Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- quando a execução tenha como título executivo um título de crédito, em si, não é necessária a alegação da causa de pedir pois esta está já contida no título.
- cabe ao obrigado cartular alegar e demonstrar excepções derivadas de relações subjacentes (qualquer que esta seja).
- a circunstância de a exequente ter alegado a relação fundamental não altera a causa de pedir nem modifica as regras de distribuição do ónus de alegação e de prova.
I. AA e BB deduziram embargos de executado contra Caixa Geral de Depósitos, SA., pedindo que:
- se julgue inepto o requerimento executivo
- o título executivo não é a causa de pedir na acção executiva, pelo que «não podia a Exequente mover a execução, juntando apenas o título executivo, sem que nele demonstrasse o incumprimento, a resolução contratual, bem como o alegado pacto de preenchimento da livrança em branco, consubstanciando, assim, a falta de causa de pedir e do pedido e, por tal, é a petição – Requerimento Executivo – nulo, nos termos da alínea a) do número 2 e número 1 do artigo 186.º do Código de Processo Civil».
Alegou, no essencial, que:
- inexiste causa de pedir e de pedido, o que impede os embargantes de se defenderem.
- a exequente não demonstra o incumprimento definitivo do contrato - veja-se que alega que a Livrança está vencida desde 14.05.2021 e contabiliza juros de mora a partir de 26.01.2020.
- a causa de pedir é contraditória.
- estando perante uma livrança em branco, a exequente deveria ter preenchido a livrança na data do incumprimento do contrato de financiamento.
- o incumprimento não pode resultar do próprio título, quando a prestação se apresenta, perante este, incerta, inexigível ou, em certos casos, ilíquida, uma vez que não foi apresentado o pacto de preenchimento.
- não é possível perceber de que modo foi preenchida a livrança, isto é, se foi preenchida de acordo com os termos e condições acordados pelas partes, se é que foram convencionadas.
- os embargantes não sabem, porque não lhes é dado a conhecer, quando a exequente preencheu a livrança e qual a razão para a aposição de tal data, sendo o espaço temporal entre o incumprimento (preenchimento da livrança) e a entrada da execução, que não foi alegado pela exequente, absolutamente fundamental, para que os embargados possam verificar se existiu preenchimento abusivo da livrança.
A embargada contestou, sustentando em síntese, que:
- os embargantes não discutem os termos da livrança, cabendo-lhes o ónus de alegação e demonstração do preenchimento abusivo da livrança.
- inexiste ineptidão do requerimento executivo quer perante a alegação da embargada, quer perante o título, quer perante os argumentos dos embargantes.
- não se verifica a falta de causa de pedir nem de pedido, estando justificada a data da mora dos embargantes, tendo estes conhecimento dos elementos relevantes em causa.
Por iniciativa do tribunal, a embargada foi juntando aos autos elementos esclarecedores dos valores em causa e da sua forma de cálculo.
Notificados para sobre eles se pronunciarem, os embargantes pronunciaram-se sobre a conduta da embargada e os elementos que facultou, considerando-se os embargantes não esclarecidos.
Tendo, na perspectiva da prolação de decisão de mérito, sido facultada às partes a possibilidade de alegarem, a embargada declarou manter o alegado na sua contestação. Os embargantes apenas manifestaram oposição a decisão sem julgamento.
Foi então proferida decisão que julgou improcedente a oposição à execução.
Dessa decisão interpuseram recurso os embargantes, formulando as seguintes conclusões:
A. A Recorrida que não cumpriu com o seu ónus de alegação, o que inviabilizada a defesa dos Recorrentes.
B. Mas mais, estando nós perante uma livrança em branco, a Recorrida deveria ter preenchido a livrança na data do incumprimento do contrato de financiamento, seja ela qual for, sendo que também não resulta provado dos autos em que data isso ocorreu, nem por que forma, nem quais as comunicações enviadas e por quem foram recebidas.
C. Ora, o incumprimento não pode resultar do próprio título, quando a prestação se apresenta, perante este, incerta, inexigível ou, em certos casos, ilíquida, uma vez que não foi apresentado o Pacto de Preenchimento.
D. Os Recorrentes não sabem, porque não lhes é dado a conhecer, quando a Recorrida preencheu a livrança e qual a razão para a aposição de tal data.
E. O espaço temporal entre o incumprimento (preenchimento da livrança) e a entrada da execução, que não foi alegado pela Recorrida, é absolutamente fundamental, para que os Embargados possam verificar se existiu preenchimento abusivo da livrança e, não pode ser o Tribunal a quo a sanar a falta de causa de pedir, colocando factos nos articulados que não foram alegados pelas partes.
F. O requerimento executivo tal como se encontra preclude o direito de defesa dos Recorrentes de poderem vir a defender-se pelo preenchimento abusivo da letra ou pela prescrição da letra.
G. Face a todo o exposto, fica demonstrado que o requerimento executivo é inepto e, por conseguinte, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva os Recorrentes da instância, conquanto que a falta de elementos impede a defesa por impugnação e/ou por excepção.
A embargada respondeu, e, notando que o recurso não se dirige directamente à fundamentação da sentença proferida e corresponde a uma reiteração do requerimento inicial, sustentou a improcedência do recurso (por razões também no essencial já contidas na sua contestação).
II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».
Assim, importa verificar se o requerimento executivo é inepto em função das objecções suscitadas pelos recorrentes
III. Os factos relevantes correspondem ao teor do requerimento executivo e da livrança apresentada pela embargada na execução.
IV.1. Preliminarmente, e face à posição assumida pela recorrida, cabe esclarecer que o recurso visa impugnar a decisão recorrida mas isso não significa que fique limitado pelo seu teor ou pelas questões que tal decisão avaliou, e que tenha que necessariamente as discutir. O que não se pode é trazer ao recurso questões novas, não suscitadas perante a instância recorrida. O que os recorrentes não fazem.
2. Pese embora a exposição (e argumentação) dos recorrentes não seja precisa, consegue apreender-se que o fundamento essencial da impugnação que intentam assenta na ineptidão do requerimento executivo, que fazem derivar (com maior visibilidade nas alegações, que não nas conclusões [1]) da inexistência de causa de pedir e de pedido e na contraditoriedade da causa de pedir (o que poderia apontar para a sua ininteligibilidade).
A avaliação de tais objecções convoca primacialmente o disposto no art. 724º n.º1 al. e) e f) do CPC, de onde decorre que cabe ao exequente:
- expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo (al. e), e
- formular o pedido (al. f).
No caso, o título executivo analisa-se numa livrança e assim num título de crédito, o que condiciona a aferição destes requisitos legais.
3. No que toca ao pedido, é evidente, face aos termos do requerimento executivo, que vem formulado um pedido de pagamento de quantia certa, sendo apresentado valor líquido. Pedido que é igualmente congruente com o título executivo pois corresponde ao valor nele contido, acrescido de juros. É evidente, pois, que existe a formulação de um pedido. Aliás, os recorrentes nunca tentam revelar a verdadeira «inexistência» do pedido que referem (art. 3 das alegações), falando apenas na falta de elementos para demonstrar o pedido (art. 27 das alegações). Ora, a inexistência e a falta de demonstração do pedido são realidades distintas: ali trata-se de omissão (não existe pedido), aqui de inconcludência (os elementos apresentados não sustentam o pedido). Ali releva a ineptidão, aqui trata-se de questão atinente ao título (à avaliação da suficiência do título executivo para sustentar o pedido). É, decerto, esta confusão entre realidades distintas que leva os recorrentes a, nas conclusões, se reportarem a problemas externos ao pedido (que poderiam ter a ver com os fundamentos do pedido, não com a sua ausência), sem nunca referirem a inexistência de pedido (o que, em rigor, até deveria prejudicar a avaliação desta questão). De todo o modo, assinala-se a evidência processual: foi formulado o pedido.
4. No que toca à causa de pedir, os recorrentes elencam o que consideram tratar-se de insuficiências da alegação da embargante para sustentarem que a «Embargada não esclareceu os factos que traduzem a causa de pedir» (art. 26 das alegações) e por isso esta estaria em falta (aditando nas conclusões que a recorrida «não cumpriu com o seu ónus de alegação» - concl. 1).
O título executivo não se confunde, na verdade, com a causa de pedir. Aquele é um pressuposto específico da acção executiva (seu suporte necessário) mas constitui apenas um documento (embora dotado de características específicas). Já a causa de pedir corresponde ao facto que sustenta a pretensão executiva (ou melhor, nas palavras de A. Varela, «um elemento essencial da identificação da pretensão processual» - RLJ 121/148).
A distinção está presente no referido art. 724º n.º1 al. e) do CPC e no art. 703º n.º1 al. c) também do CPC, na medida em que estabelecem uma diferenciação entre o título executivo e a causa de pedir (ou factos constitutivos), já que, como resulta daquelas normas, esta causa de pedir pode ter que ser alegada de forma autónoma face ao título. Sem embargo, esta exigência de alegação da causa de pedir é meramente eventual, pois só é imposta quando do título executivo não conste aquela causa de pedir, ou seja, quando o título não contenha já os factos que originam o direito à prestação exequenda. Tal explica-se porquanto, na formulação de R. Pinto, o título executivo é um documento mas um documento que representa certos factos, justamente «os factos principais integrantes da causa de pedir em que se funda o pedido de execução: os factos de aquisição do direito ou poder a uma prestação», tendo assim «uma função de representação dos factos principais da causa de pedir» [2]. Por isso que, e em regra, os factos fundamentais (quer sejam aquisitivos quer sejam reconhecedores do direito) já constem do título executivo, servindo este simultaneamente como documento executivo e como forma de alegação e enunciação dos factos que originam o direito exequendo, dispensando alegação adicional. E é isso que ocorre justamente com os títulos de crédito em geral, e até de forma necessária atento o princípio da literalidade pois, significando este que o direito cartular vale como consta do título e nos limites do título, isso importa que o título já contenha todos os elementos necessários à existência e ao exercício do direito.
Na situação vertente está em causa, como se disse, uma livrança, título de crédito este de que os recorrentes são avalistas (aval este dado ao subscritor). Por tal livrança, o subscritor assume a promessa de pagar, na data fixada no título (14.05.2021. no caso), a quantia naquela inscrita [3], sendo os recorrentes, pelo aval prestado, igualmente obrigados a esse pagamento caso o avalizado não pague (pois, pelo aval, eles garantiram o pagamento da obrigação cartular em causa). Assim, os elementos atinentes à causa de pedir são estes factos. consubstanciadores da própria livrança e das obrigações que dela derivam. E nada mais é necessário para afirmar a existência de causa de pedir.
5. É certo que subjacente à livrança existem ou podem existir relações que condicionam os termos da livrança (v.g. relação fundamental entre credor e subscritor, na qual o avalista também pode intervir, relação entre avalizado e avalista relativa à concessão do aval, ou até entre avalista e credor). E sendo a livrança emitida em branco (ou seja sem preenchimento integral), a essa livrança estará associado uma outra relação, assente no pacto de preenchimento (expresso ou tácito), no qual se estipulam as condições que presidem ao preenchimento da livrança pelo credor [4]. Não obstante, tais relações não se confundem com a relação cartular. É o que decorre da referida literalidade do título de crédito e da sua abstracção (significando esta que «a obrigação cartular não é afectada por circunstâncias que sejam relativas ao negócio que lhe deu causa») [5]. A livrança é suficiente para revelar o crédito e a sua titularidade: basta o seu preenchimento integral para nele se manifestar também integralmente o direito exercido (no caso, o direito de exigir o pagamento aos avalistas). Tanto a obrigação principal como a obrigação de garantia constam da livrança e, em princípio, esgotam-se no teor da livrança. Neste sentido, afirma-se que «a apresentação do título de crédito, devidamente datado e preenchido, cumpre só por si a exigência de causa de pedir» [6] e por isso, como notam A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, aqueles títulos «dispensam a alusão a qualquer relação causal, bastando-se a lei com a demonstração da qualidade de credor emergente do contexto literal do documento» [7]. O que vale inteiramente para a livrança emitida em branco, apesar do inerente pacto de preenchimento, pois este não é elemento do título de crédito (depois de preenchido, obviamente), que continua a valer por si, independentemente daquele pacto (que não tem sequer que ser junto à execução [8]).
Só assim não seria se o título de crédito não pudesse valer como tal, sendo então usado como mero quirógrafo, ou documento pelo qual o devedor reconheceria a existência de uma obrigação para com o titular do documento [9]. Pois, não valendo então como título de crédito, não lhe aproveitava a sua literalidade (que apenas demonstra um direito cartular, ou seja, um direito existente apenas por referência ao título de crédito), sendo necessária a alegação das razões subjacentes que justificam a existência do direito de crédito que o título, como mero documento particular, ainda podia reconhecer. É isto justamente que o referido art. 703º n.º1 al. c) do CPC ainda exprime, quanto aos títulos de crédito, quando apenas exige a alegação dos factos constitutivos da relação subjacente quando o titulo seja usado com mero quirógrafo.
Ora, no caso a livrança vem usada enquanto tal, enquanto título de crédito, o que, para o âmbito da discussão em causa, confirma, como já referido, que o título que suporta a execução contém todos os elementos determinantes do nascimento do direito exequendo (pois eles analisam-se nos próprios termos da livrança), e, simetricamente, que não era necessária qualquer alegação adicional.
A circunstância de a exequente ter ido mais longe, tendo alegado também, apesar de a tal não estar vinculada, a relação jurídica fundamental, subjacente à emissão do título de crédito, não envolve a substituição da relação cartular pela relação subjacente enquanto causa de pedir (nem envolve qualquer ampliação desta causa de pedir), degradando a livrança em mero documento particular. Pois não é essa a vontade manifestada pela exequente e o título que junta (a livrança) suporta com suficiência a execução. Trata-se de actuação que procura clarificar a situação, dando-lhe maior transparência e coerência, sobretudo em benefício dos recorrentes, mas que não inverte as regras da execução no que ao título executivo, e seus efeitos, respeita. Sendo, por isso, também irrelevante a suficiência ou não da alegação da relação fundamental pela recorrida, pois não é tal alegação que determina a execução - a não ser que de tal alegação derivasse directa oposição com os termos do título executivo, o que se não discute no caso.
Não se verifica, pois, qualquer falta de causa de pedir.
6. As «questões» que os recorrentes suscitaram, nos embargos e nas alegações (embora nem todas com reflexos nas conclusões), excedem o âmbito do título executivo. Eles não discutem, com efeito, a suficiência ou o alcance do título executivo, suscitando apenas «questões» relacionadas com o preenchimento da livrança (atinentes ao pacto de preenchimento da livrança, emitida em branco) ou com os termos da relação fundamental (da relação que suporta a emissão da livrança). Podem, na verdade, tais questões ser suscitadas pelos executados, pelo menos quando eles e o exequente se situem no plano das relações imediatas, entendidas como a relação que se estabelece entre eles e o exequente e que determina o título de crédito, e as objecções decorram dessa relação - e apenas as excepções derivadas dessa relação quando se aceite a orientação dominante quando afirma que, sendo o aval uma obrigação autónoma, não pode o avalista invocar vícios da relação fundamental estabelecida entre o avalizado e o portador da livrança, salvo se o avalista também intervier, mormente através do pacto de preenchimento mas não só, naquela relação fundamental (o que até poderia ocorrer no caso), com a ressalva, porém, da excepção do pagamento pelo avalizado, que se admite poder ser sempre invocada pelo avalista [10].
Sucede que, e como nota a recorrida desde a contestação, cabia aos recorrentes consubstanciar e demonstrar estas objecções (derivadas da relação subjacente ou mais especificamente do relação derivada do pacto de preenchimento). Constitui, na verdade, entendimento pacífico aquele segundo o qual a violação do pacto de preenchimento ou a invocação de questões ou excepções derivadas da relação fundamental constituem matéria de excepção, traduzindo-se, em termos simples, em novos factos que são compatíveis com os factos (cartulares) da causa de pedir (não os contrariam) mas que produzem efeitos novos e autónomos, que podem impedir o exercício do direito cartular [11]. Sendo que a matéria das excepções deve ser alegada e demonstrada por quem delas se quer aproveitar (art. 342º n.º2 do CC). Assim, cabia aos recorrentes, perante o título, alegar as concretas circunstâncias que pretendiam ver opostas ao credor, e sequencialmente cabia-lhes também o respectivo ónus da prova [12]. Tal constitui, em rigor, mero corolário das referidas natureza e características do título de crédito. Pois se este contém a demonstração do direito, o seu titular (credor) nada mais tem que alegar (ou demonstrar). Já, no âmbito das relações imediatas, cabe ao devedor realizar «a ampliação da discussão para além de outros factos não inscritos no documento» [13].
Ora, o que se verifica no caso é que os recorrentes se limitam a suscitar dúvidas ou colocar interrogações, sem nunca alegarem factos concretos que consubstanciem obstáculos ao título executivo, ou a imputar à recorrida a falta de demonstração de factos que aquela não tinha que demonstrar. Assim, e em termos singelos:
- não cabe à recorrida demonstrar o incumprimento (definitivo) do contrato pois, além de tal incumprimento definitivo não ser condição necessária da cobrança coerciva (a mora também o permite), não é o contrato mas a livrança que se executa. A falta daquele incumprimento poderia consubstanciar uma violação do pacto de preenchimento (sendo também uma excepção derivada da relação fundamental) mas cabia aos recorrentes alegar os factos relevantes (e depois demonstrá-los), o que não fizeram. E a menção às datas diferenciadas de juros é facilmente explicável: uma é a data de vencimento da livrança, a partir da qual o crédito cartular vence juros pelo atraso no cumprimento; outra seria a data de vencimento inerente à relação subjacente, a partir da qual se venceram juros determinados por aquela relação subjacente, pelo mútuo (e juros que terão sido contabilizados no crédito incorporado na livrança): nenhuma incongruência existe a partir desta singela diferenciação [14].
- afirmando que a exequente deveria ter preenchido a livrança na data do incumprimento, não afirmam que isso não ocorreu (o que torna a alegação inconcludente, sem factos concretos relevantes), afirmando até que ignoram a data do incumprimento (o que impedia a fixação de qualquer facto). Mas, sobretudo, não cabia à recorrida demonstrar aquela coincidência mas, a ser relevante a falta de coincidência e por se tratar de matéria de excepção (externa ao título executivo), cabia aos recorrentes alegar e demonstrar tal matéria.
- o sentido da afirmação de que «o incumprimento não pode resultar do próprio título, quando a prestação se apresenta, perante este, incerta, inexigível ou, em certos casos, ilíquida, uma vez que não foi apresentado o Pacto de Preenchimento» não é fácil de apreender. Não obstante, nota-se que o título contém uma obrigação certa, líquida e exigível (é aliás característica inerente à livrança: indicação de prestação certa e líquida, com indicação da época do pagamento, sendo que, na falta desta, até valem regras subsidiárias - v. art. 75º n.º3 e 77º §2 da LULL). Quanto ao pacto de preenchimento, ele não é necessário à verificação executiva daquelas qualidades da prestação exequenda (pois tais qualidades derivam do próprio título executivo) e, como já referido, não cabe à recorrida apresentá-lo pois não constitui ou integra o título executivo.
- de novo, saber se a livrança foi preenchida, ou não, de acordo com o pacto de preenchimento constitui matéria de excepção, a alegar e demonstrar pelos recorrentes.
- quanto à afirmação de que cabia à embargada demonstrar a base legal/contratual e demonstrar cálculos para as comissões e encargos, alegar qual a prestação em mora ou quais as prestações por pagar, ou qual a data de resolução do contrato, vale, de novo, a circunstância de todos estes dados serem estranhos ao título executivo, o qual não integram. O título executivo dispensa-os e por isso não tinha a recorrida que os alegar. Cabia antes, repete-se, aos recorrentes alegar e demonstrar as circunstâncias relevantes para demonstrar a falta de coincidência da obrigação cartular com a obrigação decorrente da relação fundamental. Ou os dados reveladores da violação do pacto de preenchimento.
7. Mostra-se, pelo exposto, incorrecta a afirmação de que a embargada não esclareceu os factos que traduzem a causa de pedir. A causa de pedir esgota-se, como exposto, nos factos cartulares que o título executivo contém. Os embargantes é que não alegaram quaisquer factos relevantes que permitissem discutir aquela causa de pedir, mormente em função do pacto de preenchimento ou da relação fundamental. O que torna, aliás, insustentável a intenção de fazer prosseguir o processo para julgamento pois inexistem factos que pudessem ser sujeitos a instrução.
8. Sem autonomia embora, e sem levar a questão às conclusões, os recorrentes invocam ainda a contraditoriedade da causa de pedir, o que poderia suscitar problemas de inteligibilidade. Não clarificam, porém, tal contraditoriedade, a não ser eventualmente em função da dúvida que colocam quanto à mora, já discutida. De qualquer modo, nota-se que não se verifica qualquer contraditoriedade, tendo em conta o exposto quanto à causa de pedir.
9. A referência a que o tribunal (recorrido) violou os seus deveres porquanto não lhe cabia conhecer da matéria que conheceu em sede de despacho liminar é inconsequente porquanto não foi levada às conclusões e por isso ficou fora do objecto do recurso. E também, de qualquer modo, porquanto nem os recorrentes atribuem algum efeito a tal suposta violação de deveres (não identificados) nem se vislumbra que violação estariam os recorrentes a ponderar (não estando em causa um indeferimento liminar mas uma decisão de mérito na fase de saneamento, o tribunal limitou-se a actuar no quadro do art. 595º n.º1 al. b) do CPC).
10. Por fim, não deixa de se notar que nestes embargos foram apresentados sucessivos esclarecimentos quanto à origem e termos da obrigação cartular, sem que os recorrentes os discutissem, mantendo uma atitude passiva e devolvendo à recorrida ónus que lhe não cabem.
11. Tem, assim, que improceder o recurso.
12. Decaindo, têm os recorrentes que suportar as custas (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).
V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelos recorrentes.
Notifique-se.
Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
(…)
Datado e assinado electronicamente.
Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).
_________________________________________
1. O que poderia ter relevo na exacta delimitação do objecto do recurso.↩︎
2. In A Acção Executiva, AAFDL 2023, pág. 136/7.↩︎
3. Sem prejuízo dos casos de vencimento antecipado (art. 43º da LULL, aplicável atento o art. 77º da mesma LULL).↩︎
4. Sobre estas relações, embora de forma não inteiramente coincidente, Carolinha Cunha, Manual de Letras e Livranças, Almedina 2022, pág. 127 e ss., ou Filipe Cassiano dos Santos, Livrança em branco, Pacto de preenchimento e Aval, pág. 232 (em Revista de Direito Comercial online).↩︎
5. Literalidade e abstracção que, seguindo F. Cassiano, se podem unificar na ideia de autonomia.↩︎
6. R. Pinto, ob. cit., pág. 139.↩︎
7. In CPC Anotado, vol. II, Almedina 2023, pág. 25.↩︎
8. Assim, Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, Almedina 2024, pág. 107 e jurisprudência que cita. Também assim, por exemplo, o Ac. do STJ proc. 4688-B/2000.L1.S1 (3w.dgsi.pt).↩︎
9. É o que ocorre de forma arquetípica com o caso de prescrição da obrigação cartular, persistindo a obrigação derivada da relação subjacente (situação cujos exactos contornos a economia da presente decisão não justifica discutir).↩︎
10. V. por todos Ac. do STJ proc. 1106/12.9YYPRT-B.P1.S1 ou Ac. do TRL proc. 15919/16.9T8LSB-B.L2-2, já citados, ou Carolina Cunha, ob. cit., pág. 130 e 133; sustentando solução diferente, F. Cassiano dos Santos, ob. cit., pág. 236 e ss. (e, em conclusão, pág. 251/2)↩︎
11. Assim, afirma R. Pinto que o devedor, na execução de título de crédito, poderá opor vícios e excepções relativos à relação de causa ou de valuta, como factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda (ob. cit. pág. 139). Em termos diferentes quanto ao modo de funcionamento destes factos na relação cambiária (sustentando que a excepção derivada da relação fundamental funciona como excepção material, na relação cartular, que suspende o exercício do direito cartular), v. Carolina Cunha, ob. cit., pág. 69 e ss..↩︎
12. Também assim, Marco Carvalho Gonçalves, ob. cit., pág. 107, e jurisprudência que cita. A solução é jurisprudencialmente pacífica: v. a título exemplificativo, Ac. do STJ proc. 4688-B/2000.L1.S1, do TRC proc. 913/19.6T8CVL-A.C1, do TRC proc. 4161/18.4T8PBL-A.C1 ou do TRL proc. 15919/16.9T8LSB-B.L2-2 (3w.dgsi.pt).↩︎
13. A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, ob. cit., pág. 25.↩︎
14. E outras que pudessem haver, os recorrentes não invocam.↩︎