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IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ÓNUS DA PROVA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Sumário
Sumário: 1. Na impugnação pauliana, provada pelo impugnante a existência e a quantidade do seu crédito e a sua anterioridade em relação ao acto impugnado, presume-se a impossibilidade da respectiva satisfação ou o seu agravamento, cabendo aos réus o ónus de alegar e provar que o obrigado possuía bens penhoráveis de igual ou maior valor que o montante das dívidas. 2. Quando a parte não onerada com o ónus da prova se recuse a colaborar ou omita essa colaboração poderá o Tribunal, depois da prova em julgamento, decidir pela necessidade de recorrer ao mecanismo legal da inversão do ónus da prova. 3. Se não é requerida, de modo adequado, essa colaboração da parte contrária nem essa colaboração foi negada, não pode haver lugar à inversão do ónus da prova. 4. O artigo 5.º, n.º 1, CPC continua a consagrar um ónus de alegação dos factos essenciais e a falta de alegação desses factos pelos réus impede que se recorra à invocada inversão do ónus da prova sobre eles.
Texto Integral
Apelação n.º 191/15.6T8BNV.E1
(1.ª Secção)
Relator: Filipe Aveiro Marques
1.ª Adjunta: Susana Ferrão da Costa Cabral
2.º Adjunto: Ricardo Miranda Peixoto
***
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO: I.A. AA, ré na acção declarativa que contra si e contra BB havia sido intentada pelo Estado Português (representado pelo Ministério Público), veio interpor recurso de três decisões proferidas pelo Juízo Local Cível ..., do Tribunal Judicial da Comarca ....
Por despacho de 26/11/2024 foi rejeitado o recurso quanto aos dois despachos proferidos antes da sentença e apenas foi admitido o recurso sobre a sentença proferida nos autos, com o que a recorrente se conformou (por falta de reacção adequada).
De notar, por ter relevância para a apreciação do recurso, que por requerimento oral apresentado pela ré (e ora recorrente) no decurso do julgamento (acta de 21/05/2024) esta veio pedir a inversão do ónus da prova. Após contraditório, foi relegada para a sentença a apreciação da pretendida inversão do ónus da prova, o que veio a acontecer.
Na sentença proferida, a esse propósito, consignou-se o seguinte:
“Tanto quanto este Tribunal alcançou do seu requerimento, a ré sustentou-se na omissão da junção pela Autoridade Tributária de documentação comprovativa dos créditos que foram objecto de penhora no âmbito dos processos de execução fiscal identificados nos autos.
Determina o artigo 344º, nº 2 do Cód. Civil – a disposição que em tese poderia dar cobertura à pretensão da ré – que há inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.
Assim, para que a inversão do ónus de prova opere exige-se a verificação dos seguintes pressupostos: a) que a prova de determinada factualidade, por acção da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer; b) que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título culposo.
Manifestamente e sem necessidade de grandes desenvolvimentos, não é esse o caso.
Mesmo que se diga, como dizem os réus, que a Autoridade Tributária não juntou comprovativo documental dos créditos penhorados, conforme se deixou dito acima, a testemunha CC aludiu efectivamente à penhora de créditos para satisfação dos tributos objecto destes autos, mas concretizando que qualquer que fosse o seu valor este seria imediatamente abatido aos valores em dívida pelo 1º réu, donde o Tribunal só pode depreender que o valor das dívidas à data da instauração desta acção já estaria deduzido do valor desses créditos penhorados.
Mas seja como for, seguramente que não foi com a omissão de junção de um comprovativo documental dos créditos penhorados, que a Autoridade Tributária tornou impossível a prova por parte dos réus, de que o 1º réu dispunha efectivamente, à data da doação, de bens susceptíveis de penhora de valor igual ou superior ao dos referidos tributos.
Não podia o réu ter junto documentação comprovativa da existência de qualquer crédito no seu património? Ficou o réu impossibilitado de produzir prova da existência de quaisquer outros bens, que não se circunscrevesse às suas próprias declarações?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Como tal, por não se mostrarem minimamente preenchidos os respectivos pressupostos legais, o Tribunal decide indeferir a pretendida inversão do ónus da prova”
I.B.
A ré/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões (na parte relevante para apreciação do recurso que subsiste):
“(…)
30- A 3ª Decisão (Interlocutória) que se impugna – despacho que indeferiu o requerimento da recorrente de Inversão do Ónus da Prova apresentado na sessão de julgamento de realizada em 21-05-2024.
31- O despacho recorrido:
32- “(...) a ré sustentou-se na omissão da junção pela Autoridade Tributária de documentação comprovativa dos créditos que foram objecto de penhora no âmbito dos processos de execução fiscal identificados nos autos.” “(...) Determina o artigo 344º, nº 2 do Cód. Civil – a disposição que em tese poderia dar cobertura à pretensão da ré – que há inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações. (...)” “Mas seja como for, seguramente que não foi com a omissão de junção de um comprovativo documental dos créditos penhorados, que a Autoridade Tributária tornou impossível a prova por parte dos réus, de que o 1º réu dispunha efectivamente, à data da doação, de bens susceptíveis de penhora de valor igual ou superior ao dos referidos tributos.”
33- A razão do indeferimento foi considerar o Tribunal Recorrido que “a omissão de junção de um comprovativo documental” por parte da A., omissão que é reconhecida na decisão, não “tornou impossível a prova por parte dos réus, de que o 1º réu dispunha efetivamente, à data da doação, de bens suscetíveis de penhora de valor igual ou superior ao dos referidos tributos.”
34- Ora, está em causa a impossibilidade da Ré e não do Réu.
35- Claro que este poderia fazer, se o entendesse, essa prova, mas não a Ré.
36- A omissão da junção da mencionada documentação pela A., a Autoridade Tributária, reconhecida pelo Tribunal, tornou impossível a prova por parte da ré AA, de que o 1º réu dispunha efetivamente, à data da doação, de bens suscetíveis de penhora de valor igual ou superior ao dos referidos tributos, pois que este meio de prova que pode demonstrar a suficiência patrimonial deste Réu à data da doação, demonstrando que a mesma não impossibilitou ou dificultou o ressarcimento da A.
37- A Ré, recorrente, donatária, não é parte nas execuções fiscais, nada deve nem deveu à AT, nomeadamente dos créditos invocados pela A, até porque se fosse devedora seria inútil a presente acção pauliana, podia, nem pode “ter junto documentação comprovativa da existência de qualquer crédito” no património do Réu,” que não fosse com a mediação do Tribunal pois que se tratam de documentos da AT, aliás protegidos pelo sigilo fiscal.
38- O Tribunal cometeu um erro de julgamento, devendo ter sido deferida requerida inversão do ónus da prova.
39- Por cautela, ainda se dirá que a fundamentação despacho relativamente a (im)possibilidade da Ré produzir alternativamente a prova é inexistente quanto à Recorrente donatária pois que o Tribunal se referiu ao doador Réu e não a ela– imputando a este e só a este possibilidade de prova por meios diversos, ora Réu e Recorrente, são partes e pessoas jurídicas distintas com estratégias e direitos processuais autónomos e distintos e que não se vinculam mutuamente.
40- A recorrente invoca, a nulidade do despacho recorrido por violação do disposto no Art. 154.º do C.P.C., considerando, ainda que o tribunal a quo não cumpriu o dever de fundamentação da decisão de que resulta a respetiva nulidade por completa inexistência, e por cautela, invoca, ainda, manifesta a nulidade da decisão ser a respetiva fundamentação, contraditória, ininteligível por ambígua e obscura além dos seus fundamentos estarem em oposição com a decisão, pois que a mesma não é logica nem entendível pelo normal interprete e destinatário. (art.º 615º, nº 4, do CPC ex. vi. do 613º, nº 3, do CPC).
(…)
Pelo que, por via do presente Recurso da decisão final, deve ser proferido Acórdão que revogue as decisões impugnadas em conformidade com as conclusões enunciadas, decretando, nomeadamente, a respectiva revogação e anulação dos atos posteriores, com as legais consequências”
I.C.
O autor/apelado apresentou resposta que, na parte relevante (na parte em que se refere ao recurso admitido), termina a pugnar pela improcedência do recurso.
I.D.
Rejeitado no restante, o recurso na parte que subsiste foi recebido pelo Tribunal a quo de forma adequada.
Após os vistos, cumpre decidir.
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II. QUESTÕES A DECIDIR:
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
No caso, apenas impõe-se apreciar se:
a) É nula a sentença;
b) Deve ser mantida a sentença que não inverteu o ónus da prova legalmente estabelecido.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO: III.A. Fundamentação de facto: III.A.1Factos provados:
Por não ter sido impugnada, considera-se provada a seguinte factualidade tal como consta da sentença recorrida:
1. Nos dias 29-08-2012 e 22-09-2012 foram instaurados no Serviço de Finanças ..., respectivamente, os processos de execução fiscal número ...77 e ...86, ambos contra o 1º réu, por falta de pagamento da quantia de 100.813,08 Euros, respeitante a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e Imposto sobre o Valor Acrescentado, relativos ao ano de 2008 e vencidos em 08-08-2012.
2. No dia 27-09-2012, o 1º réu foi citado pessoalmente em ambos os processos de execução fiscal.
3. Por escritura pública lavrada em 25-10-2012, no Cartório Notarial ..., o 1º réu declarou doar, e a 2ª ré declarou aceitar em doação, os seguintes bens imóveis:
i) prédio urbano denominado lote número ..., sito na Estrada ..., da freguesia ..., concelho ..., composto por terreno para construção, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...7 da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...35, com o valor patrimonial de 17.950 Euros, e
ii) prédio rústico, sito na freguesia ..., concelho ..., composto por terreno de cultura arvense e eucaliptal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...74 da referida freguesia e inscrito na matriz predial rústica da referida freguesia ... sob o artigo ...4 da Secção AI, com o valor patrimonial de 35,39 Euros.
4. A quantia em dívida pelo 1º réu, no âmbito dos processos de execução fiscal mencionados em 1), ascende a 81.465,52 Euros, acrescidos de juros e custas, já que, na sequência de deferimento parcial no processo de reclamação graciosa nº ...41 foi anulada a quantia global de 19.347,56 Euros.
5. O 1º réu não procedeu ao pagamento de qualquer quantia por conta do montante em dívida referido em 4).
6. A 2ª ré foi companheira e é mãe do filho do 1º réu, de nome DD.
*
III.A.2Factos não provados:
E continuará a constar do elenco dos factos não provados:
a) Para além dos dois bens imóveis referidos em 3), ao 1º réu não são conhecidos quaisquer outros rendimentos ou bens penhoráveis.
b) Em 25-10-2012, o 1º réu era titular de bens penhoráveis de valor igual ou superior ao referido em 4).
c) O 1º réu, ao doar os prédios referidos em 3), agiu com a intenção de delapidar o seu património, para assim se colocar em situação patrimonial que não permitisse ao Estado penhorar aqueles bens, para garantia da cobrança dos seus créditos.
d) O facto referido em c) era do conhecimento da 2ª ré, que bem sabia que o 1º réu era devedor ao Estado - Fazenda Nacional da importância referida em 4) e que com a referida doação aquele ficava sem património que permitisse à autora satisfazer os seus créditos.
e) O 1º réu doou à 2ª ré os bens imóveis referidos em 3) para a compensar de quantias que essa lhe havia emprestado para fazer face a despesas da sua (do 1º réu) actividade profissional.
*
III.B. Fundamentação jurídica: III.B.1 Nulidade da sentença:
A recorrente (ver conclusão 40.º) invoca a “completa inexistência” e por cautela, a “manifesta a nulidade da decisão [por] ser a respetiva fundamentação, contraditória, ininteligível por ambígua e obscura além dos seus fundamentos estarem em oposição com a decisão”.
Em primeiro lugar, importa dizer que o vício da inexistência da sentença, não estando previsto directa e expressamente no Código de Processo Civil, está descrito na doutrina (entre outros, Alberto dos Reis[[1]], Paulo Cunha[[2]], Castro Mendes[[3]], Antunes Varela[[4]], Rodrigues Bastos[[5]], Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes[[6]]) e na jurisprudência (ver, por exemplo, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2/07/2009, processo n.º 09B0511[[7]], de 06/05/2010, processo n.º 4670/2000.S1[[8]] e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-10-2015, processo n.º 30/14.5T8PNH-D.C1[[9]]), mas fica reservado para situações limite como: ser o acto emitido a favor ou contra pessoas fictícias ou imaginárias; não provir de pessoa investida do poder jurisdicional; não conter a sentença uma verdadeira decisão ou conter uma decisão incapaz de produzir qualquer efeito jurídico.
A sentença recorrida foi proferida no processo e pela Meritíssima Juiz que presidiu ao julgamento (e, portanto, investida de poder jurisdicional), contra pessoas que existem (sendo que uma delas até recorre a um Tribunal superior) e com uma decisão capaz de produzir um efeito jurídico bem concreto.
A alusão que a recorrente faz a este vício está desprovida de qualquer sustentação e resume-se a uma inconsequente e inadequada manifestação de desagrado que não pode merecer o mínimo acolhimento.
Improcede, por isso, essa parte da argumentação.
Em segundo lugar, quanto à invocada nulidade, importa dizer que, em face da letra e espírito da lei, não pode confundir-se entre a nulidade da decisão e a discordância quanto ao resultado. Nem pode confundir-se entre a falta de fundamentação com uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida.
Apenas será nula a sentença, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil, quando não especifique os fundamentos de facto e direito. Apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão pode incluir-se na previsão legal (neste sentido ver António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[[10]] e, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/06/2016, processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1[[11]]).
Perante o teor da decisão recorrida bem se vê que ali consta o elenco dos factos pertinentes e a análise do direito que se considerou aplicável. A discordância da recorrente no tocante ao modo como se deveria repartir o ónus da prova (com a justificação apresentada) não acarreta a nulidade da decisão, como bem se compreende, pelo que improcede a sua alegação nesta parte.
Invoca a recorrente, mais uma vez sem concretizar, que ocorre oposição entre a fundamentação e a decisão. Mas, quanto à nulidade prevista na referida alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil, a mesma só ocorre quando exista ininteligibilidade (o que, no caso, não se verifica, dada a clareza da decisão) ou quando a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final (o que, evidentemente, também não ocorre – pois toda a argumentação aponta no sentido da decisão que veio a ser tomada). Esta nulidade não se pode confundir com o eventual erro de julgamento, pelo que igualmente improcede a alegação da recorrente nesta parte.
III.B.2 Pressupostos de aplicação da inversão do ónus da prova:
A recorrente insurge-se contra a decisão (que considera errada) de não inverter o ónus da prova.
Como vem sendo repetidamente dilucidado pela jurisprudência (ver, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/09/2018, processo n.º 10729/15.3T8SNT.L1.S1[[12]] e jurisprudência aí citada), o artigo 611.º do Código Civil preceitua um desvio às regras gerais do ónus da prova (cf. artigo 342.º do mesmo diploma) ao satisfazer-se, para a procedência da impugnação pauliana de acto gratuito, com a prova pelo credor do montante do seu próprio crédito. Ou seja, provada pelo impugnante a existência e a quantidade do seu crédito e a sua anterioridade em relação ao acto impugnado, presume-se a impossibilidade da respectiva satisfação ou o seu agravamento.
Caberá aos réus, neste tipo de acções, o ónus de alegar e provar que o obrigado (neste caso o 1.º réu) possuía bens penhoráveis de igual ou maior valor que o montante das dívidas.
Antes, porém, de provar este facto principal, cabia aos réus o ónus de o alegar. O artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil continua a consagrar um ónus de alegação dos factos essenciais integrantes da causa de pedir ou que consubstanciam a base da excepção.
Percorrendo as duas contestações apresentadas, nenhum dos réus alegou o facto principal e essencial ao sucesso de cada uma das pretensões defensivas relacionado, precisamente, com a existência de outros bens penhoráveis de igual ou maior valor que o montante das dívidas.
Seria o bastante para improceder a pretensão da ora recorrente.
De todo o modo, considerando que o Tribunal a quo fixou (ver acta de 26/02/2024) o tema da prova (“Saber se o réu BB era proprietário de outros bens ou rendimentos penhoráveis na data da celebração das referidas doações”), também se adianta não resultar dos autos que o autor, culposamente, tenha tornado impossível aos réus a prova, por via do artigos 417.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 344.º, n.º 2, do Código Civil.
A considerar-se a existência de uma inversão do ónus da prova tal não implica que o facto controvertido se tenha por verdadeiro, mas apenas que a prova da falta de realidade dele passa a competir à parte contrária não onerada com a respectiva prova
Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/09/2019 (processo n.º 1410/17.0T8STR.E1.S1[[13]]): “A decisão de inversão do ónus da prova está dependente da livre apreciação que o julgador faz ex post facto (isto é, depois da produção de prova em julgamento), designadamente sobre a necessidade de recorrer, ou não, ao sobredito mecanismo legal de inversão do ónus da prova”.
Quanto aos requisitos para se operar essa inversão do ónus da prova, pode continuar a seguir-se essa decisão: “A inversão do ónus da prova, no termos do art. 344º nº 2, do Código Civil e art. 417°, n° 2 do Código de Processo Civil, apresenta-se como uma sanção civil à violação do princípio da cooperação das partes para a descoberta da verdade material, consagrado no nº 1 do citado art. 417°, quando essa falta de colaboração vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte recusante podia e devia agir de outro modo”. E “à impossibilidade da prova, por actuação culposa da parte não colaborante para com o onerado, deve ser equiparado, em termos de sanção do art. 344º, nº 2, do Código Civil, um comportamento omissivo total ou parcialmente inviabilizador da prova, desde que, dessa falta de colaboração resulte, comprovadamente, fragilidade probatória causada pelo recusante”.
O ponto essencial, portanto, é que a parte não onerada com o ónus da prova se recuse a colaborar ou omita essa colaboração.
Percorrendo os autos, a verdade é que os réus não requereram a notificação para que o autor viesse juntar qualquer documentação. Apenas se verifica que, por despacho de 4/04/2024, o Tribunal a quo, oficiosamente, determinou que o serviço de finanças fosse notificado para “informar quais os veículos penhorados, em que processos de execução fiscal o foram e se o aí executado BB foi notificado para entregar os veículos à posse da Autoridade Tributária e, na afirmativa, se o chegou a fazer”.
A resposta da entidade notificada foi dada por email de 10/04/2024.
Por despacho de 11/04/2024 o Tribunal a quo determinou a notificação do serviço de finanças para que “informem os autos, com referência aos processos executivos identificados na petição inicial, com os números de processo ...77 e ...86, em que é executado o réu BB: - quais os bens penhorados; - em que data tais bens foram penhorados; - e quais as diligências efectuadas com vista à apreensão dos bens penhorados, caso se aplique”, o que foi mereceu resposta da entidade notificada por email de 22/04/2024.
Só em 26/04/2024 a ré e ora recorrente veio dizer que o respondido não dá cumprimento ao ordenado pelo Tribunal e requer que se insista junto da entidade notificada no sentido de dar cumprimento ao anteriormente solicitado. Esse requerimento foi indeferido por despacho de 8/05/2024 (que transitou em julgado, como se viu).
Pelo que fica dito, não se vislumbra qualquer falta de colaboração por parte do autor. Os réus não requereram de modo adequado essa colaboração nem essa colaboração foi negada (sempre houve resposta ao oficiado pelo Tribunal).
Finalmente, não pode deixar de se dizer que, se é verdade que o Estado Português terá conhecimento (por via dos seus serviços de registo) da existência do direito de propriedade dos particulares (designadamente do 1.º réu) sobre bens imóveis e móveis sujeitos a registo (sendo que essa informação, sendo pública, poderá ser consultada livremente – mesmo pela ora ré/recorrente), seguramente que assim não acontecerá relativamente aos demais bens não sujeitos a registo (ou créditos), pelo que uma eventual falta de colaboração (que, reafirma-se, não se vislumbra) não beliscava a possibilidade de os réus (designadamente a ré/recorrente) provarem os factos relevantes (se os tivessem alegado).
Não pode entender-se o contrário, já que não se pode defender que para a prova do direito de propriedade sobre um bem só pode contar-se com as informações dadas pelo Estado o que, manifestamente, não acontece: basta lembrar todas as situações de aquisição originária do direito de propriedade que não são registadas – incluindo as que nem sequer podem ser, por não se tratarem de bens sujeitos a registo (sem ser muito exaustivo, basta pensar em joias ou obras de arte).
Não estão, manifestamente, preenchidos os requisitos para se operar a inversão do ónus da prova.
Por outro lado, não tendo invocado qualquer outro motivo de censura à sentença recorrida (que a recorrente, erradamente, classifica como despacho interlocutório) nem tal se vislumbrando, deverá ser o recurso totalmente improcedente.
Custas:
Conforme estabelecido no artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a regra geral na condenação em custas é a de condenar a parte vencida no recurso.
No caso, a ré/apelante ficou vencida e, por isso, deve ser condenada nas custas do recurso.
***
IV. DECISÃO:
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
Condena-se a ré/apelante nas custas do recurso.
Notifique.
Évora, 13 de Março de 2025
Filipe Aveiro Marques
Susana Ferrão da Costa Cabral
Ricardo Miranda Peixoto