AÇÃO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
DATA DA ALTA
DISCORDÂNCIA
INÍCIO DA FASE CONTENCIOSA
TRAMITAÇÃO PROCESSUAL
Sumário


Havendo desacordo na tentativa de conciliação unicamente sobre a data da alta, a tramitação da fase contenciosa deve ter por base simples requerimento a pedir perícia por junta médica, sem necessidade de petição inicial.
A fixação da incapacidade para o trabalho, envolve, além da fixação de coeficientes de défice funcional, a análise da natureza da incapacidade, se temporária, se permanente, sendo indissociável desta tarefa a apreciação da alta.
Estando em causa uma questão eminentemente técnica, o meio de prova adequado é a perícia médica, não se justificando a realização de julgamento, mormente para produção de prova testemunhal.

Texto Integral


Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

O recurso respeita a acção especial emergente de acidente de trabalho em que é sinistrada AA e entidades responsáveis «EMP01..., S.A.» e «EMP02... Unipessoal».
A tentativa de conciliação (de 11-01-2024) frustrou-se porque a sinistrada, representada por patrono, não aceitou a data da alta.
A este respeito, do auto consta:
Em consequência directa e necessária desse acidente resultaram para o sinistrado as lesões aludidas na perícia médica e elementos clínicos dos autos, o que determinou as IT´s neles descritas e a IPP de 2,985% que aceita, com alta médica em 08-03-2023 que não aceita.”
Pela sinistrada foi dito que aceita o acima descrito quanto ao acidente e quanto à retribuição e aceita a IPP atribuída, não aceita a proposta do MºPº, uma vez que não aceita a data da alta, pelo que vai requerer Junta Médica.”
No final do auto consta despacho proferido pelo magistrado do Ministério Público com o seguinte teor: “Visto a posição assumida pela sinistrada aguardem os autos o eventual requerimento da perícia por junta médica pela mesma.”
No mais houve acordo, mormente sobre a ocorrência do acidente, retribuição, entidades responsáveis, lesões, incapacidades temporárias e grau de incapacidade permanente parcial atribuído de 2,985%. A entidade empregadora e a entidade seguradora aceitaram o pagamento da pensão, da indemnização e dos juros.
Não foi apresentado requerimento a pedir perícia por junta médica.
No processo principal, em 7-03-2024, sob o fundamento de que “não foi requerida a realização de perícia por junta médica dentro do prazo legal, pelo que se impõe dar cumprimento ao disposto no art.º 138.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código de Processo do Trabalho, proferindo sentençafoi proferida decisão a fixar a natureza e grau de incapacidade, sendo esta objecto do recurso:
“fixo à sinistrada a incapacidade permanente parcial de 2,985%, com alta médica a 08-03-2023. Esteve em situação de ITA entre 14/10/2022 e 07/02/2023, de ITP 20% entre 08/02/2023 e 08/03/2023.”

FUNDAMENTOS DO RECURSO- CONCLUSÕES:
(…)
XXXII. Devendo a fase contenciosa ter o seu início mediante a apresentação da petição inicial - e não por simples requerimento a solicitar exame por junta médica - e tendo decorrido o prazo a que alude o nº 1 do artigo 119º do CPT, sem que aquela tenha sido apresentada, a instância deveria ter sido suspensa ao abrigo do nº 4 do artigo 119º do CPT.
XXXIII. Ao ter sido proferida decisão de mérito foram praticados actos que a lei não admitia e omitidos outros que a lei impunha, tendo sido cometidas irregularidades que influenciam directamente no exame e decisão da causa (cfr. artigos 193º, 195º, 196º todos do CPC).
XXXIV. A decisão de que agora se recorre viola o disposto nos art.s 117º nº 1, al. a); 118º, 119º, 126º e 138º nº 2 do CPT; artigos 193º, 195º e 196º todos do CPC, violando desta forma, o principio da legalidade, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que ordene a citação aos demandados da petição inicial já junta aos autos, seguindo os autos os seus ulteriores termos ...

SEM CONTRA-ALEGAÇÕES.
PARECER DO MINSTÉRIO PÚBLICO - sustenta-se que deve ser negado provimento ao recurso.
O recurso foi apreciado em conferência – 659º, do CPC.

QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso[1]): saber qual a tramitação a seguir em caso de na tentativa de conciliação haver apenas discordância sobre a data da alta: é necessário apresentar petição inicial ou basta requerimento por junta médica?

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS: os constantes do relatório.
B) DIREITO
Importa saber se, tendo a sinistrada na tentativa de conciliação apenas discordado da data da alta, a tramitação da fase contenciosa deveria ter por base petição inicial (117º, 1, a), CPT) ou simples requerimento a pedir perícia por junta médica (117º, 1, b), 119º, 1, 138º, 2, CPT).
Sustenta a sinistrada ( a qual, no prazo legal de 20 dias, não apresentou requerimento a pedir perícia junta médica), que a fase contenciosa deveria ter por base a petição inicial, porquanto não está apenas em causa a fixação da incapacidade para o trabalho, mas também “ a fixação da data da consolidação médico-legal das lesões e do nexo de causalidade entre as lesões e as incapacidades”, sendo que tais questões devem ser discutidas e decididas em sede de julgamento, com possibilidade de mais ampla prova, mormente documental e testemunhal.
Corrige-se que esteja controvertida a causalidade, que não está. A única questão que divide as partes é a data da alta, todas as demais se têm por assentes conforme exarado no auto de tentativa de conciliação- 112º, 117º, 1, b), 138º, 2, 131º, 1, c) CPT.
A alta clínica nada tem a ver com a causalidade. Prende-se antes com o momento da estabilização clínica do sinistrado:” Entende-se por alta clínica a situação em que a lesão desapareceu totalmente ou se apresenta como insusceptível de modificação com terapêutica adequada.”- 35º,3, da lei de acidentes de trabalho- Lei 98/2009, de 4-08 (LAT).
A definição legal ajuda a tomar posição sobre a tramitação a seguir. Da norma resulta que está em causa uma questão técnica, que escapa ao conhecimento comum e implica saber especializado em medicina e, quiçá, dentro desta, em subespecialidades (ortopedia, oftalmologia, otorrino, para citar algumas).
Saber se o dano na saúde do sinistrado não é mais susceptível de modificação a partir de certa data, é coisa que não está ao alcance de qualquer pessoa.
Há factos que podem ser conhecidos com recurso ao meios e aptidões que qualquer um dispõe, como presenciar um despedimento verbal, ou uma injúria, sendo idónea a prova testemunhal. Outros factos há que exigem conhecimento, especialização e credenciais, com é o caso da percepção da doença, da lesão e da cura. Nestes casos o juiz necessita de um intermediário, o perito, o qual, por via das suas qualificações técnicas, melhor apreende os factos objecto de prova.
Conquanto a palavra final caiba ao julgador, o qual aprecia livremente a prova, a jurisprudência tem reconhecido que a divergência do laudo pericial deve ser devidamente fundamentada, por aquele não dispor de especiais conhecimentos técnicos. Divergência que na prática acontece quando existem pareceres contrários, ou seja, e em última análise, outra prova pericial, por vezes até associada a meios complementares de diagnóstico em matéria de saúde.
Repare-se que as perícias médicas, singular e por junta médica, realizados no âmbito dos autos de acidente de trabalho são obrigatórias, a segunda em caso de não conformação com o resultado da perícia singular. O que é indicativo da necessidade de conhecimentos técnicos na matéria e da preponderância que a lei lhes confere. São requisitadas e realizadas por “entidades oficiais”, supostamente mais isentas.
A razão pela qual no âmbito dos acidentes de trabalho a fase contenciosa bifurca numa fase mais complexa impulsionada por petição inicial, ou numa mais simples impulsionada com requerimento, radica precisamente na compreensão de que neste último caso está em causa uma “questão técnica”, que será melhor resolvida através de um meio de prova específico, como a perícia médica plural em que participam três médicos. A petição inicial e o julgamento justificam-se quando há controvérsia sobre outras questões “não técnicas”, como ocorrência de acidente, entidade responsável, responsabilidade agravada, montante de retribuição, etc.
Chegamos à mesma conclusão, se atentarmos em outras normas processuais, ainda que vistas numa perspectiva aparentemente mais formal, mormente a que refere que o interessado apresenta o requerimento para fixação de incapacidade para o trabalho (i) quando não se conformar com o resultado da perícia médica singular (ii) - 117º, 1, b), CPT.
A tarefa de fixação da incapacidade para o trabalho (i) envolve, além da fixação de coeficientes de défice funcional, a análise da natureza da incapacidade, se temporária, se permanente. Ora, é indissociável desta tarefa a apreciação da alta clínica. Não há transposição de incapacidade temporária para permanente sem ponderação e fixação da data da alta. É esta que marca o fim da incapacidade temporária e o início da incapacidade definitiva ou da cura sem sequelas.
Numa outra perspectiva, a perícia médica singular, com a qual o interessado não se conforme (ii), engloba, nos termos legais, quer a “natureza das lesões sofridas” quer “ a data de cura ou consolidação”. Veja-se o disposto na lei: 106º, CPT, Formalismo, “1 - No relatório pericial, o perito médico deve indicar o resultado da sua observação clínica, incluindo o relato do evento fornecido pelo sinistrado e a apreciação circunstanciada dos elementos constantes do processo, a natureza das lesões sofridas, a data de cura ou consolidação, as sequelas e as incapacidades correspondentes, ainda que sob reserva de confirmação ou alteração do seu parecer após obtenção de outros elementos clínicos ou auxiliares de diagnóstico.”

Ademais, ao contrário do que refere a sinistrada, outros meios probatórios são permitidos ainda que a fase contenciosa se inicie com simples requerimento, mormente meios complementares de diagnósticos (RX, ressonância magnética, TAC, análises, etc), pareceres clínicos, enfim tudo meios de prova mais especializados. A prova testemunhal não é adequada pelas razões referidas.
O caso é tanto mais singular, porquanto a sinistrada, inclusive, aceitou a natureza permanente da sua incapacidade parcial e o respectivo grau. Repare-se que, no âmbito do mesmo acidente, a interessada não pode receber pensão por sofrer de uma IPP e simultaneamente receber indemnização com fundamento numa IT. A sinistrada ou sofre de uma incapacidade temporária que se caracteriza pela ausência de estabilização das lesões e estado de saúde, ou está clinicamente curada com estabilização de lesões ou sem lesões.
 Finalmente, consta do auto que foi proferido despacho a determinar que se aguardasse eventual apresentação por parte da sinistrada (representada por patrona) de requerimento de perícia por junta médica. Por isso, não se pode dizer que foi surpreendida com a questão.
No sentido exposto e com argumentos nos quais nos revemos ver ac. RP DE 15-11-2021, p. 3584/19.6T8MTS.P1, contra ac. RL de 17-02-2016, p. 4562/13.4TTLSB.L1-4, do qual nos distanciamos por não ter em conta o que fundamenta o requerimento por junta médica, www.dgsi.pt

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida - 87º CPT e 663. CPC
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.

6-03-2025

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Antero Dinis Ramos Veiga


[1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.