Sumário:
I. A ressarcibilidade a título de danos não patrimoniais ou patrimoniais não se confunde com a ressarcibilidade do dano biológico, por se reportarem a realidades diversas, tanto mais que este último tanto pode ser ressarcido dentro dos parâmetros e critérios do dano patrimonial como do dano não patrimonial, dependendo da situação em concreto.
II. No caso em apreço, há uma mescla que tem uma dupla incidência, uma vez que a Autora ficou portadora de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos (sem excluir a possibilidade de dano futuro) que, simultaneamente, lhe determina maior onerosidade na execução do trabalho habitual, que não o impede, mas exige esforços complementares (vertente não patrimonial em sentido lato), mas também lhe determina a impossibilidade de progressão na carreira, frustrando expetativas de melhoria salarial (vertente patrimonial).
III. Por conseguinte, no caso concreto, justifica-se que, na procura de um valor equitativo, como impõe o n.º 3 do artigo 566.º do CC, se pondere o que ficou provado em relação ao valor do seu salário e às expetativas goradas de progredir na carreira e de auferir uma remuneração superior.
IV. Considerando o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos, a frustração das referidas expetativas de progressão na carreia, o rendimento médio mensal auferido €1.133,50, a idade da reforma considerada na sentença (66 anos e 4 meses), e a data da consolidação médico-legal das lesões, entende-se por justo e adequado ficar a indemnização a título de dano biológico em €325.000,00.
V. Entende-se por justa e equitativa a fixação de €150.000,00 a título de dano não patrimonial, para compensar o sofrimento decorrente de danos causados por culpa exclusiva do segurado, que determinaram na vítima lesões e sequelas dolorosas e persistentes que demandaram a necessidade de várias intervenções cirúrgicas, que perduram e se projetam no futuro, com um quantum doloris elevado (6/7), com dano estético permanente de grau 4 em 7, com repercussão na sua atividade sexual (grau 3 em 7), com sequelas a nível físico, mas também psicológico.
I – RELATÓRIO
AA intentou ação declarativa condenatória, sob a forma comum, contra Liberty Seguros, S.A. (que foi incorporada, por fusão, na Liberty Seguros, Compañia de Seguros Y Reaseguros, S.A., e esta, por sua vez, alocou à LIBERTY SEGUROS Y REASEGUROS, S.A. - SUCURSAL EM PORTUGAL o contrato de seguro em causa nos autos), pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia global de €800.505,00, sendo €150.505,00 a título de danos patrimoniais, €500.000,00 a título de dano biológico, €150.000,00 a título de danos não patrimoniais, e no pagamento do dano futuro a liquidar em execução de sentença, quantia essa acrescida de juros de mora vencidos desde a citação até integral pagamentos.
Alegou para o efeito, e em suma, que sofreu tais danos na sequência de um acidente de viação ocorrido, em 05-06-2010, na zona do ..., quando conduzia o seu veículo com a matrícula ..-..-OU, acidente esse unicamente imputável ao condutor do veículo seguro na Ré com a matrícula ..-..-QE.
Contestou a LIBERTY SEGUROS – COMPANHIA DE SEGUROS Y RESSEGUROS, SA – SUCURSAL EM PORTUGAL alegando, quanto à produção do acidente de viação, que admite a responsabilidade do seu segurado, tendo já pago à Autora alguns valores, mas que impugna alguns dos danos alegados.
Após realização de audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente nos seguintes termos:
- a título de danos patrimoniais, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de €43,997,66, acrescida de juros moratórios vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa legal;
- a título de dano biológico, danos não patrimoniais e ajuda de terceira pessoa, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia global de €575.000,00, acrescida de juros moratórios vencidos desde esta sentença e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa legal;
- condenou a Ré a pagar à Autora os danos patrimoniais e não patrimoniais por danos futuros decorrentes da necessidade de se proceder à revisão do seu caso e da sua submissão a intervenções cirúrgicas aos joelhos para colocação de próteses, a liquidar em execução de sentença.
Inconformada, apelou a Ré, impugnando a decisão de facto e defendendo a alteração da sentença quanto aos valores da condenação, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES (sem negritos e sublinhados):
1 – Vem, antes de mais, o presente recurso interposto da sentença proferida em 1ª instância, no que concerne à matéria de facto dada como provada sob os pontos 28, 52, 54, 55 e 85 que no entender da R. deveriam ter sido, com os fundamentos supra alegados, objecto de decisão diversa.
2 – Entende a R. que, quanto ao ponto 28 da matéria de facto dada como provada, a redacção daí constante deverá ser substituída por outra da qual conste apenas que “Necessita de ajudas técnicas permanentes, nomeadamente medicamentosas, tratamentos médicos regulares, adaptação do veículo automóvel e ajuda de terceira pessoa”.
3 – Tal é o que resulta de forma clara e inequívoca da prova junta aos autos, designadamente do relatório pericial de avaliação do dano corporal em direito civil, elaborado pelo INML no âmbito dos presentes autos, constante a fls. 183 e seguintes do processo, no qual se fundou – como não podia deixar de ser, o Mmo.Juiz a quo – relatório esse no qual não se faz qualquer referência à necessidade de adaptação do domicílio da A. ou do seu local de trabalho, e com o qual a. se conformou.
4 – Ao ter decidido nos termos constantes da sentença, o Mmo. Juiz a quo não valorou devidamente a prova constante dos autos, limitando-se a reproduzir o teor do facto a tal título alegado pelo A., na p.i. que, manifestamente, e em face da prova produzida, não logrou demonstrar na íntegra.
5 – O ponto 52 da matéria de facto dada como provada deverá ser eliminado, uma a vez que, ao invés do que foi considerado em sede de sentença, do acervo probatório constante dos autos não resulta o que daí consta, devendo pois ter sido considerado como não provado o que a. alegou a este título.
6 - Entendeu, a tal respeito, o Tribunal a quo sufragar integralmente, a alegação efectuada pela A. na p.i. de que esta “teve de contratar uma empregada doméstica que se deslocava duas vezes a sua casa e auferia cerca de €300,00 por mês”.
7 - Para que um facto alegado por qualquer das partes em juízo seja considerado provado exige-se que, com, pelo menos, um grau de certeza razoável, fundado, se possa, sem margem para grandes dúvidas, entender que o mesmo se encontra demonstrado…
8 - Não existe nos autos nenhum documento que ateste que a A., em momento posterior ao acidente, contratou empregada doméstica. Nem que antes de tal evento tivesse tido empregada doméstica. Não há um único recibo junto aos autos que ateste o pagamento, seja a quem for, de valores referentes a prestação de serviços de limpeza, a favor da A..
9 - Para fundamentar a sua convicção o Mmo. Juiz a quo bastou-se com as afirmações prestadas pela A., e pelo seu marido – naturalmente interessados no desfecho dos autos - quanto ao facto de, em dado momento, terem tido empregada doméstica, bem como quanto aos valores que, a tal título, despenderiam.
10 - Não foi dito quer pela A., quer pelo seu marido, que tivessem contratado empregada doméstica em consequência do acidente. Disseram isso sim, que tiveram em determinado momento empregada doméstica, que lhe pagavam cerca de € 300,00 por mês, que tiveram de prescindir dos seus serviços por não terem condições financeiras para a manterem, que é o marido da A. (e a filha) quem trata da limpeza da casa e que a sogra da A. passa a roupa a ferro (como já antes fazia)…
11 - Foi com base nestas singelas declarações, desacompanhadas de um único elemento documental de prova, que o Mmo. Juiz a quo considerou estar devidamente estabelecido que a A. teve de contratar, após o acidente, uma empregada doméstica a quem pagaria cerca de € 300,00 por mês.
12 - Manifestamente não ficou demonstrado nem que a A. tenha contratado uma empregada doméstica após o acidente, nem que lhe pagasse os citados € 300,00…
13 – De igual modo devem ser eliminados, por não provados, os factos constantes dos pontos 54 e 55 da matéria de facto dada como provada.
14 – Ao invés do decidido a tal título na sentença, da documentação junta aos autos e da prova testemunhal produzida (e transcrita no corpo destas alegações), resulta de forma clara e inequívoca, que não decorre do acidente, ou das sequelas de que a A. padece em resultado deste infeliz evento que deu origem aos presentes autos, a alegada necessidade de instalação de aparelhos de climatização no seu domicílio.
15 – Do relatório do INML (fls 183 e seguintes dos autos) não resulta a necessidade (qualquer que seja) da adaptação do domicílio, como consequência das sequelas decorrentes do acidente para a A.. Em momento algum a Sra. Perita do INML referiu ser necessário que o domicílio da A. fosse alvo de implementação de climatização ou que tal decorresse das sequelas de que a mesma ficou a padecer.
16 - Por outro lado, de tal relatório - elemento essencial de prova nestes autos - não resulta igualmente, ao invés do que foi considerado provado sob o ponto 54 da matéria de facto dada como provada, que a A. tenha de estar muito tempo sentada ou deitada, (sentindo desconforto por a sua casa ser fria).
17 - Como consequência de tal facto ter sido considerado provado, entendeu o Mmo. Juiz a quo, dar também como provado que a A. tem de proceder à climatização da sua casa, pelo valor de € 6.592,80, constante de um (único) orçamento – impugnado pela R. – junto, com a p.i., aos autos…
18 – Contudo, não ficou demonstrada tal necessidade, e menos ainda que a mesma decorra das limitações – que são manifestas e estão avaliadas nos autos – de que a A. ficou a padecer em consequência do acidente nos autos.
19 - Atente-se aliás que, da própria “prova” produzida a este respeito em sede de audiência de discussão e julgamento (conforme transcrição de depoimentos prestados pela A. e pelo seu marido transcritos no corpo destas alegações) resulta que a opção pela climatização da habitação da A. decorre de um desejo de ambos, para criação de um maior conforto, e não de qualquer indicação de cariz médico, ou necessidade efectiva de adaptação do domicílio…
20 - Em suma, não ficou provado qualquer nexo de causalidade entre o acidente dos autos e a alegada e indemonstrada necessidade de proceder à climatização da casa da A., e menos ainda que o valor necessário para tal ascendesse ao montante peticionado na acção, razão pela qual devem ser eliminados, por não provados, os factos dados como provados sob os pontos 54 e 55.
21 – No que concerne ao ponto 85 da matéria de facto dada como provada, entende a R. que não foi feita prova bastante que permitisse ao Mmo. Juiz a quo, decidir que “A longa ausência do trabalho e as sequelas que apresenta têm-na impedida de progredir na carreira ou candidatar-se a outros cargos, onde poderia receber uma remuneração entre € 2.000,00 e € 3.000,00, tendo ainda direito a carro de serviço e seguro”.
22 – Entende a R. que, em face da prova constante dos autos apenas ficou provado que “Os longos períodos de ausência do trabalho e as sequelas de que ficou portadora em consequência do acidente dos autos limitam a A. e dificultam a possibilidade de progressão na carreira”, redacção essa que deverá passar a ter o referido ponto da matéria de facto dada como provada.
23 – A A. não ficou impedida de progredir na carreira ou de se candidatar a outros cargos.
24 - E, o que não ficou, por certo, provado, é que a A. poderia receber uma remuneração entre os € 2.000,00 e € 3.000, tendo ainda direito a carro de serviço e seguro…
25 - Não bastam as declarações, naturalmente interessadas, sem qualquer suporte ou sustento documental da A. para que o Tribunal possa decidir que, se não fosse o acidente a A., certamente estaria a receber um valor muito mais elevado e ainda com direito a outras regalias… decisão essa que o Tribunal veio a tomar, como corolário de ter considerado provado o facto constante do ponto 85, sob impugnação…
26 – Refere na sentença, o Mmo. Juiz a quo, uma vez mais de forma extremamente sucinta, para justificar ter considerado como provado o facto constante do ponto 85 da matéria de facto dada como provada, “que a possibilidade de progressão profissional também foi referida pela testemunha BB, colega de trabalho da autora” (a fls. 10 da sentença).
27 - Tal testemunha referiu quanto a tais possibilidades de progressão na carreira, e na essência, quanto aos valores que a A. poderia auferir o seguinte…
Depoimento prestado pela testemunha BB, com início às 10h13 e termo às 10h45, prestado na sessão de julgamento do dia 11 de março de 2024, com a duração total de 32 minutos:
T. - 00:08:59 - Ela andava a tirar o curso com o objetivo de progredir. Até porque é muito mais fácil na empresa alguém progredir com um curso superior.
Adv. - 00:09:06 - A Sra. tem noção de quanto é que pode ganhar uma gestora de recursos humanos?
T. - 00:09:11 - Não sei, mas… não sei. Dois mil, três mil?
Adv. - 00:09:16 - Dois mil, três mil?
T. - 00:09:17 - Dois mil, três mil euros.
Adv. - 00:09:18 - Na sua empresa é isso que ganham?
T. - 00:09:19 - Sim
28 – A tal depoimento, faltou espontaneidade, conhecimento, certeza. É um depoimento manifestamente insuficiente para que, há falta de quaisquer outros elementos – para lá das declarações de parte da A. a este título – o Tribunal pudesse, sem mais dar como provado, como deu, que a A. tivesse ficado “impedida de progredir na carreira ou candidatar-se a outros cargos, onde poderia receber uma remuneração entre € 2.000,00 e € 3.000,00, tendo ainda direito a carro de serviço e seguro” (sublinhado nosso).
29 - Quanto à questão de ter direito a carro de serviço e seguro ninguém, para lá da A., a referiu, sequer…
30 – O próprio marido da A., confrontado com esta questão afirmou no seu depoimento que na sua empresa (de menores dimensões do que aquela em que trabalhava – e trabalha – a A.) um gestor de recursos humanos aufere € 1.500 mês…
desconhecendo quanto auferirá quem ocupar tal posição na empresa em que a esposa trabalha, admitindo contudo que seja mais, uma vez que é uma empresa maior..
31 – Nenhuma prova foi produzida quanto a esta questão para além das declarações de parte da A., nas quais esta, como seria de esperar, reafirmando o que alegara na petição inicial a tal respeito, disse que Colegas que exerciam as funções por si almejadas na empresa em que trabalha, aufeririam cerca de €2.500 e teriam direito a carro de serviço e seguro…
32 – Nenhuma de tais ditas colegas a que a A. se referiu foi arrolada como testemunha e chamada a depor. Também não foi junto pela A. qualquer documento que visasse demonstrar tais factos por si alegados. De igual modo a A. não juntou aos autos quaisquer documentos que atestassem, com um mínimo de segurança, ter tentado candidatar-se a quaisquer posições compatíveis com a sua formação académica, entretanto, já após o acidente, concluída.
33 – Não menos relevante é o que o simples facto de alguém concluir uma licenciatura e uma pós-graduação não é garantia de obtenção de emprego na área de formação, e menos ainda, com vencimentos e regalias muito acima da média, como são os alegados pela A.. Mais ainda, tendo em conta que a A. apenas iniciou a sua formação superior já com 35 anos de idade, concluindo-a perto dos 40 anos.
34 - A redacção a dar a este ponto da matéria de facto é pois, relevante, até para a decisão final a proferir, a qual não pode, no entender da R., partir do pressuposto – como o fez o Mmo. Juiz a quo – de que há uma perda certa de rendimento com base em valores não demonstrados, não documentados e fundados, na sua totalidade na alegação a tal respeito constante da p.i. e nas declarações de parte prestadas pela A. em sede de audiência de julgamento.
35 - Tal é manifestamente insuficiente para que se tivesse dado como provado o que, sob tal ponto da matéria de facto se deu como provado, impondo-se, pois, e em consequência, a alteração do que daí se fez constar.
36 – A redacção do ponto 85 da matéria de facto dada como provada deve, por isso, ser alterada, passando a constar do mesmo apenas que; “Os longos períodos de ausência do trabalho e as sequelas de que ficou portadora em consequência do acidente dos autos limitam a A. e dificultam a possibilidade de progressão na carreira.”.
37 – O presente recurso vem ainda interposto quanto ao segmento da decisão no qual o Mmo. Juiz a quo decidiu condenar a R. no pagamento de indemnização no valor global de € 6592,80 fixado a título de indemnização para climatização da habitação da A.
38 - Não foi feita prova, sequer indiciária, de que do acidente dos autos tenha resultado, como consequência, a necessidade de se proceder à adaptação do domicílio da A., nomeadamente mediante a instalação de climatização.
39 - Antes de mais, porque tal alegada necessidade se mostra infirmada pelo teor do relatório pericial do INML que não a reconhece.
40 - Em segundo lugar porque, como resulta das transcrições dos depoimentos prestados em sede de audiência pela A. (como parte) e pelo seu marido (enquanto testemunha), que acima se fizeram constar, são os próprios quem reconhece que tal não só não lhes foi recomendado expressamente pelos médicos como necessário, mas também por serem os próprios quem afirma que se trata de uma escolha tendente a aumentar o conforto do seu lar.
41 – A R. não é, nem pode ser responsabilizada por tal situação que, manifestamente, não decorre do acidente, nem das consequências deste… Não é em virtude das sequelas de que padece que a A. necessita de instalar climatização em sua casa. A habitação da A. já era fria antes do acidente e assim continuou a ser… e a A. não foi capaz de demonstrar que, em decorrência das sequelas de que ficou portadora se torna necessária a instalação de climatização na habitação.
42 - Para além do mais, a R. impugnou o documento junto pela A., do qual consta um orçamento – único – para aplicação de climatização na sua habitação…
nenhuma prova adicional quanto a tal situação foi feita.
43 - Em suma, e quanto a esta questão, deve a decisão proferida em 1ª instância ser substituída por outra que absolva a R. do pedido deduzido pela A., para fazer face a obras de instalação de climatização da sua habitação.
44 – Vem, por fim, o presente recurso interposto do segmento decisório que condenou a R. no pagamento do valor global de € 575.000, assim fixado como compensação pelo dano biológico (€ 325.000), pelos danos não patrimoniais (€150.000) e por ajuda de terceira pessoa (€ 100.000), tendo por base o valor dos pedidos a tal título deduzidos na p.i., por ser tal valor manifestamente excessivo, violando a sentença, nesta parte, e entre outros o disposto no artigo 496º, nº 1 do Código Civil (doravante C.C.).
45 - A A. peticionou a condenação da R. no valor total de € 800.505, subdividida a seguinte forma:
- € 500.000, a título de compensação pela dano biológico
- € 150.000, a título de compensação pelos danos não patrimoniais;
- € 100.000, a título de ajuda de terceira pessoa;
- € 50.505, a título de danos patrimoniais.
46 - Tal pedido foi formulado tendo por base, na essência, a alegação de uma incapacidade ou défice funcional de 55 pontos com dano futuro, quantum doloris de 6/7, repercussão permanente na actividade sexual de 6/7, repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de 5/7 e dano estético de 5/7.
47 – O Tribunal a quo considerou provados quanto à avaliação do dano corporal, os factos resultante do relatório pericial médico para avaliação do dano corporal em direito civil, realizado no âmbito dos presentes autos, por meio do qual o INML considerou que a A. ficou a padecer, em consequência do acidente dos autos, de um défice funcional da integridade físico-psíquica de 49 pontos, com dano futuro, quantum doloris de 6/7, repercussão permanente na actividade sexual de 3/7, repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de 4/7 e dano estético de 4/7. Mais resulta provado que as sequelas de que a A. ficou afectada em consequência do acidente dos autos são compatíveis com o exercício da sua actividade profissional, ainda que impliquem esforços acrescidos.
48 – Perante tal quadro fáctico, e tendo em conta a documentação constante dos autos quanto à vida profissional da A., entende a R. que as limitações decorrentes do acidente e valoradas pelo INML em 49 pontos (com dano futuro), não poderão deixar de se reflectir na vida da A.. Contudo, não com a extensão nem com as consequências retiradas pelo Mmo. Juiz a quo.
49 - Antes de mais, é relevante notar que a A., que actualmente conta com 50 anos de idade poderá vir a beneficiar a curto prazo da implantação de próteses totais dos joelhos, que contribuirão para uma melhoria do seu estado geral – conforme esclarecimentos prestados pela Sra. Perita Médica do INML em sede de audiência (transcritos no corpo das presentes alegações de recurso).
50 - Se, por um lado, é possível conjecturar um agravamento de algumas das sequelas de que a A. padece – dano futuro –, por outro, não é menos verdade que a implantação de tais próteses servirá, também num juízo de prognose e com grau de certeza elevado, para melhorar o estado de saúde da A..
51 – Se é certo que na ponderação do quantum indemnizatório o Tribunal não pôde deixar de atender à gravidade das sequelas, ao grau de incapacidade, à existência de dano futuro, não menos certo é que, em face das declarações prestadas pela Sra. Perita do INML (cujo relatório e esclarecimentos serviram de base à consideração de extensa parte da matéria de facto dada como provada), não podia também ter deixado de considerar as circunstâncias “atenuantes” que claramente resultam de uma prognose de melhoria do estado geral da A., em consequência da futura aplicação de próteses totais dos joelhos (o que não fez)…
52 – Ainda para mais quando o Tribunal condenou a R. no pagamento do valor a liquidar referente aos montantes decorrentes das intervenções para implantação de próteses totais dos joelhos e recuperação subsequente…
53 – É também relevante, para a fixação do quantum indemnizatório – e dando por assentes todos os factos dados como provados à excepção daqueles que já se deixaram impugnados – quer no que concerne ao dano biológico (independentemente do entendimento que quanto a tal conceito se tenha), quer quanto aos danos de cariz não patrimonial), não esquecer que, à data do acidente a A. contava com 36 anos de idade, iniciara a frequência de curso de ensino superior cerca de um ano antes, apenas, não tendo tido na sua vida uma continuidade nos estudos como sucede habitualmente o que, por certo sempre a colocaria em condições menos favoráveis no acesso a profissões da área de estudos que escolheu.
54 –Nada garante que, concluída a formação superior a A. lograsse arranjar emprego na sua área de formação, o que, aliás, é corrente não suceder, como é do domínio público e conhecimento geral.
55 – Da prova produzida e analisada no seu todo, não poderia o Mmo. Juiz a quo, ter retirado a conclusão de que inelutavelmente a A. deixou de auferir, e logo a partir da data da consolidação das lesões, uma quantia calculada com base nas declarações prestadas pela própria A…
56 – Não foi feita prova de que à A. estivesse destinado um qualquer cargo diverso do que desempenhava à data do acidente, com retribuição e regalias fosse de que ordem fosse… Não é pelo facto de a A. afirmar em audiência que uma sua ex--Colega passou a auferir € 2.500 / mês, mais carro de serviço e seguro de saúde, após ter concluído a sua formação que se dever retirar a consequência de que à A. estava reservado o mesmo destino. Não há nada nos autos que permita tal extrapolação.
57 – E, por isso, andou mal o Mmo. Juiz a quo quando decidiu contabilizar os danos sofridos pela A. a título de dano biológico - que na verdade mais parece uma indemnização por perda de capacidade de ganho tout court – com base numa alegada (apesar de manifestamente indemonstrada) perda de capacidade de ganho, fundada, na verdade, numa mera expectativa que não em dados concretos ou reais.
58 – É, por isso, totalmente incompreensível para a R. que o Mmo. Juiz a quo, tenha utilizado a alegada perda de capacidade de ganho, partindo de um valor mensal superior a € 1.250 ao que a A. aufere, como critério para determinar o quantum indemnizatório a fixar a título de compensação por dano biológico.
59 – Não ficou minimamente demonstrado que a A., não fosse o acidente, estaria a auferir uma retribuição próxima do dobro ou do triplo que aufere, acrescida de regalias.
60 – A tudo acresce que, e não é demais frisar, é facto público e notório, que os salários pagos no nosso país são, na generalidade, baixos o que, aliado ao facto – insista-se – de nenhuma prova substancial ter sido feita nos autos quanto aos montantes que a A. poderia efectivamente auferir caso desempenhasse profissão na área da sua formação, não pode deixar de levar a considerar-se como manifestamente excessiva e não fundada a compensação fixada em sede de sentença para indemnizar o dano biológico.
61 – E, diga-se, ainda que tal é tão mais verdade quando na mesma decisão se fixou, a título de compensação pelos danos de cariz não patrimonial um valor que vai muito além dos montantes habitualmente arbitrados em casos semelhantes ao dos autos.
62 – Se o valor fixado aqui a título de compensação por danos não patrimoniais strictu sensu é, já de si, manifestamente excessivo, mais excessivo é ainda se tivermos em conta que, na sentença sob recurso, se considera o dano biológico como um “dano misto” de cariz patrimonial e não patrimonial…
63 - Neste caso, e para lá dos valores excessivos arbitrados à A., acaba por existir uma duplicação – ainda que parcial – da indemnização concedida a título de compensação por danos não patrimoniais.
64 – Da prova produzida, no entender da R., o que resulta manifestamente é que as inegavelmente tristes consequências do acidente que a A. sofreu, e que são relevantes, redundam numa situação de perda de chance.
65 – A A. viu-se confrontada com uma realidade que dificulta a sua progressão na carreira, mas que não a impossibilita de desenvolver a sua profissão, ou de desempenhar actividade na sua área de formação, o que claramente resulta do teor do relatório do INML constante dos autos a fls. 183 e seguintes.
66 – A atribuição da indemnização à A. no montante de € 325.000, a título de compensação pelo dano biológico, que se funda numa alegada mas indemonstrada perda de capacidade de ganho à razão de € 1250/mês, tendo em conta a prova produzida é, por tudo o que se deixou alegado, manifestamente excessiva.
67 – Não obstante as lesões sofridas e respetivas sequelas, a A. não ficou impedida de retomar a sua atividade laboral.
68 – Ainda que a A., para o desenvolvimento do seu trabalho, tenha dificuldades e esforços acrescidos em função das limitações de que ficou a padecer em consequência do acidente, a verdade é que, e ainda bem que assim é, não ficou impossibilitada de trabalhar… aliás nem a própria A. alguma vez tal alegou!!!
69 – Nada nos autos permite sustentar a conclusão retirada pelo Mmo. Juiz a quo, na qual se fundam os cálculos efectuados para determinar o quantum indemnizatório, de que, não fosse o acidente, a A. estaria a trabalhar como gestora de recursos humanos e a auferir um salário de mais de € 2.000,00/mês acrescido de regalias diversas, nomeadamente carro de serviço e seguros(s).
70 - Tal não passa de pura especulação!
71 - A A. não foi capaz de produzir nenhuma prova substancial quanto a tais factos… e o Tribunal não deveria, na falta de elementos objectivos ter dado como boa a alegação da A..
72 – O que, na essência, está em causa, é a perda de oportunidade em relação a um possível (incerto) emprego mais bem remunerado (cujas condições nem sequer se conhecem, pois sobre tal não foi feita prova) que poderia vir a acontecer ou não - e cujas vicissitudes são totalmente desconhecidas.
73 - A indemnização fixada em sede de sentença cumulativamente a título de compensação por dano biológico e danos não patrimoniais, no valor total de € 475.000 é, diga-se ainda, tanto mais excessiva quando analisada em confronto com a jurisprudência recente dos nossos tribunais superiores, de que são exemplo, entre muitos outros os seguintes, e doutos, acórdãos: Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 29/01/2019, Pedro Lima Gonçalves, para uma incapacidade de 44 pontos, sinistrada com 24 anos, que fixou indemnização em €5.000,00 (dano biológico e DNP); Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 21/01/2016, Tavares de Paiva, para uma incapacidade de 40,35 pontos, sinistrado com 21 anos, que fixou o quantum indemnizatório em € 136.500,00 (dano biológico e DNP); Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 12/12/2017, Roque Nogueira, para uma incapacidade de 70 pontos, sinistrada com 31 anos, que fixou a indemnização em €238.879,10 (dano biológico e DNP); Ac. Tribunal da Relação de Guimarães, de 19/05/2022, processo 651/20.7T8VRL.G1, Eduardo Azevedo, para uma incapacidade de 45 pontos, sinistrada de 47 anos, que fixou a indemnização em € 40.000 a título de danos não patrimoniais e €180.000 a título de compensação por dano biológico/DPF; Ac. Tribunal da Relação de Évora, de 07/12/2023, processo 1525/18.7T8PTG.E1, Isabel de Matos Peixoto Imaginários, para uma IPAPH sem reconversão de 41,5 pontos, sinistrada com 21 anos, que fixou a indemnização em €90.000 a título de danos não patrimoniais e € 190.000 a título de compensação por dano biológico/DPF;
74 - Tudo visto e ponderado, entende a R. que em face dos elementos probatórios constantes dos autos, e tendo em conta tudo o que se deixou alegado, o Tribunal a quo deveria ter fixado indemnização em valor não superior a € 150.000, pelos danos reclamados a título de dano biológico/perda de capacidade de ganho, e em valor não superior a € 80.000 pelos danos não patrimoniais.
75 – É, igualmente, manifestamente excessivo o valor fixado como compensação por ajuda de terceira pessoa.
76 – Se é certo que a necessidade de auxílio de terceira pessoa para ajudar a A. na limpeza da casa consta expressamente referida no relatório pericial elaborado pelo INML, constante a fls. 183 e seguintes., não é menos certo que as tarefas a tal inerentes são desempenhadas pelos demais membros do seu agregado familiar.
77 - Não se pretende dizer que o dano em questão não é indemnizável… é, com certeza… mas, no entender da R., não o é na medida fixada pelo em sede de sentença, que peca, e muito, por excessiva.
78 - Tendo em conta a prova constante dos autos, designadamente a falta de qualquer documentação que ateste os factos alegados pela A. a este título – o que, quanto a esta questão em particular, motivou a impugnação, neste recurso, do facto dado como provado sob o ponto 52 da matéria de facto provada – entende a R. que a sentença deverá ser substituída por decisão que reduza o valor arbitrado a título de ajuda de terceira pessoa, para quantia não superior a € 50.000.
Na resposta ao recurso, a Recorrida defendeu a confirmação da sentença recorrida.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A. Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Impugnação da decisão de facto;
- Se em face dos factos provados, deve ser alterada a sentença em relação aos montantes indemnizatórios/compensatórios que a Recorrente tem como excessivos.
B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
FACTOS PROVADOS
« 1. No dia 5 de junho de 2010, cerca das 15h35m, ao quilómetro 2,00 da Estrada Nacional 365-2, ..., ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de passageiros de marca Peugeot, com a matrícula ..-..-QE, conduzido por CC, e o veículo ligeiro de mercadorias de marca Opel, modelo Corsa, com a matrícula ..-..-OU, conduzido pela autora e propriedade desta.
2. O veículo ..-..-QE tinha a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação transferida para a Liberty Seguros, SA, através da apólice n.º ....
3. A Liberty Seguros, SA, foi incorporada, por fusão, na Liberty Seguros – Companhia de Seguros y Resseguros, SA, com sede em Espanha, que alocou à sua sucursal em Portugal aquele contrato de seguro.
4. A Liberty Seguros, SA declarou assumir a culpa do condutor do veículo por si segurado na produção do acidente e a responsabilidade pela reparação dos danos.
5. O acidente provocou danos materiais no veículo ..-..-OU, que implicaram a sua perda total, tendo a ré ressarcido integralmente a autora desse dano.
6. Em consequência do embate, a autora ficou encarcerada e sofreu politraumatismos, tendo sido assistida no local e transportada de ambulância para o hospital ..., sito em ..., onde foi assistida.
7. Aí foram-lhe diagnosticadas as seguintes lesões:
- traumatismo craneoencefálico com perda de consciência;
- traumatismo facial com fractura da pirâmide nasal;
- traumatismo cervical com fractura das apófises transversas de C7;
- traumatismo torácico com fractura do segundo, terceiro e quarto arcos costais direitos e do segundo arco costal esquerdo;
- fractura do 1/3 distal do fémur direito;
- fractura do pólo inferior da rótula direita;
- fractura supra e intercondiliana do fémur direito;
- fractura da tíbia esquerda;
- fractura da clavícula esquerda.
8. Foi transferida para o hospital de ... em ..., onde foi observada nas especialidades de Neurocirurgia, Cirurgia Maxilo-Facial, Unidade Vertebro-Medular, Ortopedia, Oftalmologia e Cirurgia Geral.
9. Regressou ao hospital de ..., onde foi submetida, no dia 15/6/201, a cirurgia para encavilhamento retrógrado do fémur direito, redução e fixação do pólo inferior da rótula direita e redução e fixação do planalto tibial esquerdo.
10. Teve alta do internamento a 20/06/2010.
11. Em 18/01/2011, foi observada no Hospital ...pelo Dr. DD, tendo sido submetida a intervenção cirúrgica em 28/01/2011 para extração de material de osteossíntese (cavilha retrógrada), osteotomia supra e intercondiliana do fémur, de valgização (subtração), extensão e rotação interna, fixada com placa.
12. Foi novamente submetida a cirurgias aos membros inferiores nos dias 28/9/2011, 08/2/2012 e 29/8/2012.
13. A autora apresenta as seguintes sequelas:
- face: sem desvio nasal aparente;
- pescoço: ligeira limitação da mobilidade cervical nos últimos graus de amplitude de todos os movimentos;
- tórax: sem alterações aparentes;
- membro superior direito: cicatriz indolor e discreta no punho, sem repuxamento de tecidos ou alteração da mobilidade articular;
- membro superior esquerdo: ombro: abdução máxima de 100º, restantes mobilidades mantidas e simétricas;
- membro inferior direito: membro mais curto do que o contralateral cerca de 1cm à custa da perna, sem uso de calçado de compensação; quatro cicatrizes cirúrgicas nacaradas, sendo a maior longitudinal desde a face lateral do terço distal da coxa, à face lateral do terço proximal da perna; anca: rigidez na abdução; joelho em valgo, com rigidez na flexão acima dos 100º;
- membro inferior esquerdo: múltiplas cicatrizes cirúrgicas e nacaradas no joelho; joelho em valgo, com rigidez na flexão acima dos 100º.
14. A autora sofreu défice funcional temporário total durante 24 dias, défice funcional temporário parcial durante 2210 dias e repercussão temporária na actividade profissional total por um período de 2234 dias.
15. É portadora de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos, sendo de perspectivar a existência de dano futuro decorrente do agravamento das sequelas como previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico, o que pode obrigar a uma futura revisão do caso.
16. As sequelas de que é portadora são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares.
17. Deverá ser oportunamente submetida a nova intervenção cirúrgica para implantação de próteses nos dois joelhos.
18. É portadora de dano estético permanente de grau 4/7.
19. A data da consolidação médico-legal das lesões foi fixada no dia 16/07/2016.
20. Devido aos fenómenos dolorosos e limitações da mobilidade associadas aos membros inferiores, a autora apresenta marcha claudicante e tem dificuldades em subir e descer escadas, sendo auxiliada por uma bengala.
21. Tem dificuldade em dormir, recorrendo à toma diária de diazepam, trazadom e paroxetina.
22. Apresenta lapsos de memória ocasionais e “ataques de pânico” causados pelo medo associada à condução rápida do marido ou no trabalho quando tem que se despachar e vê que não está a conseguir cumprir prazos, recorrendo à toma de dilatex.
23. Tem dores nos joelhos, ancas e virilhas, bilateralmente, e no cóccix, recorrendo à toma de lyrica e arcoxia em sos.
24. Tem dores cervicais, recorrendo ao osteopata uma vez por semana para alívio sintomático.
25. Foi-lhe atribuído um quantum doloris de grau 6/7.
26. Tem dificuldade em conduzir por mais de 15 min por causa das dores em ambos os joelhos.
27. Não consegue ir às compras sozinha, dobrar os joelhos em carga, manter-se em pé por longos períodos para passar a ferro e realizar as lides domésticas, como cozinhar, fazer camas, limpar.
28. Necessita de ajudas técnicas permanentes, nomeadamente medicamentosas, tratamentos médicos regulares, adaptação do domicílio, do local de trabalho, do veículo automóvel e ajuda de terceira pessoa.
29. Esteve acamada cerca de dois meses em sua casa.
30. Período durante o qual esteve totalmente dependente do marido e de outros familiares para poder movimentar-se.
31. Para se deslocar usou cadeira de rodas, andarilho e muletas.
32. Após as cirurgias fez várias sessões de fisioterapia e hidroterapia, deslocando-se em ambulância ou de táxi.
33. Mantém tratamentos de fisioterapia.
34. Durante o período em que esteve acamada era o marido que a ajudava nas refeições, a vestir-se e a realizar as necessidades fisiológicas.
35. Ajudava-a ainda na higiene pessoal e íntima, o que lhe provocou, enquanto mulher, forte humilhação e vergonha.
36. Por ser portadora de cicatrizes extensas e acentuadas em ambas as pernas, deixou de usar, por se sentir desconfortável segundo a estética feminina, saias e saltos altos, tendo passado a usar saias compridas, calças e calçado raso.
37. Devido ao prolongado período de decúbito, padeceu de estase intestinal e obstipação por prolongado período de tempo, o que originou sequelas no plexo hemorroidário, desencadeando hemorroidas e crises frequentes de rectorragias, que tiveram de ser laqueadas cirurgicamente.
38. Pelo mesmo motivo, acrescido das várias cirurgias aos membros inferiores, desencadeou sequelas venosas e alterações da drenagem linfática dos membros inferiores, com edema frequente e varizes, ainda sem indicação cirúrgica.
39. O que teve uma repercussão considerável na sua auto-estima e estética feminina.
40. Do ponto de vista psíquico, ficou com sequelas prolongadas superiores a três anos de perturbação de stress pós-traumático, com perturbação persistente do humor, com grave repercussão na autonomia pessoal, familiar, social e profissional.
41. Devido a este quadro clínico mantém seguimento regular em consultas de Psiquiatria e Psicologia, deslocando-se para o efeito ao hospital de ..., e faz medicação do foro psiquiátrico.
42. Existem relatos de sintomatologia psiquiátrica a partir de 2011, altura em que iniciou tratamento psicofarmacológico.
43. As consultas de Psiquiatria e Psicologia iniciaram-se em 2014.
44. Tem ataques de pânico e medo quando confrontada com estímulos associados ao acidente (ex. ruídos de travagens).
45. Tem dificuldades de concentração e lapsos de memória ocasionais.
46. Viu diminuir a líbido por sentir dores na realização do acto sexual, o que lhe causa profundo desgosto e tristeza.
47. As limitações da mobilidade repercutem-se permanentemente na sua actividade sexual, tendo-lhe sido atribuído o grau 3/7.
48. Deixou de poder tomar banho em banheira, só o podendo fazer em poliban.
49. Viu-se por isso obrigada a substituir a banheira de sua casa por um poliban, no que gastou € 1.000,00.
50. Não consegue cortar as unhas dos pés e lavá-los.
51. Revela sintomas depressivos, estando a depressão, de acordo com a avaliação instrumental, num nível Severo.
52. Teve de contratar uma empregada doméstica, que se deslocava a sua casa duas vezes por semana e auferia mensalmente cerca € 300,00.
53. Perante a actual situação da autora, são precisos dois dias por semana para a realização das lides domésticas por terceira pessoa.
54. Porque tinha e tem de passar muito tempo na posição de deitada ou sentada, a sua casa, que é fria, causa-lhe desconforto físico. [Eliminado em sede apreciação da impugnação da decisão de facto]
55. Por esse motivo tem necessidade de a climatizar, no que gastará o valor orçamentado de € 6.592,80. [Eliminado em sede apreciação da impugnação da decisão de facto]
56. Teve necessidade de adquirir um veículo automóvel adaptado à sua condição física, no valor de € 32.099,86, tendo para o efeito contraído crédito junto da Credibom, encontrando-se a pagar a prestação mensal de € 365,26.
57. À data do acidente tinha uma filha com 3 anos de idade, que deixou de ver quando esteve internada.
58. Nos períodos de internamento hospital e de recuperação em casa não pôde, dadas as suas limitações, participar na educação da filha, nomeadamente acompanhando o seu percurso escolar, dando-lhe banho e vestindo-a.
59. Todas estas actividades passaram a ser feitas, na ausência da autora, pelo pai e outros familiares.
60. Por ter estado ausente do processo educativo da filha, a autora sente que esta privilegia o pai, evidenciando na sua personalidade a ausência da mãe, a tal ponto que as questões íntimas e próprias de uma adolescente são partilhadas em primeira mão com o pai, o que a deixa profundamente triste.
61. À data do acidente tinha 36 anos de idade e era uma pessoa muito activa, autónoma e trabalhadora.
62. Desejava voltar a engravidar, mas foi desaconselhada pelos médicos ortopedistas que a acompanham, dada a natureza das sequelas de que é portadora, o que lhe causa profunda dor e tristeza.
63. Encontra-se dependente do marido para realizar actividades domésticas como cozinhar e tratar da filha.
64. Deixou de poder realizar actividades como dançar no rancho, ir às compras sozinha, correr, nadar, andar de bicicleta, tratar do jardim, passear os cães, passear na praia e brincar com a filha na areia.
65. Não mais voltou a vestir fato de banho, está na praia sempre de túnica com vergonha das suas cicatrizes e fá-lo apenas pela filha, mas com muito sacrifício e por curtos períodos.
66. Não consegue suportar viagens longas e tem dificuldades em conduzir por mais de 15 minutos dadas as dores que sente nos joelhos.
67. Deixou de poder bordar, de fazer costura e de utilizar o computador por longos períodos de tempo, pois não consegue estar muito tempo sentada.
68. Sente-se deprimida e com baixa auto-estima por não poder fazer uma vida normal, como seja ir a um centro comercial, fazer compras, passear na praia, nadar, vestir fato de banho sem vergonha das suas mazelas.
69. Foi-lhe atribuída uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 4/7.
70. As cicatrizes e demais sequelas de que é portadora causam-lhe vergonha e baixa auto-estima.
71. Evita a interacção social e a convivência com amigos.
72. Sente-se deprimida e triste por depender da ajuda de outras pessoas, irritando-se e chorando com facilidade.
73. Tudo isto afectou o relacionamento com o seu marido enquanto mãe e mulher, o que lhe causa enorme tristeza.
74. Sofre com o facto de todo o agregado familiar, constituído por si, pelo marido e pela filha, ter de se adaptar à sua condição física.
75. À data do acidente trabalhava como secretária de direcção numa empresa do grupo ..., auferindo o salário mensal de € 898,00, acrescido do prémio mensal de desempenho no valor de € 65,00 e do prémio anual denominado “Prémio ...” no valor de € 250,00.
76. Prémios estes que não recebeu desde a data do acidente e até 16 de Maio de 2014.
77. Desejava progredir na carreira e para esse efeito iniciou a frequência do curso de Gestão de Recursos Humanos no ....
78. Aquando do acidente frequentava o 2.º ano desse curso, deslocando-se para as aulas de táxi.
79. Terminou o curso em 2 de Maio de 2012, dentro do período normal, com a classificação final de 13 valores.
80. No ano de 2012-2013 concluiu a pós-graduação referente ao 1.º ano curricular do 2.º Ciclo em Gestão de Recursos Humanos, tendo obtido a média final de 15 valores.
81. Após lhe ter sido dada a primeira alta, regressou ao trabalho, mas passou a exercer outras funções e limitada a 50%.
82. Teve uma recaída e voltou a entrar de baixa médica.
83. Regressou novamente ao trabalho, mas foram-lhe atribuídas funções noutros departamentos, onde permaneceu cerca de dois anos, tendo posteriormente regressado às funções de secretária de direcção, cargo que ainda ocupa.
84. Por ter estado ausente do trabalho por um largo período de tempo não pôde beneficiar de aumentos salariais, continuando a auferir a remuneração que recebia à data do acidente.
85. A longa ausência ao trabalho e as sequelas que apresenta têm-na impedida de progredir na carreira ou candidatar-se a outros cargos, onde poderia receber uma remuneração entre € 2.000,00 e € 3.000,00, tendo ainda direito a carro de serviço e seguro. [Redação alterada, com eliminação dos segmentos assinalados, por procedência da impugnação da decisão de facto]
86. A Junta Médica do Ministério da Saúde emitiu, em 8/2/2022, o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso de fls. 77, na qual se atestou que a autora é portadora de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 81% e uma incapacidade motora de 62%, definitivas desde Junho de 2019.»
FACTOS NÃO PROVADOS
«(…) todos os demais factos alegados pelas partes».
C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1. Impugnação da decisão de facto
A Apelante impugnou os factos provados 28, 52, 54, 55 e 85 nos termos infra melhor referidos, que passamos a analisar considerando o disposto no artigo 640.º conjugado com o artigo 662.º do CPC.
Facto provado 28: «Necessita de ajudas técnicas permanentes, nomeadamente medicamentosas, tratamentos médicos regulares, adaptação do domicílio, do local de trabalho, do veículo automóvel e ajuda de terceira pessoa».
Pretende a Recorrente que seja eliminado o segmento sublinhado, alegando que no Relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil realizado em 15-12-2022, apenas é referida a adaptação do veículo, não existindo prova em sentido oposto, citando em abono do que defende os esclarecimentos da Sr.ª Perita subscritora do referido Relatório, e de forma genérica e não individualizada, a prova testemunhal, bem como as declarações de parte da Autora.
Vejamos.
Tem a Apelante razão quando refere que o Relatório que invoca não menciona a necessidade de alterações ao domicílio ou ao local de trabalho, mas apenas do veículo.
Porém, não foi apenas produzido este meio de prova. Com a mesma natureza e valor probatório encontra-se junto aos autos um outro Relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil realizado anteriormente, em 26-06-2019, onde consta «No presente caso, devem ser feitas adaptações no domicílio e no local de trabalho, por apresentar limitações importantes em subir e descer escadas, por ex.»
Como decorre da fundamentação da decisão de facto, a convicção do julgador em sede de 1.ª instância formou-se, como não podia deixar de ser, com base na análise global e ponderada de todos os meios de prova.
Ora, tendo ficado provado que a Autora ficou com um défice funcional permanente na sua integridade físico-psíquica de 49 pontos (cfr. facto provado 15, não impugnado) que a limitaram e limitam na sua mobilidade (veja-se o facto provado 17 – não impugnado -, onde consta que ainda terá de ser submetida a nova intervenção cirúrgica aos joelhos), o que se reflete de várias maneiras, incluindo a forma como pode tomar banho (cfr. facto provado 49, também não impugnado), que, aliás, determinou a necessidade de adaptação da casa de banho (que é uma adaptação do espaço habitacional), é claro que a necessidade de adaptação da habitação e do local de trabalho, este, pelo menos, em termos abstratos já que nada é dito de concreto nesse sentido (mas também não é pedido) encontra-se evidenciada em face da natureza das lesões e sequelas retratadas nos exames periciais.
Nestes termos, improcede a impugnação do facto provado 28.
Facto provado 52: «Teve de contratar uma empregada doméstica, que se deslocava a sua casa duas vezes por semana e auferia mensalmente cerca €300,00.»
Pretende a Apelante que esta factualidade seja dada como não provada por não existir documentos a comprovarem a contratação e os pagamentos. Ademais, transcreve parcialmente as declarações de parte da Autora e do testemunho do marido para concluir pela falta de prova, ainda que reconheça que no Relatório Pericial consta a necessidade de ajuda de terceira pessoa «possivelmente duas vezes por semana».
Analisando.
Ficou provado, sem impugnação da ora Recorrente nesta sede, no ponto 53 dos factos provados: «Perante a actual situação da autora, são precisos dois dias por semana para a realização das lides domésticas por terceira pessoa.»
Portanto, a questão que a impugnação coloca é se, por via dessa necessidade, teve de ser contratada uma empregada doméstica para fazer o serviço duas vezes por semana custando o mesmo cerca de €300,00 por mês.
Ora, ao contrário do que concluiu a Apelante, das declarações de parte da Autora e do testemunho do marido desta – o que sai plenamente evidenciado dos trechos transcritos pela impugnante – é precisamente isso que os mesmos disseram.
Não vemos como se pode questionar estas declarações/depoimento.
Diz a Apelante que não há prova documental do contrato (o que não é exigido por lei por se tratar de um contrato de prestação de serviços sujeito à liberdade de forma) e não há recibo (o que não significa que não tenha havido pagamento, mas apenas uma eventual irregularidade na falta de emissão dos recibos, o que, aliás, é por demais consabido ser prática neste tipo de atividade).
Por outro lado, também as regras da experiência relevam que o valor em causa é perfeitamente consentâneo com o número de horas que essa pessoa fazia de acordo com a prova supra referida (duas vezes por semana, entre 5 a 8 horas) e com o valor hora pago por esse tipo de trabalho. Aliás, se peca é mesmo por defeito!
Finalmente, o facto do serviço ser feito por outros familiares (marido, filha, sogra) só prova que a Autora não o consegue realizar e evidencia a necessidade da ajuda de terceira pessoa que o possa fazer.
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerandos, improcede a impugnação da decisão de facto quanto a este ponto.
Facto provado 54: «Porque tinha e tem de passar muito tempo na posição de deitada ou sentada, a sua casa, que é fria, causa-lhe desconforto físico.»
Facto provado 55: «Por esse motivo tem necessidade de a climatizar, no que gastará o valor orçamentado de € 6.592,80.»
Defende a Apelante que estes pontos devem ser eliminados dos factos provados porque não se provou, nem a necessidade da Autora passar muito tempo na posição de sentada ou deitada (o Relatório de 15-12-2022 nada refere a esse respeito), nem que do evento resulte a necessidade de instalação de aparelhos de climatização (das declarações de parte da Autora e do depoimento testemunhal do marido resulta, aliás, que tal corresponde apenas a um desejo de ambos para obterem mais conforto), nem tão pouco ficou provado o valor do custo da climatização.
Vejamos.
Analisada a prova pericial, não detetamos nos dois Relatórios juntos aos autos qualquer referência à necessidade de climatização da casa da Autora que esteja diretamente conexionada com as lesões/sequelas do acidente, independentemente das dificuldades de mobilidade que afetam a Autora.
Por outro lado, das declarações de parte da Autora e do testemunho do marido transcritos pela impugnante, decorre que os problemas de climatização da habitação são anteriores ao acidente. A casa já era fria e assim continuou após o acidente. O que se verifica é que a falta de climatização agora afeta mais a Autora porque tem menos mobilidade. Mas não se pode dizer que haja uma relação de causa e efeito entre o acidente e a necessidade de climatização da habitação, ou seja, que o acidente e as sequelas do mesmo, por si só, tenham causado a necessidade de climatização. Tornaram-na mais premente, mas já era pré-existente ao evento lesivo.
Deste modo, afigura-se-nos que a Apelante tem razão. O ponto 54 deve ser dado como não provado o que determina que se tenha por prejudicado o dado como provado no ponto 55, que deve ter a mesma sorte do ponto 54.
Nestes termos, procede a impugnação eliminando-se dos factos provados os pontos 54 e 55.
Facto provado 85: «A longa ausência ao trabalho e as sequelas que apresenta têm-na impedida de progredir na carreira ou candidatar-se a outros cargos, onde poderia receber uma remuneração entre € 2.000,00 e € 3.000,00, tendo ainda direito a carro de serviço e seguro.»
Pretende a Apelante que esta factualidade não se provou nos termos assim exarados, defendendo que a redação deste ponto deve ser alterada para: «Os longos períodos de ausência do trabalho e as sequelas de que ficou portadora em consequência do acidente dos autos limitam a A. e dificultam a possibilidade de progressão na carreira».
Em termos probatórios invoca que não bastam as declarações interessadas da Autora para se terem estes factos como provados e que ao testemunho de BB, colega da Autora e mencionado na fundamentação da decisão de facto, falta conhecimento e assertividade, o que igualmente sucedeu com o depoimento do marido da Autora sobre esta matéria.
Vejamos.
Não questiona a Apelante que por causa das lesões/sequelas do acidente a Autora tenha estado longos períodos ausente do trabalho e que, por essa razão, ficou limitada a possibilidade de progressão na carreira. O que questiona é se tal a impediu de receber uma remuneração entre €2.000,00 a €3.000,00, direito a viatura de serviço e seguro.
Ora, a demonstração desta matéria, salvo o devido respeito, não pode apenas resultar de prova por declarações de parte ou testemunhal porque estamos a falar de uma empresa estruturada (Grupo ...), com regras internas próprias que regulam as carreiras, progressões, tabelas salariais e regalias inerentes às diversas categorias profissionais.
No mínimo, exigia-se que a Autora demonstrasse, porque sobre ela recaía o ónus de prova (artigo 342.º, n.º 1, do CC), carreando para os autos documentos emitidos pela empresa onde trabalhava, quais os salários e regalias concedidas em determinadas categorias e escalões a que não pode aceder por causa do acidente, no pressuposto que tinha condições académicas para se candidatar a esses lugares.
Na falta dessa prova, tudo o que foi dito pela Autora e testemunhas é insuficiente para de dar como provada a factualidade referente aos valores das potenciais perdas salariais e demais regalias.
Nestes termos, também procede a impugnação da decisão de facto em relação ao ponto 85 dos factos provados, cuja redação se altera para passar a estar provado:
«A longa ausência ao trabalho e as sequelas que apresenta têm-na impedida de progredir na carreira ou candidatar-se a outros cargos».
2. Do valor da indemnização
Estabilizado o quadro factual, passemos, agora, à questão dos valores das indemnizações fixadas pelo tribunal a quo sobre os quais a Apelante manifesta inconformismo.
Em relação ao valor da indemnização para climatização da casa, a eliminações dos pontos 54 e 55 dos factos provados determina que o montante de €6.582,90 deve ser eliminado do computo da indemnização dos danos patrimoniais, procedendo, nessa parte, a Apelação.
Assim, o valor global da indemnização por danos patrimoniais é reduzido nesta sede de recurso para €37.404,86.
Já em relação ao valor da indemnização pela ajuda de terceira pessoa (€100.000,00), a manutenção dos pontos 52 e 53 dos factos provados faz claudicar a pretensão da Recorrente no sentido da sua redução a €50.000,00.
É indiscutível que estamos perante um dano de cariz patrimonial indemnizável, atento o disposto nos artigos 483.º, 562.º a 566.º do CC.
Sobre a quantificação deste dano consta da sentença recorrida a seguinte justificação:
«A autora carece da ajuda de terceira pessoa, ajuda essa que se materializa na necessidade de contratar uma empregada doméstica durante dois dias por semana, no que despenderá cerca de € 300,00 mensais.
Como se defende no Ac. do STJ de 2/11/2019 (in www.dgsi.pt), estamos perante um dano futuro cujo valor exacto não é passível de fixação, atentas as especificidades e vicissitudes que lhe são próprias, razão pela qual a indemnização deve ser estabelecida com recurso à equidade e dentro dos limites objetivos que forem dados como provados (n.º 3 do art. 566.º do CC), que não através de tabelas matemáticas, cuja utilização apenas pode ter lugar como mero auxiliar.
Segundo os últimos dados estatísticos (cfr. Tábuas de Mortalidade – Esperança de Vida para o triénio 2020-2023 do INE), a esperança média de vida para as mulheres é de 83,52 anos. Considerando a data da consolidação das lesões e aquela esperança média de vida, temos cerca de 41 anos de esperança de vida.
Tudo ponderado, afigura-se equitativa uma indemnização no valor de €100.000,00 para compensar o dano com a ajuda de terceira pessoa. Note-se que esta quantia fica muito aquém daquela que resultaria de um cálculo que usasse todo o período de vida activa da autora (492 meses x €300,00 = €147.600,00) e não leva em consideração a natural evolução do valor da mão-de-obra. Com a redução para aquele montante consegue-se mitigar o efeito do recebimento antecipado de todo o capital.»
Não descortinámos na argumentação da Recorrente nada que justifique a alteração desta ponderação. Apenas o que consta da impugnação da decisão de facto quanto ao ponto 52 dos factos provados, que não procedeu, pelas razões sobreditas.
Ademais, não especifica a Apelante como alcança o valor de €50.000,00.
Ainda que o tribunal na fixação siga o critério do n.º 3 do artigo 566.º do CC (equidade), o valor da indemnização tem de ser encontrado «dentro dos limites que tiver por provados». Do mesmo modo, se a Recorrente questiona o valor arbitrado por entender ser excessivo, deve fazê-lo dentro dos mesmos parâmetros que se impõem ao julgador e não lançar um valor desgarrado de qualquer justificação. Não tendo justificado de forma alguma o modo como alcançou o valor pretendido, e ao invés, tendo a sentença explicitado de forma fundamentada e com base nos factos provados como chegou ao valor fixado, nenhuma censura nos merece, improcedendo a apelação quanto a esta questão.
Em relação ao dano biológico, a Apelante também discorda do valor alcançado pela sentença (€325.000,00) defendendo que deve ser reduzido para €150.000,00, questionando igualmente o valor atribuído ao dano não patrimonial (€150.000,00) defendendo que deve ser fixado em €80.000,00.
Questiona, sobretudo, que a perda da capacidade de ganho da Autora seja a levada em conta pelo tribunal recorrido, baseando-se, fundamentalmente, na alegação que sustentou a impugnação da decisão de facto em relação ao ponto 85 dos factos provados e na perspetiva de melhoria futura com a implantação de próteses nos joelhos.
Refere, ainda, que existe uma duplicação parcial da indemnização concedida a título de dano não patrimonial por o dano biológico ser um «dano misto» de cariz patrimonial e não patrimonial.
Diz também que as consequências o acidente redunda numa situação de perda de chance.
Finalmente, invoca alguma jurisprudência para concluir que os valores fixados excedem os parâmetros que têm sido adotados em situações semelhantes.
Na sentença recorrida, a fixação da indemnização a título de dano biológico assenta na seguinte fundamentação:
«No caso em apreço, o dano biológico, assente no mencionado défice, tem uma dupla vertente ou dimensão: uma, tipicamente não patrimonial, que consiste na maior onerosidade na execução do trabalho habitual, visto que o défice, não o impedindo, exige esforços suplementares; outra, de cariz essencialmente patrimonial e que se traduz na impossibilidade de aceder a novo e superior patamar salarial, frustrando legítimas expectativas da demandante. O desejo de melhorar, pela via do trabalho, a sua condição social e familiar não era uma mera intenção. Pelo contrário, ele estava bem presente no espírito e vontade da autora, que para isso se preparava com a obtenção de qualificações académicas. (…)
O critério último, obrigatório e decisivo será o da equidade (art. 566.º, n.º 3, do CC). (…)
Considerando o grau do défice funcional (49 pontos) e a impossibilidade de acesso a um salário que seria entre o dobro e o triplo do montante que a autora vem recebendo, algo que se vai repercutir ao longo da sua vida activa de trabalho, sendo de admitir que trabalharia, pelo menos, até à idade da reforma (66 anos e 4 meses), entende-se por adequado fixar a indemnização em €325.000,00.
Não se diga que este valor é exagerado porque só a pura perda salarial, calculada com base num valor um pouco acima da média do que deixou de poder receber por não ter progredido na carreira e que para este efeito se fixa em € 1.250,00 mensais (a autora recebe, números redondos, € 1.000,00 mensais e deixou de poder receber entre € 2.000,00 e € 3.000,00, daí a “média” ter sido fixada nos € 1.250.00,00, sendo que € 1.000,00 seriam de salário e € 250,00 seriam para cobrir prestações complementares como veículo, seguro, prémios) e só a partir de 2016 (data da consolidação médico-legal das lesões), ascenderia a € 365.000,00 (24 anos e 4 meses / 292 meses x € 1.250,00). E isto sem considerar os subsídios de férias e de Natal, os aumentos salariais anuais e a revisão dos prémios mensais e anuais durante todo aquele período de tempo.
A redução da indemnização pelo dano biológico ao montante de € 325.000,00 permite mitigar o efeito do recebimento antecipado de todo o capital, além de que se aproxima dos valores arbitrados em casos semelhantes. A título de exemplo, veja-se o citado Ac. da RL de 23/1/2024, onde se fixou a indemnização pelo dano futuro em € 280.000,00 a uma vítima de acidente de viação nascida em 16/12/1974, que recebia uma remuneração mensal base de € 952,13 e que apresentava um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 53 pontos, impeditivo do exercício da actividade profissional habitual, sendo, no entanto, compatível com outras profissões da sua área de preparação técnico-profissional.»
Vejamos, então.
Atualmente em termos jurisprudenciais, a ressarcibilidade do dano biológico é aceite de forma bastante consensual independentemente da discussão jurídica, sempre interessante, mas teórica, da natureza deste tipo de dano.
Porém, é preciso ser claro quanto à questão da inexistência de duplicação de indemnizações, pois a ressarcibilidade a título de danos não patrimoniais ou patrimoniais não se confunde com a ressarcibilidade do dano biológico, por se reportarem a realidades diversas, tanto mais que este último tanto pode ser ressarcido dentro dos parâmetros e critérios do dano patrimonial como do dano não patrimonial, dependendo da situação em concreto.
Assim, mesmo que seja entendido que a ressarcibilidade do dano biológico segue, no caso concreto, os parâmetros do dano não patrimonial, nunca exclui a indemnização devida a título de dano não patrimonial, já que a realidade subjacente a uma e outra situação é diversa.
É sabido que a lei civil, embora distinga entre danos patrimoniais e não patrimoniais, em função do prejuízo apresentar ou não conteúdo económico, consagra, contudo, a ressarcibilidade destas duas modalidades, ainda que sujeita a parâmetros de apreciação próprios, conforme resulta dos artigos 496.º, 562.º, 564.º e 566.º do CC.
Na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, e por via do disposto no artigo 496.º, n.º 1, do CC, visa-se compensar as consequências passadas e futuras das lesões emergentes do acidente, que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Na ponderação dessas consequências há que levar em conta, conforme as situações, a natureza e grau das lesões, as sequelas (físicas, psíquicas e estéticas), o número e natureza dos tratamentos realizados e respetiva duração, a hospitalização, os dias de internamento, o quantum doloris, os períodos de incapacidade, os sentimentos vivenciados perante o acidente, a situação anterior e posterior da vítima no relacionamento com o meio familiar, profissional e social, o abaixamento da autoestima, o receio pelo futuro, a idade, a esperança de vida, etc.
Já na aferição do dano biológico está em causa a avaliação da afetação definitiva da integridade física e/ou psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares, sociais, de lazer e desportivas, bem como do reflexo do prejuízo funcional em termos de rebate profissional, ou seja, se as lesões são ou não compatíveis com o exercício da atividade profissional (para toda e qualquer profissão ou se apenas para profissão habitual), se implicam ou não esforços complementares.
Ora, o dano que se traduz na afetação da capacidade ou integridade física de uma pessoa, com reflexos no exercício da sua atividade profissional e na sua capacidade de ganho, é passível de avaliação pecuniária, reconduzindo-se à categoria de dano patrimonial.
Porém, se o défice funcional não se repercute na efetiva capacidade da vítima vir a desempenhar a sua atividade profissional ou na sua capacidade de ganho, o dano não tem uma feição estritamente patrimonial.
Traduzir-se-á essa diminuição somático-psíquica num dano corporal, num dano à saúde, violador da integridade física e do bem-estar físico, psíquico e social, ou seja, num dano biológico ou fisiológico.1
Reportando-nos apenas à jurisprudência do STJ, verifica-se que, apesar de, em regra, se tender a atribuir cariz essencialmente patrimonial ao dano biológico, já que pode ser ressarcido como dano patrimonial futuro, também se tem entendido que, em certas situações, pode sê-lo como dano não patrimonial.
Como refere o STJ2:
«O dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial tal como compensado a título de dano moral. A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade”, acrescentando, contudo, que «(…)não parece oferecer dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial (…)».
Também tem sido considerado que o cálculo indemnizatório tem de atender às especificidades desta situação, que afinal se baseia em juízos de probabilidade e de verosimilhança, razão porque nem se quadra à situação uma fixação com base em tabelas e com recurso a fórmulas, geralmente utilizadas para o cálculo do dano patrimonial relativo à perda da capacidade de trabalho e de ganho, nem uma fixação como se tratasse de um dano não patrimonial, justificando-se, como também diz o STJ noutro aresto3, uma «indemnização para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial».
No caso em apreço, e como sublinhado na sentença no trecho transcrito, há uma mescla que tem uma dupla incidência, uma vez que a Autora ficou portadora de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 49 pontos (sem excluir a possibilidade de dano futuro) que, simultaneamente, lhe determina maior onerosidade na execução do trabalho habitual, que não o impede, mas exige esforços complementares (vertente não patrimonial em sentido lato), mas também lhe determina a impossibilidade de progressão na carreira, frustrando expetativas de melhoria salarial (vertente patrimonial).
Por conseguinte, no caso concreto, justifica-se que, na procura de uma valor equitativo, como impõe o n.º 3 do artigo 566.º do CC, se pondere o que ficou provado em relação ao valor do seu salário e às expetativas goradas de progredir na carreira e de auferir uma remuneração superior.
Ora, apesar da alteração da redação do ponto 85 dos factos provados, mesmo sem levar em conta os valores salariais da progressão da carreira, que não se provaram, o resultado em termos de valor indemnizatório não se altera.
De facto, levando em conta do valor dos rendimentos que aufere (cfr. pontos 75 e 76 dos factos provados), encontra-se um valor médio mensal na ordem dos €1.133,50 (€989,00x14 +€65.00x12+€250,00=€13.602,00:12).
Se considerarmos a idade da reforma considerada na sentença (66 anos e 4 meses), e a data da consolidação médico-legal das lesões, o valor alcançado é na ordem dos €330.982,00, ou seja, alcança-se um valor superior ao fixado na sentença a título de dano biológico (€325.000,00).
Concluindo-se, consequentemente, que o valor da indemnização fixado na sentença não é excessivo, bem pelo contrário, considerando, ademais, que foi tido como um valor atualizado à data da sentença.
Cumpre também sublinhar que a referência que a Apelante faz à perda de chance não tem qualquer sentido neste tipo de situação, a não ser que se empregue tal termo completamente desligado do sentido jurídico que é dado a este instituto de natureza doutrinária e ultimamente acolhido pela jurisprudência, desde logo, porque os danos aqui apurados são concretos e reais e não meramente hipotéticos ou plausíveis como sucede na perda de chance em que existe apenas a privação da possibilidade de obter determinada vantagem ou evitar certo prejuízo, sem que se saiba se a vantagem a obter ou o prejuízo a evitar se concretizariam se a chance não se tivesse perdido. Situação muito diferente, naturalmente, daquela que ocorre nos autos.
No que concerne aos valores indemnizatórios alcançados noutros arestos, ainda que a solução de equidade tenha como pressuposto o princípio da igualdade, na verdade intrinsecamente conexionado com o disposto no artigo 8.º, n.º 3, do CC, não se pode olvidar que cada caso é um caso e a especificidade do mesmo não permite comparações absolutas.
Tendo-se alcançado um determinado valor com base nas regras da equidade, devidamente fundamentado e assente nos factos provados, deve ser esse o valor a fixar no caso concreto. Tal como sucedeu no caso sub judice, sem que nos mereça qualquer censura, como sobredito e justificado.
Finalmente, quanto ao dano não patrimonial (stricto sensu, com exclusão do dano biológico já acima analisado), o quadro fático apurado em julgamento fala por si.
Destacamos apenas alguns aspetos que evidenciam que estamos perante lesões muitíssimo graves, dolorosas, persistentes que demandaram a necessidade de várias intervenções cirúrgicas, que perduram e se projetam no futuro, com um quantum doloris elevado (6/7), com dano estético permanente de grau 4 em 7, com repercussão na sua atividade sexual (grau 3 em 7), com sequelas a nível físico, mas também psicológico, etc.
São factos que revelam consequências suficientemente graves para merecerem a tutela do direito e para serem indemnizáveis em sede de dano não patrimonial, nos termos do artigo 496.º, n.º 1, do CC, fixando-se um valor pecuniário, autónomo, que vise compensar as consequências das lesões emergentes do acidente.
Na ponderação que se impõe face a um juízo de equidade (artigos 496.º, n.º 3 e 494.º do CC), considerando todas as circunstâncias acima referidas, bem como o caráter compensatório deste tipo de indemnização, a exclusividade da culpa do segurado, a irrelevância da situação económica da seguradora para quem se encontra transferida a responsabilidade daquele condutor, o elevado grau de severidade dos danos, entende-se que o quantum indemnizatório fixado em sede de 1.ª instância se mostra justo e equitativo, pelo que se mantem o valor fixado (€150.000,00).
Mesmo a terminar, ainda uma referência à questão do dano futuro e da não atendibilidade da melhoria por via das próteses aos joelhos, apenas cabe referir que, mesmo que tal venha a suceder, não obnubila os danos já sofridos. Deve apenas ser tal objeto de ponderação, tal como o agravamento se vier a ocorrer.
Em face de todo o exposto, a apelação apenas procede parcialmente, ou seja, no segmento referente ao dano patrimonial referente à climatização da habitação e respetivo custo.
Dado o recíproco decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante e da Apelada, na proporção do vencimento (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente a apelação e, consequentemente, absolvem a Ré do pagamento da quantia de €6.592,80 (Seis mil, quinhentos e noventa e dois euros e oitenta cêntimos) a título de danos patrimoniais, revogando a sentença em relação a esse segmento da condenação, mantendo-a em tudo o mais.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 13-03-2025
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Maria João Sousa e Faro (1.ª Adjunta)
Ricardo Miranda Peixoto (2.º Adjunto)
__________________________________
1. Cfr., exemplificativamente, em termos de jurisprudência, o Ac. STJ, de 29.10.2008, proc. 08P3380; Ac. STJ, de 04.12.2007, proc. 07A3836; Ac. STJ, de 10.07.2007, proc. 08B2101; Ac. STJ, de 15.05.2008, proc. 08B1343; Ac. STJ, de 27.03.2008, proc. 08B761, em www.dgsi.pt.↩︎
2. Ac. STJ, de 27.10.2009, proc. 560/09.0YFLSB. No mesmo sentido, Ac. STJ, de 17.12.2009, proc. 340/03.7TBPNH.C1.S1; de 20.01.2010, proc. 203/99.9TBVRL.P1.S1 e de 20.05.2010, proc. 103/2002.L1.S1, todos in www.dgsi.pt.↩︎
3. Ac. STJ, de 10.07.2008, proc. 08B2101, em www.dgsi.pt.↩︎