Sumário:
I. Permanecendo oculta a causa da colisão dos veículos, já que nem o autor, nem a ré lograram demonstrar os factos alegados sobre a génese do sinistro, funciona a doutrina do risco.
II. Ocorrendo tal colisão entre dois veículos automóveis ligeiros e à míngua doutros elementos relevantes, é de considerar igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos;
III. Tendo o veículo do Autor, em consequência da colisão, ficado sem circular e, por consequência, o mesmo Autor sido privado do seu uso, sofreu, por isso, um dano - perante o impacto negativo que tal determina na sua esfera jurídica - que deve ser ressarcido.
1. AA demandou GENERALI SEGUROS, S.A. pedindo a sua condenação no pagamento de 13.410,90 Euros, a título de danos patrimoniais, e de 2.000 Euros, a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros à taxa legal sobre as quantias peticionadas até integral e efectivo pagamento em consequência do acidente de viação no qual interveio o seu veículo com a matrícula ..-DO-.., por si conduzido, acidente esse que foi provocado exclusivamente por culpa do condutor do veículo de matrícula ..-EH-.., segurado da ré, por via de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel então em vigor.
Em consequência desse sinistro, ele, autor, sofreu danos patrimoniais respeitantes à perda total do seu veículo e à privação de uso do mesmo, pelos quais deverá ser indemnizado pela ré nos valores, respectivamente, de 10.900 Euros e 2.500 Euros (no mínimo), assim como danos não patrimoniais, pelo quais deverá ser indemnizado pela ré no valor de 2.000 Euros.
2. A Ré contestou, entre o mais e para o que ora releva, impugnando a dinâmica do acidente alegada pelo autor e alegando uma outra versão para esse acidente, da qual conclui que o autor foi o único culpado e, consequentemente, não é ela responsável por ressarcir os danos sofridos, apesar de aceitar ter assumido a responsabilidade civil por danos causados pela circulação do veículo automóvel de matrícula ..-EH-.., por via do contrato de seguro alegado pelo autor.
3. Realizada audiência final foi, subsequentemente, proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a ré GENERALI SEGUROS, S.A. do pedido.
4. É desta sentença que recorre o Autor formulando na sua apelação as seguintes (e extensíssimas) conclusões:
I.
O presente recurso visa a impugnação judicial do Tribunal a quo que julgando a ação totalmente improcedente absolveu a Ré GENERALI SEGUROS, S.A. do pedido, condenou o Autor no pagamento das custas processuais.
II.
Face à prova produzida nos autos, quer documental, quer testemunhal, resulta evidente a injustiça da decisão de que ora se recorre, com a qual não pode o Apelante concordar.
III.
No entender do Apelante, salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao não dar como provados factos que, no seu entender, foram provados por prova sobretudo testemunhal, ao dar como provados factos que, no seu entender, deviam ter sido dados como não provados em resultado da prova produzida, bem como por ter feito uma errónea interpretação /contextualização dos factos dados como provados, que levaram consequentemente a uma decisão injusta e contrária à lei.
IV.
Com efeito, tivesse o Tribunal a quo feito uma correta e imparcial análise crítica da prova produzida e dos factos dados como provados, teria concluído que a realidade fáctica, tal como descrita pelo Apelante em sede de Petição Inicial corresponde à verdade e que, em contrapartida, a versão trazida aos autos pela Ré padece de contradições e imprecisões , o que levaria a que a decisão por si proferida tivesse sido em sentido diverso.
V.
O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na resposta dada a diversas questões de facto.
- DOS FACTOS DADOS COMO PROVADOS QUE DEVERIAM TER SIDO DADOS COMO NÃO PROVADOS -
VI.
“3) No dia 15-10-2022, pelas 12h30m, o veículo EH circulava na EN 10, no sentido Samora Correia – Infantado, conduzido por BB, o qual, ao chegar ao quilómetro ..., ligou os “quatro piscas”, abrandou, encostou à direita e imobilizou esse veículo, fora da faixa de rodagem, na berma do lado direito, com a intenção de prestar assistência à filha menor que transportava no banco traseiro e que chorava.”
VII.
Não compreende o Apelante como pôde o Tribunal a quo considerar como provado que o veículo EH conduzido por BB, ficou imobilizado fora da faixa de rodagem, na berma do lado direito, com a intenção de prestar assistência à filha menor que transportava no banco traseiro e que chorava. (realçados nossos).
VIII.
Além das contradições entre a Testemunha e o Segurado da Ré, que, no fundo acaba por deter interesse direto na causa, importa realçar que ambos são companheiros, têm uma vida e uma filha em comum.
IX.
Por conseguinte, o Tribunal a quo deveria ter isso em conta e ter valorizado tais depoimentos nesses termos. O que, efetivamente não fez.
X.
Ao decidir da forma como decidiu o Tribunal a quo acabou por colocar o Autor, ora Recorrente em desvantagem por não ir acompanhado de qualquer pessoa e não ter consigo nenhuma Testemunha direta do acidente.
XI.
Além do mais, deveria o Tribunal a quo ter tido em conta as provas juntas aos autos pelo Recorrente, com a Petição Inicial, nomeadamente os documentos números 5, 6 e 7.
XII.
Se o próprio BB afirma que, se abrisse totalmente a sua porta ficaria na estrada, não se compreende como pode o Tribunal a quo considerar que o veículo EH ficou imobilizado completamente fora da faixa de rodagem, nem como podem ser verdadeiras as suas declarações quando afirma que deixou as rodas direitas do seu veículo na terra batida.
XIII.
O veículo do Segurado da Recorrida tinha, pelo menos, os dois rodados esquerdos e o espelho lateral esquerdo na faixa de rodagem. O que evidencia claramente que a sua imobilização, não foi tão fora da faixa de rodagem conforme tentaram fazer crer o Tribunal.
XIV.
Mais: Se, a berma da faixa de rodagem apresenta uma largura de 1,80m e o veículo EH, só de largura apresenta mais do que tal medição, não deveria o Tribunal a quo ter dado como provado este facto por não ser verdadeiro e não corresponder à verdade.
XV.
Salvo o devido respeito, o veículo do Segurado da Ré só poderia estar parado em segurança naquela circunstância se a dimensão do seu veículo fosse semelhante à dimensão de um veículo Smart Fortwo, conforme se refere nos artigos 23º, 24º e 25º da Petição Inicial e conforme elementos probatórios que ali foram juntos.
XVI.
Além do mais, em nenhum dos depoimentos prestados é afirmado com toda a convicção que as rodas direitas do veículo ficaram completamente na zona à direita, após a berma. Ao contrário de outros detalhes que tanto a Testemunha como Segurado da Ré se recordam perfeitamente, nenhum dos dois é capaz de afirmar que as rodas estavam completamente na zona de erva ou terra batida após a berma. O que revela um depoimento programado e planeado.
XVII.
Mais grave ainda se nos parece, com o devido respeito, que o Tribunal a quo não tivesse diligenciado por apurar se, efetivamente não existiam, ao longo daquele percurso outras paragens mais seguras para ambos os condutores. Isto porque, efetivamente, elas existem e foram completamente ignoradas pelos ocupantes do veículo EH que afirmam ter sido aquele o lugar ideal para parar, numa Estrada Nacional, quando tinham pelo menos a cerca de 50 metros antes e após o local do acidente espaços amplos e esses sim completamente fora da faixa de rodagem e até da berma da estrada.
XVIII.
Outro facto que o Tribunal a quo se esqueceu por completo de apurar foi, se a imobilização do veículo EH foi concretizada com respeito por todas as normas estradais. O que, salvo o devido respeito, não nos parece.
XIX.
Para tanto, devia o Tribunal a quo ter apreciado as fotografias juntas pelo Autor, ora Recorrente como Doc. nº4 na Petição Inicial e pela Ré, onde coloca o pneumático esquerdo traseiro e dianteiro em cima da linha longitudinal que delimita a faixa de rodagem (vulgo traço contínuo).
XX.
Do entendimento do Tribunal a quo espelhado na Sentença, parece-nos que, o que foi transmitido ao Tribunal foi que o Recorrente invadiu a berma e que abalroou veículo EH.
XXI.
O que nunca poderia corresponder à verdade, até porque, se assim fosse, o embate ocorreria na traseira do veículo do Segurado da Recorrida e não na lateral.
XXII.
Por outro lado, já que o Segurado da Recorrida afirma que estava parado, com o motor desligado, podemos concluir que o mesmo estava, efetivamente, imobilizado na berma.
XXIII.
Ora, dispõe o Código da Estrada, no seu artigo 88º, nº 2 que “É obrigatório o uso do sinal de pré-sinalização de perigo sempre que o veículo fique imobilizado na faixa de rodagem ou na berma ou nestas tenha deixado cair carga, sem prejuízo do disposto no presente Código quanto à iluminação dos veículos.” – realçado nosso.
XXIV.
E, no seu nº3 que “O sinal deve ser colocado perpendicularmente em relação ao pavimento e ao eixo da faixa de rodagem, a uma distância nunca inferior a 30 m da retaguarda do veículo ou da carga a sinalizar e por forma a ficar bem visível a uma distância de, pelo menos, 100 m, devendo observar-se especial atenção em locais de visibilidade reduzida.”
XXV.
E ainda que, “Nas circunstâncias referidas no n.º 2, quem proceder à colocação do sinal de pré-sinalização de perigo, à reparação do veículo ou à remoção do veículo ou da carga deve utilizar o colete retrorrefletor.”
XXVI.
Estas disposições legais não foram apreciadas pelo Tribunal a quo e, muito menos, respeitadas pelo Segurado da Ré.
XXVII.
O Tribunal a quo deveria ter atentado minuciosamente à marca de travagem do veículo do Autor/ Recorrente e à sua trajetória: nada indica que o Recorrente invadiu a berma, mas sim que até se desvia repentinamente e, por essa mesma circunstância é que acaba por embater no rail de proteção mais à frente.
XXVIII.
Em face do exposto, entende o Recorrente que mal andou o Tribunal a quo ao ter dado como provado o facto constante no Ponto 3., devendo, em sentido contrário o mesmo ser dado como não provado, o que se requer para os devidos e legais efeitos.
XXIX.
“ 4) Imediatamente após o veículo EH ser imobilizado por BB na berma, foi embatido na traseira e lateral esquerdas (incluindo o pára-choques, porta e pneu traseiros do lado esquerdo), pela frente e lateral direitas do veículo DO, então conduzido pelo autor de forma desatenta e desgovernada, no mesmo sentido de marcha do EH.”
XXX.
Com o devido respeito pelo Tribunal a quo, que é muito, não pode o Recorrente concordar com o facto dado como provado no Ponto 4.
XXXI.
Além das razões supra expostas, os danos evidentes no veículo EH não se reportam à traseira do veículo, mas sim, apenas à lateral.
XXXII.
Com este facto dado como provado o Tribunal a quo dá a entender que o veículo DO, conduzido pelo Recorrente, embateu na traseira do veículo EH, o que não corresponde à verdade, bastando para tal verificar-se os danos existentes em ambos os veículos.
XXXIII.
Por outro lado, também não se compreende como o Tribunal a quo dá como provado que o Autor, ora Recorrente conduzia de forma desatenta e desgovernada.
XXXIV.
Quais foram as provas tidas em conta pelo Tribunal para determinar que o Recorrente conduzia de foram desatenta e desgovernada? As declarações de BB com interesse direto na causa? Ou as suposições da sua companheira quando diz que o Recorrente lhes embateu porque, no entendimento dela, ia a mexer no telemóvel?
XXXV.
Até porque, na sua fundamentação o Tribunal a quo não considerou em momento algum que o Recorrente fosse em excesso de velocidade.
XXXVI.
Por indevidamente fundamentado e nem tampouco se perceber de onde retira o Tribunal a quo a conclusão de que o Recorrente conduzia de forma desatenta e desgovernada, não devia ter este facto sido dado como provado. Até porque, a prova do mesmo atenta somente nas declarações do Segurado da Ré, que, tem interesse direto na causa.
XXXVII.
Pelo que, andou mal o Tribunal a quo, ao fazê-lo.
XXXVIII.
“ 5) Após o embate, uma corporação da Guarda Nacional Republicana dirigiu-se ao local e elaborou a participação do acidente de viação, para o que tomou declarações aos dois condutores dos veículos intervenientes, desenhando croqui em que assinalou o local provável do embate conforme indicado por ambos os condutores.”
XXXIX.
Andou mal o Tribunal a quo, ao considerar que o local provável do embate, foi indicado por ambos os condutores.
XL.
O Tribunal a quo entra em total contradição no ponto 5), 6) e 10) dos factos dados como provados.
XLI.
Como pode o Tribunal a quo dar como provado que o local provável do embate, foi indicado por ambos os condutores e, simultaneamente, que o Recorrente se encontrava perturbado?! Então se o Autor/Recorrente estava perturbado significa que não estaria em condições pessoais e psicológicas capazes de definir o local de embate.
XLII.
Até porque, o único interveniente do acidente que necessitou de assistência médica foi mesmo o Autor/Recorrente.
XLIII.
Andou, por isso mal o Tribunal a quo, por não ter valorizado as declarações prestadas pelo próprio Autor/Recorrente e, pelo menos, pela Testemunha CC.
XLIV.
Facto que também foi corroborado pela Testemunha DD e que também não teve qualquer valoração pelo Tribunal.
XLV.
Mais: o próprio Autor/Recorrente ao aperceber-se do erro manifestado no croqui elaborado pela Guarda Nacional Republicana, desloca-se àquele posto de polícia e solicita a alteração/aditamento do auto, conforme Doc. nº3 junto com a Petição Inicial.
XLVI.
Razão pela qual o ora Recorrente considera que andou mal o Tribunal a quo a dar como provado o facto 5., não devendo o mesmo ser considerado como provado.
XLVII.
Refere-se na Sentença de que ora se recorre que não foi possível concluir a partir do depoimento das testemunhas CC e DD que a perturbação do Autor/Recorrente fosse de tal forma que acabasse por interferir com o juízo ou discernimento do Autor. Mas a verdade é que também nenhuma prova foi feita em sentido contrário.
XLVIII.
Caso o Tribunal a quo não tivesse dado como provados os factos 3), 4), 5), tendo corretamente valorado as provas carreadas aos autos, bem como os depoimentos ouvidos, a decisão dos presentes autos teria teor diferente, não se podendo, por isso, conceber que a decisão seja assente em factos dados indevidamente como provados.
- DOS ERROS DE JULGAMENTO –
-DA MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO –
XLIX.
Resulta da Sentença de que ora se recorre, em concreto na Motivação da decisão de facto, que o Tribunal a quo efetuou uma valoração global e concatenada, à luz das regras de direito probatório e, quando possível a livre apreciação, à luz das regras da experiência comum, com a concorrência de critérios lógicos e objetivos, o Tribunal considerou o acordo parcial das partes sobre os factos, os documentos admitidos nos autos e as declarações das pessoas ouvidas em audiência final.
L.
Todavia, considerou que não existiam incongruências, inverosimilhanças ou declarações estranhas à sua razão de ciência, atribuindo-lhes inteira credibilidade. O que, salvo o devido respeito, não podemos concordar, nomeadamente no que respeita ao depoimento da Testemunha EE e BB.
LI.
Considerou que o facto 5) se afigura incontrovertido entre as partes, o que não corresponde à verdade, por todas as razões já supra expostas.
LII.
O facto de constar do teor da participação de acidente de aviação que o local de embate foi confirmado por todos os intervenientes não significa que na prática o tenha efetivamente sucedido. Tanto assim é que foram trazidas aos autos provas em sentido totalmente contrário.
LIII.
Apesar do Tribunal a quo reconhecer que EE, enquanto companheira de BB, não conseguirá ter distanciamento suficiente no seu depoimento, não deixou de dar factos provados com base apenas nas suas declarações. O que não se concebe!
LIV.
O facto de o depoimento desta Testemunha ter sido consonante com o do seu companheiro era mais do que expetável, até pela relação que mantêm.
LV.
Analisando o croqui integrante da participação do acidente de viação, bem como as fotografias dos veículos, de forma exaustiva e cautelosa, como deveria ter feito o Tribunal a quo, facilmente chegar-se-ia à conclusão de que o local de embate não poderia ser na berma da estrada, mas sim já na faixa de rodagem. Até porque, se assim não fosse o Autor/Recorrente batia na traseira do veículo do Segurado da Ré e não na lateral.
LVI.
Até porque, sendo credível que o Segurado da Ré tinha acabado de parar e que viu perfeitamente o Autor/Recorrente distraído, sempre teria tempo de voltar a ligar o veículo EH e desviá-lo por forma a evitar o embate com o veículo DO.
LVII.
Por conseguinte, o local de embate dado como provado nunca poder-se-ia ter verificado no ponto que consta da Participação do Acidente de Viação, bastando para isso olhar para os danos dos respetivos veículos, bem como para as marcas visíveis da estrada. Razão pela qual a versão do Segurado da Ré não poderia colher.
LVIII.
Se o Autor tivesse certo do local de embate não se teria deslocado ao posto da GNR de Samora Correia a fim de providenciar por alteração ao Auto de Participação.
LIX.
A versão trazida aos autos pelo Segurado da Ré e pela sua companheira é contraditória com os danos visíveis nas viaturas, bem como as marcas de travagem no piso após o sinistro.
LX.
Por outro lado, também não era expetável que os Senhores Guardas viessem à Audiência de Julgamento desdizer o que fizeram constar no auto de participação de acidente de viação.
LXI.
Em conclusão, andou mal o Tribunal a quo na apreciação do local de embate do sinistro em causa, não se compreendendo a decisão e fundamentação quanto a esta matéria, por toda a prova sobretudo fotográfica junta aos autos.
LXII.
Por outro lado, quanto à Dinâmica do Acidente também não se compreende como chegou o Tribunal a quo à decisão alcançada, pelas sucessivas incongruências trazidas aos autos.
LXIII.
Desde logo e, em primeiro lugar, o motivo pelo qual o Segurado da Ré decidiu parar numa Estrada Nacional. Depois, pelo sítio escolhido para efetuar tal paragem e, por fim, a forma como essa paragem foi, ou não, efetivamente sinalizada.
LXIV.
Não é credível nem expetável que o Segurado da Ré decida, parar deixando o seu veículo metade na berma da estrada e outra metade numa zona com ervas ou terra batida, desconhecendo por completo se aquele terreno à direita da berma seria estável o suficiente para que a sua paragem fosse feita em segurança.
LXV.
O que se nos parece resultar dos autos é que o veículo do Segurado da Ré ficou parado exatamente em cima do traço contínuo que separa a faixa de rodagem da berma e, no fundo, é exatamente isso que é espelhado pelas fotografias juntas aos autos. Por conseguinte, jamais poderia o Tribunal a quo ter considerado esta paragem como legítima, nem que o veículo EH foi devidamente imobilizado na berma.
LXVI.
Dos elementos carreados para os autos, salvo melhor entendimento, não é possível retirar-se que o sinistro decorreu por culpa exclusiva do Autor/Recorrente.
LXVII.
Nos presentes autos, o Tribunal a quo analisou a pretensão do Autor/Recorrente primeiro no campo da Responsabilidade Civil Extracontratual e, posteriormente no campo da Responsabilidade pelo Risco.
LXVIII.
A verdade é que, tudo depende da apreciação de facto feita erroneamente pelo Tribunal a quo.
LXIX.
Isto porque, dispõe o n.º 1 do artigo 483º do Código Civil que «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação», resultando assim que são requisitos da responsabilidade civil extracontratual: a existência de um facto humano voluntário qualificável como ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
LXX.
Fazendo uma correta interpretação e assunção dos factos, a decisão do Tribunal a quo seria no sentido de que o sinistro ocorreu por culpa exclusiva do Segurado da Ré que se encontrava parado no traço contínuo entre faixa de rodagem e a berma, que não estava corretamente imobilizado e que não sinalizou devidamente a sua imobilização.
LXXI.
Por essa razão seriam facilmente verificados todos os pressupostos legalmente exigidos para que se verificasse a responsabilidade civil do condutor do veículo EH, transferida para a Ré Seguradora.
LXXII.
O Segurado da Ré praticou um acto ilícito que se traduziu na violação das regras estradais, enquanto conduzia o veículo automóvel, designadamente por não ter imobilizado corretamente a sua viatura nem ter sinalizado tal imobilização.
LXXIII.
Em consequência de tal conduta ilícita produziu-se, pois, o acidente aqui em causa, verificando-se indubitavelmente o nexo de causalidade adequada entre a conduta do Segurado da Ré na condução do veículo ..-EH-.. e o embate ocorrido, pois tal conduta é, em abstrato, condição adequada para produção do embate, bem como dos danos decorrentes para o Autor/Recorrente.
LXXIV.
Todos os danos sofridos pelo Autor/Recorrente, decorrem direta e inevitavelmente do acidente de viação, causado pelo Segurado da Ré, pelo que devem ser fixados de acordo com o prescrito nos artigos 562.º e seguintes e no artigo 496.º do Código Civil, atendendo à sua gravidade.
LXXV.
A atuação do Segurado da Ré com a imobilização do veículo numa berma de uma Estrada Nacional, sem qualquer cautela, tendo apenas sinalizado com os quatro piscas e sem acautelar a segurança dos restantes condutores evidencia o elevado grau de culpa na sua atuação, tendo evidentemente agido com dolo, sendo o seu comportamento totalmente censurável.
LXXVI.
Consideramos, pois, que estão integralmente provados os factos todos capazes de subsumir o sucedido aos pressupostos legais exigidos para se verificar a responsabilidade civil extracontratual do Segurado da Ré.
LXXVII.
Por outro lado e subsidiariamente, com a correta análise dos factos carreados para os autos se, o Tribunal a quo não chegasse à conclusão da responsabilidade integral do Segurado da Ré, sempre deveria ter alcançado solução em que a produção do acidente, sempre impenderia sobre a Ré/Recorrida, por força do seguro celebrado com BB, por este ser detentor da direção efetiva do veículo, mercê do disposto no artigo 503.º do Código Civil, tendo, assim, a obrigação de responder pelos danos provenientes da utilização do veículo.
LXXVIII.
Dispõe o nº1 do artigo 503º do Código Civil que “Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.”
LXXIX.
Neste âmbito, a imputação do acidente com base no risco, conforme previsto naquela previsão legal, deveria ser feita quer ao Autor/Recorrente, quer ao Segurado da Ré/Recorrido, porque ambos tinham a direção efetiva dos respetivos veículos.
LXXX.
Apreciando os critérios dispostos no artigo 506º do Código Civil, o Tribunal a quo considerou que “se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar.”, justificando assim a aplicação da responsabilidade exclusivamente ao Autor/Recorrente, por considerar que só este deu, em exclusivo, causa ao acidente.
LXXXI.
O que, conforme vimos explanando, não se concede nem se concorda, devendo, em última análise ser a responsabilidade pelo sinistro repartida entre o Autor/Recorrente e a Ré, enquanto responsável pelo seu Segurado.
LXXXII.
Resulta evidente a injustiça da Sentença de que ora se recorre:
LXXXIII.
Não foi o Autor/Recorrente quem deu causa exclusiva ao sinistro dos presentes autos, o veículo do Segurado da Ré não estava devidamente imobilizado na berma da estrada; o Tribunal a quo deu como provados factos, de forma indevida e que, devidamente apreciados dariam outra decisão ao processo.
LXXXIV.
A dinâmica do acidente descrita pela Recorrida não pode proceder por falta de prova e de sustento probatório.
Nestes termos e nos demais de direito, deve ser considerado procedente o presente recurso, alterando-se a decisão recorrida nos termos requeridos e fazendo-se a correcta aplicação do direito aos factos, só assim sendo possível que, como se impõe e o ora Apelante espera, em concreto se cumpra a lei, produzindo-se DIREITO e fazendo triunfar a verdadeira JUSTIÇA!
5. Contra-alegou a Ré seguradora defendendo a manutenção do decidido.
6. Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – são as seguintes as questões cuja apreciação, pela sua ordem lógica, as mesmas convocam:
1. Impugnação da matéria de facto: se os factos insertos nos pontos 3, 4 e 5 dos “Factos Provados” devem transitar para o dos “Não Provados”.
2. Reapreciação da decisão jurídica da causa, no sentido de se apurar da responsabilidade pela produção do acidente e, bem assim, se as indemnizações peticionadas devem ser concedidas.
II. FUNDAMENTAÇÃO
6. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida:
Com relevância para a decisão da causa, julgam-se PROVADOS os seguintes factos:
1) O autor é proprietário do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-DO-.., de marca SEAT, modelo LEON, com data da primeira matrícula de 28-05-2007 [doravante designado apenas por DO].
2) O veículo automóvel ligeiro de passageiros Peugeot 308 de matrícula ..-EH-.. [doravante designado apenas por EH] é propriedade de BB.
3) No dia 15-10-2022, pelas 12h30m, o veículo EH circulava na EN 10, no sentido Samora Correia – Infantado, conduzido por BB, o qual, ao chegar ao quilómetro ..., ligou os “quatro piscas”, abrandou, encostou à direita e imobilizou esse veículo, fora da faixa de rodagem, na berma do lado direito, com a intenção de prestar assistência à filha menor que transportava no banco traseiro e que chorava.
4) Imediatamente após o veículo EH ser imobilizado por BB na berma, foi embatido na traseira e lateral esquerdas (incluindo o pára-choques, porta e pneu traseiros do lado esquerdo), pela frente e lateral direitas do veículo DO, então conduzido pelo autor de forma desatenta e desgovernada, no mesmo sentido de marcha do EH. (alterado, conforme decisão infra).
5) Após o embate, uma corporação da Guarda Nacional Republicana dirigiu-se ao local e elaborou a participação do acidente de viação, para o que tomou declarações aos dois condutores dos veículos intervenientes, desenhando croqui em que assinalou o local provável do embate conforme indicado por ambos os condutores. (alterado, conforme decisão infra).
6) Aquando das declarações que prestou aos militares da Guarda Nacional Republicana, no contexto referido em 6), o autor encontrava-se perturbado.
7) Em consequência do embate referido em 4), o veículo automóvel DO sofreu danos, cuja reparação ascende ao valor de 11.740,97 Euros.
8) À data do embate mencionado em 4), o veículo automóvel DO tinha um valor de mercado de 10.900 Euros.
9) Em consequência do embate descrito em 4), o autor sofreu ferimentos ligeiros, em virtude dos quais foi transportado para o Hospital ....
10) Em consequência do embate descrito em 4), o autor sentiu susto e preocupação.
11) À data do embate referido em 4), a responsabilidade civil emergente de acidente de viação automóvel relativamente ao veículo EH encontrava-se transferida para a ré, por contrato de seguro titulado pela apólice ..., em que é tomador de seguro BB.
12) Por carta datada de 04-11-2022, que o autor recebeu, a ré comunicou-lhe o seguinte: (…)”
13) A ré declinou a sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo autor, por considerar que o embate ocorreu exclusivamente por sua culpa.
14) No local do embate referido em 4), a via rodoviária é em linha recta, tem boa visibilidade, o piso estava seco e limpo, e a velocidade máxima permitida é de 90 quilómetros/hora.
Com relevância para a decisão da causa, julgam-se NÃO PROVADOS os seguintes factos:
a) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 2), quando estava parado na berma direita da faixa de rodagem, iniciou a marcha do EH, transpondo a linha contínua existente junto ao limite direito da faixa de rodagem e invadindo a faixa de rodagem no sentido Samora Correia-Infantado, indo embater no veículo DO que ali circulava conduzido pelo autor, sem que este pudesse evitar o embate.
b) No momento referido em a), BB não ligou as luzes do pisca, nem sinalizou por qualquer outra forma o início de marcha.
c) Na ocasião referida em 3) e 4), o autor conduzia o veículo DO a uma velocidade superior a 90 quilómetros/hora.
d) Em consequência do embate descrito em 4), o autor passou a ter dificuldades em dormir e a sofrer de ansiedade e stress, uma vez que ainda se encontrava a pagar o financiamento que havia solicitado para a aquisição do veículo automóvel DO.
7. Do mérito do recurso
8.1. Impugnação da matéria de facto
Insurge-se o apelante contra a resposta que foi dada ao facto vertido no ponto 3 (No dia 15-10-2022, pelas 12h30m, o veículo EH circulava na EN 10, no sentido Samora Correia – Infantado, conduzido por BB, o qual, ao chegar ao quilómetro ..., ligou os “quatro piscas”, abrandou, encostou à direita e imobilizou esse veículo, fora da faixa de rodagem, na berma do lado direito, com a intenção de prestar assistência à filha menor que transportava no banco traseiro e que chorava ) perante os depoimentos de EE, que seguia ao lado do condutor do EH, do próprio condutor desse veículo, BB e de acordo com outros elementos probatórios.
Cremos que não lhe assiste razão no que tange à menção “fora da faixa de rodagem” já que a largura do veículo em apreço, 1,81 (cfr. doc. 5 junto à p.i.) é praticamente idêntica à largura da berma no local onde o mesmo terá estacionado a qual, conforme consta do croquis é de 1.80m.
Também não se afigura crível, antes pelo contrário, que o condutor do EH tenha imobilizado o seu veículo dentro da faixa de rodagem pois estaria a pôr em risco a vida da criança que seguia no banco traseiro do veículo, tendo a mãe da criança, EE, salientado que nunca consentiria que tal sucedesse.
Porém, questão diferente é se quando se deu o embate o veículo “EH” ainda estaria imobilizado ou se estaria já em vias de entrar na faixa de rodagem ou mesmo já teria entrado parcialmente nela.
Essa questão não contende com a forma como este facto está redigido.
Assim, não há fundamento para alterar a sua redacção nos moldes enunciados pelo Tribunal “a quo”.
O mesmo não se se diga quanto ao facto vertido no ponto 4 (Imediatamente após o veículo EH ser imobilizado por BB na berma, foi embatido na traseira e lateral esquerdas (incluindo o pára-choques, porta e pneu traseiros do lado esquerdo), pela frente e lateral direitas do veículo DO, então conduzido pelo autor de forma desatenta e desgovernada, no mesmo sentido de marcha do EH. ).
Desde logo porque o depoimento de EE, técnica de tráfego, se revela incongruente: revela muitas falhas de memória (inclusive se quando ocorreu o embate tinha ou não o cinto de segurança colocado) mas, em contrapartida, a “história” do retrovisor (i.e. que o BB antecipou a ocorrência do embate por ter visto o “DO” através do retrovisor) referiu-a por duas vezes, revelando a necessidade de acentuar que tinham acabado de se imobilizar quando foram embatidos quando era mais plausível que o BB olhasse pelo retrovisor quando já estivesse a sair da berma.
Igualmente o depoimento de BB, também técnico de tráfego, contém imprecisões: tanto diz que estava parado há pouco tempo quando foi embatido como diz que o carro estava travado, como estava a travar o carro, estava “completamente desligado” mas se pôs a buzinar.
Afirmou ter visto, pelo retrovisor, que o DO vinha a circular “metade na berma, metade na faixa de rodagem” mas se assim fosse o embate teria ocorrido apenas entre a dianteira lado direito do DO e metade do para-choques lado esquerdo do EH.
Ademais, não se compreende porque é que olhou pelo retrovisor se era a mãe da criança que lhe iria prestar cuidados e não necessitava de se assegurar que podia sair do veículo sem perigo.
Mas há sobretudo que atentar que os danos mais significativos do EH encontram-se essencialmente na lateral esquerda traseira (e não apenas na traseira do veículo) o que inculca que se encontrava posicionado de forma enviesada (quase transversal) à via por onde seguia o DO e não (bem) imobilizado na berma (cfr. fotografias juntas à petição e à contestação da seguradora ) no momento do embate.
Aliás, não se compreende como é que pode afirmar que o Autor, que não tinha quaisquer vestígios de álcool no sangue (cfr. participação da GNR), conduzia de forma desgovernada!
Para ter ocorrido o embate nos moldes enunciados, era necessário que o Autor tivesse praticamente inflectido (para a direita) a marcha do seu veículo para conseguir ir embater na lateral esquerda traseira do veículo “EH” caso este se encontrasse “devidamente” estacionado na berma…
A circunstância de o local de embate ter sido, de acordo com o croquis da GNR, fora da faixa de rodagem não tem, só por si ( já que o agente não presenciou o acidente) a virtualidade de infirmar a demais prova dos autos, mormente a fotográfica, já que se se admite que num primeiro momento o EH tivesse estado imobilizado nesse local mas que quando ocorreu o embate já não o estivesse.
Também é plausível que, com o embate, o EH se tivesse a voltado a posicionar paralelamente à faixa de rodagem.
Em suma: Admite-se que a dinâmica do acidente possa não ter sido a que o Autor descreveu na petição ( que o seu veículo é que tinha sido embatido pelo “EH”) mas não se mostra igualmente plausível, como se viu, face à prova produzida a versão que o Tribunal carreou para o ponto 4 dos factos provados que, assim, se decide alterar nos seguintes termos:
“Em circunstâncias não concretamente apuradas, ocorreu um embate entre parte lateral esquerda (incluindo o pára-choques, porta e pneu traseiros do lado esquerdo) do veículo EH e a frente e lateral direitas do veículo DO, conduzido pelo Autor, que também seguia na EN 10, no sentido Samora Correia – Infantado”.
Por último, insurge-se o apelante contra a resposta que foi dada ao ponto 5 (Após o embate, uma corporação da Guarda Nacional Republicana dirigiu-se ao local e elaborou a participação do acidente de viação, para o que tomou declarações aos dois condutores dos veículos intervenientes, desenhando croqui em que assinalou o local provável do embate conforme indicado por ambos os condutores) essencialmente porque o croquis padece de um erro no que concerne ao local, erro esse que o apelante tentou corrigir logo que dele se apercebeu, conforme resulta do documento nº 3 junto à p.i.
Vejamos.
Da participação da GNR – que se configura como um documento autêntico ( art.º 371º do Cód. Civil) - consta que o condutor do veículo nº1 (“EH”) disse: Estava com o carro parado fora da via de circulação no sentido Samora-Infantado quando fui abalroado por um veículo.” e, bem assim, que o condutor do veículo nº2 disse : O veículo A ( “DO”) circulava na faixa de rodagem EN 10, o veículo B ( “EH”) iniciou a marcha invadindo a faixa de rodagem onde circulava o veículo A. não conseguindo evitar o embate no veículo A”.
É certo que o auto de participação do acidente de viação elaborado pelo membro de órgão de polícia criminal, apesar de constituir um documento autêntico, não faz prova plena da descrição do acidente que nele se contém, se essa descrição resultou das declarações dos intervenientes na colisão; aquele documento faz prova plena de que aqueles intervenientes produziram tais declarações – mas não que elas sejam verdadeiras, visto que a sua sinceridade escapa, naturalmente, à percepção do documentador.
Mas a verdade é que no croquis, que é desenhado posteriormente pelo agente, ao fazer constar como local provável do embate “conforme indicado por ambos os condutores” fê-lo em contradição com as pretéritas declarações de um deles pois tal local, de acordo com o mesmo croquis, se situa na berma e não na faixa de rodagem.
Por isso se compreende que num aditamento à participação efectuado em 11.11.2022 ( documento junto à p.i.) tendente a corrigir a data constante da pretérita participação, o guarda da GNR tenha feito constar o seguinte:
Afigura-se-nos, assim, que deverá constar no facto em apreço que o autor veio posteriormente a contactar a GNR no sentido de evidenciar a existência de um possível erro no “croquis” no local de embate primitivamente indicado.
Em consequência, o facto em apreço passa a ter a seguinte redacção:
“Após o embate, uma corporação da Guarda Nacional Republicana dirigiu-se ao local e elaborou a participação do acidente de viação, para o que tomou declarações aos dois condutores dos veículos intervenientes, desenhando croquis em que assinalou o local provável do embate “conforme indicado por ambos os condutores” vindo o autor posteriormente, em 11.12.2022, a contactar a GNR no sentido de evidenciar a existência de um possível erro no “croquis” no local de embate primitivamente indicado”.
8.2. Da (in) verificação dos pressupostos da responsabilidade civil a cargo da Ré
Decorrente da alteração à decisão da matéria de facto é evidente que o desfecho alcançado na sentença não se poderá manter.
Fundamentou o apelante autor o seu direito à indemnização, na ocorrência de um acidente de viação alegadamente causado com culpa do condutor do veículo “EH” e responsabilidade por danos causados transferida para a ré GENERALI SEGUROS, S.A.
Em termos de direito substantivo, fundou, assim, a acção no que dispõem os arts. 483º e seguintes do Cód. Civil.
De acordo com o preceituado no n.º 1 do art.º 483º do Cód. Civil, “Aquele que, com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
São pressupostos cumulativos da responsabilidade civil por actos ilícitos, enquanto fonte geradora da obrigação de indemnizar, nos termos da citada disposição legal: o facto; a ilicitude desse mesmo facto (ilicitude que pode revestir duas modalidades, traduzindo-se na violação do direito de outrem ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios); o nexo de imputação do facto ao lesante; o dano e finalmente, o nexo de causalidade entre o facto e o dano1.
O facto ilícito revela-se no acidente enquanto ocorrência resultante da acção humana voluntária lesiva de um bem jurídico, tendo aí em atenção bens jurídicos pessoais e patrimoniais, enquanto a nexo de imputação subjectiva prende-se com a ligação psicológica do agente com a produção do evento (acidente) e ao respectivo grau de censurabilidade que a conduta merece. Por seu turno, o dano traduz o desvalor infligido por acção do facto ilícito nos bens jurídicos alheios atingidos manifestando-se o nexo de causalidade no juízo de imputação objectiva do dano ao facto de que emerge.
Todavia, excepcionalmente, e tal como resulta do regime constante dos arts. 499º a 510º do Cód. Civil, pode alguém ser responsabilizado, independentemente de culpa: é o caso de responsabilidade objectiva, pelo risco, em circunstâncias nas quais, as necessidades sociais de segurança se sobrepõem às considerações de justiça alicerçadas sobre o plano das situações individuais 2.
“A excepcionalidade dos tipos de casos” de responsabilidade pelo risco, para além de prescindir da culpa do lesante, não exige “sequer, como pressuposto necessário, a ilicitude da conduta. A responsabilidade pode assentar aqui sobre um facto natural (um acontecimento), um facto de terceiro ou até um facto do próprio lesado. O facto constitutivo da responsabilidade deixa, pois, de ser necessariamente, neste domínio, um facto ilícito3”.
No caso em apreço não se logrou apurar quem deu origem ao acidente em causa nos autos e a que título.
É certo que apesar de o condutor do “EH” ter imobilizado o seu veículo na berma da estrada sem ter sinalizado devidamente tal facto – cfr. art.º 88º, nº2 do C.E.- cremos que isoladamente, tal omissão não tem a virtualidade de o convolar em responsável pelo sinistro porquanto não resultou provado que a mesma se revelasse causal relativamente ao embate, i.e. que o embate tivesse ocorrido em consequência da violação de tal dever.
Com efeito, apenas resultou provado que:“Em circunstâncias não concretamente apuradas, ocorreu um embate entre parte lateral esquerda (incluindo o pára-choques, porta e pneu traseiros do lado esquerdo) do veículo EH e a frente e lateral direitas do veículo DO, conduzido pelo Autor, que também seguia na EN 10, no sentido Samora Correia – Infantado”.
Permanece, pois, oculta a causa da colisão dos veículos, já que nem o autor, nem a ré lograram demonstrar os factos alegados sobre a génese do sinistro – art. 342º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Civil -, o que não nos permite concluir pela existência de culpa efectiva por parte do condutor do veículo segurado na ré ou sequer exclusiva ou concorrente de qualquer dos condutores intervenientes.
Ora, como é sabido, não se provando a culpa de qualquer dos condutores funciona a doutrina do risco.
Atento o disposto no n.º 1 do art. 506º do Cód. Civil, “se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar”.
No caso dos autos estamos inequivocamente perante uma colisão de veículos do qual resultaram danos em relação aos dois.
Inexistindo culpa por parte de qualquer dos condutores e tendo os danos sofridos no veículo do autor sido causados pelo embate com o veículo “EH” estamos pois perante a previsão do preceituado no n.º 1 do art. 506º do Cód. Civil.
Ocorrendo a colisão entre dois veículos automóveis ligeiros e à míngua doutros elementos relevantes, cremos ser de considerar igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos (idem, nº2).
Assim, a responsabilidade pelos danos causados recai, na proporção de metade, sobre o condutor do veículo “EH” que, à data da ocorrência do embate tinha a responsabilidade por danos emergentes de acidente de viação transferida para a ré Generalli.
Posto isto, cumpre neste momento, determinar quais os danos a indemnizar.
O Autor pretende ser indemnizado pelos danos patrimoniais, sendo € 10.900,00 correspondentes ao valor de mercado do veículo e €2.500,00 em consequência da privação do uso do veículo.
Face à factualidade apurada resulta que em consequência do embate o veículo ligeiro do autor sofreu danos cuja reparação ascende ao valor de €11.740,97, sendo que à data do mesmo embate o veículo tinha um valor de mercado de 10.900 Euros. Igualmente se provou que a ré declinou a sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo autor.
Relativamente aos danos patrimoniais, não cremos haver qualquer dúvida: considerando que o autor enveredou, perante a excessiva onerosidade da reconstituição natural decorrente do elevado custo da reparação face ao valor do veículo sinistrado, por pedir que lhe fosse atribuído o seu valor venal ou comercial, será este o valor indemnizatório a considerar (art.º 566º, nº1 do Cód. Civil).
Pretende igualmente o autor ser indemnizado pelo dano da privação do uso do veículo desde a data do acidente (15.10.2022) até à data da propositura da acção (25.7.2023) em valor não inferior a € 2.500,00.
Admitindo-se que o veículo do Autor, dados os danos sofridos, ficou sem circular e por consequência o mesmo sido privado do seu uso, o certo é que nada mais foi alegado, nem provado, relativamente a esta questão que é jurisprudencialmente controversa.
Na verdade, inicialmente uma determinada corrente jurisprudencial inclinava-se no sentido de que o dano da privação do uso da coisa seria indemnizável se fosse feita prova de factos demonstrativos da repercussão negativa dessa privação no património do lesado4.
Uma outra entendia que que ressarcimento se bastava com a prova de que o lesado usaria normalmente a coisa danificada5.
E uma última, cremos que actualmente maioritária, que do dano da privação do uso será indemnizável mesmo que não seja feita prova de uma utilização quotidiana do veículo.
Esta tese, sufragada por Abrantes Geraldes6 tem, em consideração que “a Seguradora, para quem é transferida a responsabilidade civil do segurado, está obrigada a proceder à reparação integral dos danos imputáveis a este, o que, além do mais, pode passar pela concessão ao lesado de um veículo de substituição (obrigação que, aliás, costuma estar prevista nos contratos de seguro relativamente a danos próprios), como forma de se alcançar ou de se aproximar da reconstituição natural da situação que existiria se acaso não tivesse ocorrido o acidente, nos termos do art. 562º do CC.
Essa actuação está expressamente prevista para os casos em que a Seguradora assuma logo a responsabilidade pelo acidente, nos termos do art. 42º do DL nº 291/07, caso em que terá que formular ao lesado uma proposta razoável de indemnização, não se concebendo que semelhante obrigação deixe de existir pelo simples facto de ter recusado a assunção da responsabilidade que, porém, lhe seja judicialmente imputada.”.
Seguimos o entendimento de que o dano da privação do uso é sempre, só por si, um dano indemnizável, já que o mero uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária.
Donde, privado o dono do bem do seu uso, sofre naturalmente um dano perante o impacto negativo que tal determina na sua esfera jurídica.
Assim, não havendo dúvida quanto à ressarcibilidade da privação do uso do veículo que afectou o A. resta tão-só determinar o quantum ajustado ao ressarcimento de tal dano.
Para esse efeito ter-se-á de fazer uso da equidade ( art.º 566º, nº3 do Cód. Civil). Ponderando o valor correspondente ao aluguer de um veículo com semelhantes características e tendo em consideração o período de privação evidenciado pelo autor, entendemos adequado fixar no valor peticionado - €2.500,00 – a indemnização a este título.
Relativamente aos danos não patrimoniais.
Admitimos que os ferimentos ligeiros sofridos pelo autor (que consubstanciam, em todo o caso, um dano na integridade física) em virtude dos quais foi transportado para o Hospital ... e o susto e preocupação que sentiu sejam susceptíveis de ser indemnizados, à luz do que dispõe o artº 496º, nº1 do Cód. Civil, no valor peticionado - € 2000,00.
Visto se ter determinado a medida de contribuição do veículo segurado na Ré seguradora em 50%, o valor global indemnizatório a suportar por esta e que a mesma vai condenada a liquidar ao Autor cifra-se em € 7.700,00 (sete mil e setecentos euros) correspondentes a €6.700,00 de indemnização por danos patrimoniais e €1.000,00 de indemnização por danos não patrimoniais, valor ao qual acrescem, nos termos do disposto nos art.s 805º, n.º 3, 806º e 559º do Cód. Civil, os juros moratórios, contados desde a data da citação da ré.
III. DECISÃO
Pelo exposto, em conformidade com as disposições legais citadas, acorda-se, na procedência da apelação, revogar a sentença recorrida e, em consequência, julgar parcialmente procedente a acção, condenando a ré a pagar ao autor a quantia indemnizatória global de € 7.700,00 (sete mil e setecentos euros) acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
Custas por Autora e Ré na proporção do decaimento.
Évora, 13 de Março de 2025
Maria João Sousa e Faro ( relatora)
José António Moita
Manuel Bargado (com declaração de voto)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido quanto à indemnização pela privação do uso do veículo.
Em breve síntese, não atribuiria qualquer indemnização ao autor pela privação do uso do veículo, pois embora tal privação se autonomize como um dano e, como tal, seja suscetível de indemnização, é necessária que o lesado alegue e demonstre, para além da utilização do veículo, que essa privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava. Ora, percorrendo a matéria dada como assente, não se encontra um único facto demonstrativo, designadamente, que o lesado utilizava a viatura para fins de lazer/trabalho e, consequentemente por via daquela privação deixou de poder fazê-lo (cfr., inter alia, os acórdãos do STJ de 14.12.2016. proc. 2604/13.2 TBBCL.G1. S1 (citado no acórdão) e de 23.11.2017, proc. 2884/11.8TBBCL.G1, in www.dgsi.pt).
_____________________________________
1. Adoptando-se assim a sistematização avançada por Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, I, 7ª edição, Almedina, 1991, pág. 516.↩︎
2. Cfr., Antunes Varela, ob. cit., pág. 627.↩︎
3. Cfr. Antunes Varela, ob. cit., pág. 632.↩︎
4. Neste sentido, Ac. STJ de 3.10.2013 ( Fernando Bento).↩︎
5. Assim, Ac. STJ de 14.12.2016 ( Fernanda Isabel Pereira)↩︎
6. In “Temas da Responsabilidade Civil, vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso”.↩︎