Sumário elaborado pela relatora:
I. De harmonia com o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não devia tomar conhecimento.
II. Se na contestação a Ré invocou a existência de abuso de direito e o tribunal a quo não se pronuncia sobre tal questão na sentença que profere, a sentença é nula por omissão de pronúncia.
III. A Portaria de Regulamentação do Trabalho publicada no BTE, n.º 15, de 22 de abril de 1996, que reconheceu no seu artigo 21.º, n.º 1, o direito a diuturnidades, é aplicável à Santa Casa da Misericórdia de ....
IV. A Portaria de Extensão n.º 278/2010, publicada no Diário da República n.º 100/2010, de 24-05-2010, que estendeu o ACT de 2001, celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia de Abrantes e outras e a FNE — Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, publicado no BTE n.º 47, de 22-12-2001, que aboliu “todas e quaisquer diuturnidades”, não é aplicável a trabalhadoras filiadas no CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal.
V. A Portaria de Extensão n.º 259/2022, publicada no Diário da República n.º 208/2022, de 27-10-2022, retificada pela Portaria de Extensão n.º 270/2022, com publicação no Diário da República n.º 216/2022, de 09-11-2022, que estendeu o CCT celebrado entre a CNIS - Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade e a FEPCES - Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços, fundamenta o direito às diuturnidades peticionado, desde 01-12-2021, se não resultou apurado nos autos que a Santa Casa da Misericórdia estivesse filiada na União das Misericórdias Portuguesas.
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1
I. Relatório
Na presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, que AA, BB, CC, DD, EE e FF intentaram contra Santa Casa da Misericórdia de ..., foi prolatada sentença, com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, julga-se a presente ação declarativa de condenação em processo comum, instaurada por AA, BB, CC, DD, EE e FF contra “Santa Casa da Misericórdia de ...” totalmente procedente e, consequentemente:
a) Reconhece-se o direito das autoras às diuturnidades, vencidas e vincendas, nos termos da Cláusula 21.ª da PRT das Instituições de Solidariedade Social, publicada no B.T.E., 1ª. Série, n.º 15 de 22/04/1996, e da Cláusula 70.ª do CCT celebrado entre a CNIS e a FEPCES, B.T.E., 1ª. Série, n.º 24 de 29/06/2023;
b) Condena-se a ré a pagar às autoras, a título de diuturnidades vencidas, os seguintes valores:
i. À autora AA o montante global de € 6.299,46 (seis mil, duzentos e noventa e nove euros e quarenta e seis cêntimos), a que acrescem as que se forem vencendo durante a execução do contrato de trabalho;
ii. À autora BB o montante global de € 1.451,67 (mil, quatrocentos e cinquenta e um euros e sessenta e sete cêntimos), a que acrescem as que se forem vencendo durante a execução do contrato de trabalho;
iii. À autora CC o montante global de € 7.757,40 (sete mil, setecentos e cinquenta e sete euros e quarenta cêntimos), a que acrescem as que se forem vencendo durante a execução do contrato de trabalho;
iv. À autora DD o montante global de € 5.478,54 (cinco mil, quatrocentos e setenta e oito euros e cinquenta e quatro cêntimos), a que acrescem as que se forem vencendo durante a execução do contrato de trabalho;
v. À autora EE o montante global de € 5.733,67 (cinco mil, setecentos e trinta e três euros e sessenta e sete cêntimos), a que acrescem as que se forem
vencendo durante a execução do contrato de trabalho; e
vi. À autora FF o montante global de € 6.493,87 (seis mil, quatrocentos e noventa e três euros e oitenta e sete cêntimos), a que acrescem as que se forem
vencendo durante a execução do contrato de trabalho.
c) Condena-se a ré a pagar a cada uma das autoras, a título de diferenças salariais já vencidas, a quantia de € 544,00 (quinhentos e quarenta e quatro euros):
d) Condena-se a ré a pagar às autoras, sobre as quantias supra identificadas, juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação e até integral e efetivo pagamento;
e) Condena-se a ré nas custas do processo, em função do seu total vencimento (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.»
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Inconformada, a Ré recorreu da sentença, extraindo das suas alegações as seguintes conclusões.
«A- A sentença é nula nos termos do art. 615º, nº1, alínea d) do CPC, dado que o tribunal a quo não se pronunciou sobre o facto alegado pela ora recorrente de que a portaria de extensão nº 259/2022 - que a sentença recorrida considera aplicável à relação laboral entre autoras e ré - havia sido revogada pela portaria nº n.º 182/2023, de 28 de junho ou, se assim não se entendesse pela portaria nº 310/2023.
B- A sentença é ainda nula, de acordo com o art. 615º, nº1, alínea d) do CPC, porque a recorrente alegou que as autoras atuam em abuso de direito, uma vez que sempre beneficiaram das condições do ACT da SCM de Abrantes e outros e durante anos nunca invocaram o direito a diuturnidades, apesar serem todas sindicalizadas, não tendo o tribunal a quo se pronunciado sobre estes factos
C- Quer uma quer outra circunstância são relevantes, dado que o entendimento do tribunal sobre elas podia alterar o desfecho da ação, considerando-a improcedente.
D- No facto provado 15 da sentença recorrida, o tribunal a quo afirma que a trabalhadora CC é associada da FEPCES desde... de ... de 2006.
E- Ora, o documento 3 junto pelas autoras na sua petição inicial, que não foi impugnado, consigna que a autora CC é associada da FEPCES apenas desde ... de ... de 2012,
F- Pelo que deve ser corrigido este facto, substituindo-se o atual pelo seguinte:
“15. É sócia do CESP- Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal, com o número ..., desde ...-...-2012”
G- A sentença recorrida faz uma errada interpretação e aplicação do conteúdo dos arts. 517º, nº1 do CT e 483º, nº1, alínea b) do CT e por via dela, atribui às autoras o direito a receberem diuturnidades, que efetivamente não têm.
H- A estas trabalhadoras não é aplicável a PRT de 1996.
I- Na verdade, o artigo 483º, nº1, alínea b) do CT, determina que a portaria de extensão afasta a aplicação da portaria de condições do trabalho.
J- Ora, a portaria 278/2010 de 24 de Maio determina que as disposições em vigor do acordo coletivo entre a Santa Casa da Misericórdia de Abrantes e outras e a FNE - Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 47, de 22 de Dezembro de 2001, e as respetivas alterações, publicadas no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 3, de 22 de Janeiro de 2010, são estendidas, no território do continente:
a) Às relações de trabalho entre santas casas da misericórdia não outorgantes que prossigam as atividades reguladas pela convenção e trabalhadores ao seu serviço, das profissões e categorias profissionais neles previstas;
b) Às relações de trabalho entre santas casas da misericórdia outorgantes que prossigam as atividades nela reguladas e trabalhadores ao seu serviço, das referidas profissões e categorias profissionais, não representados pelas associações sindicais outorgantes.
K- É certo que o numero 2 dessa portaria determina que a portaria não se aplica às relações de trabalho entre Santas Casas da misericórdia filiadas na CNIS - Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade e trabalhadores ao seu serviço, bem como a trabalhadores filiados em sindicatos associados na FEPCES - Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços.
L- Mas a verdade é que em 2010 as autoras BB ( doc 2 da petição inicial), CC ( doc 3 da petição inicial), EE ( doc 5 da petição inicial) não eram filiadas no CESP,
M- pelo que ficaram abrangidas pelo ACT de Abrantes, revogando-se assim definitivamente e no que diz respeito à sua relação laboral, em cumprimento do art 483º, nº1, alínea b) do CT, a dita portaria de 96.
N- Na verdade, o tribunal a quo considera, na senda de um Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que, quando as trabalhadoras se sindicalizaram no CESP e uma vez que este Sindicato se auto excluiu da aplicação da portaria de extensão nº 278/2010, este vazio legal abre o caminho para a Ressuscitação da Portaria de 1996.
O- Ora, com o devido respeito este entendimento é uma aberração jurídica, e todos os elementos da interpretação nos conduzem a resultado diferente.
P- O art 483º, nº1, alínea b) do CT consigna que sempre que exista concorrência entre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho não negociais, são observados os seguintes critérios de preferência:
b) A portaria de extensão afasta a aplicação de portaria de condições de trabalho.
Q- Ora, isso significa que quando a portaria 278/2010 passou a ser aplicável a estas trabalhadoras, a portaria de 1996 ficou definitivamente revogada, no que diz respeito às trabalhadoras que ainda não eram sindicalizadas.
R- O facto de estas se terem sindicalizado só pode ter como resultado a impossibilidade de serem, a partir desse momento e PARA o FUTURO, apenas inaplicáveis à sua relação laboral futuras portarias de extensão de cuja aplicação o CESP se tenha excluído,
S- Uma vez que os efeitos da portaria de extensão nº 278/2010 já se sedimentaram na esfera jurídica destas três recorridas e, portanto, permanecem em vigor para elas.
T- Quando a lei fala em “afasta” está no fundo a falar do momento antes da aplicação de um desses instrumentos e enquanto abstratamente se podem ambos aplicar e não do depois.
U- Porque, depois, a lei resolveu que é a portaria de extensão que se aplica e não a portaria das condições de trabalho.
V- A ressuscitação da PRT não estava certamente no pensamento do legislador, quando adotou este termo “ afasta” a aplicação,
W- porque inexiste no ordenamento jurídico português a figura da ressuscitação de instrumentos cuja aplicação foi preterida a benefício de outro, seja qual for o fundamento para essa preterição.
X- Aliás, o elemento teleológico conduz-nos no mesmo sentido, sendo particularmente importante, neste contexto, o art. 7º, nº 4 do Código Civil que determina que a revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que esta revogara.
Y- E note-se que quer a PRT quer a PE são consideradas regulamentos administrativos de onde “ constam normas jurídicas emanadas de uma autoridade administrativa”, in Direito do Trabalho, 8ª Edição, 2017 de Pedro Romano Martinez.
Z- Ora, neste sentido, mutatis mutandis, o facto de as trabalhadoras se terem sindicalizado no CESP e consequentemente a portaria de extensão ter automaticamente deixado de se lhes aplicar,
AA- não implica o renascimento da PRT de 1996 que já tinha sido “revogada” para efeitos de aplicação nesta relação laboral, nos termos do art 483º, nº1, alínea b) do CT.
BB- Mais, com o devido respeito, o elemento sistemático da interpretação também nos afasta do entendimento propugnado pelo tribunal a quo.
CC- Na verdade, a doutrina entende que “ o legislador estabeleceu uma certa sequência: primeiro, se não houver convenção coletiva ou decisão arbitral, a lacuna será resolvida por via de uma portaria de extensão; não sendo isso possível, então pode recorrer-se à portaria das condições de trabalho.”, in Direito do Trabalho, de Pedro Romano Martinez, 2017, 8ª Edição.
DD- Ou seja, a portaria de condições de trabalho tem uma natureza excecional e residual e só se aplica se não houver instrumentos que se aproximem mais da realidade atual do sector em que as partes da relação laboral se inserem ( portaria de extensão) ou mesmo da vontade dos seus representantes ( convenções coletivas de trabalho).
EE- Ora, a portaria de extensão 278/2010 não foi revogada para as trabalhadoras quando estas se sindicalizaram, manteve-se como reguladora das relações laborais, como constituindo o mínimo que estas tinham como direitos laborais.
FF- E um exemplo prático de que esta á a única interpretação possível é a de que a não ser assim, e se se repristinasse a PRT de 96,
GG- seria legitimo que as entidades patronais pudessem exigir a estas trabalhadoras a prestação de trabalho durante 40 horas por semana ( artigo 10º, nº2 da PRT de 96), dado que quase todas são ajudantes de ação educativa-trabalhadoras de apoio.
HH- Ora, de acordo com o ACT de Abrantes estendido pela portaria 278/2010 esse período normal de trabalho é de 38 horas semanais….
II- Certamente, nenhuma das autoras aceitaria voltar a fazer 40 horas semanais, ao invés das 38h que o ACT de Abrantes prevê,
JJ- no que comprova que a lei e concretamente o art 483º, nº1, alínea b) do CT não comporta este entendimento de que é possível repristinar um instrumento que foi substituído por outro, ainda para mais, mais recente.
KK- O tribunal ad quem não pode permitir que um Sindicato que se exclui da todas as portarias de extensão a seu bel prazer, se negue a negociar um contrato coletivo de trabalho com as Misericórdias e
LL- Foi publicada a Portaria n.º 182/2023, de 28 de junho que veio estender os efeitos das alterações do contrato coletivo entre a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade – CNIS e a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais – FNSTFPS.
MM- Sendo que a mesma exclui expressamente da aplicação do contrato coletivo as instituições particulares de solidariedade social filiadas na União das Misericórdias Portuguesas - UMP e na União das Mutualidades Portuguesas.
NN- Assim, havendo concorrência entre as duas Portarias de Extensão, prevalecerá a aplicação da última.
OO- Uma vez que, nos termos do artigo 483.º, n.º 2, conjugado com o artigo 482.º, n.º 2, 3 e 4 do Código do Trabalho, em caso de concorrência entre portarias de extensão aplica-se o instrumento de publicação mais recente.
PP- Isto significa que a portaria nº 182/2023 revogou a portaria 259/2022, não sendo consequentemente aplicável às relações entre a ré e as autoras.
QQ- Relativamente às diuturnidades entende a Ré. que não é aplicável o previsto no CCT celebrado entre a CNIS e a FEPCES, pois, a Portaria de Extensão n.º 270/2022, publicada no BTE n.º 43/2022, exclui essa mesma aplicação.
RR- Isto porque, a portaria 270/2022 veio prever uma correção ao previsto no artigo 3.ºda portaria 259/2022, prevendo-se ali “a não eficácia retroativa do CCT relativamente à aplicação da tabela salarial, bem como quanto às clausulas de expressão pecuniária para as instituições particulares de solidariedade social filiadas na União das Misericórdias Portuguesas – UMP.”
SS- Efetivamente, com a publicação das portarias n.º 259/2022 e n.º 270/2022 em que se dispõe, que a tabela salarial e cláusulas de natureza pecuniária em vigor previstas na convenção produzem efeitos a partir de 1 de dezembro de 2021, exceto às instituições particulares de solidariedade social filiadas na UMP, conclui-se que o tempo relevante para a aquisição de diuturnidades só poderá ser contabilizado a partir da data em que aquele CCT em apreço passa a ser aplicado ao caso concreto.
TT- Sem conceder e se ainda assim não se entender, no entanto, em 29 de Junho de 2023, foi publicado um novo CCT CNIS FEPCES, que voltou a ser estendido pela portaria nº 310 / 2023, que excluiu expressamente as filiadas da UMP da respetiva aplicação.
UU- E assim, também por esta via se revogou o suposto regime aplicável às relações laborais da ré e das autoras que as legitimaria a receber diuturnidades,
VV- sem que se tivesse completado sequer um ano, quantos mais os cinco necessários para que se vencesse a primeira diuturnidade.
WW- Estamos ainda perante uma clara situação de abuso de direito por parte das Autoras.
XX- A Ré aderiu ao ACT de Abrantes de 2016 - que não prevê o pagamento de diuturnidades -, sendo que no quadro dessa adesão auscultou os seus trabalhadores;
YY- As autoras, todas, mas com especial destaque para o que ora nos importa, GG, HH e II beneficiaram da aplicação desse ACT;
ZZ- Desde logo na remuneração que seguiu a tabela constante do referido ACT, tabela prevista nos anexos IV e V, e daí auferirem desde sempre e até 2017 de uma remuneração convencional superior ao salário mínimo.
AAA- Assim como de todas as outras cláusulas com expressão pecuniária em conformidade com esse ACT: Subsídio de turno; Remuneração de trabalho suplementar; Subsídio de refeição e sobretudo progressão horizontal, para além da vertical.
BBB- Ou seja, as trabalhadoras Autoras aceitaram durante toda a sua relação de trabalho, algumas com mais de 20 anos, que a sua entidade patronal estabelecesse os critérios da respetiva remuneração e de todas as cláusulas de expressão pecuniária com recurso a IRCT que aceitaram lhes fosse aplicado
CCC- Sabendo que a sua remuneração base integrava já as diuturnidades.
DDD- Criaram na Ré a convicção fundada de que tinham aceite que a remuneração já incluía as diuturnidades;
EEE- E que nunca mais viriam reclamar diuturnidades previstas desde 1996 mas eliminadas do universo das Santas Casas filiadas na UMP em 2001.
Nestes termos e nos melhores de direito, que V/Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, por via disso a sentença ser declarada nula, ou se assim não se entender, ser revogada e substituída por outra que absolva a ré dos pedidos, assim se fazendo a tão devida e costumada JUSTIÇA.»
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Contra-alegaram as Autoras, propugnando pela improcedência do recurso.
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A 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Mais se pronunciou pela inexistência do vício da nulidade da sentença que foi arguido.
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Depois do processo ter subido à Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer favorável à manutenção da decisão recorrida.
Não foi oferecida resposta.
O recurso foi mantido nos seus precisos termos e, depois de ter sido elaborado o projeto de acórdão, foram colhidos os vistos legais.
Cumpre, em conferência, apreciar e decidir.
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II. Objeto do recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso são as seguintes:
1. Nulidade da sentença.
2. Impugnação da decisão de facto.
3. Inexistência do direito às diuturnidades.
4. Abuso de direito por parte das Autoras.
*
III. Matéria de Facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
1. As autoras foram admitidas ao serviço da ré para, à data, exercerem funções de trabalhadoras de ajudante de ação educativa, empregada auxiliar, trabalhador de limpeza, auxiliar de ação educativa, mantendo-se atualmente ao seu serviço.
2. A ré é uma instituição particular de solidariedade social, que tem como valências, Lar de Idosos, Centro de Dia, Apoio Domiciliário, Centro de Apoio Ocupacional, Jardim de Infância, Creche e Unidade de Cuidados Continuados.
3. O horário de trabalho semanal é organizado por turnos rotativos, em regime de tempo completo.
4. A autora AA foi admitida ao serviço da ré em ...-...-1998, para exercer as funções inerentes à categoria profissional de ajudante de ação educativa - Grau I.
5. Na data em que foi admitida auferia o vencimento base mensal de € 293,79.
6. Atualmente aufere o salário mensal de € 820,00, a que acresce o subsídio de alimentação no valor de € 4,27.
7. É sócia do “CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal”, com o número..., desde ...-...-2000.
8. A autora BB foi admitida ao serviço da ré em ...-...-2013, para exercer as funções inerentes à categoria profissional de ajudante de ação educativa - Grau I.
9. Na data em que foi admitida auferia o vencimento base mensal de € 502,00.
10. Atualmente aufere o salário mensal de € 820,00, a que acresce o subsídio de alimentação no valor de € 4,27.
11. É sócia do “CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal”, com o número ..., desde ...-...-2015.
12. A autora CC foi admitida ao serviço da ré em ...-...-1991, para exercer as funções inerentes à categoria profissional de empregada auxiliar.
13. Na data em que foi admitida auferia o vencimento base mensal de € 200,00.
14. Atualmente aufere o salário mensal de € 820,00, a que acresce o subsídio de alimentação no valor de € 4,27.
15. É sócia do “CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal”, com o número ..., desde ...-...-2006. (alterado pelos motivos que se indicam infra)
16. A autora DD foi admitida ao serviço da ré em ...-...-2000, para exercer as funções inerentes à categoria profissional de trabalhadora de limpeza - Grau I.
17. Na data em que foi admitida auferia o vencimento base mensal de € 318,23.
18. Atualmente aufere o salário mensal de € 820,00, a que acresce o subsídio de alimentação no valor de € 4,27.
19. É sócia do “CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal”, com o número ..., desde ...-...-2006.
20. A autora EE foi admitida ao serviço da ré em ...-...-1999, para exercer as funções inerentes à categoria profissional de auxiliar de ação educativa.
21. Na data em que foi admitida auferia o vencimento base mensal de € 318,23.
22. Atualmente aufere o salário mensal de € 820,00, a que acresce o subsídio de alimentação no valor de € 4,27.
23. É sócia do “CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal”, com o número..., desde...-...-2010.
24. A autora FF foi admitida ao serviço da ré em ...-...-1997, para exercer as funções inerentes à categoria profissional de auxiliar de ação educativa.
25. Na data em que foi admitida auferia o vencimento base mensal de € 282,82.
26. Atualmente aufere o salário mensal de € 820,00, a que acresce o subsídio de alimentação no valor de € 4,27.
27. É sócia do “CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal”, com o número ..., desde ...-...-2005.
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IV. Nulidade da sentença
A recorrente arguiu a nulidade da sentença por, no seu entendimento, não ter havido pronúncia sobre duas questões. São elas:
1. Alegada revogação da Portaria de Extensão n.º 259/2022 pela Portaria de Extensão n.º 182/2023 ou pela Portaria de Extensão n.º 310/2023.
2. Alegada atuação das Autoras em abuso de direito por, durante anos, terem beneficiado das condições do ACT da SCM, sem terem invocado o direito a quaisquer diuturnidades, apesar de serem sindicalizadas.
O tribunal a quo declarou, no despacho datado de 07-01-2025, a não verificação da arguida nulidade.
Cumpre, pois, apreciar.
De harmonia com o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do artigo 77.º do Código de Processo do Trabalho, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não devia tomar conhecimento.
A causa de nulidade prevista nesta alínea está em correspondência direta com o artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Estabelece-se nesta norma que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Assim, verifica-se a omissão de pronúncia quando o juiz deixe de apreciar as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.
Todavia, não se deverão confundir questões com razões ou argumentos invocados pelos litigantes em defesa do seu ponto de vista, pois esses não têm que ser obrigatoriamente conhecidos pelo tribunal. Já o insigne Professor Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143, ensinava: «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.»
Volvendo ao caso que nos ocupa, a recorrente declarou que o tribunal a quo não se pronunciou, e deveria ter-se pronunciado, sobre as duas questões enunciadas supra.
Julgamos que a questão de saber qual o instrumento de regulamentação coletivo aplicável – e essa era a questão a apreciar e decidir – foi explicada de forma clara e fundamentada pelo tribunal a quo. É no contexto desta temática que surge mencionada a Portaria de Extensão n.º 259/2022 e a sua relevância para as relações contratuais que se apreciam nos autos.
O tribunal a quo não seguiu a tese jurídica apresentada em sede de contestação, mas isso não o obrigava a ter que “desmontar” todos os argumentos apresentados na referida peça processual. Apenas tinha de analisar e determinar o instrumento de regulamentação coletiva aplicável e justificar o seu raciocínio, o que foi feito.
Nesta parte, não se verifica, pois, omissão de pronúncia.
Já no que concerne à ausência total de pronúncia sobre o invocado abuso de direito por parte das Autoras, a mesma verifica-se.
Dito por outras palavras, apesar de na contestação a Ré, ora recorrente, ter invocado a verificação de abuso de direito o tribunal a quo não dedicou sequer uma linha à questão submetida à sua apreciação.
Por conseguinte, nesta parte, a sentença é nula, de harmonia com o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
Consequentemente, declara-se a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, de harmonia com o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
Estatui o artigo 665.º, n.º 1, do Código de Processo Civil:
«Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.».
Como se escreveu no Acórdão da Relação de Guimarães de 20-02-2020 (Proc. n.º 976/19.4T8VRL.G1), acessível em www.dgsi.pt, a consequência da regra citada «resume-se, em regra, à substituição da decisão proferida pela solução que venha a ser obtida no tribunal de apelação, com resultado semelhante ao que se obtém com a normal apreciação da decisão impugnada objeto do recurso.».
Deste modo, por o processo conter os elementos necessários, decide-se conhecer das questões suscitadas no recurso - entre elas, a do alegado abuso de direito -, no exercício dos poderes de substituição do tribunal recorrido.2
*
V. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A recorrente impugnou a decisão fáctica. Especificamente impugnou o ponto 15 do elenco dos factos provados que, na sua perspetiva, deve ser alterado atento o que resulta do declaração n.º 3 do CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (doravante CESP), junta com a petição inicial, e não impugnada, ficando a constar que a Autora CC é sócia do CESP desde ...-...-2012 (e não desde 2006).
Consideramos que se mostra observado o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que nada obsta ao conhecimento da impugnação.
O ponto impugnado tem o seguinte teor:
- É [CC] sócia do “CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal”, com o número ..., desde ...-...-2006.
Extrai-se da «motivação da convicção» apresentada na decisão recorrida que a prova da materialidade em causa resultou do acordo das partes, corroborado pela declaração emitida pelo CESP respeitante à data de adesão desta trabalhadora ao citado sindicato.
Ora a declaração do CESP respeitante à Autora CC refere que a mesma é sócia da referida associação sindical desde ...-...-2012 – cf. documento n.º 44 junto com a petição inicial.
E tal ligação sindical resultava alegada na petição inicial com referência ao aludido documento, que não foi impugnado.
Afigura-se-nos, deste modo, que a prova produzida suporta a reclamada alteração do ponto 15.
Nesta conformidade, julga-se procedente a impugnação da decisão fáctica.
No âmbito da reapreciação da aludida declaração do CESP, constatámos, ainda, que o número de sócia desta Autora também não consta correto no ponto 15, pelo que, ao abrigo do artigo 662.º do Código de Processo Civil, procede-se à correção do mesmo.
Nesta conformidade, altera-se o ponto 15 dos factos provados, que passará a ter o seguinte teor:
- É sócia do “CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal”, com o número ..., desde...-...-2012.
*
VI. Da alegada inexistência do direito às diuturnidades
A recorrente não se conforma com o reconhecimento do direito às diuturnidades, e, nas alegações e conclusões do recurso, apresenta a sua “tese jurídica” para afastar tal direito.
Desde já se adianta que o decidido não nos merece censura, salvo um detalhe respeitante à Autora CC em consequência da procedência da impugnação da decisão fáctica.
O reconhecimento do reclamado direito às diuturnidades foi assim fundamentado na decisão recorrida:
«1. Definir o instrumento de regulamentação coletiva aplicável às relações laborais estabelecidas entre as autoras e a ré:
Da matéria de facto provada resulta que a ré é uma instituição particular de solidariedade social, que tem como valências, Lar de Idosos, Centro de Dia, Apoio Domiciliário, Centro de Apoio Ocupacional, Jardim de Infância, Creche e Unidade de Cuidados Continuados.
Para cumprir as tarefas inerentes a essas valências, as autoras foram admitidas ao serviço da ré para, à data, exercerem funções de trabalhadoras de ajudante de ação educativa, empregada auxiliar, trabalhador de limpeza, auxiliar de ação educativa, mantendo-se atualmente ao seu serviço.
Concretamente, como decorrem dos factos provados 4.º, 8.º, 12.º, 16.º, 20.º e 24.º:
– A autora AA foi admitida em ...-...-1998;
– A autora BB foi admitida em ...-...-2013;
– A autora CC foi admitida em...-...-1991;
– A autora DD foi admitida em ...-...-2000;
– A autora EE foi admitida em ...-...-1999; e
– A autora FF foi admitida em ...-...-1997.
Os contratos celebrados pelas partes revestem, inequivocamente, a natureza de contrato de trabalho, o qual se encontra regulado nos artigos 11.º e ss. Do Código do Trabalho, sendo definido como «(...) aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade desta» (artigo 11.º do Código do Trabalho).
À situação dos autos são aplicáveis as regras do Código do Trabalho, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, bem como as regras constantes de instrumento de regulamentação respeitante aos destinatários e ao sector de atividade em causa.
Afirmam as autoras que, por serem associadas no “CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal”, as suas relações de trabalho com a ré, a partir de 15 de Outubro de 2016, passaram a ser reguladas pela Portaria de Regulamentação do Trabalho (PRT) das Instituições de Solidariedade Social, publicada no B.T.E., 1ª. Série, n.º 15 de 22/04/1996, que se manteve até à publicação do Contrato Coletivo de Trabalho, e suas alterações, celebrado entre a “CNIS – Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade” e a “FEPCES – Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços e outros”, publicado no B.T.E., 1ª. Série, n.º 24 de 29/06/2023, com Portaria n.º 259/2022 de 27/10/2022, publicada no DR, Série I, n.º 2008/2022, a qual entrou em vigor a 02/11/2022.
Por tal razão, entendem que têm direito aos valores correspondentes às diuturnidades e diferenças salariais consignadas na referida regulamentação legal.
Distintamente para a ré, em 2001, foi celebrado um ACT entre a “Santa Casa da Misericórdia de Abrantes e Outras” e a “FNE – Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e Outros”, publicado no BTE, 1.ª Série, n.º 47, de 22-12-2001, que expressamente aboliu as diuturnidades e aprovou uma tabela salarial, com progressão vertical e horizontal.
Este ACT, que a ré passou a aplicar na sua relação laboral com as autoras e ao qual aderiu em 2016, foi objeto da Portaria de Extensão n.º 278/2010, de 24 de Maio, pelo que não será aplicável a Portaria de Regulamentação do Trabalho de 1996.
Do mesmo modo, às relações laborais das partes não é aplicável as disposições do Contrato Coletivo de Trabalho celebrado entre a CNIS – Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade e FEPCES – Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços e outros, B.T.E., 1ª. Série, n.º 24 de 29/06/2023, conforme resulta da exclusão feita pela Portaria de Extensão n.º 270/2022, de 9 de Novembro.
Por ser assim, conclui, a remuneração das autoras já contempla todos os valores que resultam das progressões verticais e horizontais, não lhes sendo devidas quaisquer diuturnidades, que a serem reconhecidas redundariam numa duplicação e numa desigualdade para com outros trabalhadores da instituição.
Perante este dissídio impõe-se, antes de mais, determinar qual o instrumento de regulamentação coletiva aplicável às relações laborais estabelecidas entre as partes.
De acordo com o artigo 1.º do Código do Trabalho, «o contrato de trabalho está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, assim como aos usos
laborais que não contrariem o princípio da boa fé».
Por sua vez, os instrumentos de regulamentação coletiva podem ser negociais ou não negociais (artigo 2.º do Código do Trabalho).
Entre os primeiros – em que a regulamentação das relações laborais é da autoria dos próprios interessados, empregadores e/ou associação de empregadores e trabalhadores representados em associações sindicais – incluem-se a convenção coletiva, o acordo de adesão e a decisão arbitral em processo de arbitragem.
A convenção coletiva pode assumir as seguintes manifestações: contrato coletivo (convenção celebrada entre associação sindical e associação de empregadores), acordo coletivo (convenção celebrada entre associação sindical e uma pluralidade de empregadores para diferentes empresas) e acordo de empresa (a convenção celebrada entre associação sindical e um empregador para uma empresa ou estabelecimento).
Finalmente, os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho não negociais ou heterónomos – em que a regulamentação é da autoria do Estado, feita por via administrativa, direcionada ao conteúdo das relação laborais em certo sector de atividade e universo profissional – são a portaria de extensão, a portaria de condições de trabalho (originariamente denominadas de portarias de regulamentação do trabalho – PRT) e a decisão arbitral em processo de arbitragem obrigatória ou necessária.
No dizer da Professora MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado do Direito do Trabalho, Parte III – Situações Laborais Coletivas, 3.ª edição, 2020, Almedina, pp. 191-192, entre os instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho, há uma dupla relação de subsidiariedade, que se analisa do seguinte modo:
– os instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho autónomos ou de origem convencional preferem aos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho heterónimos ou de origem não convencional (artigo 515.º do Código do Trabalho);
– no âmbito dos instrumento de regulamentação coletiva do trabalho não convencionais, a portaria de condições de trabalho é subsidiária em relação à portaria de extensão (artigo 517.º do Código do Trabalho).
Em suma, entre estes instrumentos de regulamentação coletiva existe uma hierarquia, prevalecendo os negociais sobre os não negociais: apenas na falta dos primeiros, serão os segundos subsidiariamente emitidos e aplicados (cfr. artigos 515.º e 517.º do Código do Trabalho).
Privilegia-se que os próprios interessados regulem os seus direitos e obrigações laborais, empregadores e trabalhadores, estes últimos obrigatoriamente através de sistemas de representação ou mandato (sindicatos): o princípio orientador desta matéria será o do primado da autonomia coletivo, em detrimento da regulamentação coletiva de origem não negocial.
Consequentemente, na concorrência entre os vários instrumentos de regulamentação coletiva, a entrada em vigor de um instrumento regulatório de origem negocial (v.g. convenção coletiva), afasta a aplicação do instrumento de origem não negocial – cfr. artigo 484.º do Código do Trabalho.
Outra consequência a registar será que «o carácter excecional da portaria de condições de trabalho [antiga portaria e regulamentação do trabalho] também deriva do facto de, tendo sido celebrada uma convenção coletiva ou proferida uma decisão arbitral com vista à resolução do mesmo problema, nos termos do artigo 515.º do Código do Trabalho, a portaria de condições de trabalho deixa de vigorar» [PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 9.ª edição, 2019, Almedina, p. 1208].
Nas palavras do saudoso Professor, loc. cit., com significado para o caso concreto, «esta portaria [de regulamentação do trabalho] serve somente para suprir lacunas, enquanto não existirem outros instrumentos de regulamentação coletiva fundados na autonomia das partes».
Feito este ponto prévio, à exceção da autora BB, que foi admitida em ...-...-2013, no início da relação laboral das restantes autoras [...-...-1998, ...-...-1991, ...-...-2000, ...-...-1999 e ...-...-1997, respetivamente] não existia qualquer instrumento de regulamentação coletiva negocial aplicável, celebrado entre os sujeitos das relações laborais em causa ou pelos seus representantes, nem existia portaria de extensão.
A lacuna existente foi suprida pela Portaria de Regulamentação do Trabalho de 12-04-1996, publicada no B.T.E. n.º 15, de 22-04-1996, havendo acordo nas partes quanto a tal aspeto.
Este propósito está presente, desde logo, no preâmbulo da referida Portaria, ao dar nota da falta de enquadramento patronal, que tem justificado o recurso à regulamentação administrativa.
Sobre o seu âmbito de aplicação (pessoal, profissional e geográfico) o artigo 1.º da Portaria não deixa margem para dúvidas, ao dispor da seguinte forma:
«1. A presente portaria regula, no território nacional, as relações de trabalho entre as instituições particulares de solidariedade social e os trabalhadores ao seu serviço cujas funções correspondam às funções constantes do anexo I.
2. São excluídas da aplicação da presente portaria:
a) as associações mutualista;
b) as misericórdias e outras instituições particulares de solidariedade social que, na data de início de vigência da presente portaria, sejam partes de processo negociais para a celebração de convenções coletivas de trabalho.
3. A exclusão referida na alínea b) do número anterior cessa se os respetivos processos não estiveram concluídos no prazo de seis meses a contar da entrada em vigor da presente portaria».
Face aos termos da PRT que, expressamente, nos termos da sua cláusula 24.ª, revogou a anterior PRT de 1985 (pulicada no B.T.E., 1.ª Série, n.º 31, de 22 de Agosto de 1985) e entrou em vigor em 27-04-1996 (cláusula 26.ª), é patente que passou a regular as relações de trabalho entre a ré e os seus trabalhadores, incluindo as autoras.
Esta situação manteve-se inalterada até 2001, data em que foi celebrado um ACT entre a “Santa Casa da Misericórdia de Abrantes e Outras” e a “FNE – Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e Outros”, publicado no BTE, 1.ª Série, n.º 47, de 22-12-2001.
Como é sabido, vigora no nosso ordenamento jurídico, no que tange à contratação coletiva, o princípio da filiação, de acordo com o qual a convenção obriga apenas o empregador que a subscreve ou o filiado em associação de empregadores que a subscreve, bem como os trabalhadores ao seu serviço que sejam membros da associação sindical celebrante (artigo 496.º do Código de Trabalho).
É o chamado princípio da dupla filiação do qual decorre que determinado instrumento de regulamentação coletiva negocial só pode aplicar-se a determinada relação jurídica se o trabalhador e o empregador forem sindicalizados/associados das entidades outorgantes da convenção.
Tal princípio comporta, porém, exceções, a saber:
–» por força do disposto no n.ºs 3 e 4, da mesma norma, «a convenção abrange trabalhadores e empregadores filiados em associações celebrantes no início do processo negocial, bem como os que nelas se filiem durante a vigência da mesma» e «Caso o trabalhador, o empregador ou a associação em que algum deles esteja inscrito se desfilie de
entidade celebrante, a convenção continua a aplicar-se até ao final do prazo de vigência que dela constar ou, não prevendo prazo de vigência, durante um ano ou, em qualquer caso, até à entrada em vigor de convenção que a reveja.»
–» por força do disposto no artigo 498.º, n.º 1, do mesmo diploma, «em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade de empresa ou estabelecimento ou ainda de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, o instrumento de
regulamentação coletiva de trabalho que vincula o transmitente é aplicável ao adquirente até ao termo do respetivo prazo de vigência ou no mínimo durante 12 meses a contar da transmissão, salvo se entretanto outro instrumento de regulamentação coletiva de trabalho negocial passar a aplicar-se ao adquirente».
–» nos termos do disposto no artigo 497.º do Código do Trabalho «caso sejam aplicáveis, no âmbito de uma empresa, uma ou mais convenções coletivas ou decisões arbitrais, o trabalhador que não seja filiado em qualquer associação sindical pode escolher qual daqueles instrumentos lhe passa a ser aplicável, desde que o mesmo se integre no âmbito do sector de atividade, profissional e geográfico do instrumento escolhido».
–» por força do estatuído no artigo 514.º do mesmo diploma, «a convenção coletiva ou decisão arbitral em vigor pode ser aplicada, no todo ou em parte, por portaria de extensão a empregadores e a trabalhadores integrados no âmbito do sector de atividade e profissional definido naquele instrumento».
No que tange a esta última exceção consagra, porém, o artigo 515.º do Código do Trabalho uma limitação, impondo que a portaria de extensão só possa ser emitida na falta de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho negocial. É o chamado princípio da subsidiariedade.
Para obviar a vazios na regulamentação coletiva, foi publicada a Portaria de Extensão n.º 278/2010, de 24 de Maio, que determinou o alargamento da referida convenção coletiva de 2001 e da sua alteração de 2010, «(…) no território do continente:
a) Às relações de trabalho entre santas casas da misericórdia não outorgantes que prossigam as atividades reguladas pela convenção e trabalhadores ao seu serviço, das profissões e categorias profissionais neles previstas;
b) Às relações de trabalho entre santas casas da misericórdia outorgantes que prossigam as atividades nela reguladas e trabalhadores ao seu serviço, das referidas profissões e categorias profissionais, não representados pelas associações sindicais outorgantes» (artigo 1.º, n.º 1).
Acresce que, nos termos do n.º 2 do artigo 1.º, foi excluída a aplicação da dita portaria de extensão «às relações de trabalho entre santas casas da misericórdia filiadas na CNIS — Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade e trabalhadores ao seu serviço, bem como a trabalhadores filiados em sindicatos associados na FEPCES — Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços».
Aqui chegados, deve salientar-se que a ré não foi subscritora original do dito ACT, tendo aderido ao mesmo apenas em 2016.
Por sua vez, as autoras encontram-se sindicalizadas no “CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal”, que é um sindicado associado na “FEPCES – Federação Portuguesa dos Sindicatos de Comércio, Escritórios e Serviços” desde as seguintes datas:
✓ A autora AA desde ...-...-2000;
✓ A autora BB desde ...-...-2015;
✓ A autora CC desde ...-...-2006;3
✓ A autora DD desde ...-...-2006;
✓ A autora EE desde ...-...-2010; e
✓ A autora FF desde ...-...-2005.
Retomando o ensinamento da Professora MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado do Direito do Trabalho, Parte I – Dogmática Geral, 5.ª edição, 2020, Almedina, p. 294 e segs., a portaria de extensão é um ato administrativo, com origem no Governo mediante o qual se estende o âmbito de aplicação de uma convenção coletiva ou decisão arbitral a empregadores (ou associação de empregadores) que não subscreveram a convenção e/ou a trabalhadores não filiados nas associações sindicais outorgantes – artigos 514.º a 516.º do Código do Trabalho – e destina-se a evitar o vazio de regulamentação e uniformizar o regime laboral dos trabalhadores num mesmo sector de atividade e profissional.
Por seu turno, a portaria de condições de trabalho traduz-se num puro ato administrativo em que a regulamentação coletiva em determinado sector de atividade e profissional é feito de novo, por inexistir regime jurídico convencional, nem ser possível estender uma regime convencionado com recurso a portaria de extensão e não existir ao tempo da sua emissão associação de empregadores ou de trabalhadores – cfr. artigos 517.º e 518.º do Código do Trabalho.
Como se reconheceu no Acórdão da Relação de Guimarães de 23-11-2013, processo n.º 3672/22.1T8BRG.G1, relatado pela Desembargadora MARIA LEONOR BARROSO, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/4a794ea02f00dad680258a75004f8b5f?OpenDocument, que se cita pela qualidade da sua argumentação jurídica e por abordar uma situação muito semelhante à dos autos, «entre os instrumentos de regulamentação coletiva não negociais (ou heterónimos), existe uma hierarquia e uma relação de subsidiariedade, prevalecendo a portaria de extensão e somente na sua falta poderá haver recurso a portaria de condições de trabalho. Esta prevalência encontra explicação no facto de aquela (PE) ser ainda o prolongamento de um regime negocial coletivo, um aproveitamento da regulamentação da autoria dos próprios interessados (empregadores e trabalhadores) aplicável a outros sujeitos dentro do sector de atividade, portanto, ainda um derivado do primado da autonomia coletiva».
Recentrando no caso concreto, a Portaria de Extensão n.º 278/2010, de 24 de Maio, entrou em vigor em 29-05-2010.
Por efeito da aplicação dessa Portaria de Extensão, que expressamente excluiu do seu âmbito de aplicação os trabalhadores sindicalizados na “FEPCES – Federação Portuguesa dos Sindicatos de Comércio, Escritórios e Serviços”, na qual se encontra associado o “CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal”, e da associação anterior a esta data neste sindicato, o ACT de 2001, celebrado entre a “Santa Casa da Misericórdia de Abrantes e Outras” e a “FNE – Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e Outros”, publicado no BTE, 1.ª Série, n.º 47, de 22-12-2001, deixou de se aplicar a partir de 29-05-2010 às seguintes autoras:
• AA;
• CC;
• DD; e
• FF.
Já no que se refere às autoras BB e EE, a data em que o ACT de 2001 deixou de regular as suas relações laborais com a ré reporta-se à data sindicalização CESP [01-10-2015 e de 01-11-2010, respetivamente] e não à data da entrada em vigor da Portaria de Extensão n.º 278/2010, de 24 de Maio [29-05-2010].
Em conclusão, por beneficiarem da exclusão subjetiva prevista no artigo 1.º, n.º 2, da Portaria de Extensão n.º 278/2010, de 24 de Maio, ainda que com datas diferentes, todas as autoras viram a regulamentação das suas relações laborais excluídas da regulamentação do ACT de 2001, vulgarmente denominado «CCT de Abrantes» ou «ACT de Abrantes».
Posto isto, como se conclui no citado Acórdão da Relação de Guimarães que, repete-se, tratou de um caso com contornos semelhantes ao presente, «(…) as AA sindicalizaram-se no CESP, que é um sindicato associados na FEPCES – Federação Portuguesa dos Sindicatos de Comércio, Escritórios e Serviços, pelo que, caiando no âmbito de exclusão cl.ª 1º, nº 2, da PE 2010, então sim, esta deixou de lhes ser aplicável.
Donde, passam as referidas autoras, na falta de IRCT negocial, novamente a estar abrangidas pelas referida PRT 96 que se mantinha em vigor nunca tendo sido expressamente revogada. Voltou o vazio de regulamentação que justifica a PRT.».
É neste quadro que retoma vigência, na regulamentação das relações laborais da autora com a ré, a PRT de 1996, que veio preencher o vazio que resultou da falta de instrumento de regulamentação coletiva aplicável.
Posteriormente, a Portaria de Extensão n.º 259/2022, de 27 de Outubro, estendeu às partes o contrato coletivo, e suas alterações, celebrado entre a “CNIS – Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade” e a “FEPCES – Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços e outros”, publicadas no BTE n.º 41, de 8 de Novembro de 2019, n.º 2, de 15 de Janeiro de 2021, e n.º 39, de 22 de Outubro de 2021.
Esta portaria de extensão entrou em vigor no dia 02-11-2022 (quinto dia após a sua publicação).
Finalmente, pela relevância que assume para a situação dos autos, cumpre dar nota do Contrato Coletivo de Trabalho celebrado entre a “CNIS – Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade” e a “FEPCES - Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços e outros” (alteração salarial e outras e texto consolidado), publicado no B.T.E., 1.ª Série, n.º 24, de 29-06-2023.
Está, desta forma, encontrado o instrumento de regulamentação coletiva que regula as relações laborais das autora com a ré.
2. Dos créditos laborais reclamados:
Reclamam as autoras a condenação da ré a reconhecer o direito a diuturnidades, vencidas e vincendas, nos termos da Cláusula 21.ª da PRT das Instituições de Solidariedade Social, publicada no B.T.E., 1ª. Série, n.º 15 de 22/04/1996, e da Cláusula 70.ª do CCT celebrado entre CNIS e FEPCES, B.T.E., 1ª. Série, n.º 24 de 29/06/2023.
Além disso, as autoras devem também receber os montantes referentes às diferenças salariais, relativas a parte do ano de 2022 e ao ano de 2023.
Enquadrada a questão decidenda, vale a pena retomar os vários instrumentos de regulamentação coletiva aplicáveis.
De harmonia com a cláusula 21.ª, n.º 1, da PRT das Instituições de Solidariedade Social de 1996, «o trabalhador que preste serviço em regime de tempo completo com carácter de permanência tem direito a uma diuturnidade de 2.700$, por cada cinco anos de serviço, até ao limite de cinco diuturnidades».
Já a cláusula 70.ª, n.º 1, do CCT de 2023, celebrado entre a CNIS e a FEPCES, dispõe que «os trabalhadores que estejam a prestar serviço em regime de tempo completo têm direito a uma diuturnidade no valor de 21,00 €, por cada cinco anos de serviço, até ao limite de cinco diuturnidades».
Como já se referiu, a Portaria n.º 259/2022, de 27 de Outubro, que estendeu às partes o contrato coletivo e as suas alterações, celebrado entre a “CNIS – Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade” e a “FEPCES – Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços e outros”, publicadas no BTE n.º 41, de 8 de Novembro de 2019, n.º 2, de 15 de Janeiro de 2021, e n.º 39, de 22 de Outubro de 2021, entrou em vigor no dia 02-11-2022.
No artigo 3.º, n.º 2 dessa Portaria de extensão determinou-se que «a tabela salarial e cláusulas de natureza pecuniária em vigor previstas na convenção produzem efeitos a partir de 1 de Dezembro de 2021».
Porém, a Portaria n.º 270/2022, de 9 de Novembro, procedeu à alteração da Portaria n.º 259/2022, de 27 de Outubro, aditando ao artigo 2.º um n.º 3, nos termos do qual «o disposto no número anterior [retroatividade a 01-12-2021 da tabela salarial e cláusulas de natureza pecuniária] não é aplicável às instituições particulares de solidariedade social filiadas na União das Misericórdias Portuguesas — UMP».
Escudada na sucessão de instrumentos de regulamentação coletiva, nomeadamente na correção feita pela Portaria n.º 270/2022, de 9 de Novembro, à Portaria de extensão n.º 259/2022, de 27 de Outubro, onde foi afastada a retroatividade das cláusulas de expressão pecuniária para as filiadas da UMP, a ré entende que, mesmo a serem devidas diuturnidades, será apenas no quinto ano a contar da data em que o CCT em apreço passou a ser aplicado à ré [02-11-2022].
Analisando os créditos reclamados pelas autoras, no que respeita às diferenças salariais reclamadas, a proibição de retroatividade das novas tabelas salariais não tem significado no presente processo.
Na verdade, da petição apenas constam peticionados diferenças salariais referentes a dois meses de 2022, ao respetivo subsídio de Natal e aos valores do ano de 2023, portanto tudo após a data da entrada em vigor do CCT [02-11-2022]
No que concerne às diuturnidades suscitadas, a objeção colocada pela ré também não merece acolhimento, pelas as razões que se passam a enunciar.
Como oportunamente se analisou, as relações laborais das autoras com a ré foram reguladas, sucessivamente, pela PRT de 96, posteriormente pelo ACT de 2001 (o chamado ACT de Abrantes), retomou a PRT de 96 e mais tarde o CCT celebrado entre a CNIS e a FEPCES em 2019, com as alterações posteriores.
Significa isto que, perante PRT de 1996 e o CCT celebrado entre a CNIS e FEPCES, autoras adquiriram e, posteriormente, readquiriram o direito (interrompido) a diuturnidades, face ao ACT de 2001, celebrado entre a “Santa Casa da Misericórdia de Abrantes e Outras” e a “FNE – Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e Outros”.
A dúvida colocada pela ré já foi decidida no Acórdão da Relação de Lisboa de 03-05-2023, processo n.º 9087/22.4T8LSB.L1-4, relatado pela Desembargadora MANUELA FIALHO, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3b22a83ba4532f34802589ad0038de80?OpenDocument, nos seguintes termos: «sendo as diuturnidades atribuídas em CCT, tendo na sua base cada período de (…) anos de serviço, com irrelevância da continuidade do serviço, desde que o trabalhador desempenhe a sua atividade para a mesma empregadora, com sujeição ao instrumento de regulamentação coletiva que as reconhece, todo o tempo decorrido ao serviço da empregadora na execução do contrato de trabalho é contabilizável para efeito do vencimento de diuturnidades».
No mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães de 23-11-2023, a que se aludiu supra, detalhou as várias incidências do tema, com a seguinte clareza: «[caso] se interrompa o pagamento das diuturnidades por inexistir título, tal não significa que a antiguidade das autoras referente a este período não venha a ser contabilizado uma vez readquirido o direito a diuturnidades por força da PRT 96. Uma coisa é o não recebimento das diuturnidades durante aquele hiato de tempo, consequência que decorre do princípio da não retroatividade dos atos normativos (12.º CC). Outra coisa são os pressupostos em que assenta o direito readquirido a diuturnidades que havia sido interrompido, sendo aqueles associados ao decurso do tempo ao serviço da ré. Ora as AA nunca deixaram de trabalhar para a mesma ré. Nem de desempenhar as mesmas funções. O vínculo laboral continuou o seu devir, sem hiatos. A nosso ver, nenhuma razão há para desconsiderar a realidade e para se ficcionar um reinício e contagem sem correspondência com os factos. Assim, a antiguidade das autoras deve ser contada de modo corrido, sem interrupções, somando-se uma diuturnidade a cada período de cinco anos (com o limite de 5, segundo a CCT), apenas não lhes serão liquidadas as diuturnidades mensais referentes ao período em que estiveram abrangidas pela PE 2010 que as aboliu».
Transpondo para o caso concreto, face à data de admissão das autoras e mantendo-se estas, sem interrupções, sempre ao serviço da ré, é incontroverso que todo o período em que prestaram a sua atividade tem de ser contabilizado, sem qualquer hiato ou interrupção, para efeito do vencimento das diuturnidades.
Apenas no que se reporta ao pagamento, no período em que esteve em vigor o ACT de 2001, celebrado entre a “Santa Casa da Misericórdia de Abrantes e Outras” e a “FNE – Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e Outros”, que não previa o pagamento de diuturnidades, o valor destas não pode ser liquidado às trabalhadoras.
Contudo, as demandantes solicitam o pagamento das diuturnidades apenas a partir de 2016, o que é uma data muito posterior àquelas em que deixaram de estar sujeitas à regulamentação do dito ACT de Abrantes (que dependem da conjugação da data da entrada em vigor da Portaria de 2010 [29-05-2010] com as datas de sindicalização das autoras no CESP, tudo nos termos supra explanados).
Em conclusão, aqui chegados, passa-se a analisar os créditos de cada uma das autoras, à luz da Cláusula 21.ª da PRT de 2016 e da Cláusula 70.ª do CCT celebrado entre a CNIS e a FEPCES, B.T.E., 1ª. Série, n.º 24 de 29/06/2023.
(…).»
Vejamos.
Primeiramente, importa referir que recentemente esta Secção Social proferiu acórdão num processo com algumas semelhanças com o presente, no qual se seguiu a mesma linha interpretativa da matéria de direito que foi feita na sentença recorrida.
Escreveu-se no acórdão datado de 16-12-2024 (Proc. n.º 2021/23.6T8EVR.E1), consultável em www.dgsi.pt:
«O instrumento de regulamentação coletiva de trabalho mais antigo que a recorrente convoca e que, se bem se interpreta, entende ser aplicável ao caso, é o acordo coletivo de trabalho outorgado entre a Santa Casa da Misericórdia Local 2 e outras e a FNE – Federação Nacional dos Sindicatos de Educação e outros, publicado no BTE n.º 47, de 22 de dezembro de 2001.
Assim, afigura-se incontroverso que até essa data não existia qualquer instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável ao caso, seja por a recorrente não o ter celebrado, ser por adesão ou por portaria de extensão.
Porém, pergunta-se: e poderá ser aplicável portaria de condições de trabalho?
Recorde-se que a sentença recorrida entendeu serem aplicáveis as portarias de regulamentação do trabalho publicadas nos BTE n.º 31, de 22 de agosto de 1985, e BTE n.º 15, de 22 de abril de 1996, contra o que a recorrente se rebela.
A primeira, sob a epígrafe “PRT para os trabalhadores ao serviço das instituições particulares de solidariedade social”, determina na sua Base II que regula as relações de trabalho estabelecidas entre as instituições particulares de solidariedade social e os trabalhadores ao seu serviço.
E, no que ora releva, na Base XLIX, n.º 1, determina que os trabalhadores que estejam a prestar serviço com carácter de permanência e em regime de tempo completo têm direito a uma diuturnidade de 1.100$00 por cada 5 anos de serviço, até ao limite de 5 diuturnidades.
Entretanto, no BTE n.º 15, de 22-04-1996 foi publicado novo “PRT nas instituições particulares de solidariedade social”.
Sublinhe-se que no seu preâmbulo se escreveu, designadamente, continuar a verificar-se falta de enquadramento associativo patronal, o que tem justificado o recurso à regulamentação administrativa, tendo-se procedido a estudos preparatórios de revisão da portaria de 1985.
E a seguir explicitou-se: «Participaram nesses estudos assessores designados por várias associações sindicais e pela União das Instituições Particulares de Solidariedade Social e esteve presente ainda a União das Misericórdias Portuguesas, que, entretanto, encetara autonomamente um processo de negociação.
(…)
Futuramente, logo que seja superada a falta de enquadramento associativo patronal, as condições de trabalho no sector poderão ser reguladas por convenção coletiva».
Ora, resultando da matéria de facto que a recorrente é uma IPSS, não pode deixar de concluir-se que as referidas PRT lhe eram aplicáveis; e essa conclusão sai ainda mais reforçada pela circunstância de, como resulta do citado preâmbulo, a própria União das Misericórdias Portuguesas ter participado nos estudos tendentes à revisão da portaria.
É certo que, como aí se diz, entretanto esta encetou autonomamente um processo de negociação: e de acordo com a alínea b) do n.º 2 do artigo 1.º são excluídas da portaria as misericórdias que, na data do seu início da vigência, sejam partes de processo negociais para a celebração de convenções coletivas de trabalho.
Todavia, nada se extrai dos autos no sentido de que a 27-04-1996 a aqui recorrente fosse “parte” em processo negocial para celebração de convenção coletiva de trabalho, pelo que as PRT em referência são aplicáveis à relação laboral em apreciação (no sentido também da aplicação das referidas PRT a uma outra Santa Casa da Misericórdia veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23-11-2023, proc. n.º 3672/22.1T8BRG.G1).
E de acordo com artigo 21.º, n.º 1, da PRT/96, o trabalhador tem direito a uma diuturnidade de 2.700$00 por cada cinco anos de serviço, até ao limite de cinco diuturnidades.
Assim, tendo a autora/recorrida sido admitida ao serviço da ré/recorrente em 28-09-1989, em 28-09-1994 adquiriu o direito a uma diuturnidade, no valor de 1.100$00, que a partir de janeiro de 1996 passou a ser de passou a ser de 2.700$00.
Posteriormente veio a ser publicado, no BTE n.º 47, de 22 de dezembro de 2001, o acordo coletivo de trabalho entre a Santa Casa da Misericórdia Local 2 e outras e a FNE – Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros, que abolia “todas e quaisquer diuturnidades”, e que a recorrente convoca para os presentes autos.
Mas da leitura desse acordo coletivo não se retira que a recorrente dele tivesse sido subscritora ou associada em associação celebrante, assim como não sendo a recorrida membro de associação sindical celebrante, não pode o mesmo ser aplicável aos autos; ou seja, por não se verificar o requisito da dupla filiação não pode o acordo coletivo de trabalho em referência ser aqui diretamente aplicável.
Contudo, este veio a ser alterado em 2010, conforme BTE n.º 3, de 22 de janeiro de 2010.
E pela portaria de extensão n.º 278/10, de 17 de maio (publicada no DR., 1.ª série, n.º 100, de 24-05-2010), esse acordo passou a aplicar-se:
«a) Às relações de trabalho entre santas casas da misericórdia não outorgantes que prossigam as atividades reguladas pela convenção e trabalhadores ao seu serviço, das profissões e categoriais profissionais neles previstas;
b) Às relações de trabalho entre santas casas da misericórdia outorgantes que prossigam as atividades nela reguladas e trabalhadores ao seu serviço, das referidas profissões e categorias profissionais, não representadas pelas associações sindicais outorgante».
Atente-se que o n.º 2 do artigo 1.º expressamente exclui a aplicabilidade da portaria às relações de trabalho entre santas casas da misericórdia filiadas na CNIS – Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade e trabalhadores ao seu serviço, bem como a trabalhadores filiados em sindicatos associados na FEPCES – Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritório e Serviços.
Assim, a partir de 29-05-2010 (considerando que nos termos do artigo 2.º, n.º 1 da portaria, esta entrou em vigor no 5.º dia após a sua publicação no Diário da República), por força da referida portaria de extensão e tendo presente que, como resulta do já afirmado, esta prevalece sobre as PRT – ou, dito de outra forma, a portaria de condições de trabalho é subsidiária da portaria de extensão (cfr. artigo 517.º, n.º 1 do Código Trabalho) –, a relação de trabalho deixou de ser regulada pelo PRT/96 e passou a ser regulada pelo acordo coletivo de 2001, alterado em 2010.
Ora, nesse acordo de 2001 consta a cláusula 58.ª, que tem o seguinte teor:
«Diuturnidades
1 — Foram abolidas as diuturnidades de todos os trabalhadores abrangidos pela presente convenção.
2 — Os trabalhadores referidos no número anterior perdem o direito às diuturnidades já vencidas, tendo o respetivo valor sido incluído no vencimento base/escalão.
(…).
Tal significa que a partir da referida data a autora/recorrida deixou de ter direito ao pagamento das referidas diuturnidades.4
Prosseguindo temporalmente, verifica-se que, conforme publicação no BTE n.º 32, de 29-08-2017, a Santa Casa da Misericórdia Local 1, entre outras, aderiu à convenção coletiva em vigor entre a Santa Casa da Misericórdia Local 2 e outras e a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais – FNSTFPS e outros, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 38, de 15 de outubro de 2016.
Nesta última convenção coletiva consta a cláusula 72.ª, com o seguinte teor, na parte relevante:
«Diuturnidades
1- Foram abolidas as diuturnidades de todos os trabalhadores abrangidos pela presente convenção coletiva, sem prejuízo do disposto no número 4.
2- Os trabalhadores referidos no número anterior perdem o direito às diuturnidades já vencidas, tendo o respetivo valor sido incluído no vencimento base/escalão correspondente à sua antiguidade na instituição.
(…)».
Ou seja, também nesta CCT a que a aqui recorrente aderiu se manteve a abolição de diuturnidades.
Face ao princípio da dupla filiação (artigo 496.º do Código do Trabalho), não sendo a autora filiada em qualquer associação sindical subscritora da convenção, poderia questionar-se se a CCT era aplicável à relação em apreço.
Todavia, como se extrai da petição inicial – artigos 21.º e 22 – é a própria autora que confessa/aceita ser-lhe aplicável.
Entretanto, por força da portaria de extensão n.º 259/2022, de 27-10, retificada pela portaria de extensão n.º 270/2022, de 9 de novembro, a partir de 01-01-2022, passou a ser aplicável à relação em apreço o CCT entre a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade – CNIS e a FEPCES – Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e outros (publicada no BTE n.º 41, de 8 de novembro de 2019), que na sua cláusula 70.ª previa o direito do trabalhador a uma diuturnidade de € 21,00 por cada cinco anos de serviço, até ao limite de cinco diuturnidades.
Aquela portaria de extensão estabelece no artigo 3.º, n.º 2, que a tabela salarial e as cláusulas de natureza pecuniária previstas na convenção produzem efeitos a partir de 1 de dezembro de 2021.
Contudo, essa PE foi retificada pela PE n.º 270/2022, de 9 de novembro, que no seu artigo 3.º, n.º 3, determina que «[o] disposto no número anterior não é aplicável às instituições particulares de solidariedade social filiadas na União das Misericórdias Portuguesas - UMP».
Esta PE (270/2022) – de acordo com o seu artigo 2.º – entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e produziu efeitos à data da entrada em vigor da portaria n.º 259/2022, de 27 de outubro, ou seja, a 1 de novembro de 2022 (artigo 3.º, n.º 1, desta portaria).
Ora, sendo a ré/recorrente filiada na União das Misericórdias Portuguesas (cfr. facto n.º 1), tal significa que as alterações das cláusulas de natureza pecuniária, rectius diuturnidades, não operam a partir de 1 de dezembro de 2021, mas sim a partir de 1 de novembro de 2022, data da entrada em vigor da PE n.º 259/2022.»
Não vislumbramos qualquer razão para alterar a interpretação jurídica então defendida e que se aplica, em grande parte, ao caso sub judice.
No que se não se aplica faremos a devida apreciação
Concretizemos.
Pelas razões apresentadas na decisão recorrida e no aresto citado, e para as quais remetemos para evitar tautologias, parece-nos resultar claro que a PRT de 1996, publicada no BTE n.º 15, de 22-04-1996, por inexistência de IRCT, é aplicável às relações laborais que se apreciam, e reconheceu, no artigo 21.ª, n.º 1, o direito a uma diuturnidade por cada cinco anos de serviço, até ao limite de cinco diuturnidades.
Posteriormente, veio a ser publicado o ACT de 2001, celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia de Abrantes e outras e a FNE — Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e outros – cfr. BTE n.º 47, de 22-12-2001, que aboliu “todas e quaisquer diuturnidades”.
Contudo, não resultando do mesmo que a recorrente tenha sido subscritora ou associada em associação celebrante, tal IRCT não se tornou imediatamente aplicável às relações laborais dos autos – cf. artigo 496.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
O ACT de 2001 foi objeto de alteração publicada no BTE n.º 3, de 22-01-2010, mas sem reflexo quanto à matéria das diuturnidades.
Mais tarde, este IRCT foi estendido pela PE n.º 278/2010, publicada no Diário da República n.º 100/2010, de 24-05-2010, que entrou em vigor cinco dias após, isto é, em 29-05-2010.
No entanto, ficou expressamente consagrado no n.º 2 do artigo 1.º da PE n.º 278/2010 que a mesma não se aplica às relações de trabalho entre santas casas da misericórdia filiadas na CNIS - Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade e trabalhadores ao seu serviço, bem como a trabalhadores filiados em sindicatos associados na FEPCES - Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços (doravante, FEPCES).
Como o CESP é filado na FEPCES, com reporte ao caso concreto, tal exclusão, em termos práticos, significa que a PE n.º 278/2010 nunca se aplicou às relações laborais das Autoras AA, DD e JJ, que se sindicalizaram no CESP anteriormente a 29-05-2010.
E que deixou de se aplicar às Autoras BB, CC e EE nas datas em que estas se sindicalizaram no CESP, ou seja, a partir de 01-10-2015, 01-01-2012 e 01-11-2010, respetivamente.
Ou seja, só estas últimas autoras perderam o direito às diuturnidades entre a data da entrada em vigor da PE n.º 278/2010 e a data em que se sindicalizaram no CESP, por força da portaria de extensão.5
Em 2016, a recorrente subscreveu o Acordo coletivo entre a Santa Casa da Misericórdia de Abrantes e outras e a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais e outros, publicado no BTE n.º 38, de 15-10-2016, que estabelecia na sua cláusula 72.º:
«1- Foram abolidas as diuturnidades de todos os trabalhadores abrangidos pela presente convenção coletiva, sem prejuízo do disposto no número 4.
2- Os trabalhadores referidos no número anterior perdem o direito às diuturnidades já vencidas, tendo o respetivo valor sido incluído no vencimento base/escalão correspondente à sua antiguidade na instituição.»
Todavia, atendendo ao princípio da dupla filiação, este IRCT não se mostra aplicável às relações laborais das Autoras, uma vez que as mesmas não estavam filiadas em qualquer associação sindical subscritora do mesmo, nem a sua aplicação resulta de qualquer via menos direta legalmente prevista.
Posteriormente, com relevância, surgiu a PE n.º 259/2022, publicada no Diário da República n.º 208/2022, de 27-10-2022, retificada pela PE n.º 270/2022, com publicação no Diário da República n.º 216/2022, de 09-11-2022, que estendeu o CCT celebrado entre a CNIS - Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (doravante, CNIS) e a FEPCES, publicado no BTE n.º 41, de 08-11-2019, tornando este IRCT aplicável às relações laborais sub judice.
Assim sendo, por força da cláusula 70.º deste IRCT, conjugada com as referidas PE’s n.ºs 259/2022 e 270/2022, assiste às Autoras o direito às diuturnidades, desde 01-12-2021 (artigo 3.º, n.º 2 da PE n.º 259/2022), conforme se apreciou na sentença recorrida, porquanto não se apurou nos autos que a recorrente se encontre filiada na União das Misericórdias Portuguesas (ao contrário do caso decidido no acórdão desta Secção Social supra citado, remetendo-se para o aí explanado sobre os pressupostos da retroatividade/não retroatividade das cláusulas de natureza pecuniária).
Nesta conformidade, sufraga-se a sentença recorrida que reconheceu o reclamado direito às diuturnidades ao abrigo do artigo 21.º, n.º 1 do PRT de 1996 e da cláusula 70.º do CCT celebrado entre a CNIS e a FEPCES.
Acresce referir que o argumento apresentado pela recorrente de que a PE n.º 182/2023, publicada no Diário da República n.º 124/2023, de 28-06-2023, que veio estender as alterações do contrato coletivo entre a CNIS e a FNSTFPS - Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais, exclui expressamente da aplicação do contrato coletivo às instituições particulares de solidariedade social filiadas na União das Misericórdias Portuguesas - UMP e na União das Mutualidades Portuguesas, não procede. Desde logo, porque não resultou apurado que a recorrente integrasse a União das Misericórdias ou a União das Mutualidades Portuguesas. Ademais, o CCT estendido também reconhece o direito às diuturnidades - cf. cláusula 68.º do CCT publicado no BTE n.º 8, de 28-02-2023 – nos exatos termos em que é reconhecido na cláusula 70.º do CCT celebrado entre a CNIS e a FEPCES.
Por fim, resta referir que, a posteriori, foi publicada no Diário da República n.º 200/2023, de 16-10-2023, a PE n.º 310/2023, que a recorrente invoca na sua argumentação.
Esta PE estendeu alterações do CCT entre a CNIS e a FEPCES.
Estatui o seu artigo 1.º:
«1 - As condições de trabalho constantes das alterações do contrato coletivo entre a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade - CNIS e a FEPCES - Federação Portuguesa dos Sindicatos do Comércio, Escritórios e Serviços e outros, publicadas no Boletim do Trabalho e Emprego (BTE), n.º 24, de 29 de junho de 2023, são estendidas no território do continente:
a) Às relações de trabalho entre instituições particulares de solidariedade social não filiadas na confederação outorgante que prossigam as atividades reguladas pela convenção e trabalhadores ao seu serviço das profissões e categorias profissionais nela previstas;
b) Às relações de trabalho entre instituições particulares de solidariedade social filiadas na confederação outorgante que prossigam as atividades reguladas pela convenção e trabalhadores ao seu serviço, das referidas profissões e categorias profissionais, não representados pelas associações sindicais outorgantes.
2 - O disposto na alínea a) do número anterior não é aplicável às instituições particulares de solidariedade social filiadas na União das Misericórdias Portuguesas - UMP e na União das Mutualidades Portuguesas.
3 - A presente extensão não é aplicável aos trabalhadores filiados em sindicatos representados pela Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais - FNSTFPS.
4 - As retribuições das tabelas salariais inferiores à retribuição mínima mensal garantida em vigor apenas são objeto de extensão nas situações em que sejam superiores à retribuição mínima mensal garantida resultante de redução relacionada com o trabalhador, de acordo com o artigo 275.º do Código do Trabalho.
5 - A presente extensão não é aplicável às relações de trabalho que no mesmo âmbito sejam reguladas por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho negocial, de acordo com o artigo 515.º do Código do Trabalho.»
Ora, no caso que se aprecia, entende-se que não se verifica nenhuma das situações excluídas da extensão previstas no artigo, pelo que esta PE se mostra aplicável às relações laborais sub judice.
O que significa que as alterações ocorridas no CCT entre a CNIS e a FEPCES, que se mostram publicadas no BTE n.º 24, de 29-06-2023, são aplicáveis às ditas relações laborais.
Porém, a cláusula 70.ª não sofreu alteração.
Logo, a irrelevância da dita PE n.º 310/2023 para o thema decidendum.
Enfim, a decisão que reconheceu o reclamado direito às diuturnidades deve manter-se.
Nesta sequência, e considerando que não foi colocado em crise o valor das diuturnidades atribuídas, resta-nos concluir que o recurso improcede quanto à terceira questão no mesmo suscitada.
*
VII. Do alegado abuso de direito
A última questão que importa apreciar é a do alegado abuso de direito por parte das Autoras, por, segundo a recorrente, ao longo da duração das relações laborais terem aceitado que a entidade empregadora estabelecesse os critérios da respetiva remuneração e de todas as cláusulas de expressão pecuniária com recurso ao ACT de 2001, sabendo que a sua remuneração base integrava já as diuturnidades.
Analisemos.
O abuso de direito vem definido no artigo 334.º do Código Civil.
Prescreve tal normativo: «É ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Sob o chamado venire contra factum proprium, que é uma das modalidades do abuso de direito, tem-se entendido que se trata de uma conduta contraditória, cuja proibição está contida no segmento da norma consagrada no artigo. 334.º do Código Civil, que alude aos limites impostos pela boa-fé - cf. Acórdão da Relação do Porto de 11-05-1989, CJ, 1989, 3.º, pág. 192.
Alguém assume uma conduta que é contraditória com outra conduta que já havia assumido, e que leva à violação da confiança que se havia instalado quanto ao comportamento inicialmente assumido.
Por isso o venire contra factum proprium, na sua apreciação, combina-se com o princípio da tutela da confiança.
No vertente caso, a base argumentativa que foi apresentada pela recorrente para fundamentar o invocado abuso de direito, não resultou minimamente demonstrada.
Dito de outro modo, não resulta do elenco dos factos provados que, em algum momento, as Autoras tivessem assumido um comportamento que levasse a recorrente a crer que as mesmas aceitaram que não lhes eram devidas diuturnidades ou que nunca iniciariam qualquer demanda judicial para o reconhecimento do direito às mesmas.
Destarte, não se provou a existência de abuso de direito, na vertente de venire contra factum proprium, que foi invocada.
*
Concluindo, o recurso procede quanto à arguição da nulidade da sentença, mas improcede quanto ao demais.
As custas do recurso deverão ser suportadas pela recorrente – artigo 527.º do Código de Processo Civil
*
VIII. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) declarar a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia quanto ao invocado abuso de direito, mas determinar o conhecimento da questão omitida, no exercício dos poderes de substituição ao tribunal recorrido, declarando-a improcedente.
b) confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso a suportar pela recorrente.
Notifique.
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Évora, 13 de março de 2025
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
João Luís Nunes
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1. Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: João Luís Nunes↩︎
2. Cf. Acórdão da Relação de Évora de 30-05-2019 (Proc. n.º 612/18.6T8EVR.E1), acessível em www.dgsi.pt, no qual se sumariou: «1. A Relação não tem a obrigação de previamente ouvir as partes acerca do exercício de poderes de substituição ao tribunal recorrido, caso a nulidade da sentença recorrida tenha sido expressamente arguida nas alegações de recurso e a parte contrária tenha podido exercer o seu contraditório quanto a essa matéria nas respetivas contra-alegações.(…)».↩︎
3. Recordamos que em relação a este facto houve uma pequena alteração, mas sem relevância para o que se aprecia.↩︎
4. Salienta-se que no caso apreciado no acórdão citado, ao contrário do caso que se aprecia nos autos, a ali autora não era sindicalizada no CESP- Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal.↩︎
5. Contudo, estas autoras não pedem o pagamento de diuturnidades anteriormente a 2016.↩︎