ORDEM DA PRODUÇÃO DE PROVAS
DEPOIMENTO DE PARTE
CONFISSÃO
DECLARAÇÕES DE PARTE
LIVRE APRECIAÇÃO PELO JUIZ
OBTENÇÃO DE DOCUMENTOS POR INTERMÉDIO DO TRIBUNAL
Sumário

1. - Destinando-se a prova por depoimento de parte à obtenção de confissão, a qual se traduz no reconhecimento da realidade de um facto que desfavorece a parte confitente e beneficia a contraparte, só podem ser objeto de tal prova factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.
2. - O depoente de parte, prestando juramento, fica sujeito ao dever de verdade, depondo com precisão e clareza, perante o tribunal, com redução a escrito do conteúdo confessório, incumbindo a respetiva redação ao juiz, razão pela qual não deverá haver margem para dúvidas quanto ao sentido e âmbito/alcance da confissão, a qual, devendo ser inequívoca, assume força probatória plena contra o confitente.
3. - Por isso, na ordem de produção das provas em audiência final, deve começar-se pela prestação dos depoimentos de parte, só depois, por regra, se passando à produção de outras provas.
4. - Obtida tal confissão, ficando o facto provado em plenitude, não há lugar a outras provas a respeito, assim se compreendendo, desde logo, a proibição de prova testemunhal.
5. - Já a prova por declarações de parte, em que é a própria parte a requerer que seja admitida a prestar declarações, comummente sobre factos que ela mesma alegou, que a favorecem e, bem assim, para os afirmar/confirmar, deve, à míngua se semelhante força probatória, ser apreciada livremente pelo tribunal – salvo a situação incomum de constituir confissão –, carecendo, normalmente, de outros meios de prova corroborantes idóneos.
6. - Assim, a prova por depoimento de parte, enquanto prova prioritária, não pode ser subalternizada à prova por declarações de parte, não sendo aceitável a ideia de “consunção” de provas, de molde a ficar prejudicado o conhecimento do requerimento de prestação de depoimento de parte.
7. - Requerendo a parte a obtenção pelo tribunal de documentos – referentes a pedidos de inscrição matricial e de retificação de área de prédio –, mediante requisição a um serviço de finanças, não lhe basta invocar que os documentos lhe seriam recusados se os pedisse, antes devendo mostrar uma concreta/efetiva recusa para os específicos fins judiciais pretendidos.
8. - Se o tribunal, indeferindo o requerido, deixou, todavia, em aberto a possibilidade de ulterior apreciação em caso de invocação de dificuldades sérias e concretas na obtenção desses documentos, cabia à parte interessada, em vez de recurso imediato, procurar obter, a expensas suas, os documentos, posto que, em caso de recusa, certamente o tribunal não deixaria de os requisitar.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

*


Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

A..., LDA.”, com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa condenatória, com forma de processo comum, contra

AA e mulher, BB, também com os sinais dos autos,

alegando factos e alinhando razões para pedir a condenação dos RR. a:

“a) Reconhecer que o prédio identifica[do] no artigo 1.º da petição inicial, com a configuração constante do levantamento topográfico é propriedade da Autora;

b) Demolirem pilaretes e rede, a nascente, numa área de dois metros de largura por vinte metros de cumprimento, a porta que deita diretamente para o prédio da Autora e ainda os dois contadores de água e luz;

c) A absterem-se, no futuro, da prática de qualquer ato que impeça ou diminua o gozo, por parte da Autora do seu prédio, identificado no artigo 1º da petição inicial;

d) Pagarem à Autora uma indemnização não inferior a € 15 000,00 (…), pela privação do uso e prejuízos causados à Autora;

e) Pagarem à Autora uma sanção pecuniária compulsória, não inferior a € 100,00 por cada dia de atraso, na entrega da parcele de terreno e demolição das obras, após transito em julgado da douta sentença”.

Logo apresentou a A. requerimento de provas, nomeadamente documental, testemunhal, por depoimento de parte (do R.) e declarações de parte (do legal representante da A.).

Contestaram os RR., pugnando pela total improcedência da ação, bem como pela procedência da reconvenção – que deduziram –, concluindo assim:

«Nestes termos e nos melhores de direito deve:

a) Ser a ação julgada improcedente, por não provada, absolvendo-se os réus dos pedidos;

b) Ser a reconvenção julgada procedente e, em consequência, ser reconhecido e declarado que os réus são proprietários da faixa de terreno descrita e ilustrada nos art.ºs 25º, 26º 70º, e 77º da c.r. e documento n.º 9 junto com esta, que adquiriram por compra e venda, e ser a autora condenada a reconhecer que os réus são proprietários da faixa de terreno descrita e ilustrada nos art.ºs 25º, 26º 70º, e 77º da c.r. e documento n.º 9 junto com esta, bem como a abster-se da prática de atos que ofendam o direito de propriedade dos réus sobre essa faixa de terreno.».

Para o que também logo ofereceram requerimento probatório, destacando-se o seguinte:

«A)- DEPOIMENTO DE PARTE

Requer o depoimento de parte dos legais representantes da autora à matéria alegada nos art.ºs 9º a 13º, 23º, 24º, 25º, 30º, 31º, 33º, 59º a 62º, e 67º a 69º, desta contestação-reconvenção.

(…)

D)- INFORMAÇÕES E DOCUMENTOS A JUNTAR POR TERCEIROS

1º)- Para prova dos factos alegados em 6º a 8º, 19º e 23º desta c.r. requer a notificação do Serviço de Finanças ..., com morada na Rua ..., ... ..., para juntar aos autos:

a)- cópia a cores do pedido de inscrição na matriz do prédio rústico que deu origem ao artigo matricial rústico n.º ...45, da freguesia ..., que CC deu entrada nesses serviços em março de 2007, incluindo do mapa/levantamento topográfico a cores que instruiu esse pedido, uma vez que tal entidade, invocando o sigilo fiscal, não fornece tal documentação diretamente aos contestantes-reconvintes;

b)-cópia do pedido de retificação de área do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica n.º ...45, da freguesia ..., apresentado em 2013, no processo 628/2013, uma vez que tal entidade, invocando o sigilo fiscal, não fornece tal documentação diretamente aos contestantes-reconvintes;

c)-cópia do pedido de retificação de área do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica n.º ...45, da freguesia ..., apresentado em 2023, no processo PA...23-GG-Processo ...59 e documentos que a instruíram, uma vez que tal entidade, invocando o sigilo fiscal, não fornece tal documentação diretamente aos contestantes-reconvintes;

2º)- Para prova do alegado nos artigos 9º a 12º, 14º e 15, 54º a 64º, e 68º, desta c.r., requer a notificação da Direção Geral do Território, com sede na Rua Artilharia 1, 107, 1099-052 Lisboa, para juntar aos autos fotografias aéreas respeitantes ao local dos imóveis em causa que existam desde o período desde 1970 até 2020, uma vez que é essa entidade que detém tais imagens aéreas que não são fornecidas diretamente aos réus;

3º)- Para prova do alegado em 34º e 35º desta c.r., requer a notificação da EDP Comercial, com morada na Avenida 24 Julho, 12, 1249-300 Lisboa, para informar os autos a data concreta de requisição e de instalação de contador de fornecimento de eletricidade em nome do réu marido e correspondente à morada de fornecimento registada “Rua ..., ...” e ao CPE (“código ponto entrega”) ...46..., indicando se esse contador foi instalado no exterior de um muro existente no local, dado que os réus solicitaram essa informação na loja de Leiria e não lhes foi fornecida;».

Em audiência prévia, foi admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador, com enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova, e foi decidido quanto à admissão dos requerimentos probatórios.

Neste último âmbito, e quanto ao que importa ao recurso, foi determinado assim:

«Por legal e tempestivo, admite-se, ainda, o requerimento da autora relativo à prestação de declarações de parte (artigos 466.º n.ºs 1 e 2 e 454.º n.º 1 do Código de Processo Civil) as quais incidirão sobre os factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo.

Ante a latitude das declarações de parte, fica prejudicado o conhecimento do depoimento de parte requerido pelos réus.

(…)

No mais, no que respeita ao item D) do requerimento probatório dos réus, considerando que com excepção para o pedido formulado em 3.º), é invocada apenas a existência de dificuldade abstracta quanto à obtenção dos elementos aí solicitados, não sendo reputada a existência de dificuldade séria em concreto nem, tão-pouco, que os réus hajam já envidado esforços no sentido da sua obtenção (artigos 7.º n.º 4 e 436.º do Código de Processo Civil), indefere-se o requerido, sem prejuízo para a sua ulterior apreciação em caso de invocação de dificuldades sérias e concretas na obtenção dos elementos visados.

Diversamente, oficie-se a entidade indicada nos termos e com os fins visados no item 3.º) de tal requerimento probatório, com menção expressa à cominação processual prevista no artigo 437.º para a falta de colaboração com o tribunal.» (destaques aditados).

Inconformados, os RR./Reconvintes recorrem do assim decidido, «na parte em que entendeu ficar “prejudicado o conhecimento do depoimento de parte requeridos pelos réus”, não ordenando o depoimento de parte da autora requerido pelos réus e, bem assim, na parte em que indeferiu o requerido pelos réus no ponto 1º) do item D) do requerimento probatório destes», apresentando alegação, onde formulam as seguintes

Conclusões ([1]):

«1ª)- Vem o presente recurso interposto do despacho de 2/10/2024, referência citius 108479523, na parte em que entendeu ficar “prejudicado o conhecimento do depoimento de parte requeridos pelos réus”, não ordenando o depoimento de parte da autora requerido pelos réus e, bem assim, na parte em que indeferiu o requerido pelos réus no ponto 1º) do item D) do requerimento probatório destes.

2ª)- Para um declaratário normal, colocado na posição dos réus, rectius, na posição das partes dos presentes autos (art. 236.º, n.º 1, do Cód. Civil), o sentido do despacho recorrido é, efetivamente, o de indeferir o depoimento de parte requerido por aqueles na contestação-reconvenção que apresentaram, ficando definitivamente vedado aos réus reagir contra o segmento decisório que diz “ficar prejudicado o conhecimento do depoimento de parte” caso não apresente o presente recurso.

3º)- Assim, o despacho de 2/10/2024, referência citius 108479523, na parte em ajuizou e decidiu “Ante a latitude das declarações de parte, fica prejudicado o conhecimento do depoimento de parte requerido pelos réus” e, portanto, não admitiu o depoimento de parte da autora requerido em sede de contestação-reconvenção é sem dúvida um despacho recorrível.

4º)- O direito (fundamental) à prova é uma dimensão do direito fundamental a um processo equitativo, consagrado no art. 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, imediatamente aplicável ex vi do art. 18.º, n.º 1, deste diploma, bem como no art. 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a qual integra o ordenamento jurídico português por força do art. 8.º, n.º 2, da nossa Constituição, possuindo entre nós valor infraconstitucional mas supralegislativo.

5º)- O depoimento de parte é um meio de prova que visa provocar a confissão do depoente, reconhecendo o mesmo a realidade de um facto que lhe é desfavorável, sendo tratado autonomamente e separadamente no Código do Processo Civil do meio de prova declarações de parte, só pode ser requerido por uma das partes processuais em relação a outra(s) parte(s) processual (ais), seja(m) esta(s) parte(s) contrária(s) ou seu(s) comparte(s), não podendo nunca ser requerido pela própria parte em relação a si mesma.

6º)- Prevendo a lei os casos em que o Tribunal pode recusar o depoimento de parte, nomeadamente quando não recaia sobre factos pessoais ou de que o depoente não deva ter conhecimento, ou se respeitar a factos criminosos ou torpes de que a parte seja arguida (art.º 454º, n.º 1 a contrario, e n.º 2, do Código do Processo Civil), hipóteses normativas que não se subsumem na fundamentação constante do despacho recorrido ao dizer que “fica prejudicado o conhecimento do depoimento de parte requerido pelos réus” “ante a latitude das declarações de parte”.

7º)- Sendo certo que, as declarações de parte constituem um meio de prova que não tem por fim a confissão de factos desfavoráveis ao depoente, podendo recair sobre factos favoráveis ou desfavoráveis à parte, e são livremente apreciadas pelo tribunal quando não constituam confissão, não se confundindo de modo algum com o meio de prova depoimento de parte.

8º)- In casu a autora requereu as suas declarações de parte na petição inicial sobre a “matéria dos artigos 1 a 9 da petição inicial”, e os réus requereram o depoimento de parte da autora “à matéria alegada nos art.ºs 9º a 13º, 23º, 24º, 25º, 30º, 31º, 33º, 59º a 62º, e 67º a 69º” da contestação-reconvenção, decorrendo da mera leitura do que se alega nesses artigos na petição inicial e da contestação-reconvenção que o âmbito da matéria objeto dos dois meios de prova requeridos – as declarações de parte da autora requeridas por esta e o depoimento de parte da autora requerido pelos réus – não é o mesmo, mas manifestamente diferente, não tendo “latitudes” (seja o que isso for ressalvado o devido respeito) que sustentem a decisão que “fica prejudicado o conhecimento do depoimento de parte requerido pelos réus”, o que corresponde ao seu indeferimento.

9º)- Pelo que, ao decidir “Ante a latitude das declarações de parte, fica prejudicado o conhecimento do depoimento de parte requerido pelos réus” o Tribunal a quo violou de forma ostensiva e inaceitável as regras que estatuem e regulam os meios de prova, em concreto o “Depoimento de Parte”, coarctando aos recorrentes, sem fundamento legal, o direito de produzir a prova que reputam relevante para defesa dos seus direitos, devendo esse segmento decisório ser revogado e substituído por outro que defira o pedido de prestação de depoimento de parte da autora, maxime dos seus representantes legais, à “à matéria alegada nos art.ºs 9º a 13º, 23º, 24º, 25º, 30º, 31º, 33º, 59º a 62º, e 67º a 69º” da contestação-reconvenção.

10º)- Por outro lado, o Tribunal a quo indeferiu o pedido de notificação do Serviço de Finanças ..., com morada na Rua ..., ... ..., para juntar aos autos os documentos identificados nas alíneas a) a c) do pedido formulado sob o número 1 do item D) dos meios de prova requeridos dizendo que “é invocada apenas a existência de dificuldade abstracta quanto à obtenção dos elementos aí solicitados, não sendo reputada a existência de dificuldade séria em concreto nem, tão-pouco, que os réus hajam já envidado esforços no sentido da sua obtenção (artigos 7.º n.º 4 e 436.º do Código de Processo Civil)”

11º)- Consta expressamente das alíneas a) a c) do pedido formulado sob o número 1 do item D) dos meios de prova requeridos na contestação-reconvenção que o Serviço de Finanças ... “invocando o sigilo fiscal, não fornece tal documentação diretamente aos contestantes-reconvintes”, tendo desse modo os recorrentes alegado expressamente que tal entidade “invocando o sigilo fiscal, não fornece tal documentação diretamente aos contestantes-reconvintes” e, portanto, tal não pode significar outra coisa que não seja que os recorrentes, antes da invocação desse sigilo por tal entidade lhe solicitaram tal documentação pois se assim não fosse não teriam alegado esse facto para fundamentar o requerimento apresentado, sendo assim manifesta a alegação da impossibilidade de obter os documentos referidos, necessários quer para o cumprimento do ónus da prova que sobre eles recai, quer para o não menos importante esclarecimento da verdade.

12º)- Mas mesmo que assim não fosse, o que não é o caso e apenas por cautela se aduz, resulta da lei, nomeadamente do art.º 64º da Lei Geral Tributária um dever de confidencialidade, também denominado, dever de sigilo fiscal relativamente aos dados e elementos da situação tributária e documentos na posse da administração tributária que não respeitem ao próprio contribuinte, sendo ex vi da lei que a administração tributária não pode fornecer diretamente aos recorrentes os documentos identificados sob pena de violação do dever de confidencialidade ou sigilo fiscal, resultando assim da própria lei a impossibilidade ou o obstáculo de os recorrentes obterem diretamente, sem intervenção do Tribunal, os documentos que pediu ao Tribunal ordenasse ao Serviço de Finanças ... que juntasse aos autos, preenchendo o dever de confidencialidade fiscal os requisitos dos normativos invocados no despacho recorrido para indeferir a junção da documentação mencionadas nas alíneas a) a c) do pedido formulado sob o número 1 do item D) dos meios de prova requeridos na contestação-reconvenção.

13º)- Assim, sob pena de violação do disposto nos art.º 7º, n.º 4, e 436º do Código do Processo Civil, e art.º 64º da Lei Geral Tributária, e para prova dos factos alegados em 6º a 8º, 19º e 23º da contestação-reconvenção, tem que ser deferido o pedido de notificação do Serviço de Finanças ... para juntar aos autos a documentação mencionadas nas alíneas a) a c) do pedido formulado sob o número 1 do item D) dos meios de prova requeridos na contestação-reconvenção.

14º)- Devendo, em consequência, ser revogado o despacho recorrido na parte em que indeferiu o requerimento de junção de documentos vertidos no pedido formulado em 1º) do item D) dos meios de prova requeridos na contestação-reconvenção e substituído por outro que ordene a notificação do Serviço de Finanças ..., com morada na Rua ..., ... ..., para juntar aos autos:

a)- cópia a cores do pedido de inscrição na matriz do prédio rústico que deu origem ao artigo matricial rústico n.º ...45, da freguesia ..., que CC deu entrada nesses serviços em março de 2007, incluindo do mapa/levantamento topográfico a cores que instruiu esse pedido;

b)-cópia do pedido de retificação de área do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica n.º ...45, da freguesia ..., apresentado em 2013, no processo 628/2013;

c)-cópia do pedido de retificação de área do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica n.º ...45, da freguesia ..., apresentado em 2023, no processo PA...23-GG-Processo ...59 e documentos que a instruíram.

Em face do exposto deve o presente recurso ser julgado procedente nos termos que se propugnam supra com o que se fará a necessária e costumada JUSTIÇA!».

Não foi junta contra-alegação de recurso.


***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo, tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([2]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, cabe saber, apenas, se, no âmbito da intentada ação/reconvenção judicial, incorreu a 1.ª instância em erro decisório, em matéria de provas, ao:

a) Não admitir o depoimento de parte requerido pelos RR./Reconvintes;

b) Rejeitar o pedido de notificação para junção de documentos em poder de terceiro [no caso, o Serviço de Finanças ..., quanto aos documentos aludidos em a) a c) do ponto 1 do item D) do requerimento de provas dos mesmos RR.].


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III – Fundamentação

A) Da materialidade apurada

         O factualismo a considerar para decisão do recurso é o supra aludido, em sede de relatório, cujo teor aqui se dá por reproduzido, a que acresce a seguinte materialidade (atento o teor dos elementos processuais constantes dos autos):

         1. - Os artigos da contestação-reconvenção a que foi requerido o depoimento de parte da A. (através dos seus legais representantes) têm o seguinte teor:

         «(…)

E identificando nessa planta/levantamento um caminho que aí existia há mais de 20, 30, 40, e 50 anos, que ligava a Rua ... à Estrada ..., caminho esse com um comprimento de aproximadamente 400 a 500 metros, com uma largura não inferior a 2,75 metros a 3,00 metros no seu início junto à Estrada ... e ao longo de grande parte da sua extensão, e com uma largura de aproximadamente 5 metros numa extensão de aproximadamente 65 metros a contar do início da Rua ... no sentido desta para a Estrada ... (até ao vértice norte das construções dos réus que confinam com a extrema nascente do prédio da autora).

10º

Caminho esse pelo qual desde há mais de 20, 30, 40, e 50 anos sempre passaram a pé, com bicicletas, motas, carros de animais, tratores agrícolas, carros e outros veículos, as pessoas dos lugares do ..., ... e outros lugares, quer para acederem a caminhos que por ali existiam e se deslocarem para a ..., para se deslocarem para fábricas existentes na zona industrial do ..., arredores e na ... e ir trabalhar, quer para aceder à Estrada ..., depois da sua construção, quer para irem “apanhar” autocarros públicos para a ... e/ou ... cujas paragens se situavam apenas na Estrada ..., entre outros.

11º

E caminho esse em parte do qual, junto à Rua ... e ao longo da referida extensão de aproximadamente 65 metros, sempre se passou circulou e se acedeu à parte delimitada por muros do prédio dos réus a pé, de bicicleta, motos, tratores agrícolas, carros e veículos de outro tipo, pois durante mais de 40 anos no prédio dos réus existiu uma padaria, onde diariamente se deslocavam a pé, bicicleta, motorizadas, e carros os clientes para comprar o pão; onde semanalmente se deslocavam de camião os fornecedores de lenha dos réus para descarregar e entregar a lenha para os fornos de cozer o pão; onde semanalmente se deslocavam os fornecedores de farinhas, milhos, e demais produtos para produzir o pão; onde quase mensalmente se deslocavam os veículos de limpeza das fossas sépticas da padaria e da habitação existente no prédio dos réus, entre outros.

12º

E caminho esse onde até onde estacionavam os clientes da padaria quando aí iam comprar pão e produtos afins.

13º

O que a autora bem sabe, estando inclusive esse caminho representado no documento n.º 4 junto com a petição inicial e aí identificado e denominado como caminho público ao longo de toda a sua extensão, nomeadamente com a identificação desse caminho como caminho público pelo menos quatro vezes na sua reprodução.

(…)

23º

Sendo, que como se disse, em data que não consegue precisar de 2023, foi já a aqui autora que requereu a retificação da área do imóvel inscrito na matriz predial rústica n.º ...45, da freguesia ..., para a área de 17176m², no âmbito do processo PA...23-GG-processo n.º ...59.

24º

Tendo sido também a autora que requereu a atualização da área do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...94, da freguesia ..., ao abrigo do disposto no art.º 28º-B do Código do Registo Predial, para a área de 17176m² - cfr. citado documento n.º 1.

25º

Sendo certo que, a autora não é, nem nunca foi proprietária, nem é possuidora, nem nunca foi possuidora, a qualquer título, da faixa de terreno com uma área aproximada de 107,5m², respetivamente com um comprimento de cerca de 21,5 metros e com uma largura de cerca de 5 metros, sita no leito do caminho público que liga a Rua ... à Estrada ..., nomeadamente na parte que se situa na berma e no leito/chão do referido caminho existente a norte das construções dos réus implantadas a poente do seu prédio.

(…)

30º

E nem a autora, nem os ante possuidores do imóvel alguma vez praticaram algum ato de posse, seja qual fosse, sobre faixa de terreno referida em 25º a 27º desta c.r. (seja com a área, largura e comprimento indicados pelos réus ou pela autora), como se seus proprietários ou possuidores fossem, sem qualquer interrupção, à vista e com conhecimento de todos, e assim sendo reconhecidos por todos, sem oposição de quem quer que fosse.

31º

Sendo que foi quando o gerente da autora disse aos réus e a outras pessoas dos lugares do ... e ... que ia “cortar” o caminho que ligava a Estrada ... à Rua ... (identificado como caminho público no documento que a autora juntou e a que se alude em 9º a 13º desta c.r.) dizendo que esse caminho era seu, ou melhor a berma e o leito desse caminho era sua propriedade até ao portão de entrada na padaria existente no prédio dos réus, é que estes se aperceberam que a autora queria apropriar-se da faixa de terreno identificada em 25º e 26º desta c.r., e se viram obrigados a demarcar a sua propriedade com estacas por forma a evitar que a autora se apropriasse do que não lhe pertence e destruísse os sinais visíveis desse caminho, como fez no início do mesmo junto à Estrada ....

(…)

33º

Ainda que a autora tenha apresentado queixa-crime contra os réus, além do mais, pelos factos que vem invocar nesta sede e essa queixa-crime tenha sido arquivada.

(…)

59º

É assim nesse contexto que, desde há mais de 20, 30, 40, e 50 anos existia e existiu o caminho ligava a atual Rua ... à Estrada ..., caminho esse com um comprimento de aproximadamente 400 a 500 metros, com uma largura não inferior a 2,75 metros a 3,00 metros no seu início junto à Estrada ... e ao longo de grande parte da sua extensão, e com uma largura de aproximadamente 5 metros numa extensão de aproximadamente 65 metros a contar do início da Rua ... no sentido desta para a Estrada ... (até ao vértice norte das construções dos réus que confinam com a extrema nascente do prédio da autora).

60º

Caminho esse pelo qual desde há mais de 20, 30, 40, e 50 anos sempre passaram a pé, com bicicletas, motas, carros de animais, carros e outros veículos, as pessoas dos lugares do ..., ... e outros lugares, quer para acederem a caminhos que por ali existiam e se deslocarem para a ..., para se deslocarem para fábricas existentes na zona industrial do ... e arredores e na ... e ir trabalhar, quer para acederem à Estrada ..., depois da sua construção, para irem “apanhar” autocarros públicos para a ... e/ou ... cujas paragens se situavam apenas na Estrada ..., entre outros.

61º

E caminho esse em parte do qual, junto à Rua ... sempre qualquer pessoa passou circulou e se acedeu à parte delimitada por muros do prédio dos réus a pé, de bicicleta, motos, tratores agrícolas, carros e veículos de outro tipo, pois durante mais de 40 anos no prédio dos réus existiu uma padaria, onde diariamente se deslocavam a pé, bicicleta, motorizadas, e carros os clientes para comprar o pão; onde semanalmente se deslocavam de camião os fornecedores de lenha dos réus para descarregar e entregar a lenha para os fornos de cozer o pão; onde semanalmente se deslocavam os fornecedores de farinhas, milhos, e demais produtos para produzir o pão; onde quase mensalmente se deslocavam os veículos de limpeza das fossas sépticas da padaria e da habitação existente no prédio dos réus, entre outros.

62º

E até onde estacionavam os clientes da padaria quando aí iam comprar pão e produtos afins.

(…)

67º

O caminho referido em 59º a 62º desta c.r. sempre foi usado por todos para passagem a pé, de bicicleta, motorizadas, de carro e outros veículos por todas as pessoas que ali pretendiam passar fosse, o que fizeram à vista de todos, sem interrupção ou oposição de quem quer que fosse.

68º

Sendo, com exceção da parte pavimentada referida em 63º, um caminho em terra batida, com os rodados dos veículos visíveis e com as margens delineadas.

69º

O que foi feito até à altura em que a autora vedou o seu acesso junto da Estrada ... com colocação de muros e um portão.».

2. - Os artigos da contestação-reconvenção a que foi requerida a requisição de documentos em poder de terceiro/entidade pública têm o seguinte teor:

         «(…)

O certo é que é que, em março de 2007, CC requereu a inscrição matricial do prédio rústico que veio originar o artigo matricial rústico n.º ...45, da freguesia ..., junto do Serviço de Finanças ..., indicando esse prédio era omisso e tinha a área de 27220 m².

E juntando a esse pedido de inscrição uma planta/levantamento do prédio cuja inscrição matricial requereu com área, configuração e limites diversos daqueles que constam do documento n.º 4 junto com a p.i.

E em especial representando o limite da extrema nascente desse prédio com um alinhamento reto no sentido sul-norte desde o início até ao fim da confrontação nascente do prédio da autora, seguindo em linha reta as construções dos réus existentes junto em parte da confrontação nascente do prédio da autora para além do caminho que aí existia e ligava a Rua ... à Estrada ....

(…)

19º

Em data que não conseguem precisar de 2013, e no âmbito no processo 628/2013, a referida DD requereu no Serviço de Finanças ..., a retificação da área constante da matriz do prédio rústico com a inscrição matricial n.º ...45 da ..., para a área de 16368m², o que foi deferido por despacho de 30/9/2013.» ([3]);

         3. - É o seguinte o enunciado objeto do litígio:

         «(i) se assiste à autora o direito ao reconhecimento de que o prédio descrito no artigo 1.º da petição inicial é da sua titularidade e se os réus o ocupam sem título legítimo para o efeito;

(ii) se assiste à autora o direito a exigir a desocupação do prédio descrito no artigo 1.º da petição inicial e à reposição das obras levadas a cabo no muro nos termos descritos nos artigos 21.º e 22.º da petição inicial;

(iii) se assiste à autora o direito à indemnização pelos prejuízos em virtude da ocupação do prédio descrito no artigo 1.º da petição inicial; e

(iv) se assiste aos réus o direito ao reconhecimento de que a faixa de terreno descrita nos artigos 25.º e 26.º da contestação é da sua titularidade e é parte integrante do

prédio descrito em 18.º da petição inicial.».

4. - Tem o seguinte teor o elenco dos temas da prova:

«(i) da delimitação dos prédios descritos nos artigos 1.º e 18.º da petição inicial;

(ii) A utilização e os actos praticados respectivamente pelas partes relativamente aos prédios de que se arrogam titulares;

(iii) da ocupação e trabalhos efectuados na faixa de terreno indicada em 25.º e 26.º da contestação;

(iv) dos prejuízos causados à autora pela ocupação pelos réus da faixa de terreno indicada no ponto anterior; e

(v) da litigância de má-fé de autora e réus.».

B) Substância jurídica do recurso

1. - Da (in)admissibilidade da requerida prova por depoimento de parte da A./Reconvinda

Já se viu qual a natureza dos pedidos formulados, na ação e na reconvenção, tudo girando à volta do pretendido reconhecimento dominial, em termos de propriedade imobiliária, sendo a ação/reconvenção assimilável a uma comum ação de reivindicação [reconhecimento do direito de propriedade e restituição, com demolição de elementos edificados e/ou abstenção – cfr. o pedido reconvencional – da prática de atos que ofendam o peticionado direito de propriedade].

Quanto à prova por depoimento de parte da A./Reconvinda, requerida pelos RR./Reconvintes, o Tribunal recorrido entendeu que a mesma não seria de acolher, por prejudicada: admitindo – como admitiu – a prova por declarações de parte da A., por esta requerida, considerou que, em consequência (“perante a latitude das declarações de parte”), ficava prejudicado/comprometido “o conhecimento do depoimento de parte requerido pelos réus”.

Desenvolvendo este raciocínio, a 1.ª instância ainda expressou que «(…) as declarações de parte têm uma maior latitude do que o depoimento de parte (o qual apenas visa a confissão – cfr. 454.º do Código de Processo Civil e 352.º do Código Civil –), consumindo-o», razão pela qual entendeu também «convola[r] o depoimento de parte requerido pela autora a respeito do réu, o qual incidirá sobre os factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo.».

Ora, quem não se conforma com tal entendimento são os RR., não aceitando essa “consunção” de provas, antes vendo na perspetiva do tribunal uma violação do direito à prova que assiste às partes.

Apreciando, afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que assiste razão aos RR./Recorrentes.

Com efeito, mais do que uma questão de “latitude”/amplitude – a maior ou menor amplitude de objeto depende, logicamente, do que for requerido e/ou determinado pelo juiz (cfr. art.º 452.º, n.ºs 1 e 2, do NCPCiv., quanto ao depoimento de parte) e do que for impetrado pela parte que pretende prestar declarações de parte (art.º 466.º do mesmo Cód.), tendo em contra a matéria factual concretamente decidenda –, o que realmente releva, neste âmbito, é a natureza e, bem assim, os efeitos de cada uma destas modalidades de prova, mormente a especificidade (e especialidade) da prova por depoimento de parte.

Vejamos.

Tendo isso em conta, já se defendeu nesta Relação:

«1. - Destinando-se a prova por depoimento de parte à obtenção de confissão, a qual se traduz no reconhecimento da realidade de um facto que desfavorece a parte confitente e beneficia a contraparte, só podem ser objeto de tal prova factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.

2. - O depoente de parte, prestando juramento, fica sujeito ao dever de verdade, depondo com precisão e clareza, perante o tribunal, com redução a escrito do conteúdo confessório, incumbindo a respetiva redação ao juiz, razão pela qual não deverá haver margem para dúvidas quanto ao sentido e âmbito/alcance da confissão, a qual, devendo ser inequívoca, assume força probatória plena contra o confitente.

3. - Por isso, na ordem de produção das provas em audiência final, deve começar-se pela prestação dos depoimentos de parte, só depois, por regra, se passando à produção de outras provas.

4. - Obtida tal confissão, ficando o facto provado em plenitude, não há lugar a outras provas a respeito, assim se compreendendo a proibição de prova testemunhal.

(…).» (destaques aditados).

Citámos o sumário do Ac. TRC de 24/09/2024 ([4]), aresto onde se explicita – na respetiva fundamentação – que, «obtida essa prova qualificada – com força probatória cabal –, o facto fica, obviamente, provado em plenitude, não havendo lugar a outras provas a respeito, assim se compreendendo, desde logo, a proibição de prova testemunhal (como referido no art.º 393.º, n.º 2, do CCiv., não é admitida prova por testemunhas quando o facto estiver plenamente provado, seja por documento, seja por outro meio com força probatória plena).».

Bem diversa é a prova por declarações de parte, em que é a própria parte a requerer que seja admitida a prestar declarações, comummente sobre factos que ela mesma alegou, que a favorecem e, outrossim, para os afirmar/confirmar (como no caso, em que a A. requereu a sua admissão a prestar tais declarações quanto aos factos “dos artigos 1 a 9 da petição inicial”).

Bem se compreende, pois, que esta prova, longe de um “meio com força probatória plena” (como a confissão judicial, obtida em depoimento de parte), deva ser apreciada livremente pelo Tribunal – salvo a situação incomum de constituir confissão –, nos termos do disposto no art.º 466.º, n.º 3, do NCPCiv., e careça, normalmente, como vem entendendo a jurisprudência maioritária, de outros meios de prova corroborantes (idóneos/confirmadores).

Assim sendo, claro se torna que a prova por depoimento de parte, enquanto prova prioritária, não poderá ser subalternizada à prova por declarações de parte, não sendo, na verdade, aceitável, a dita ideia de “consunção” de provas, a que se reportava a decisão recorrida e com que os Apelantes se não conformaram.

Termos em que, sem necessidade de outras considerações, deve proceder a apelação nesta parte, com revogação da recorrida decisão de rejeição do depoimento de parte, admitindo-se, ao invés, a prova por depoimento de parte (da A.), tal como requerida pelos RR., destinada à obtenção de confissão (nos termos dos art.ºs 352.º e segs. do CCiv.).

2. - Da notificação para junção de documentos ao Serviço de Finanças ...

Como visto, o fundamento para a ocorrida rejeição do pedido de notificação/requisição de documentos em poder de terceiro/entidade pública (o Serviço de Finanças ...) – tratando-se, invariavelmente, de “cópia”, seja de pedido de inscrição matricial, incluindo “mapa/levantamento topográfico a cores”, seja de pedidos de retificação de área de prédio – assentou em ser «invocada apenas a existência de dificuldade abstracta quanto à obtenção dos elementos aí solicitados, não sendo rep[or]tada a existência de dificuldade séria em concreto nem, tão-pouco, que os réus hajam já envidado esforços no sentido da sua obtenção (artigos 7.º n.º 4 e 436.º do Código de Processo Civil)».

Rejeição essa que, aliás, não foi perentória/“definitiva”, visto se ter logo deixado em aberto a possibilidade de (re)ponderação posterior a respeito: indeferimento, mas «sem prejuízo para a sua ulterior apreciação em caso de invocação de dificuldades sérias e concretas na obtenção dos elementos visados.».

Já a motivação dos RR. havia sido a de que o aludido serviço de finanças, «invocando o sigilo fiscal, não fornece tal documentação diretamente aos contestantes-reconvintes».

Ora, apreciando, deve começar por reconhecer-se que a motivação dos RR. é aqui vaga: não referem se requereram previamente essa documentação àquele serviço de finanças e o mesmo lha recusou, sob invocação do dever de sigilo fiscal; ou se nem o requereram, afoitando-se na previsível iniciativa/atividade do Tribunal.

Por outro lado, trata-se de informação matricial/predial, referente a determinado imóvel, e não a dados referentes a aspetos pessoais ou patrimoniais sensíveis ([5]) de algum contribuinte (apenas pedidos de inscrição matricial e de retificação de área de prédio, e não propriamente informação pessoal fiscal ou patrimonial sensível).

É certo dispor o art.º 436.º do NCPCiv. (quanto a “Requisição de documentos”) que «1 - Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade. // 2 - A requisição pode ser feita aos organismos oficiais, às partes ou a terceiros.».

Já o art.º 7.º, n.º 4, também invocado, dispõe assim: «Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.».

E é sabido que o ónus da alegação e prova cabe, por regra, às partes (art.ºs 5.º, n.º 1, 411.º e 414.º do NCPCiv. e 342.º do CCiv.).

Assim, o Tribunal não deve substituir-se às partes quanto a documentos de cariz probatório que esteja ao alcance das mesmas obter, por si próprias. Na verdade, o Tribunal não é um auxiliar da parte.

Mas, mostrando-se que a parte não consegue, por si mesma, obter determinado documento relevante, alegando, para tanto, justificadamente dificuldade séria na obtenção respetiva, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.

Com efeito, trata-se de uma função/atividade inquisitória “com natureza complementar relativamente à que foi empreendida pelas partes”, uma intervenção “em termos subsidiários relativamente à iniciativa das partes, tornando-se já exigível tal intervenção quando a parte demonstre que fez as diligências ao seu alcance para conseguir as informações e/ou documentos, mas não os logrou obter, por facto que não lhe é imputável” ([6]).

E casos há em que a parte depende “do acesso a elementos informativos” – ou documentais – que “não detém e que não consegue coligir com facilidade”, podendo então “justificar-se a intervenção do juiz com vista a notificar as pessoas” – ou entidades – “que possam prestar os esclarecimentos necessários” ([7]).

Já segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “perante o requerimento da parte, o juiz deve decidir sobre a requisição considerando todas as circunstâncias atendíveis e tendo em conta a boa instrução do processo” ([8]).

No caso que nos ocupa, ponderando as circunstâncias atendíveis, desde logo, o ónus da prova a cargo dos RR., o princípio da autorresponsabilidade das partes, a natureza da informação/documentos em causa – fora do núcleo de aspetos pessoais ou patrimoniais sensíveis do contribuinte –, a vacuidade da justificação apresentada no requerimento de prova e a “não definitividade” (de algum modo) da decisão em crise, afigura-se-nos que cabia à parte (os ditos RR.) apresentar requerimento ao serviço de finanças para obtenção, a expensas suas, dos documentos pretendidos (alguns a cores), a fim de, em caso de recusa, convencer o Tribunal a proceder à respetiva requisição.

No caso, a parte não demonstra não poder, por si, obter os documentos, razão pela qual, como expresso pela 1.ª instância, não se justificava, sem mais, a requisição pelo Tribunal em substituição à mesma parte.

Cabia, perante a decisão proferida, aos RR. procurarem obter essa prova pelos seus próprios meios e a expensas suas, em vez de avançarem para o recurso imediato, tanto mais que aquela decisão deixava aberta a porta para reponderação posterior, caso se viesse a demonstrar a impossibilidade, em concreto, de obtenção pela parte dos documentos pretendidos para os específicos fins judiciais tidos em vista.

Não o tendo feito, não mostraram – nem mostram agora – os RR. que o Serviço de Finanças ... não lhes concederia esses documentos ([9]). E, se não concedesse, o Tribunal recorrido não deixaria de reponderar a situação e, certamente, consideraria justificada a invocada impossibilidade de junção pelos RR. e, nessa senda, supriria a falta, ultrapassando o obstáculo – aí, sim, formado –, requisitando os documentos em questão, por relevantes no âmbito probatório e para boa decisão do litígio.

Termos em que não podem proceder, salvo o devido respeito, as razões dos Apelantes nesta parte, não sendo seguro que o Serviço de Finanças ... lhes recusasse, para os específicos fins judiciais pretendidos, o acesso aos documentos em questão (simples pedidos de inscrição matricial e de retificação de área de prédio).

Em suma, procede a apelação quanto à matéria de admissão de depoimento de parte e improcede em matéria documental.

Na parte em que ficam vencidos, cabe aos Apelantes suportar (na proporção de metade) as custas do recurso (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

                                               ***

IV – Sumário ([10]): (…).

                                               ***

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na procedência em parte da apelação, em:
a) Revogar a decisão impugnada em matéria de depoimento de parte, determinando, em consequência e em substituição ao Tribunal recorrido, a admissão da prova por depoimento de parte rejeitada;
b) Manter no mais a decisão recorrida.

Custas da apelação pelos Apelantes, na proporção de metade, por se considerar ser essa a medida do seu decaimento.

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 11/03/2025

Vítor Amaral (relator)

João Moreira do Carmo

Fonte Ramos


([1]) Cujo teor se deixa transcrito (com destaques retirados).
([2]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([3]) Invocado foi ainda o art.º 23.º, já acima transcrito.
([4]) Proc. 1436/19.9T8VIS.C1 (relatado pelo aqui relator e em que foi adjunto o aqui 2.º Adj.), disponível em www.dgsi.pt.
([5]) Cfr. art.º 418.º do NCPCiv..
([6]) Cfr. Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anot., vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 508, acrescentando ainda que não se trata aqui de “constituir uma faculdade legitimadora de inércia” das partes, sujeitas, por seu lado, ao princípio da autorresponsabilidade. 
([7]) Cfr., Op. cit., ps. 34 e seg..
([8]) Cfr. Código de Processo Civil Anot., vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, p. 256.
([9]) Com o que não demonstram a necessidade de “remoção de obstáculo” com que a parte “se defronte na obtenção de informações ou documento necessário” – cfr. ainda Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código… cit., vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 49.
([10]) Da responsabilidade do relator, nos termos do art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv..