ARRESTO
JUSTO RECEIO DE PERDA OU DIMINUIÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL
Sumário

Sumário1:
I. No âmbito do procedimento cautelar de arresto, a alegação e comprovação do justo receio ou justificado receio de perda de garantia patrimonial não basta o receio meramente subjetivo, “de ver insatisfeita a prestação a que julga ter direito, antes há-de esse receio assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, isto é, terá ele que se alicerçar nas circunstâncias e factos demonstrados, segundo uma avaliação dependente das regras de experiência comum”;
II. “Para o preenchimento da cláusula geral do justo receio ou justificado receio de perda de garantia patrimonial relevam, em geral, a forma da atividade do devedor, a sua situação económica e financeira, a maior ou menor solvabilidade, a natureza do património, a dissipação ou extravio de bens, a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de não cumprir, o montante do crédito, a própria relação negocial estabelecida entre as partes”.
III. Não logrando a Requerente demonstrar indiciariamente que a Requerida desenvolve ou pretende devolver qualquer comportamento que consubstancie ocultação ou depauperação de bens, ao que acresce nem sequer ter sido alegada uma situação suficiente e bastante para atestar uma débil e deficitária atividade da Requerida, em conjugação com património que se apurou que possui, importa concluir que não provou, como lhe competia (artigo 342º, nº1 do Código Civil), ainda que em sede indiciária, justificado receio de perda da garantia patrimonial

Texto Integral

ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA,

I. Relatório


AA instaurou o presente procedimento cautelar de arresto contra BB, alegando, em síntese, que celebrou com a Requerida um contrato de empreitada relativo a obras de remodelação de uma moradia unifamiliar a esta pertencente, designada por ..., que a Requerida - antecipando a necessidade de eventuais alterações –estruturais, de estética ou mera preferência pessoal – solicitou que o contrato de empreitada não fosse reduzido a escrito, optando que os trabalhos fossem realizados sob o comummente denominado regime de empreitada à despesa e que nestes termos, a empreiteira (ora requerente) realizou os trabalhos conforme foi sendo solicitado pelo sócio-gerente da dona da obra (ora requerida), sendo os pagamentos dos custos diretos de execução, sem margem de lucro nos materiais, mas cobrando apenas a mão de obra, com base no tempo despendido, pelo valor à hora previamente acordado.


Mais referiu que a Requerida incumpriu tal contrato, não procedendo ao pagamento das faturas emitidas desde novembro de 2023, tendo a dívida da Requerida para com a Requerente atingido o montante de € 62.282,94, pelo que a Requerente no dia 9.04.2024 suspendeu os trabalhos e notificou a requerida para efeitos de exercício do direito de retenção, e, na sequência de divergências entre as partes, instaurou contra a Requerida uma providência cautelar não especificada, visando assegurar o exercício do invocado direito de retenção.


Mais referiu que no decurso da providência cautelar, e após contactos entre os Mandatários de ambas as partes, foi estabelecido um acordo (novamente de forma verbal, uma vez que o sócio-gerente da requerida, uma vez mais, pediu para que não fosse reduzido a escrito) para pagamento do crédito da Requerente pela Requerida, que confiando nas boas intenções da Requerida, a Requerente desistiu da providência cautelar mas que a Requerida apenas efetuou a entrega da quantia de € 25.500,00, a fim de a requerente levantar o direito de retenção, o que gerou o incumprimento do referido acordo, permanecendo por pagar a quantia de € 36.782,94 e que a requerida colocou a “...” à venda.


Acrescentou que tal situação gera grande preocupação à Requerente, que corre o risco de ver o imóvel ser alienado, comprometendo a possibilidade de recuperação do crédito que possui sobre a requerida, receio que se agrava pelo facto de o sócio-gerente da requerida ser de nacionalidade suíça, residir fora de ...) não ter quaisquer outros bens nem negócios que gerem rendimentos em ....


Concluiu peticionando que seja determinado o arresto do prédio urbano identificado, até ao efetivo e integral pagamento do valor em dívida ou, pelo menos, até que seja proferida decisão de mérito final sobre a ação que vier a ser instaurada, assegurando a preservação dos bens indispensáveis à satisfação do crédito da Requerente.


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Após realização de averiguações, procedeu-se à realização da produção de prova indicada pela Requerente, sem contraditório, após o que veio a ser proferida decisão com o seguinte dispositivo:


“Atento o exposto, e em consequência, decide-se julgar improcedente o pedido formulado pela requerente, não se decretando a providência cautelar de arresto requerida.


Custas processuais pela requerente.


Notifique e registe.


Valor: 36.782,94€.”


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Inconformada com tal decisão, apelou o Requerente, concluindo, após alegações, nos seguintes termos:


“I O Tribunal a quo reconheceu que a recorrente possui um crédito sobre a requerida no montante de €36.782,94, relativo a trabalhos realizados na ... entre novembro de 2023 e maio de 2024. A existência desse crédito foi considerada suficientemente demonstrada com base no contrato verbal e nas faturas emitidas.


II Ao analisar a aparência do direito invocado, o Tribunal a quo concluiu que havia indícios sólidos de que a requerente era credora da requerida, preenchendo assim o requisito do fumus boni iuris, conforme previsto no artigo 392.º, n.º 1, do CPC.


III Além da existência do crédito, o Tribunal a quo examinou se havia um receio justificado de frustração da garantia patrimonial. Considerou que a requerida adotou comportamentos que indicavam uma possível dissipação do seu património, colocando em risco a satisfação do crédito da requerente.


IV Entre os elementos analisados, destacou-se o facto de a requerida ter colocado à venda a ... através de agências imobiliárias. O Tribunal a quo entendeu que essa tentativa de alienação poderia comprometer a capacidade da requerente de obter o pagamento devido.


V Adicionalmente, a requerida demonstrou, por atos concretos, a intenção de não cumprir com a obrigação de pagamento, reforçando a convicção do Tribunal a quo de que existia um risco real de frustração da garantia patrimonial.


VI Apesar disso, o Tribunal a quo concluiu que a providência cautelar exigia um perigo iminente e atual. Entendeu que a demora da requerente em instaurar a providência cautelar fragilizava o fundamento do periculum in mora.


VII O Tribunal a quo sustentou que, tendo a requerente tomado conhecimento da venda do imóvel em julho de 2024, deveria ter atuado de imediato. O facto de apenas ter instaurado a providência em novembro de 2024 levou o Tribunal a quo a considerar que não existia urgência na sua atuação.


VIII Com base nesses fundamentos, o Tribunal a quo indeferiu o arresto, por entender que não se verificava o requisito do periculum in mora, uma vez que o risco de alienação não se apresentava iminente nem suficientemente demonstrado.


IX Ora, o facto de a requerida ter colocado à venda o seu património constitui um indício objetivo e forte de que pretende dificultar a satisfação do crédito da recorrente. O Tribunal a quo reconheceu essa circunstância ao considerá-la provada, reforçando a existência de um risco real para a garantia patrimonial da recorrente.


X Contudo, a decisão recorrida afastou a iminência do perigo, alegando que a recorrente demorou quatro meses a intentar a providência cautelar.


XI Essa conclusão não tem suporte nos factos provados, uma vez que o Tribunal a quo apenas deu como assente que a requerida colocou o imóvel à venda em julho de 2024, sem estabelecer o momento exato em que a recorrente tomou conhecimento desse facto.


XII A fundamentação da decisão recorrida baseia-se numa presunção sem suporte na matéria provada, assumindo que a recorrente teve conhecimento imediato da intenção da requerida em alienar o bem.


XIII Tal presunção carece de fundamento e não pode ser critério determinante para afastar o periculum in mora, pois não há prova concreta de que a recorrente teve ciência da venda logo em julho de 2024.


XIV Ainda que, por hipótese académica, se aceitasse que a recorrente teve conhecimento da venda nesse momento, não seria razoável exigir que, em apenas cinco meses, promovesse uma ação principal e obtivesse uma sentença definitiva que afastasse o risco de dissipação do património.


XV A tramitação de uma ação comum envolve diversas diligências, incluindo julgamento e possibilidade de recurso, tornando inviável obter uma decisão transitada em julgado nesse período.


XVI A providência cautelar destina-se precisamente a evitar a frustração do crédito antes que o processo principal alcance uma decisão definitiva, pelo que a decisão recorrida incorreu em erro ao valorizar indevidamente a alegada demora da recorrente.


XVII A alienação do imóvel pode ocorrer a qualquer momento, tornando irreversível o dano para a recorrente, sendo que o simples facto de a venda ainda não se ter concretizado não significa que o risco tenha desaparecido.


XVIII A jurisprudência tem reconhecido que a demora na propositura de uma providência cautelar não afasta automaticamente o periculum in mora, quando a situação de risco se mantém atual e não dissipada.


XIX O acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º 2490/20.6T8BRG-A.G1, confirma que o periculum in mora exige prova da gravidade e da difícil reparação das consequências danosas da manutenção do status quo.


XX No presente caso, o justo receio de perda da garantia patrimonial resulta da intenção da requerida em alienar o imóvel, que constitui o único bem de valor significativo no seu património.


XXI O próprio Tribunal a quo reconheceu que a requerida demonstrou vontade de dissipar o seu património, com o objetivo de prejudicar a requerente e evitar o pagamento coercivo do crédito.


XXII Além disso, ficou provado que o imóvel já se encontra onerado com duas hipotecas voluntárias, cujo capital garantido ultrapassa os 2.000.000€, agravando o risco de frustração da satisfação do crédito da recorrente.


XXIII A dissipação do bem configura uma lesão iminente e irreparável, pois o objetivo da providência cautelar é evitar a lesão e não repará-la posteriormente.


XXIV O risco de alienação do imóvel continua atual, pelo que não se pode afastar o periculum in mora apenas com base numa suposta demora da recorrente em instaurar o procedimento cautelar.


XXV Mesmo que não se tenha provado o momento exato em que a recorrente teve conhecimento da venda, esse aspeto é secundário, dado que o risco de dissipação do bem continua presente e concreto.


XXVI Deste modo, o Tribunal a quo errou ao desconsiderar a urgência da providência cautelar requerida, adotando um entendimento sem respaldo na prova produzida e na jurisprudência aplicável.


XXVII Mais, o Tribunal a quo fundamentou o indeferimento da providência cautelar no princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 368.º, n.º 2, do CPC. Considerou que o arresto da ..., com valor patrimonial de € 791.640,00 e valor de mercado de € 27.000.000,00, não se justificava perante um crédito de apenas € 36.782,94.


XXVIII Entendeu ainda que o prejuízo para a requerida seria desproporcionalmente superior ao benefício pretendido pela recorrente, violando o equilíbrio entre as partes. Neste sentido, ainda que tenha reconhecido a verificação dos restantes pressupostos do arresto, o Tribunal a quo concluiu que a medida cautelar requerida não respeitava o critério da equidade.


XXIX O princípio da proporcionalidade deve ser analisado de forma rigorosa no âmbito das providências cautelares, mas não pode ser analisado isoladamente. Deve ser ponderado à luz das circunstâncias concretas do caso, considerando elementos como a situação patrimonial da requerida e a residência do seu representante legal no estrangeiro, fator que dificulta ainda mais a satisfação do crédito da recorrente.


XXX A recorrente, ao requerer o arresto, incluiu não apenas o imóvel, mas também eventuais saldos e contas bancárias tituladas pela requerida. Contudo, na ausência ou insuficiência desses bens, a ... permanecia como o único ativo relevante capaz de garantir a satisfação do crédito.


XXXI O argumento da desproporcionalidade não se sustenta, pois o facto de o único bem disponível possuir um valor muito superior ao crédito garantido não justifica, por si só, o indeferimento do arresto com base no princípio da proporcionalidade.


XXXII A doutrina e a jurisprudência reconhecem a necessidade de uma margem de excesso no valor dos bens arrestados relativamente ao montante do crédito a acautelar.


XXXIII A jurisprudência esclarece que o princípio da proporcionalidade impõe que as providências cautelares não sejam concedidas quando o prejuízo delas resultante excede consideravelmente o dano que se pretende evitar. No entanto, destaca que, uma vez verificados os pressupostos do arresto, devem ser ponderadas a realidade económica, a conjuntura do mercado imobiliário e a demora na obtenção de uma decisão definitiva.


XXXIV Transcrevendo o acórdão: “Assim se compreende que a Doutrina propenda até para uma certa margem de excesso no valor dos bens arrestados sobre o montante que se pretende acautelar; e é até dentro destes limites que há quem sustente que, a proceder o arresto, a respectiva redução no que toca ao que fora pedido deverá ser excepcional”.


XXXV Este entendimento jurisprudencial demonstra que a redução do arresto deve ser excecional e não uma regra geral. Afastar a providência apenas devido ao valor elevado do bem arrestado seria uma interpretação restritiva e desprovida de razoabilidade, sobretudo quando a requerida não demonstrou possuir outros bens penhoráveis.


XXXVI Além disso, a requerida já manifestou, por atos objetivos, a intenção de dissipar o seu património e frustrar a satisfação do crédito da recorrente. A alienação do único bem relevante que possui em ... agravaria o risco de insatisfação do crédito, justificando plenamente a adoção da providência cautelar requerida.


XXXVII Deste modo, a decisão recorrida deve ser revogada, pois a aplicação excessivamente rígida do princípio da proporcionalidade acaba por esvaziar de conteúdo útil o instituto do arresto, contrariando a intenção do legislador e colocando em risco a efetividade da tutela jurisdicional do crédito da recorrente.


Termos em que deverá este Venerando Tribunal da Relação revogar a sentença recorrida, de forma a deferir a providência cautelar requerida pela recorrente, garantindo assim, de forma eficaz e adequada, o direito de crédito da recorrente, fazendo-se assim a acostumada!».


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II. Objecto do Recurso


Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela Recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC).


Assim, no caso, importa apreciar e decidir se se mostram verificados os pressupostos de que depende a procedência do procedimento cautelar de arresto.


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III. Fundamentação


III.1. O Tribunal Recorrido considerou, com interesse para a decisão a proferir, indiciariamente provados os seguintes factos:

1. A requerente é uma empresa que se dedica à atividade da construção civil desde 1994.

2. Em outubro de 2021, a requerente foi contratada pela requerida para, no âmbito da sua atividade, realizar obras de remodelação de uma moradia unifamiliar a esta pertencente, designada por ..., sita na Rua ..., na freguesia de ..., concelho de ..., distrito de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...79 e inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...91.

3. O acordo não foi reduzido a escrito.

4. Nestes termos, a requerente realizou os trabalhos conforme foi sendo solicitado pelo sócio-gerente da requerida.

5. Foi acordado o preço da hora da execução dos trabalhos.

6. Entre outubro de 2021 e novembro de 2023, a requerente realizou os trabalhos solicitados e a requerida a efetuou os pagamentos devidos.

7. O sócio-gerente da requerida encarregou CC para acompanhar os trabalhos na obra.

8. Desde novembro de 2023, apesar de os trabalhos terem continuado a ser executados pela requerente, nenhum pagamento adicional foi efetuado pela requerida.

9. Foram emitidas faturas referentes aos serviços de construção civil executados pela requerente, que incluem remodelação das escadas, acabamento do terraço, instalação de estruturas e sistemas de isolamento, e outras intervenções decorrentes do contrato verbal que foi celebrado entre as partes.

10. A requerente suspendeu os trabalhos e notificou a requerida para efeitos de exercício do direito de retenção sobre a obra.

11. CC tentou contratar diretamente o encarregado da obra da requerente, DD, funcionário da requerida, para trabalhar na obra.

12. No dia 08.04.2024, CC afirmou: “Isto é uma situação pessoal e de vingança contra a AA! Nada mais será pago à v/ empresa. Vou levar esta empresa à falência e vocês nunca mais vão trabalhar.”.

13. Em 23.05.2024 foi estabelecido um acordo verbal para pagamento do crédito da requerente pela requerida.

14. A requerida efetuou a entrega da quantia de €25.500,00 na data de 24.05.2024.

15. Apesar de se ter comprometido a efetuar o pagamento do valor remanescente (€36.782,94) no prazo máximo de quatro semanas, a requerida não efetuou qualquer outro pagamento à requerente.

16. Saindo a requerente da obra, a requerida colocou o imóvel em causa à venda, pelo menos desde julho de 2024, pelo preço de 27.000.000€.

17. O sócio-gerente da requerida tem nacionalidade ... e reside fora de ....

Com relevância, foi apurado que,

18. O prédio descrito em 2. encontra-se registado como propriedade da requerida, com valor patrimonial para efeitos fiscais de 791.640€.

19. O prédio descrito em 2. encontra-se onerado com duas hipotecas voluntárias registadas a 28.12.2021.

20. A requerida é titular do prédio misto sito na ..., na freguesia de ..., concelho de ..., distrito de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...63 e inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...3.

21. O procedimento cautelar foi instaurado a 28.11.2024.


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III. 2. O Tribunal Recorrido entendeu que com interesse para a decisão da causa, ficou por demonstrar que:


a) A requerente suspendeu os trabalhos em 09.04.2024.


b) CC, em nome da requerida, declarou não reconhecer o direito de retenção da requerente e, em diversas ocasiões, tentou forçar a entrada de equipas externas na obra.


c) A requerente instaurou uma providência cautelar não especificada, no dia 19.04.2024 (que deu origem ao Processo n.º 1282/24.8..., que correu termos no Juízo Central Cível de ... – Juiz ...), visando assegurar o exercício do direito de retenção invocado.


d) No decorrer do processo n.º 1282/24.8... e através de comunicações e atos, a requerida ameaçou não respeitar o exercício do direito de retenção da requerente, o que forçou a mesma a contratar uma equipa de segurança que permaneceu no local da obra 24 horas por dia, de modo a garantir a integridade dos trabalhos já realizados e prevenindo eventuais interferências da requerida que consubstanciassem a violação do seu direito de retenção.


e) O sócio-gerente da requerida não tem outros bens em .....


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III.3. Apreciação jurídica.


Não tendo a Recorrente impugnado a matéria de facto, é pois, em face dos factos apurados na decisão recorrida, que cumpre apreciar e decidir se a Recorrente demonstrou os pressupostos de que dependia a procedência do procedimento cautelar, diversamente do que se entendeu na decisão recorrida.


Recordemos que estabelece o artigo 619º do Código Civil, sob o seu nº1:


«O credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo.»


Trata-se de um meio de conservação da garantia patrimonial, que consiste na apreensão judicial de bens do devedor, quando exista justo receio de que este os inutilize ou os venha a ocultar2 - o arresto é uma providência cautelar através da qual se procede à apreensão judicial dos bens do devedor, sendo, por isso, considerada uma “garantia patrimonial” do crédito.


Esta medida cautelar encontra-se adjetivamente regulada nos artigos 391º a 393º do Código de Processo Civil.


A apreensão opera em moldes semelhantes à penhora requerida no âmbito de uma ação executiva, posto que a lei encara o arresto como um meio de antecipação dos efeitos da penhora (cf. n.º 1 do artigo 622.º e n.º 2 do artigo 822.º, ambos do Código Civil), constituindo, pois, o arresto uma garantia real provisória que acautela o desenlace favorável para o requerente de uma ação declarativa ou executiva.


São requisitos do arresto preventivo, cumulativamente, a probabilidade da existência de um crédito do requerente, definido por um juízo sumário de verosimilhança e aparência do direito desse crédito, e o justo receio ou perigo de insatisfação de tal crédito (artigos 619.º, n.º 1 do Código Civil e 392.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).


O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência (n.º 1 do art.º 392.º do Código de Processo Civil).


No caso dos autos, entendeu-se na decisão recorrida, que dos factos indiciariamente provados resulta a probabilidade da existência de um “crédito titulado pela requerente sobre a requerida, no montante apurado de €36.782,94, referente ao preço acordado pelos trabalhos elaborados desde novembro de 2023 na obra da ... (factos provados sob os pontos 2, 4, 9, 13 a 15).


De notar, porém, que o valor referido no mail junto ao requerimento inicial para a segunda “prestação” é de €25.000,00, mail esse que é datado de 24 de maio de 2024, e portanto, enviado na sequência do “acordo verbal” estabelecido entre as partes e considerado indiciariamente assente nos pontos 13 a 15.


Analisemos agora o segundo dos referidos pressupostos.


A jurisprudência é unânime no sentido de que a alegação e comprovação do justo receio ou justificado receio de perda de garantia patrimonial não basta o receio meramente subjetivo, “porventura exagerado do credor ou baseado em meras conjeturas, de ver insatisfeita a prestação a que julga ter direito, antes há-de esse receio assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, isto é, terá ele que se alicerçar nas circunstâncias e factos demonstrados, segundo uma avaliação dependente das regras de experiência comum” e que “para o preenchimento da cláusula geral do justo receio ou justificado receio de perda de garantia patrimonial relevam, em geral, a forma da atividade do devedor, a sua situação económica e financeira, a maior ou menor solvabilidade, a natureza do património, a dissipação ou extravio de bens, a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de não cumprir, o montante do crédito, a própria relação negocial estabelecida entre as partes.”3


Como resulta do requerimento inicial, para sustentar a verificação deste pressuposto, alegou a Requerente, muito em suma, que a Requerente colocou o imóvel à venda, e que tal promoção de venda lhe gera grande preocupação porque:

“(…) corre o risco de ver o imóvel ser alienado, comprometendo a possibilidade de recuperação do crédito que possui sobre a requerida.

29. Receio que se agrava pelo facto de o sócio-gerente da requerida ser de nacionalidade ..., residir fora de ...) não ter quaisquer outros bens nem negócios que gerem rendimentos em ....

30. Pelo que a requerente se vê forçada a requerer uma nova providência cautelar, desta vez que determine o arresto do único bem da requerida que lhe conhece(…)” (o destacado é nosso).

Ora, a promoção da venda do imóvel constitui facto que, como bem se refere na decisão recorrida, é muito anterior até à data em que o acordo entre as partes foi celebrado, porquanto dos anúncios de que a Requerente juntou cópia para demonstrar a sua pretensão decorre que em 10.03.2019 a mesma venda se encontrava a ser promovida, o que acontece, pois, desde antes da aquisição, ou, pelo menos, da formalização da aquisição do imóvel pela ora Requerida.


E que o objeto da Requerida constitui a “Compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim; construção civil, remodelação e promoção imobiliária; projetos de engenharia”, não constitui surpresa, pois que se encontra expresso no registo comercial, não tendo sido alterado ao longo do tempo em que perdurou a relação contratual entre as partes, sendo que a Requerente não deixou de aceder não reduzir qualquer acordo a escrito (cf. ponto 3 dos factos indiciariamente assentes) e em ir prestando os serviços de valores avultados que relata, conhecendo-se que a atividade da Requerida era aquela.


Sendo objeto social da Requerida integrado pela compra e venda de imóveis e, em geral, pela atividade de promoção imobiliária, torna-se compreensível e justificada a alienação de imóveis como forma de exercer a referida atividade e como meio de obter os necessários financiamentos, tanto mais que os valores garantidos pelas hipotecas são, como se refere na decisão recorrida, avultados.


O que tudo conjugado permite concluir que a mera prova da vontade de alienar este bem não justificaria, por si só, o decretamento do arresto, o que apenas sucederia se a Requerente tivesse demonstrado outros factos que, em conjugação com aquele, acentuassem a situação de perigo.


Porém, diversamente do alegado pela Requerente, este não constitui o único bem que à Requerida se “conhece”, como resulta do ponto 20. dos factos indiciariamente provados.


Acresce que dos documentos juntos pela Requerente é possível perceber que o imóvel se encontra totalmente mobilado e equipado, sem que se tenha sido alegado/demonstrado um só facto que permita apreender se os bens que compõem tal recheio pertencem ou não à Requerida, sendo que a pertencerem, sempre estaria em causa um valor mais próximo, daquele a que se refere o crédito que se pretende assegurar, a revelar, por isso, maior proporcionalidade que o pedido de arresto do imóvel, cujo valor de venda anunciado é de vinte e sete milhões de euros.


Mas mais. Sendo certo que a situação patrimonial do sócio gerente da Requerida não constitui facto de vincada relevância para aferir do justificado receio da perda da garantia patrimonial da Requerida, pois que o mesmo terá de ser aferido em face do património desta e não dos seus sócios ou representantes, certo é que a Requerente nem sequer logrou demonstrar o que a esse respeito alegou – que o sócio gerente da Requerida não tem outros bens em ... (cf. ponto e) dos factos não provados.


Por outro lado, as declarações referidas no ponto 12. dos factos indiciariamente assentes perdem credibilidade de ameaça séria de incumprimento em face do posterior estabelecimento de novo “acordo verbal”, através do qual a Requerente recebeu a quantia de €25.000,00 e alegadamente desistiu de procedimento cautelar anteriormente proposto.


Não logrou, pois, a Requerente demonstrar indiciariamente, como supra se deixou esclarecido, que a Requerida desenvolve ou pretende devolver qualquer comportamento que consubstancie ocultação ou depauperação de bens, ao que acresce nem sequer ter sido alegada uma situação suficiente e bastante para atestar uma débil e deficitária atividade da Requerida, em conjugação com património que se apurou que possui.


Em suma, a Requerente não provou, como lhe competia (artigo 342º, nº1 do Código Civil), ainda que em sede indiciária, justificado receio de perda da garantia patrimonial, ou seja, de diminuição sensível do património da Requerida, o que sem necessidade de maiores considerações, permite concluir que a decisão recorrida não merece censura.


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IV. Dispositivo


Pelo exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente a apelação.


Custas pelo Apelante.


Registe e notifique.


Évora, 13.03.2025


Ana Pessoa


José António Moita


Maria Adelaide Domingos

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1. Da exclusiva responsabilidade da relatora.↩︎

2. cf. Antunes Varela in "Das Obrigações em geral, vol. II, 5ª edição, pg. 461↩︎

3. Cf. o Acórdão da Relação de Coimbra de 28 de Junho de 2017, proferido no processo n.º 9070/16.9T8CBR.C1, acessível em www.dgsi.pt↩︎