Sumário:
1. Na fase conciliatória do processo de acidente de trabalho, no momento em que visa promover o acordo, o Ministério Público não defende nem pode defender quaisquer interesses particulares, mas apenas o interesse público da correcta definição dos direitos e deveres resultantes de um acidente de trabalho.
2. O Ministério Público deve promover o acordo tendo por base, necessariamente, o resultado o exame pericial singular para consideração da incapacidade permanente do sinistrado.
3. Quem não se conforma com o resultado da perícia médica singular realizada na fase conciliatória pede perícia por junta médica, pelo que este pedido não pode ter por finalidade atacar uma proposta do Ministério Público que não se contenha, quanto à definição da incapacidade, no relatório da perícia.
4. A possibilidade de divergência quanto ao relatório pericial, sempre em decisão fundamentada, está reservada para um processo de natureza contenciosa e só por decisão judicial, pelo que o Ministério Público não pode desconsiderar nem divergir do relatório médico-legal singular na proposta que submete na tentativa de conciliação.
5. Ao apresentar proposta na tentativa de conciliação da fase conciliatória que diverge do relatório médico-legal, o Ministério Público pratica um acto que a lei não permite e que tem influência na forma como segue, a partir daí, a tramitação do processo e com influência na decisão da causa; mas essa nulidade não é de conhecimento oficioso e está dependente de invocação no momento legalmente oportuno.
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I. RELATÓRIO:
I.A.
“GENERALI SEGUROS, S.A.”, no processo de acidente de trabalho veio interpor recurso da sentença proferida pelo Juízo do Trabalho ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., que terminou com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, decide-se condenar a seguradora Generali Seguros S.A. a pagar ao sinistrado AA:
A. A quantia de 1.193,86€ (mil cento e noventa e três euros e oitenta e seis cêntimos) correspondente a diferenças de IT´s;
B. O capital de remição de 20.002,20€ (vinte mil e dois euros e vinte cêntimos) de uma pensão anual de 1260,70€ correspondente a uma IPP de 3%, obrigatoriamente remível, devida desde o dia imediato ao da alta (14 de junho de 2023);
C. A compensação de 76€ referente a despesas de transportes; e
D. Os juros de mora desde a data de vencimento das prestações até integral pagamento, à taxa legal que estiver em vigor.
Custas pela seguradora (artigo 527.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho; art. 17.º n.º 8 do RCP).
Valor: montante das reservas matemáticas art.º 120.º, do Código de Processo do Trabalho.
Notifique, sendo a responsável para documentar no processo o pagamento das quantias acima reconhecidas.”.
I.B.
A ré/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes:
“CONCLUSÕES:
1 – A sentença proferida é violadora de quanto preceituam o artigo 615º, nº 1, al c) do CPC e os artigos 101º e 117º, nº 1, al. b) do CPT;
2 – Com efeito, realizado exame médico singular com relatório datado de 27.01.2024 junto aos autos, veio a Sra. Perita Médica considerar que o sinistrado estava afectado de uma IPP de 1%;
3 - Quando instada para fundamentar a IPP assim atribuída, considerando que a seguradora havia anteriormente proposto uma IPP de 3%, a Sra. Perita Médica referiu, nos termos do relatório de 21.04.2024, que “tendo em conta a globalidade das queixas e da parca repercussão das mesmas na atividade profissional, considera-se adequada a IPP proposta de 1,00%%”;
4 - Em sede de tentativa de conciliação, a Magistrada do MP propôs acordo com base na IPP que havia sido proposta pela seguradora, de 3%, ignorando o resultado do exame médico singular com fundamento no facto de o Gabinete Médico-Legal ter referido que a IPP de 1% considerada adequada, se reportava “à data do exame (24-11-2023)” (?).
5 - Por considerar que deveria ser acolhida a IPP atribuída em sede de exame médico singular, não só porque a anteriormente proposta pela Ré jamais se pode considerar vinculativa, como também porque a data que deve relevar para efeito de determinação das sequelas é a data mais recente que puder ser considerada e, como tal, necessariamente, a data da avaliação efectuada pelo INML, a ora Recorrente não aceitou o acordo proposto pelo MP, tendo referido expressamente que aceitava o resultado do exame médico singular;
6 - Por assim ser, em face do que consta do auto de não conciliação, impenderia sobre o sinistrado e não sobre a Ré seguradora, o ónus de requerer exame por junta médica, conforme claramente preceitua o artigo 117º, nº 1, al. b) do CPT;
7 - Não o tendo feito, ao Tribunal a quo cabia proferir sentença atribuindo ao sinistrado a IPP reconhecida em sede de exame singular, de 1%;
8 - Ora, na sentença proferida, muito embora o Tribunal a quo mencione que acolhe o resultado do exame médico singular, decide-se por uma IPP de 3%!
9 - Circunstância que, ou constitui manifesto lapso que terá que ser corrigido, ou consubstancia decisão sem qualquer fundamento, por não corresponder ao resultado do exame médico;
10 - Termos em que se impõe a revogação da sentença proferida em conformidade, fixando-se a IPP do sinistrado em 1%.
11 – Impondo-se, em consequência, a revogação da sentença proferida.
Nestes termos, nos mais de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao recurso apresentado e ser a douta decisão revogada, assim se fazendo como sempre JUSTIÇA”
I.C.
Foi apresentada resposta às alegações pelo Ministério Público e que terminou com as seguintes conclusões:
“1.º
Dispõe o artigo 138.º, n.º 2 do CPT que “ Se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto a questão da incapacidade, o pedido de junta médica é deduzido em requerimento a apresentar no prazo a que se refere o n.º 1 do art.º 119.º; se não for apresentado, o juiz profere decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de incapacidade e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.º
2.º
Cingindo-se o desacordo à questão Incapacidade, a fase contenciosa do Processo de Acidente de Trabalho inicia-se com apresentação de requerimento para Junta Médica, por quem tem legitimidade para o fazer, a parte que não aceitou a proposta do M.P., neste caso a Seguradora.
3.º
Questão diversa, mas que não vem colocada no recurso, é a de saber se o M.P. está vinculado a propor, em sede de conciliação, a IPP atribuída pelo G.M.L. na perícia Singular, mesmo que inferior à reconhecida pela Seguradora no Boletim de alta do sinistrado.
4.º
O M.P. deve promover o acordo com base em todos os elementos fornecidos pelo processo, designadamente a perícia médica, mas também todos as circunstâncias que possam influir na capacidade geral de ganho do sinistrado, como claramente resulta do disposto no art.º 109.º do CPT.
5.º
Resultando da perícia Singular que o sinistrado “enquanto caboqueiro, referia dificuldade na permanência em ortostatismo e na marcha prolongada” tendo em consideração o teor do inquérito profissional e estudo do posto de trabalho do sinistrado do qual resulta que este trabalha “predominantemente em pé, no interior e no exterior do estabelecimento, que trabalha em altura”, o que implica subidas e descidas e que o faz, no mínimo oito horas por dia, limite este muitas vezes excedido face ao pagamento de trabalho suplementar que transparece nos recibos de vencimento juntos aos autos, entendeu o MP que a avaliação de 3% de IPP feita pela Seguradora melhor refletia a diminuição de capacidade geral de ganho do sinistrado, tendo feita a proposta de acordo com base nela.
6.º
Discordando a Seguradora, cabia-lhe requerer a realização de junta médica, não o tendo feito impunha-se que fosse proferida decisão nos termos do disposto no art.º 138.º, n.º 2 do CPT –segunda parte, como foi.
**
Em face do exposto, negando provimento ao recurso e confirmando a douta sentença proferida será feita JUSTIÇA”
I.D.
O recurso foi devidamente recebido pelo tribunal a quo.
Após os vistos, cumpre decidir.
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
No caso, impõe-se apreciar se ocorre nulidade da sentença ou se ocorre erro de julgamento, ao considerar uma incapacidade que não foi arbitrada pela perícia médica singular.
III. FUNDAMENTAÇÃO:
III.A. Fundamentação de facto:
III.A.1 Factos provados:
Considera-se provado o seguinte:
1. O processo teve início com participação da ora recorrente (em 19/06/2023) que, além do mais, juntou cópia do boletim de alta produzido pelos seus serviços clínicos.
2. Nesse boletim de alta consideraram-se as seguintes incapacidades temporárias:
a. Incapacidade Temporária Parcial 10% de 13/06/2023 a 13/06/2023
b. Incapacidade Temporária Parcial 10% de 06/06/2023 a 12/06/2023
c. Incapacidade Temporária Absoluta de 01/06/2023 a 05/06/2023
d. Incapacidade Temporária Absoluta de 23/05/2023 a 31/05/2023
e. Incapacidade Temporária Absoluta de 16/05/2023 a 22/05/2023
f. Sem Incapacidade de 31/03/2023 a 15/05/2023
g. Incapacidade Temporária Parcial 20% de 16/03/2023 a 30/03/2023
h. Incapacidade Temporária Parcial 20% de 03/03/2023 a 15/03/2023
i. Incapacidade Temporária Parcial 20% de 01/03/2023 a 02/03/2023
j. Incapacidade Temporária Parcial 20% de 16/02/2023 a 28/02/2023
k. Incapacidade Temporária Parcial 20% de 03/02/2023 a 15/02/2023
l. Incapacidade Temporária Absoluta de 12/08/2022 a 02/02/2023
3. Nesse boletim de alta considerou-se uma IPP de 3% a partir da alta em 13/06/2023.
4. Prosseguindo a fase conciliatória foi, pelo Ministério Público, solicitado exame pericial ao sinistrado.
5. Foi junto aos autos o relatório do GML datado de 27/01/2024 onde:
a. se arbitraram períodos de incapacidades temporárias absoluta (por remissão para os atribuídos pelos serviços clínicos da seguradora), períodos de incapacidade temporária parcial (desde 03/02/2023 até 15/05/2023 (20 %), desde 06/06/2023 até 13/06/2023 (10 %));
b. se considerou ser de fixar a data da consolidação médico-legal das lesões em 13/06/2023;
c. se arbitrou uma incapacidade permanente parcial (IPP) em 1%, por referência ao capítulo I, ponto 15.2.1.a) da TNI.
6. Nessa exame consignaram-se, quanto ao exame objectivo do sinistrado, as seguintes sequelas: “Membro inferior esquerdo: tornozelo e pé - 4 cicatrizes de tipo cirúrgico hipercrómicas na face anterior do tornozelo, a maior com 4cm e as restantes de dimensões pericentimétricas; ligeiro achatamento da abóbada plantar em comparação com o contralateral; mobilidade preservada e simétrica exceto na inversão que atinge os 30º (contralateral até aos 45º); marcha em piso plano, antepés e calcanhares sem alterações”.
7. Por despacho de 9/02/2024 o Ministério Público (exarando o seguinte considerando: “O relatório da avaliação da incapacidade permanente parcial do sinistrado feita pelo G.M.L. apresenta divergência não fundamentada com o grau de IPP atribuído no boletim de alta da Seguradora, o que fere o referido exame de nulidade”) solicitou ao GML a fundamentação de ter sido considerada “IPP inferior à reconhecida pela Seguradora (3%)”.
8. Por relatório datado de 21/04/2024 a perita médica do GML manteve o anterior parecer, com a seguinte fundamentação: “À data do exame pericial presencial, o examinado manifestava queixas dolorosas ligeiras, referidas ao tarso, associadas ao esforço e no início do movimento, pelas quais não recorria a medicação analgésica. Conforme referido no relatório pericial, ao exame físico o examinado apresentava "4 cicatrizes de tipo cirúrgico hipercrómicas na face anterior do tornozelo, a maior com 4cm e as restantes de dimensões pericentimétricas; ligeiro achatamento da abóbada plantar em comparação com o contralateral; mobilidade preservada e simétrica exceto na inversão que atinge os 30º (contralateral até aos 45º); marcha em piso plano, antepés e calcanhares sem alterações". Enquanto caboqueiro, referia apenas dificuldade na permanência em ortostatismo e na marcha prolongada. Assim, tendo em conta a globalidade das queixas e da parca repercussão das mesmas na atividade profissional, considera-se adequada a IPP proposta de 1,00%”.
9. Na tentativa de conciliação de 5/06/2024, estando presentes o sinistrado (nascido em 23/08/1985) e a representante da seguradora e ora recorrente, o Ministério Público propôs acordo, além do mais, considerando no ponto 6.º que “as sequelas de que ficou portador determinam ao sinistrado, a partir de 13/06/2023”, data da alta, a IPP de 3%, conforme boletim de alta da seguradora, uma vez que a incapacidade permanente atribuída pelo Gabinete Médico-Legal se reporta à data do exame (24/11/2023), conforme esclarecimento prestado a fls. 72 e 73 do suporte de papel”.
10. Ainda nessa diligência, o sinistrado declarou aceitar os termos propostos e a seguradora declarou aceitar o restante, mas não aceitou o referido ponto 6.º por considerar que o sinistrado é portador de 1%, conforme avaliação do GML.
11. Quanto ao mais, existiu acordo entre as partes quanto aos seguintes factos:
a. No dia 11/08/2022, pelas 11h35, em ..., quando o sinistrado trabalhava na pedreira, a roda de uma pá carregadora pisou uma pedra e projectou-a na direcção daquele, tendo-o atingido no pé esquerdo. Resultou traumatismo do pé esquerdo.
b. O acidente ocorreu quanto o sinistrado trabalhava como assistente operacional, sob ordens, direcção e fiscalização de “A..., S.A.”.
c. À data o sinistrado auferia a retribuição anual de 60.033,14€.
d. A entidade empregadora tinha a responsabilidade civil emergente de acidentes laborais totalmente transferida para a seguradora recorrente.
e. Como consequência do acidente, resultaram para o sinistrado as lesões e sequelas descritas no auto de perícia médica.
f. O sinistrado sofreu os seguintes períodos de incapacidade temporária:
i. ITA de 12/08/2022 a 2/02/2023, 16/05/2023 a 5/06/2023 (196 dias);
ii. ITP de 20% de 3/02/2023 a 15/05/2023 (102 dias);
iii. ITP de 10% de 6/06/2023 a 13/06/2023 (8 dias).
g. A seguradora pagou a título de indemnizações pelas incapacidades temporárias a quantia de 23.812,82€.
h. O sinistrado deslocou-se ao Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal de ... para perícia médica, tendo despendido a quantia de 76,00€ em transportes.
12. Na falta de conciliação, ficaram os autos a aguardar requerimento para realização de junta médica.
13. Não tendo sido apresentado tal requerimento nem pela seguradora, nem pelo sinistrado, foi proferida a sentença recorrida.
Não existem factos não provados.
A. Nulidade da sentença:
Invoca a recorrente a nulidade da sentença recorrida por violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
Quanto à nulidade prevista na referida alínea c), do n.º 1, do indicado artigo 615.º do Código de Processo Civil, a mesma só ocorre quando exista ininteligibilidade (o que, no caso, não se verifica, dada a clareza da decisão) ou quando a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final (o que, evidentemente, também não ocorre – pois toda a argumentação da sentença aponta – ao referir-se no seu relatório “a IPP reconhecida ao sinistrado no exame singular (3%)” – no sentido da decisão que veio a ser tomada, de fixar ao sinistrado uma IPP de 3% e condenar a seguradora nessa conformidade).
Esta nulidade não se pode confundir com o eventual erro de julgamento, pelo que improcede a alegação da recorrente nesta parte.
Questão diferente, que a recorrente aborda das suas alegações (e que mereceu resposta), é a da actuação do Ministério Público na tentativa de conciliação.
A fase conciliatória reveste-se de natureza essencialmente administrativa e tem por fim promover o acordo das partes, dentro do respeito dos direitos irrenunciáveis e indisponíveis do sinistrado. Ao contrário do que ocorre na fase jurisdicional, na conciliatória não há partes, nem pedidos e nem sequer um verdadeiro litígio (ver, neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/06/2022, processo n.º 4699/21.6T8FNC.L1-4[[1]]).
Daí que, nas palavras de João Monteiro[[2]] “não se tendo realizado o acordo ou não tendo o acordo sido homologado ou se foi dispensada a tentativa de conciliação, o Ministério Público, assume, e apenas nesse momento, o patrocínio do sinistrado/beneficiários legais”.
Na fase conciliatória, mesmo no momento em que visa promover o acordo, o Ministério Público não defende nem pode defender quaisquer interesses particulares, mas apenas o interesse público da correcta definição dos direitos e deveres resultantes de um acidente de trabalho. Tem, pois, uma função própria de órgão de justiça, garantindo o cumprimento da lei. Mas não assume a natureza de julgador, desde logo porque a lei não lhe confere legitimidade para homologar o acordo. Não é, por isso e seguramente, um órgão jurisdicional, no sentido de que não diz o direito, pois essa função está exclusivamente destinada pela lei – constitucional e ordinária – ao juiz do processo.
Na fase conciliatória, dirigida pelo Ministério Público, caberá a este tudo aquilo que não envolva a definição dos direitos das partes. Tem o Ministério Público, nesta fase do processo, o dever de adequada instrução dos autos (cf. artigo 104.º do Código de Processo do Trabalho). E entre os elementos que o Ministério Público deve, obrigatoriamente, carrear para os autos será o exame pericial (cf. artigos 101.º, n.ºs 1 e 2 e 102.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), só podendo dispensar a realização desse exame quando o sinistrado se declarar curado sem desvalorização (cf. artigo 102.º, n.º 2, do mesmo diploma). Em caso de morte do sinistrado (cf. artigo 100.º desse Código), deverá instruir o processo com relatório de autópsia (que, por motivos óbvios, será o exame pericial possível).
A importância do exame médico aos sinistrados na fase conciliatória está bem expressa no regime legal estabelecido nos artigos 105.º e 106.º do Código de Processo do Trabalho).
Desde logo na forma como, no n.º 4, do artigo 105.º, do Código de Processo do Trabalho, se impõe a sua notificação ao sinistrado e às pessoas convocadas para a tentativa de conciliação (ao contrário do que acontece com os demais elementos que foram carreados para os autos, cuja notificação a lei não impõe nessa fase); e, sobretudo, a forma como se estabelece que, ainda que o relatório não esteja totalmente completado, seja com base nele (e não noutros elementos) que o Ministério Público tenta a conciliação (cf. artigo 106.º, n.º 2, parte final, do mesmo diploma: “sempre que o perito médico não se considerar habilitado a completar o relatório com as respectivas conclusões, fixa provisoriamente a natureza e grau de incapacidade do sinistrado com base em todos os elementos disponíveis nessa altura; se a perícia não se efectuar dentro de 20 dias, o Ministério Público tenta, com base nesse relatório, a conciliação para efeitos do artigo 114.º”).
Decisivamente, da leitura conjugada dos artigos 109.º e 138.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, decorre a necessidade de o Ministério Público promover o acordo tendo por base, necessariamente, o resultado o exame pericial singular para consideração da incapacidade permanente do sinistrado.
Na verdade, o advérbio “designadamente” associa (no contexto em que está inserido) um sentido especificativo com que se pretende particularizar alguma coisa: no caso do artigo 109.º do Código de Processo do Trabalho será o resultado da perícia médica logo em primeiro lugar.
Por outro lado, resulta claro do artigo 138.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho que quem não se conforma com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória pede perícia por junta médica. Não diz a lei que a perícia por junta médica visa atacar a proposta do Ministério Público.
É verdade que abunda a jurisprudência que elucida que inexiste primazia jurídica de qualquer peritagem no processo, mesmo da junta médica sobre a peritagem médica singular (ver, por exemplo, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/03/2017, processo n.º 593/11.7TTPTM.E2[[3]], Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/05/2018, processo n.º 13386/16.6T8LSB.L1-4[[4]], Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17/06/2021, processo n.º 249/15.1T8PTM-A.E1[[5]]).
Sobretudo, parece claro que os exames periciais, mesmo os exames médicos (singulares ou em junta), estão sujeitos à livre apreciação do julgador, de acordo com o disposto no artigo 389.º do Código Civil (neste sentido, por exemplo, ver o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-02-2021, processo n.º 10167/18.6T8SNT.L1-4[[6]]).
Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela[[7]] “o princípio da prova livre (por contraposição à prova legal: prova por documentos, por confissão e por presunções legais) vigora no domínio da prova pericial”, embora “prova livre não quer dizer prova arbitrária”. Diga-se, no entanto e para que dúvidas não restem, que caso o Tribunal entenda dever divergir do resultado de uma perícia médica deverá fundamentar com especial acuidade e primazia de argumentos que suplantem os indicados no relatório médico-legal (neste sentido ver, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/07/2023, processo n.º 3053/19.4T8LSB.L1-4[[8]]).
No entanto, a possibilidade de divergência, em decisão fundamentada, está reservada para um processo de natureza contenciosa e só por decisão judicial. O artigo 389.º do Código Civil é claro ao indicar que é ao Tribunal que se confere a possibilidade de divergir do relatório pericial, precisamente porque o Tribunal decide, de forma independente e num processo contraditório (em que as partes tiveram oportunidade de contraditar o relatório pericial).
Transpondo esse entendimento para o processo de acidente de trabalho, parece claro que em fase conciliatória (fase em que não existem formalmente partes, em que não houve oportunidade de contraditar os elementos constantes do processo e em que, sobretudo, o juiz não foi chamado a decidir) o Ministério Público não pode desconsiderar nem divergir do relatório médico-legal singular na proposta que submete na tentativa de conciliação (sem prejuízo de, a partir do momento em que os interessados se pronunciam, passar a patrocinar o sinistrado e apresentar, nesse momento, as razões de discordância relativamente àquele relatório: no requerimento que visa submeter o sinistrado a exame pela junta médica).
No caso concreto, ao desconsiderar parcialmente (ainda para mais de forma não fundamentada – ou seja, sem argumentos de natureza médico-legal) da forma que consta dos factos provados (escolhendo o que entendia ser mais “benéfico”: do relatório pericial os períodos das incapacidades temporárias; do boletim da alta a incapacidade permanente) o Ministério Público praticou um acto que a lei não permite (como se viu) e que teve influência muito negativa na forma como seguiu a tramitação do processo e com possível influência na decisão da causa: impediu, com a sua acção, o sinistrado de apresentar a única reacção adequada a divergir convenientemente do resultado da perícia singular, que era o requerimento para a sua submissão a junta médica; e acarretou, em última análise e sem necessidade, a existência deste recurso.
Tal irregularidade por violação da lei acarreta, sem dúvida, a nulidade dessa tentativa de conciliação, conforme o disposto no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Contudo, essa nulidade não é de conhecimento oficioso (cf. artigo 196.º do mesmo diploma) e teria de ter sido invocada enquanto aquele acto não estivesse terminado (já que todos os interessados estavam presentes), nos termos do artigo 199.º, n.º 1, daquele mesmo Código.
Não se podendo, por isso, declarar a nulidade da tentativa de conciliação e não sendo nula a sentença recorrida, resta apreciar o invocado erro desta.
B. Erro de julgamento:
Em primeiro lugar, não sendo a referida nulidade de conhecimento oficioso e não tendo sido apresentado o requerimento a que alude o artigo 138.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, bem andou o Tribunal a quo em proferir sentença.
Existiu acordo quanto à forma como o acidente ocorreu, quanto à sua caracterização como acidente de trabalho, por se ter verificado no local e tempo de trabalho, bem como no que respeita à retribuição auferida e transferência da responsabilidade por acidentes de trabalho. Existiu, igualmente, acordo quanto às indemnizações devidas pelas incapacidades temporárias e despesas de deslocação. A parte da sentença que condenou no pagamento desses valores deverá, por isso, manter-se.
Errou, no entanto, o Tribunal a quo ao considerar que o perito médico singular havia arbitrado uma incapacidade superior àquela que, efectivamente, resulta do relatório (certamente induzido em erro pelo auto de tentativa de conciliação).
Na verdade, como se viu, o perito médico singular arbitrou uma incapacidade permanente parcial de 1% e não existem elementos para dele divergir de forma fundamentada.
Deverá, por isso, fixar-se a IPP do sinistrado decorrente do acidente em 1%, sendo as sequelas enquadráveis no ponto 15.2.1.a), do capítulo I, da TNI (tabela nacional de incapacidades – aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro).
E, considerando que o sinistrado auferia à data do acidente o salário anual de 60.033,14€, e tendo ainda em atenção o disposto no artigo 47.º, n.º 1, alínea c), o artigo 48.º, n.º 3, alínea d), o artigo 50.º, n.º 2, 71.º e artigo 75.º, todos da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, tem direito a ser ressarcido pela entidade responsável Seguradora de um capital de remição calculado em função de uma pensão anual e vitalícia, devida desde o dia seguinte ao da alta, correspondente a 70 % da redução sofrida na sua capacidade geral de ganho, ou seja, de 420,23€ (Rendimento Anual×0,70×o valor da incapacidade Permanente Parcial, ou seja, neste caso, 60033,14x0,70=42023,198; 42023,20x0,01=420,232), devida desde 14/06/2023 (data seguinte à da alta).
O valor da acção deverá, igualmente, ser corrigido.
Nos termos do artigo 120.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, “nos processos de acidente de trabalho, tratando-se de pensões, o valor da causa é igual ao resultado da multiplicação de cada pensão pela respectiva taxa das tabelas práticas aplicáveis ao cálculo do capital da remição, acrescido das demais prestações”.
As tabelas práticas aplicáveis ao cálculo de remição das pensões de acidentes de trabalho estão fixadas na Portaria n.º 11/2000, de 13 de Janeiro.
Posto isto, tendo em consideração que, no caso, o valor da pensão (rectius capital de remissão) é de 420,23€, que o sinistrado conta 38 anos (aniversário mais próximo da data da alta, a que se referem os cálculos) e que a taxa aplicável a um sinistrado com essa idade é de 15,866 nos termos da citada Portaria, o valor da acção é de 6.667,37€ (420,23× 11,264=6667,36918) mais o valor das demais prestações (temporárias no valor total de 25.006,68€ e 76,00€ de transportes), no total de 31.750,05€.
Assim, deverá proceder o recurso e revogar-se a sentença na parte impugnada (alínea b) do dispositivo), mantendo-se o demais decidido (nomeadamente a alínea d) do dispositivo, com o esclarecimento de que essa condenação em juros se deverá referir, no tocante ao capital de remição, à nova decisão agora proferida).
Conforme estabelecido no artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a regra geral na condenação em custas é a de condenar a parte vencida. E havendo uma parte vencida não se passa ao critério subsidiário que é o da condenação em custas de quem tira proveito do recurso.
No caso, o recurso foi apresentado quanto ainda não existiam, formalmente, partes e quem se opôs ao mesmo e perdeu goza de isenção (cf. artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais).
Assim, não haverá lugar a custas (no recurso, já quando ao demais deve manter-se a sentença que, nessa parte, não foi impugnada) por delas estar isento o Ministério Público.
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação e revoga-se a sentença recorrida na parte impugnada (alínea b) do seu dispositivo) e, em consequência:
- Julga-se o sinistrado AA (nascido em 23/08/1985), em consequência do acidente de trabalho que o vitimou em 11/08/2022, afectado a partir de 13/06/2023 de um grau de incapacidade permanente parcial (IPP) de 1%,
- Condena-se, em conformidade, a “GENERALI SEGUROS, S.A.” a pagar ao sinistrado AA, o capital de remição calculado em função de uma pensão anual e vitalícia de 420,23€ (quatrocentos e vinte euros e vinte e três cêntimos), devida desde 14/06/2023.
Fixa-se o valor da acção em 31.750,05€.
No mais, mantem-se a sentença recorrida.
Sem custas do recurso.
Notifique-se.
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[1] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/2784db1abb3502108025887100356804.
[2] Fase Conciliatória do Processo para a efectivação de Direitos resultantes de Acidente de Trabalho - Enquadramento e Tramitação, Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 87, pp. 135 a 171 (e também acessível em https://tre.tribunais.org.pt/fileadmin/user_upload/docs/Direitos_Resultantes_Acidente_Trab.pdf)
[3] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/f387fe2b5f30b5118025810800326858.
[4] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/58A2EE2E8A70D5E0802582BA00361128.
[5] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/eae181201e58ac3f8025870600704d0b.
[6] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/703137b85956ac578025868f0048a2cc.
[7] Código Civil Anotado, Vol I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 340.
[8] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/662fea44223a5312802589f00030d7b4.