PARTILHA
CÔNJUGE
DIVÓRCIO
LIQUIDAÇÃO
DÍVIDAS DA RESPONSABILIDADE DE AMBOS OS CÔNJUGES
Sumário

Sumário:
I. Se na conferência de interessados houve acordo dos ex-cônjuges no sentido de atribuir duas fracções autónomas à interessada e se esses mesmos bens após esse momento acabam por responder num processo de execução por uma dívida comum não relacionada, não se pode deixar de considerar que, perante o R., vinculado a tal acordo, tal dívida foi liquidada com bens que foram adjudicados à A. para preenchimento da sua meação ainda que não tivesse sido ainda proferida sentença homologatória da partilha.
II. Mas ainda que assim não se entendesse, e tendo a sentença que homologou a partilha dos bens comuns do casal mesmo assim contemplado essas duas fracções como integrantes da meação da Autora, não se pode afirmar, sob pena de ofensa do caso julgado pela mesma sentença formado, que as fracções, pelo facto de terem sido vendidas num processo de execução, afinal não passaram a integrar a esfera jurídica da mesma Autora.
III. Tendo a dívida exequenda sido liquidada com a venda dos bens adjudicados à Autora na conferência de interessados e contemplados no mapa da partilha, dívida essa que responsabilizava igualmente o Réu, tem aquela direito a haver deste metade desse valor, ou seja, a parte que a ele cabia satisfazer nessa dívida comum (art.º1697º, nº1 do Cód. Civil).

Texto Integral

ACÓRDÃO

RELATÓRIO

1. 1. AA demandou BB, pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de €171.830,26 (sendo € 107.375,00 de capital e € 64.455,26 de juros vencidos à data da propositura da acção) acrescido dos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento, correspondente a metade do valor exclusivamente liquidado pela Autora nas dívidas solidárias comuns melhor identificadas nos artigos 21.º a 26.º da petição inicial.

2. Para fundamentar a sua pretensão invoca que possui direito de regresso sobre o Réu relativamente a dívidas solidárias de ambos, pagas exclusivamente por aquela.


Citado, o réu não contestou, nem interveio nos autos.


2. Ao abrigo do disposto no art.º 567.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, foram considerados confessados os factos articulados pela Autora e foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente.


3. É desta sentença que recorre a Autora formulando na sua apelação as seguintes conclusões:


I. O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo no dia 06.12.2024, através da qual a ação foi julgada totalmente improcedente e, em consequência, foi o Réu absolvido do pedido, apesar de, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 567.º do


Código de Processo Civil, terem sido considerados confessados os factos articulados pela Autora na petição inicial.


II. E o principal problema reside precisamente na seleção de tais factos por parte do Tribunal a quo, o qual deixou, inexplicavelmente, de fora da matéria de facto assente factos que deveriam ter sido considerados confessados, tais como os que constam dos artigos 20.º, 37.º e 38.º da petição inicial.


III. E essa foi a razão pela qual a ação foi julgada improcedente, aliada à incorreta interpretação que o Tribunal a quo fez das regras processuais relativas aos processos de inventário após divórcio.


IV. No artigo 20.º da petição inicial, em termos de matéria de facto, foi alegado que Recorrente e Recorrido tinham dívidas comuns solidárias que não foram tidas em consideração no processo de inventário e que foram liquidadas após o acordo de partilha em exclusivo pela Recorrente.


V. No artigo 37.º da petição inicial, em termos de matéria de facto, foi alegado que foi a Recorrente, em exclusivo, com o seu património próprio, a liquidar créditos conjugais comuns solidários.


VI. No artigo 38.º da petição inicial, em termos de matéria de facto, a Recorrente alegou que pagou, com o seu património próprio e pessoal, o montante de € 214.750,00, que era devido ao Banco Mutuante solidariamente por Recorrente e Recorrido.


VII. Esta matéria consubstancia indiscutivelmente matéria de facto que, por força da confissão integral e sem reservas do Réu (ao decidir não contestar a ação apesar da advertência expressa que lhe foi feita neste sentido), deveria constar da matéria de facto assente e que lamentavelmente foi deixada de fora pelo Tribunal a quo sem qualquer explicação e/ou fundamentação.


VIII. Aliás, após a apresentação das alegações escritas, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 567.ºdo Código de Processo Civil, nas quais a Recorrente deixou expresso no artigo 10.º que considerava os factos acima referidos como provados por força da ausência de contestação, com o intuito de evitar decisões surpresa como a proferida e agora em crise, o Tribunal a quo deveria ter notificado a Recorrente relativamente ao seu entendimento no que diz respeito à matéria de facto e que era divergente do entendimento da Recorrente.


IX. Porém, o Tribunal a quo não só não notificou a Recorrente para esses efeitos, como também não justificou na fundamentação da matéria de facto a razão pela qual deixou de fora dos factos provados a matéria de facto alegada naqueles artigos.


X. A prolação de decisões surpresa é proibida por lei nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, sendo que a inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que essa omissão tenha influência no exame ou na decisão da causa, como acontece no presente caso.


XI. Termos em que se requer a V. Exas. que se dignem conceder provimento ao presente recurso e, consequentemente, em virtude da nulidade processual agora arguida e independentemente desta, se dignem aditar à matéria de facto assente os seguintes factos resultantes da confissão dos artigos mencionados nas conclusões anteriores:


«28 – Autora e Réu tinham dívidas comuns solidárias que não foram tidas em consideração no processo de inventário e que foram liquidadas após o acordo de partilha em exclusivo pela Recorrente.


29 – A Autora liquidou, em exclusivo e com o seu património próprio, créditos conjugais comuns solidários.


30 – A Autora pagou, com o seu património próprio e pessoal, o montante de € 214.750,00, que era devido ao Banco Mutuante solidariamente por Autora e Réu.»


XII. Caso o douto Tribunal a quo tivesse considerado provada esta matéria de facto – alegada pela Autora e confessada pelo Réu – a decisão de direito teria de ser inevitavelmente diferente da proferida, condenando-se o Recorrido a pagar à Recorrente metade daquele valor, acrescido dos respetivos juros de mora.


XIII. Porém, o Tribunal a quo deixou de fora da matéria de facto assente aqueles factos importantíssimos para o desfecho da ação, tal como não se preocupou em perceber o ocorrido no processo de inventário e que o levaram a considerar que a Autora, ora Recorrente, partia de pressupostos errados.


XIV. Cumpre referir, em primeiro lugar e a este respeito, que apesar dos factos provados em 6 e 7 resultantes da confissão do Réu, o Tribunal a quo não cuidou de notificar a ora Recorrente para juntar aos autos os documentos protestados juntar, tal como não requereu a consulta oficiosa daquele processo de inventário.


XV. Em virtude de tal comportamento, o Tribunal a quo não verificou a data, nem os fundamentos invocados pela Recorrente junto do tribunal que julgou o processo de inventário para anulação do acordo de partilha que veio a ser posteriormente homologado, tal como não verificou, igualmente, os fundamentos pelos quais foi indeferido o requerido a este respeito.


XVI. Tivesse o Tribunal verificado, com certeza chegaria a uma conclusão diferente da constante da sentença agora em crise, nomeadamente quando conclui que na data da decisão da homologação da partilha as frações, entretanto vendidas, «já não pertenciam ao património comum do casal nem, consequentemente, podiam integrar a esfera jurídica de qualquer dos sujeitos.»


XVII. Se assim fosse, como poderia o tribunal que julgou o processo de inventário ter, na decisão homologatória da partilha, considerado preenchido o quinhão da ora Recorrente com aquelas frações já vendidas naquela data (cfr. Doc. 3 da petição inicial e documentos protestados juntar e que ora se juntam)?


XVIII. Até porque após a venda coerciva judicial daquelas frações autónomas, a ora Recorrente foi ao processo de inventário alertar para a violação do princípio da igualdade previsto nos artigos 1790.º e 1689.º do Código Civil, assim como dos princípios da igualdade e da propriedade privada previstos nos artigos 36.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa, requerendo a convocação de nova conferência de interessados precisamente para acordar nova composição de quinhões tendo em consideração aquela venda e outras dívidas comuns solidárias que, inexplicavelmente, não tinham sido relacionadas naquele processo.


XIX. O que é um facto indiscutível e que consta do mapa de partilha junto aos autos (Cfr. Doc. 3), é que o quinhão da ora Recorrente foi preenchido com as frações vendidas, precisamente, para pagar dívidas conjugais solidárias não relacionadas no processo de inventário (cfr. Factos assentes 6 e 7 da sentença ora em crise).


XX. Concluindo-se, assim, que quando aquelas frações foram vendidas faziam parte do património próprio e pessoal da Recorrente.


XXI. Esta é a única solução justa e que repõe a injustiça e o tormento vivido pela Recorrente desde o divórcio.


XXII. Requerendo-se a V. Exas. que se dignem revogar a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue a ação totalmente procedente, por provada e, consequentemente, condene o Recorrido nos exatos termos peticionados, só assim se fazendo a mais costumada Justiça!


Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente Recurso ser considerado totalmente procedente e, em consequência, deverá a matéria de facto provada ser ampliada nos termos peticionados supra e explicados em detalhe nas motivações.


Mais deve a sentença recorrida ser revogada e alterada por outra que julgando procedente a ação, condene o Recorrente em tudo o peticionado.”.


4. Não foram apresentadas contra-alegações.


5. O objecto do recurso - delimitado pelas “conclusões” da recorrente (cfr.art.ºs 608ºnº2,609º,635ºnº4,639ºe 663º nº2, todos do CPC) ) reconduz-se à apreciação das seguintes questões:


5.1. Se o Tribunal deveria ter dado a conhecer previamente à Autora os factos que iria considerar provados em consequência da revelia (absoluta) do Réu;


5.2. Se por via da confissão (ficta) do Réu deveriam ter sido dados como provados outros factos alegados na petição inicial;


5.3. Reapreciação jurídica da causa: se o pedido condenatório formulado pela Autora deve ser julgado procedente.


II. FUNDAMENTAÇÃO


6. São os seguintes os factos que o Tribunal “a quo” considerou provados:


1- Por sentença proferida no âmbito do processo n.º 262/03.1... que correu os seus termos no Tribunal de Família e Menores de ..., confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora em 27.01.2005, foi julgada totalmente procedente, por provada, a ação de divórcio litigioso instaurada pela Autora e, em consequência, decidiu-se, entre outros: «a. Declarar dissolvido o casamento celebrado entre AA e BB, assim se decretando o peticionado divórcio; b. Declarar o réu cônjuge culpado no divórcio; c. Fixar no dia ... de ... de 2003 a data em que cessou a coabitação entre os cônjuges (Doc. 1).


2- No dia 25.02.2005 a Autora deu início ao processo de inventário para partilha do património conjugal, o qual foi apensado ao processo de divórcio (Doc. 2).


3- Por sentença homologatória da partilha, datada de 07.10.2009, foi homologado o acordo alcançado na conferência de interessados realizada no dia 02.02.2009, através do qual foram adjudicados à Autora os seguintes bens imóveis que constituíam as verbas n.º 5 e 6 do ativo: Verba 5 – “Fração autónoma “CZ”, destinada a habitação, correspondente ao 1.º andar “Esquerdo”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado “Edifício ...”, sito na Praça ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...323, freguesia da Sé, inscrito a favor de BB e AA, inscrito na matriz predial da Repartição de Finanças sob o artigo ...47, com o valor patrimonial atual de € 84.762,26 e Verba 6 – “Fração autónoma “P”, correspondente à garagem com o n.º 13 no sentido norte-sul, cave, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado “Edifício ...”, sito na Praça ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º ...323, freguesia da Sé, inscrito a favor de BB e AA, inscrito na matriz predial da Repartição de Finanças sob o artigo ...47, com o valor patrimonial atual de € 6.054,41 (Doc. 3).


4- Na conferência de interessados, realizada no dia 02.02.2009, encontravam-se registados sobre estes imóveis que foram adjudicados à Autora os seguintes ónus:


1. Ap. 31 de 2000/04/10 - Hipoteca a favor do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, S.A., pelo montante máximo assegurado de 30.985.101,00 Escudos para garantia de empréstimo;


2. Ap. 7 de 2002/04/10 – Hipoteca a favor do Banco Espírito Santo, S.A., pelo montante máximo assegurado de 88.835,91 Euros para garantia de abertura de crédito das responsabilidades assumidas pela sociedade “"CC, Lda."”;


3. Ap. 38 de 2007/03/08 – Penhora a favor de Banco Espírito Santo, S.A., para garantia da quantia exequenda no montante de 76.208,37 Euros;


4. Ap. 4 de 2008/07/11 - Penhora a favor de Tuttihome – Gestão de Condomínios, Lda., para garantia da quantia exequenda no montante de 3.236,93 Euros;


5. Ap. 38 de 2008/11/06 - Penhora a favor de Banco Espírito Santo, S.A., para garantia da quantia exequenda no montante de 100.859,98 Euros (Doc. 4).


5- Na relação de bens não foram identificadas as dívidas ao Banco Espírito Santo, S.A. e que se encontravam garantidas quer por hipoteca, quer por penhora, registadas sobre as fracções identificadas em 3. (Doc 3).


6- Quando se apercebeu desse facto, aquando da venda judicial, a Autora ainda tentou, antes da prolação da sentença homologatória de partilha, anular o acordo alcançado, por forma a que nele fosse tido em consideração os ónus e dívidas que incidiam sobre aquelas frações.


7- Tal requerimento foi indeferido.


8- No processo n.º 916/11.9..., do Juiz 2 do Juízo Central Cível de..., a Autora requereu a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros) ou, caso assim não se entendesse, a sua condenação no pagamento da quantia de € 212.816,47 (duzentos e doze mil oitocentos e dezasseis euros e quarenta e sete cêntimos) (Doc. 7).


9- No dia 1 de julho de 2015 foi proferida sentença, transitada em julgado em 22 de setembro de 2015, que absolveu o Réu da instância por ineptidão da petição inicial (Doc. 8).


10- A Autora instaurou ação judicial que correu termos sob o n.º 470/16.5..., no Juiz 1 do Juízo Central Cível de ..., na qual requereu a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros) ou, caso assim não se entendesse, a condenação daquele no pagamento da quantia de € 212.816,47 (duzentos e doze mil oitocentos e dezasseis euros e quarenta e sete cêntimos) (Doc. 9).


11- No dia 6 de março de 2017 foi proferida sentença, transitada em julgado em 18 de abril de 2017, que absolveu o Réu do pedido (Doc. 10).


12- A Autora instaurou ação declarativa que correu os seus termos sob o n.º 107/20.8..., do Juiz 2 do Juízo Central Cível de..., na qual requereu a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros) acrescida de juros de mora, por incumprimento do estabelecido na partilha e, subsidiariamente, a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 214.750,00 (duzentos e catorze mil setecentos e cinquenta euros), acrescido dos juros de mora, por incumprimento do estabelecido na partilha (Doc.11).


13- No dia 8 de abril de 2022 foi proferido despacho saneador-sentença, transitado em julgado, que absolveu o Réu da instância por julgar procedente a exceção dilatória do caso julgado relativamente aos pedidos dos autos deduzidos na ação n.º 470/16.5..., do Juiz 1 do Juízo Central Cível de ... (Doc. 11).


14- No dia 29.02.2000, por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgada no Cartório Notarial de ... a cargo da Notária DD, Autora e Réu adquiriram as duas frações autónomas identificadas em 3., tendo para o efeito contraído um empréstimo junto do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, S.A. pelo montante de 24.990.000$00 (vinte e quatro milhões novecentos e noventa mil escudos), o qual garantiram com hipoteca registada sobre as frações autónomas adquiridas (Doc. 12).


15- No âmbito daquele empréstimo, Autora e Réu confessaram-se solidariamente devedores ao Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, S.A. (Doc. 12).


16- Este empréstimo não foi relacionado, nem tido em consideração no processo de inventário pós divórcio (Doc. 3).


17- No dia 05.02.2002, por escritura pública de abertura de crédito com hipoteca outorgada o Primeiro Cartório Notarial de... a cargo da Notária DD, Autora e Réu, na qualidade de sócios gerentes da sociedade comercial por quotas com a denominação “"CC, Lda."”, com o número de pessoa coletiva ...53, e outorgando ainda por si próprios na qualidade de garantes, abriram a favor da mencionada sociedade um crédito junto do Banco Espírito Santo, S.A. até ao montante de € 64.843,73 (sessenta e quatro mil oitocentos e quarenta e três euros e setenta e três cêntimos).


18- Simultaneamente com a abertura de crédito, Autor e Réu, na qualidade de garantes, assumiram pessoalmente as obrigações pecuniárias decorrentes desse contrato para a mencionada sociedade, tendo dado de hipoteca as duas frações autónomas identificadas em 3. (Doc. 13).


19- Este aval não foi relacionado, nem tido em consideração no processo de inventário (Doc. 3).


20- As quotas da sociedade mutuária “"CC, Lda."” foram arroladas como verbas 13 e 14 da relação de bens apresentada no processo de inventário, tendo ambas sido adjudicadas ao Réu (Doc. 3).


21- No dia 04.08.2006, o Banco Espirito Santo, S.A. deu entrada em juízo de um requerimento executivo, que correu os seus termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ... sob o n.º 2055/06.5..., no qual exigia a cobrança coerciva dos montantes em dívida pela sociedade “"CC, Lda."”, com o número de pessoa coletiva ...53, no montante total de € 76.208,37 (setenta e seis mil duzentos e oito euros e trinta e sete cêntimos (Doc. 14).


22- A execução foi instaurada contra a sociedade mutuária e contra a Autora e o Réu, enquanto avalistas subscritores da livrança entregue para garantia do crédito concedido (Doc. 14).


23- No dia 02.04.2007, o Banco Espírito Santo, S.A. apresentou requerimento de reclamação de créditos no âmbito do referido processo de execução, no qual reclamou o pagamento do montante de € 103.608,29 (cento e três mil seiscentos e oito euros e vinte e nove cêntimos) com referência ao contrato de mútuo com hipoteca celebrado aquando da aquisição das frações autónomas (Doc. 15).


24- No âmbito do processo de execução movido pelo Banco Espírito Santo, S.A. contra a sociedade "CC, Lda." e contra a Autora e o Réu, as frações autónomas identificadas em 3. foram vendidas por propostas em carta fechada.


25- No dia 07.05.2009 foi emitido pelo Agente de Execução nomeado naquele processo executivo, título de transmissão com referência à fração autónoma designada pela letra “P”, correspondente a garagem com o n.º 13, do prédio urbano sito na Praça ..., Edifício ..., n.º 83, em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...323 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...47.º a favor da sociedade com a denominação "EE, Lda.", que adquiriu a fração pelo montante de € 11.750,00 (onze mil setecentos e cinquenta euros (Doc. 16).


26- No dia 23.06.2009, foi emitido pelo Agente de Execução nomeado naquele processo executivo, título de transmissão com referência à fração autónoma designada pela letra “CZ”, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio urbano sito na Praça ..., Edifício ..., n.º 83, em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º ...323 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...47.º a favor do Banco Exequente, que adquiriu a fração pelo montante de € 203.000,00 (duzentos e três mil euros ) (Doc. 17).


27- O acordo de partilha celebrado na conferência de interessados realizada no dia 02.02.2009 foi homologado no dia 07.10.2009 e transitado em julgado em 22.10.2009 (Doc.3).


28- O montante da dívida liquidada ao Banco exequente com a venda judicial dos bens adjudicados à Autora a que se alude em 3. ascendeu a € 214.750,00. (aditado).


7. Do mérito do recurso


7.1. Da (des) necessidade de o Tribunal “a quo” dar a conhecer previamente à Autora os factos que iria considerar provados em consequência da revelia (absoluta) do Réu.


Entende a apelante que o Tribunal “a quo” lhe deveria ter dado a conhecer previamente os factos que iria considerar provados em consequência da revelia absoluta do Réu e que a omissão de tal despacho configura uma nulidade processual.


Desde já se diga não haver dúvidas que estamos em presença de uma situação de revelia (absoluta) operante: o Réu foi pessoalmente citado e não contestou, nem juntou procuração a mandatário judicial no prazo da contestação - cfr. art.º 567º, nº1 do CPC - sendo que não ocorre nenhuma das situações específicas enunciadas nas diversas alíneas do art.º 568 do mesmo código.


Por conseguinte, tal revelia operante importa a confissão dos factos articulados pelo autor como determinado por aquele primeiro preceito: “consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”.


Como se vê da letra da lei, não se prevê a prolação de qualquer despacho interlocutório pelo juiz a considerar confessados os factos articulados pelo autor, o que bem revela não ser indispensável que o juiz o profira e, por consequência, que tenha sido omitido um acto ou uma formalidade que a lei prescreva.


E, por consequência, não prevê igualmente que seja dado a conhecer previamente à parte não revel o elenco de factos que nos termos daquele normativo são de considerar “Provados”.


Aliás, a este propósito pronunciou-se Alberto dos Reis 1nos seguintes termos: “Pode pôr-se esta dúvida: será indispensável que o juiz perante a ocorrência descrita no art.º 488º, lavre despacho em que julgue confessados os factos ou bastará que mande observar os trâmites processuais fixados no artigo, isto é, mande facultar aos advogados o exame do processo para alegarem por escrito?


Parece-nos aceitável qualquer das soluções mas julgamos preferível a primeira.


Se o juiz se limita a mandar seguir os termos previstos no art.º 488º significa manifestamente que tem por verificados os pressupostos de que depende a aplicação da cominação e se reserva para, na sentença final, julgar confessados os factos articulados pelo autor.”.


A utilidade da prolação do despacho interlocutório que explicitamente impõe a cominação seria, segundo o mesmo autor, a possibilidade de o réu contra ele reagir de imediato por meio de agravo caso achasse que não era caso de a aplicar.


Ora, no regime recursório actual inexiste sequer essa possibilidade já que tal despacho não comporta recurso autónomo e só seria passível de ser impugnado no recurso que viesse a ser interposto da sentença (cfr. art.º644º do CPC).


Por conseguinte, no NCPC para além de continuar a não haver obrigatoriedade de o proferir, nem sequer há utilidade em fazê-lo.


Além disso, se, no seu entender, o juiz omitiu factos na sentença que deveriam ser considerados “Provados” poderá a mesma ser objecto de recurso com tal fundamento, nenhum prejuízo havendo para a parte não revel da omissão desse conhecimento antecipado.


Termos em que improcede a suscitada nulidade pois, como dissemos, não se pode considerar que tenha sido omitido um acto ou uma formalidade que a lei prescreva (art.º 195º, nº1 do CPC).


7.2. Omissão de factos relevantes para a decisão da causa


Entende a apelante que, mercê da revelia absoluta do Réu, deveriam ter sido dados como provados outros factos alegados na petição inicial, a saber: 20º, 37º e 38º.


No referido art.º 20º da petição, a Autora refere o seguinte: “Nomeadamente atendendo ao facto de existirem dívidas comuns solidárias, as quais não foram tidas em consideração no processo de inventário, nem posteriormente, e que foram liquidadas após o acordo de partilha em exclusivo pela ora Autora, a qual, por essa razão, tem um direito de regresso sobre o Réu que aqui se peticiona. Vejamos:”.


No art.º 37º alega que: “Fazendo com que tenha sido a Autora, em exclusivo, com o seu património próprio, a liquidar os créditos conjugais comuns solidários melhor identificados nos artigos 21.º a 26.º supra e adquirindo, dessa forma, um crédito sobre o Réu”.


E, por último, no art.º 38º referiu que: “No total, a Autora pagou, com o seu património próprio e pessoal, o montante de € 214.750,00 (duzentos e catorze mil setecentos e cinquenta euros) e que seria devido ao Banco Mutuante solidariamente por Autora e Réu, tendo, assim, direito a receber do Réu, pelo menos, metade daquele montante no valor de € 107.375,00 (cento e sete mil trezentos e setenta e cinco euros).”.


Como se disse, perante uma situação de revelia absoluta operante a lei determina que se considerem confessados os factos articulados pelo autor ( cfr. 567º, nº1 do CPC).


Evidentemente que não são todos e quaisquer factos que devem ser contemplados na sentença como “Provados” ao abrigo de tal normativo.


Dos factos alegados e susceptíveis de serem considerados provados face à ausência de contestação, devem ser elencados, sim, os que constituem factos essenciais, destacando-os dos que assumem apenas natureza instrumental ou circunstancial ou mesmo dos que pouco ou nenhum relevo têm para a apreciação da (im) procedência da acção , ou seja, para conhecer as questões cujo conhecimento o objecto da causa – delimitado pelo pedido e conformado com determinada causa de pedir – convoca.


Posto isto, como está bem de ver, o único facto, dos apontados, que a assume relevância para tal desiderato prende-se com o montante da dívida liquidada ao Banco mutuante - € 214.750,00- por via da venda das fracções.


Conquanto o valor de venda de ambas as fracções no processo executivo esteja já consignado nos pontos 25. e 26. nada impede, tudo aconselha, que se autonomize um facto com o seguinte teor: “O montante da dívida liquidada ao Banco exequente com a venda judicial dos bens adjudicados à Autora a que se alude em 3. ascendeu a € 214.750,00”.


5.2. Reapreciação jurídica da causa: se o pedido condenatório da Autora deve ser julgado procedente.


No caso que temos em mãos, foram adjudicados à Autora/apelante na conferência de interessados levada a efeito no processo de inventário e, subsequentemente, na sentença homologatória da partilha, decorrente do seu divórcio com o Réu, duas fracções autónomas que vieram a ser vendidas num processo de execução no qual era reclamada uma dívida da mesma e do seu marido e que não havia sido relacionada no inventário ( cfr. ponto 5).


O Tribunal “a quo” negou-lhe a pretensão de haver do seu ex-marido metade da dívida liquidada com a venda de tais fracções, com o argumento de que as mesmas haviam sido vendidas num processo executivo antes da sentença homologatória da partilha no inventário e por isso não se podia considerar que tivessem chegado a integrar o seu património pessoal.


Relativamente a terceiros até podemos admitir alguma valia a tal argumento.


Porém, estando no domínio da liquidação das relações patrimoniais entre a Autora e o Réu, seu ex-marido, e tendo em consideração que mesmo antes da sentença homologatória da partilha foi dado conhecimento ao Tribunal de que as mesmas haviam sido penhoradas num processo executivo e aí vendidas (ponto 6 e 24) e, mesmo assim, se homologou a partilha contemplando tais fracções no acervo de bens adjudicado à Autora ( ponto 3) , não se pode, a nosso ver, justificar a improcedência da pretensão da Autora com tal fundamento, sob pena de se cometer uma iniquidade e de se violar ostensivamente o disposto no art.1730º, nº1 do Cód. Civil que consagra o princípio da igualdade entre os cônjuges, aqui na dimensão dos direitos patrimoniais, mesmo após a dissolução do casamento e na partilha.2


Vejamos melhor porquê.


O divórcio dissolve o casamento, fazendo cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges.


Os efeitos patrimoniais do divórcio retrotraem-se ao momento da propositura da ação, nos termos do artigo 1789º nºs 1 e 2, do Código Civil. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela3, com esta disposição pretende-se evitar “que um dos cônjuges seja prejudicado pelos atos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha a praticar, desde a proposição da ação, sobre valores do património comum” e por isso deve ser partilhado o património do casal, integrado pelos bens e direitos existentes à data da propositura da acção.


Por seu turno, o inventário subsequente a divórcio destina-se à partilha dos bens comuns do ex-casal tendo como escopo a liquidação integral das relações patrimoniais entre os (ex-)cônjuges (incluindo passivo).


Adrede dispõe o n.º 1 do art.º 1689.º do Cód. Civil: «Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.».


Referem os citados autores4 a este propósito, para o caso de divórcio, que primeiro devem ser entregues a cada um dos cônjuges os seus bens próprios. Depois, cada um deles haverá de conferir ao património comum o que lhe dever, em virtude dos pagamentos, que por esse património tenham sido efetuados, de dívidas de exclusiva responsabilidade do cônjuge devedor. Feita a conferência dos bens devidos à massa comum, é o momento de proceder à divisão desta, entregando a cada um dos seus titulares a respetiva meação.


“Em sentido amplo, a partilha agrega três operações: a) a separação e bens próprios, como operação ideal preliminar; b) a liquidação de património comum destinado a apurar o valor do activo comum líquido, através do cálculo de compensações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges e c) a partilha propriamente dita5”.


Em traços gerais, quando a partilha se faz através do processo de inventário, como aqui sucedeu, relacionados os bens comuns (os bens e direitos qualificados como comuns pelas regras do regime de bens vigente durante o casamento, com as excepções previstas nos art.º 1719.º e 1790.º do Cód. Civil) e decididas as questões susceptíveis de influir na partilha, é realizada conferência de interessados (art.º 1111º do CPC) na qual podem os interessados acordar, por unanimidade, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos seguintes: (i) Designação das verbas que vão compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um dos interessados e os valores por que são adjudicados; (ii) Indicação das verbas ou lotes e respetivos valores, para que, no todo ou em parte, sejam objeto de sorteio entre os interessados (iii) acordo na venda total ou parcial dos bens objeto da partilha e na distribuição do produto da alienação pelos interessados [n.º 2, al.ªs a) ,b) e c)].


Segue-se a elaboração do “Mapa da partilha” do qual constam os direitos de cada interessado e o preenchimento dos seus quinhões, de acordo com o despacho determinativo da partilha e os elementos resultantes da conferência de interessados.


E, por último é prolatada a “sentença homologatória da partilha constante do mapa”- cfr. art.º 1122º, nº1 do CPC – que constitui uma chancela do que se deliberou e não um acto final de julgamento da partilha6.


Cumpre realçar que a composição negociada dos quinhões, no caso das meações, é a pedra angular do preenchimento desejado pelo legislador.7 E uma igualação dos ex-cônjuges na partilha é um imperativo expresso no nº1 do art. 1730º do Cód. Civil.


Assim, se na conferência de interessados houve acordo dos ex-cônjuges no sentido de atribuir aquelas duas fracções à interessada e se esses mesmos bens após esse momento acabam por responder por uma dívida comum não relacionada, não se pode deixar de considerar que, perante o R., vinculado a tal acordo, tal dívida foi liquidada com bens que foram adjudicados à A. para preenchimento da sua meação ainda que não tivesse sido ainda proferida sentença homologatória da partilha.


Mas ainda que assim não se entendesse, a verdade é que a sentença que homologou a partilha contemplava estas duas fracções como integrantes da meação da Autora. Não se pode agora afirmar, sob pena de ofensa do caso julgado pela mesma sentença formado, que as fracções afinal não passaram a integrar a esfera jurídica da mesma Autora…


Por isso, não se pode deixar de concluir que as dívidas exequendas que eram da responsabilidade de ambos os cônjuges ao terem sido liquidadas com o produto da venda das fracções adjudicadas à Autora no processo de inventário o foram com as forças da sua meação.


De acordo com o disposto no art.º 1697º, nº 1 do Cód. Civil : “Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer(…)”.


A noção de créditos entre os cônjuges não abrange apenas as “ compensações” (entendidas estas como as que ocorrem apenas nos regimes de comunhão e que se podem qualificar como créditos que se estabelecem , no decurso do casamento e na vigência do regime de bens, entre a massa comum e um ou outro dos patrimónios próprios) : abrange todo o relacionamento entre patrimónios próprios dos cônjuges qualquer que seja a sua origem.8.


Assim, estando provado que a dívida liquidada com a venda dos bens adjudicados à Autora na conferência de interessados e contemplados no mapa da partilha ascendia a € 214.750,00, dívida essa que responsabilizava igualmente o Réu, tem a mesma a haver deste metade desse valor, ou seja, a parte que a este cabia satisfazer - € 107.375,00 - nessa dívida comum.


Sobre este montante acrescem, como peticionado, juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação9 do Réu e até efectivo e integral pagamento (artigos 804º a 806º n.º 1 e 559º n.º 1, todos do Cód. Civil).


III. DECISÃO


Por todo o exposto se acorda em julgar procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida, condena-se o Réu a pagar à Autora a quantia de € €107.375,00 acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.


Custas pelo apelado.


Évora, 13 de Março de 2025


Maria João Sousa e Faro (relatora)


Ricardo Miranda Peixoto


Maria Adelaide Domingos

_______________________________

1. IN CPC anotado, vol.III, pag.10.↩︎

2. Assim, Código Civil Anotado, Vol.IV, Coord. Clara Sottomayor, Almedina, 2ª ed., pag. 449.↩︎

3. , Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed, pág. 561↩︎

4. Idem, ob.cit. pag.322.↩︎

5. Assim, Código Civil Anotado, Vol.IV, Coord. Clara Sottomayor, Almedina, 2ª ed., pag. 303.↩︎

6. Assim, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, II, pag.520.↩︎

7. Assim, R. Capelo de Sousa in Licões de Direito das Suscessões, vol.II., pag.234.↩︎

8. Assim, Cód. Civil citado ( cord.Clara Sottomayor), pag.326.↩︎

9. Uma vez que no art.º 55º da p.i. não consta a data em que a interpelação do Réu para pagamento ocorreu e só a partir de então se pode considerar ter ficado constituído em mora- art.805º, nº1 do Cód. Civil.↩︎