., pedindo a condenação desta no pagamento de:

a) €654,68 a título de 32 dias de ITA;
b) €20,00 de despesas com transportes obrigatórios, ao GML ... e a este Tribunal;
c) €84,40 de deslocações ao Hospital ..., no ... para consultas e exames médicos;
d) €39,32 em despesas medicamentosas;
e) €18,90 com despesas médicas;
f) juros de mora vencidos e vincendos à taxa de legal de 4% desde a data de vencimento de cada uma das referidas prestações até integral pagamento.  

Regularmente citada, a ré veio contestar, mantendo a posição assumida em sede conciliatória, ou seja, não aceitou a caracterização do acidente de trabalho, por entender que o mesmo se ficou a dever a culpa exclusiva da sinistrada, por incumprimento das regras estradais a que estava sujeita na condição rodoviária, concretamente da obrigação de paragem ditada pelo sinal STOP que se encontrava aposto na rua de onde provinha o que veio a determinar, de forma exclusiva, a ocorrência do acidente de viação, estando assim comprovada a negligência grosseira da sinistrada.

Foi proferido despacho saneador, foi fixada a factualidade assente, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizou-se audiência de julgamento e foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:

Decisão
Termos em que decido julgar a ação totalmente improcedente e, consequentemente, absolvo a ré “EMP01..., Companhia de Seguros, S.A.” dos pedidos que contra si foram deduzidos pela autora AA.

*
Custas pela autora (cfr. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Valor da ação – 817,30€ - art. 120.º do CPT.
Registe e notifique.”

Inconformada com esta decisão, dela veio a Autora interpor recurso de apelação, para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões:
(…)
19.Não é possível afirmar, para os efeitos da disposição legal em questão, que a sinistrada tenha agido com negligência grosseira.
20.Mas ainda que assim não se entenda, sem prescindir, diremos ainda que o evento infortunístico não pode ser atribuído exclusivamente à conduta da sinistrada.
21. Assim, e tendo por base o alegado supra, é notório que não se encontram reunidos os pressupostos da negligência grosseira. Pelo que, nunca poderia a sinistrada ser considerada única e exclusivamente culpada do acidente de viação, porquanto não existe prova de que não parou no sinal de STOP.
22.A douta sentença proferida violou o disposto nos artigos 8º, 10º, nº1, 14º nº 1 e nº 3 da Lei 98/2009.
23.Assim, revogando a douta decisão recorrida e substituindo-a por outra que condene a Ré EMP01..., Companhia de Seguros, S. A. nos pedidos contra si deduzidos, farão V/ Exa. inteira e merecida justiça!”
Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
Admitido o recurso na espécie própria, com o adequado regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.
Foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do C.P.T., tendo a Exma. Procuradora Geral-Adjunta emitido douto parecer no sentido da procedência do recurso, por considerar que a conduta da autora não é de qualificar como negligência grosseira, não devendo por isso o acidente de trabalho a que os autos se reportam, ser descaraterizado.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.
*
II – DO OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da Recorrente, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal da Relação são as seguintes:

- Da impugnação da matéria de facto;
- Da descaraterização do acidente por negligência grosseira.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Factos Provados
A. No dia 6-12-2021, cerca das 12h05, quando a autora prestava a sua atividade profissional sob as ordens, direção e fiscalização da “EMP02..., Ldª”, exercendo as funções de operadora de máquinas de costura por conta desta entidade empregadora, e se dirigia para a sua habitação, no seu veículo automóvel, no intervalo do almoço, pelo trajeto de regresso do local de trabalho, deu-se um embate entre o veículo por si conduzido de matrícula ..-PP-.. e o veículo ligeiro de matrícula ..-AX-.., tendo a autora sofrido lesões na cabeça, ombro esquerdo e zona torácica.
B. Na ocasião referida em A., a autora seguia o sentido de marcha .../..., circulando numa estrada municipal, e prosseguiu a sua marcha até ao ponto em que a via por onde seguia entroncava com a Estrada Nacional (EN) 205, existindo imediatamente antes da confluência das vias um sinal de STOP colocado na via por onde circulava a autora.
C. Ao efetuar a manobra de mudança de direção à esquerda para ingressar na Estrada Nacional (EN) 205, a autora não parou a marcha do veículo que conduzia e entrou na EN 205 inopinadamente, cortando a linha de trânsito do condutor do veículo AX, que seguia na EN 205 no sentido de marcha .../... e que embateu com a frente do AX na lateral esquerda do PP.
D. O condutor do veículo AX seguia atento e a uma velocidade inferior a 50Km/h.
E. A autora foi assistida no Hospital ..., no Centro de Enfermagem de ... e no Hospital ..., no ..., sendo os dois últimos por conta da Seguradora.
F. E recebeu alta, por parte da Seguradora, em 22/12/2021, sem desvalorização.
G. As lesões sofridas pela autora determinaram-lhe um período de incapacidade temporária absoluta para o trabalho (ITA) de 32 dias, contados desde ../../2021 a 13/01/2022, sendo a data da cura das lesões fixável em 13/1/1022.
H. A Autora despendeu €20,00 em transportes com deslocações obrigatórias ao GML ... e a este Tribunal.
I. E gastou em deslocações ao Hospital ..., no ..., para consultas e exames médicos, a quantia de €84,40.
J. E despendeu €39,32 (€5.92 + 33,41) em despesas medicamentosas.
K. E gastou €18,90 com despesas médicas de assistência no Hospital ....
L. Na data referida em A., a autora auferia o rendimento anual global de €9.665,00.
M. A responsabilidade infortunística laboral da autora estava transferida para a ré Seguradora através da Apólice nº ...76 (prémio variável).
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Factos Não Provados

1. A autora não abrandou a marcha do veículo que conduzia antes do sinal STOP.

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Da impugnação da matéria de facto
A Recorrente nas conclusões de recurso defende que a decisão proferida pela 1ª instância sobre a matéria de facto deve ser alterada, sustentando que os pontos C) e D) dos pontos de facto provados devem passar a constar dos pontos de facto não provados.
Indica como meios de prova para fundamentar a sua pretensão as declarações de parte por si prestadas que não foram devidamente valorizadas pelo Tribunal a quo, tendo ao invés, este, dado prevalência, ao depoimento prestado pela testemunha BB, o qual em sua opinião não oferece credibilidade.
Vejamos:
Dispõe o artigo 662.º n.º 1 do C.P.C. aplicável por força do disposto no n.º 1 do artigo 87.º do C.P.T. e no que aqui nos interessa, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por seu turno, resulta do artigo 640.º do C.P.C. que tem como epígrafe o “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto” que quando se impugne a decisão proferida quanto à matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, bem como, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Importa ainda referir que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade do julgador ou da prova livre, consagrado no artigo no n.º 5 do artigo 607.º do CPC, segundo o qual, o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha formado acerca de cada um dos factos controvertidos, salvo se a lei exigir para a prova de determinado facto formalidade especial.
No que respeita à prova testemunhal mostra-se consagrado no artigo 396.º do CC, o princípio da livre apreciação da prova testemunhal, segundo o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador ao dispor o citado preceito legal que a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal.
Como refere a este propósito Ana Luísa Geraldes[i] “ (…) a alteração deve ser efetuada com segurança e rodeada das necessárias precauções, centrando-se nas desconformidades encontradas entre a prova produzida em audiência - após efetiva audição dos respctivos depoimentos - e os fundamentos indicados pelo julgador da 1ª instância e nos quais baseou as suas respostas, e que habilitem a Relação, em conjunto com outros elementos probatórios e nos termos das als. a) e b) do nº 1 do art. 712º do CPC, a concluir em sentido diverso, quanto aos concretos pontos de facto impugnados especificadamente pelo Recorrente. Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.” (sublinhado nosso).
Em suma, o uso dos poderes de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de manifesta desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos impugnados, acrescendo dizer que estando em causa a análise de prova gravada só se deve abalar a convicção criada pelo juiz a quo, em casos pontuais e excecionais, ou seja, quando não estando em causa a confissão ou qualquer facto só susceptível de prova documental, se verifique que as respostas dadas não têm qualquer suporte nos elementos de prova trazidos aos autos ou estão em manifesta contradição com a prova produzida, ou não têm qualquer fundamento perante a prova constante dos autos.
Cabe assim ao Tribunal de recurso verificar se o juiz a quo julgou ou não adequadamente a matéria de facto controvertida em face dos elementos a que teve acesso, de forma a verificar ou não um eventual erro de julgamento na apreciação/valoração das provas, aferindo-se da adequação, ou não, desse julgamento, que possa vir a impor decisão diversa.
Ora, depois de termos ouvido todos depoimentos prestados na audiência de julgamento e analisado a prova documental junta aos autos, teremos de dizer que os meios de prova indicados não impõem decisão diferente da proferida pelo tribunal a quo sobre os pontos de facto em apreço, como melhor se irá explicitar.
Os pontos de facto provados que a Recorrente pretende que passem a constar dos factos não provados são os seguintes:
C. Ao efetuar a manobra de mudança de direção à esquerda para ingressar na Estrada Nacional (EN) 205, a autora não parou a marcha do veículo que conduzia e entrou na EN 205 inopinadamente, cortando a linha de trânsito do condutor do veículo AX, que seguia na EN 205 no sentido de marcha .../... e que embateu com a frente do AX na lateral esquerda do PP.
D. O condutor do veículo AX seguia atento e a uma velocidade inferior a 50Km/h.
O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção quanto a esta factualidade agora impugnada, referente à dinâmica do acidente, da seguinte forma:
“No que respeita à dinâmica do acidente, apenas se revelou de efetiva valia probatória o relato da autora e da testemunha BB, ambos condutores das viaturas intervenientes no acidente, anotando-se que a testemunha CC só veio a acorrer ao local do sinistro após a sua ocorrência, a pedido da autora, e a testemunha DD, que foi perito averiguador do sinistro por conta da ré, limitou-se a analisar os depoimentos e documentos que posteriormente vieram a ser-lhe transmitidos.
Assim, da análise do depoimento da autora e da testemunha BB e do teor da declaração amigável e fotografias anexas à contestação, tudo documentos não impugnados, ficou o tribunal perfeitamente convencido de que a autora efetivamente não parou antes do sinal STOP para perceber se circulavam veículos na estrada nacional por onde pretendia prosseguir.
De facto, se bem que a autora tivesse declarado que observou tal cuidado e que veio a prosseguir a sua marcha porque não viu qualquer carro a circular na estrada nacional no sentido ..., e o autocarro que circulava na estrada nacional no sentido ... lhe “cedeu a passagem”, certo é que o tribunal não veio a convencer-se minimamente da bondade do seu relato, que foi frontalmente negado pelo depoimento da testemunha BB, que declarou, com veemência, que não se recordava de qualquer autocarro a circular na faixa à sua esquerda e que circulava em fila de trânsito compacto, provindo de ..., quando veio a dar-se o embate, que aconteceu após o arranque do veículo que o precedia e do seu subsequente arranque, altura em que veio a ser surpreendido pela entrada inopinada do veículo da autora na estrada nacional, que lhe cortou a linha de trânsito, tendo acabado por embater na lateral esquerda da viatura da autora com a frente esquerda do seu veículo quando aquela viatura se encontrava de “esguelha” sobre a sua via de circulação.
Ora, no confronto entre as duas versões diametralmente distintas assim relatadas, o tribunal não teve qualquer dúvida em conferir total credibilidade à versão relatada pela testemunha BB pois que, ao contrário da autora, que proferiu declarações notoriamente comprometidas com o desfecho favorável da ação, aquele depôs de forma genuína e totalmente desinteressada, anotando-se que tal testemunha se encontra já totalmente reparada dos seus danos.
Aliás, foi o próprio relato da autora que acabou por denunciar a falta de autenticidade das suas declarações e por tornar evidente que a mesma não parou, como procurou fazer crer, à chegada ao sinal STOP, pois que, apesar de ter garantido que observou tal cuidado, não conseguiu justificar a razão pela qual não se apercebeu afinal da prévia presença do veículo da testemunha BB na estrada nacional por onde pretendia prosseguir, de que declarou só se ter apercebido no exato momento do embate, tendo procurado justificar a sua “surpresa” com a eventual possibilidade de o veículo ter entretanto “saído do café que se localizava mais à frente” (sic), possibilidade que a testemunha BB frontalmente negou, tendo asseverado que provinha sim de ..., da Universidade.
Ora, o total desconhecimento que a autora patenteou quanto à presença do veículo da testemunha BB na estrada nacional tornou evidente que a autora não pôde efetivamente ter efetuado qualquer paragem antes do sinal STOP pois que, se tivesse observado tal comportamento, dada a muito boa visibilidade de que dispunha sobre a extensa reta que se estendia na estrada nacional para o trânsito provindo na direção de ..., sentido de trânsito em que seguia a testemunha BB (vide fotografias anexas à contestação), teria inevitavelmente que se ter apercebido da presença daquela viatura na estrada nacional, incluindo se esta tivesse saído – como efabulou - do estacionamento do café pois que, ao contrário do que a autora procurou fazer crer, tal estacionamento não se encontrava “ao lado do entroncamento” mas a uma boa distância do local (mais de 50 metros), como evidenciam as fotografias anexas à contestação.
Tudo o exposto serve para justificar a prova da factualidade constante de C. e D., anotando-se que a testemunha BB confirmou que seguia em fila e estava a arrancar quando se deu o embate, o que levou o tribunal a convencer-se de que seguia atento e a velocidade reduzida.”
Ora, do confronto do teor da prova produzida em audiência de julgamento com a apreciação da mesma efetuada pela juiz a quo teremos de dizer que esta sustentou a sua convicção quanto aos pontos c) e d) dos pontos de facto provados de forma clara, precisa e assertiva, indo de encontro à prova produzida, estando suficientemente  fundamentadas as razões pelas quais se deu como provados tais pontos de facto, bem como explicitadas as razões pelas quais se atribuiu maior credibilidade ao depoimento da testemunha BB, em detrimento das declarações prestadas pela autora, tendo o tribunal a quo esmiuçado e pormenorizado, o processo de análise da prova, salientando as incongruências detetadas nas declarações da autora e a posição da testemunha e da autora relativamente ao desfecho da ação, com as quais não podemos deixar de concordar.
Como já acima deixámos expresso só se deve proceder à alteração da decisão da matéria de facto quando ocorra uma flagrante discrepância entre os elementos de prova e a decisão sobre a matéria de facto, mostrando-se a convicção do julgador de 1ª instância contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.
Melhor explicitando só devemos proceder à alteração da matéria de facto quando os elementos dos autos conduzam inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1ª instância, sendo ainda de referir que, em caso de depoimentos testemunhais contraditórios deve dar-se prevalência ao decidido em 1ª instância atendendo ao princípio da livre convicção do julgador.
Ora, no caso, para além da convicção da Recorrente, e do seu próprio testemunho, pouco preciso, algo incongruente e totalmente contraditório com o depoimento da testemunha BB, não foi detetada qualquer outra prova que nos conduzisse ao erro de julgamento. Ao invés, da reapreciação da prova e perante a contradição entre o depoimento da testemunha e as declarações pouco credíveis e interessadas da autora, só podia o Tribunal a quo dar prevalência ao depoimento da testemunha BB, que se revelou de desinteressado, espontâneo e sincero.
Não se vislumbra qualquer razão para a alterar os pontos C) e D) dos pontos de facto provados, pois não foi cometido qualquer erro de julgamento que imponha correção, sendo de manter a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, improcedendo assim a sua impugnação.

2. Da Descaraterização do Acidente
Importa desde já deixar consignado que por os factos em apreciação terem ocorrido em 06.12.2021, a Lei aplicável, no que respeita ao regime dos acidentes de trabalho é a Lei n.º 98/2009 de 4/09, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do art.º 284º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12/02.
Mantendo-se inalterada a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal a quo é perante aquele quadro factual apurado, importa agora, apreciar se o comportamento da sinistrada integra a situação prevista no n.º 1 al. b) do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009 de 4/09 (doravante NLAT).
A Recorrente insurge-se contra o facto de na sentença recorrida se ter concluído pela descaracterização do acidente, fazendo-se, assim, uma errada interpretação dos factos provados, já que a factualidade apurada não permite concluir que o evento infortunístico tenha ocorrido exclusivamente por culpa da sinistrada. Quanto ao demais defendido pela recorrente, no que respeita à culpa pela ocorrência do acidente tal pressupunha a alteração da matéria de facto, a qual não se veio a verificar.

Sob a epígrafe de “Descaracterização do acidente” estabelece o artigo 14º da NLAT, o seguinte:

“1. O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou se o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2.(…).
3. Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”

Conforme é pacífico na doutrina e na jurisprudência, para que determinada conduta integre a negligência grosseira, não basta que se verifique uma culpa leve, como a imprudência, a distração, a imprevidência ou comportamentos semelhantes. Ao invés, exige-se um comportamento temerário, um elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo reprovado por um elementar sentido de prudência.
A negligência grosseira corresponde a uma culpa grave, o que pressupõe que a conduta do agente, seja gratuita, infundada e que se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.
Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão ostensivamente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstrato de conduta.
Em suma, para que se verifique a descaraterização do acidente com base na negligência grosseira é necessária a prova de que ocorreu um ato ou omissão temerária, reprovável e indesculpável em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, é também preciso provar que o acidente ocorreu exclusivamente por causa desse comportamento.
Tratando-se de um acidente in itinere importa ainda referir, conforme tem sido entendimento do Supremo Tribunal de Justiça[ii], com o qual se concorda, que nos casos em que o acidente é simultaneamente, de viação e de trabalho, estando em causa o cometimento de uma infração estradal ainda que seja de considerada grave ou muito grave, tal não se revela de suficiente, para em sede de direito infortunístico, dar como preenchido o requisito da negligência grosseira (que sustenta a descaracterização do acidente de trabalho), na medida em que, na legislação rodoviária, são particularmente prementes considerações de prevenção geral, que justificam a punição de meras situações de perigo, que não se justificam que sejam utilizados em desfavor dos trabalhadores/sinistrados, no âmbito do regime jurídico dos acidentes de trabalho. O que significa que o critério da gravidade das infrações no domínio rodoviário não serve para qualificar como “grosseira” a culpa do sinistrado num acidente de trabalho.
Da factualidade provada resulta que a sinistrada, no dia 6.12.2021, cerca das 12h05, quando prestava a sua atividade profissional sob as ordens, direção e fiscalização da “EMP02..., Ldª”, exercendo as funções de operadora de máquinas de costura, e se dirigia para a sua habitação, no seu veículo automóvel, no intervalo do almoço, pelo trajeto de regresso do local de trabalho, sofreu um acidente. Ao efetuar a manobra de mudança de direção à esquerda para ingressar na Estrada Nacional (EN) 205, não parou a marcha do veículo que conduzia, apesar do sinal de “STOP” existente no local, e entrou na EN 205 inopinadamente, cortando a linha de trânsito do condutor do veículo AX, que seguia na EN 205, no sentido de marcha .../... e que embateu com a frente do AX na lateral esquerda do PP. Mais se apurou que que o condutor do veículo AX seguia atento e a uma velocidade inferior a 50Km/h.
Esta factualidade evidencia que a sinistrada ao pretender efetuar a manobra de mudança de direção à esquerda, colocado na confluência de uma estrada municipal com uma estrada nacional, não parou, no sinal de stop existente no local, que lhe impunha a paragem obrigatória, só podendo retomar a marcha ao verificar estarem reunidas as condições de segurança para o efeito. O que não sucedeu, pois de forma inopinada prosseguiu o seu trajeto, com total desprezo pelas mais elementares regras de segurança, arriscando de forma gratuita uma manobra que envolvia enorme perigo de colisão com outros veículos, como veio a suceder. A sinistrada ao pretender entrar numa estrada nacional, onde em regra existe grande afluência de trânsito, teria de ter previsto que o desrespeito pelo sinal de STOP provocaria uma grande possibilidade de ocorrência de acidente, como se veio a verificar. Acresce dizer que em consequência de tal manobra a sinistrada cortou a linha de trânsito do condutor do veículo AX, que por ali circulava atento ao trânsito e a uma velocidade inferior a 50 km/h, o qual não teve qualquer possibilidade de evitar o embate.
Por fim, é de referir que não resultou provada qualquer factualidade que minimizasse ou justificasse a gravidade objetiva que reveste o comportamento da sinistrada, não se podendo considerar de minimizada ou justificada a gravidade de tal comportamento, pelo facto de aquela realizar, aquele percurso de carro, que impunha a paragem no sinal de Stop, pelo menos duas vezes ao dia. Ao invés, do defendido no douto parecer junto aos autos pelo Ministério Público, entendemos que não deve ser efetuado para efeitos de qualificação da negligência qualquer paralelismo com a segunda parte do n.º 3 do art.º 14.º da NLAT, não devendo tal circunstancialismo ser transportado para o acidente in itinere, uma vez que a maior confiança na condução, por se realizar um percurso conhecido, que se efetua mais do que uma vez por dia, não se confunde, nem se assemelha ao ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão, que são as situações especificamente salvaguardadas pelo citado normativo, o qual em nosso entender apenas se aplica ao concreto desempenho da atividade profissional e não a outras situações que em nada contendam com a especifica atividade profissional desenvolvida pelo sinistrado.
Com a sua conduta a sinistrada não só incorreu na prática de uma contraordenação muito grave prevista na al. n) do art.º 146.º do Código da Estrada, como assumiu um comportamento altamente temerário e de relevante grau, configurando negligência grosseira.
Por outro lado, apraz ainda dizer que ficou demonstrado que o condutor do veiculo AX, conduzia de forma atenta e a uma velocidade inferior a 50 km/h, razão pela qual ao surgir o veículo conduzido pela sinistrada de forma inopinada lhe cortou a linha de trânsito, não tendo tido aquele, qualquer hipótese de evitar o acidente, sendo assim de considerar que a conduta da sinistrada foi a causa exclusiva do acidente e das consequências dele resultantes.
Resumindo, resultando dos factos provados que a sinistrada não parou no sinal de STOP existente no local e prosseguiu o seu trajeto, correndo o risco gratuito de uma manobra que envolvia o sério perigo e colisão com outros veículos, que circulassem na  Estrada Nacional 205, tal conduta é de considerar como altamente temerária e configura negligência grosseira e resultando ainda da factualidade apurada que a sinistrada cortou a linha de transito do veículo que circulava naquela estrada nacional, não dando hipótese ao condutor de evitar o embate, impõe-se concluir que o comportamento da sinistrada foi a causa exclusiva do acidente[iii].
Temos assim de concordar com o Tribunal a quo ao concluir pela descaraterização do acidente como de trabalho, razão pela qual o recurso não merece provimento.

V - DECISÃO

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87.º do C.P.T. e 663.º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso de apelação interposto por EE, sendo de confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique.
Guimarães, 6 de Março de 2025

Vera Sottomayor (relatora)
Francisco Sousa Pereira


[i] Impugnação e Reapreciação da Matéria de Facto (http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf, pág. 282.
[ii] Neste sentido, entre outros Acórdãos do STJ de 17.09.2009, processo n.º 451/05.4TTABT.S1 e de 22.09.2011, processo n.º 896/07.5TTVIS.C1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[iii] Neste sentido se pronunciou o STJ no Ac. de 22.09.2011, processo n.º 896/07.5TTVIS.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt