I – No âmbito da execução do ato médico correspondente ao cumprimento do dever de prestar, importa ainda atentar no dever de proteção na salvaguarda da integridade física do paciente, coberta pela tutela da personalidade, nos termos previstos no art. 70º, nº 1, do C.Civil, na medida em que se mostre estreitamente conexionado com esse cumprimento.
II – Assim, existindo a violação do dever de cuidado necessário para evitar um dano pessoal, em caso de resultado danoso, é de considerar verificada a prática de um ato ilícito violador da integridade física do paciente.
III – No âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos atos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800º, nº 1, do C.Civil.
IV – Em relação aos danos não patrimoniais, o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com a equidade (art. 496º, nº 4, do C.Civil).
V – Sem embargo, o recurso à equidade não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]
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1 – RELATÓRIO
AA propôs ação de condenação com processo comum contra a sociedade “A..., Lda.” [atualmente, fruto de alteração da firma, “B..., Lda.”] e BB [ação esta em que vieram posteriormente a ser admitidas como intervenientes acessórias as sociedades “C... – Companhia de Seguros, S.A.” e “D... – Companhia de Seguros, S.A.”], formulando, além do mais, os seguintes pedidos:
a) ser judicialmente reconhecida como fundada e válida a resolução do contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos da iniciativa da Autora;
b) por responsabilidade contratual e pelos danos morais referidos nas alíneas a) a d) do artigo 66º desta peça, a 1ª Ré condenada a pagar à Autora a quantia de 74.999,00€;
c) também por responsabilidade contratual a 1ª Ré a condenada a reparar por sucedâneo pecuniário todos os danos futuros de produção infalível que a Autora suportará em função do maior ou menor compromisso ou até perda do seu pulmão direito com causalidade no evento lesivo aqui convocado, em valor a definir em ulterior liquidação.
Mais pediu a Autora, a título subsidiário,
e) pelos danos morais referidos nas alíneas a) a d) do artigo 66º desta peça, o 2º Réu condenado a pagar à Autora a quantia de 74.999,00€;
f) o 2º Réu condenado a reparar por sucedâneo pecuniário todos os danos futuros de produção infalível que a Autora suportará em função do maior ou menor compromisso ou até perda do seu pulmão direito com causalidade no evento lesivo aqui convocado, em valor a apurar em liquidação de sentença.
Para tanto, alegou, em síntese que: Em 12/03/2018 a Autora, como paciente, e a Ré A..., Lda., enquanto empresa de saúde privada, celebraram um contrato pelo qual a segunda se obrigou a prestar/realizar à primeira os exames e tratamentos de reabilitação oral que esta necessitava, incluso com colocação de implantes dentários, intervenções médico-cirúrgicas melhor detalhadas no orçamento e coincidente plano de tratamento junto aos autos, tudo no valor total de € 6.250,00, quantia que a Autora se obrigou a pagar em 24 prestações iguais e sucessivas no valor de € 260,41 cada, vencendo-se a primeira no acto de assinatura do contrato e as demais a cada dia 10 dos sucessivos meses mediante débito em conta então autorizado pela Autora; acresceram os valores relativos à formalização do contrato e de processamento administrativo, conforme cláusula sexta, fazendo o valor final ascender a € 6.293,00; tratou-se de um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos, abrangendo vários actos médicos protagonizados por médico dentista, o aqui 2º Réu; por tal contrato ficaram a Ré A..., Lda. e o médico dentista, BB, obrigados a proporcionar à Autora os seus melhores esforços, conhecimentos, perícia técnica e instrumentos no sentido de eliminar os problemas dentários que a afetavam - reabilitação dos espaços edêntulos mandibulares - desenvolvendo uma atividade profissional tecnicamente qualificada, abrangendo a escolha e utilização dos meios mais idóneos para alcançar o resultado descrito no artigo 1º desta peça; nas instalações da 1ª Ré, sitas na Rua ..., em ..., foram realizadas pelo Dr. BB três consultas de preparação cirúrgica da Autora, nos dias 27/03/2018, 10/04/2018 e 12/04/2018, tendo a Autora consentido expressamente nos tratamentos acima aludidos; o Réu BB apresentou-se perante a Autora como médico dentista, desenvolvendo a sua atividade por conta e sob direção da Ré A...,Lda., desconhecendo a Autora - por a contratação o não referir e prever ambas as hipóteses - se o fez no âmbito de relação de trabalho subordinado ou de relação de trabalho independente, sendo certo que, em qualquer uma das hipóteses, o médico-dentista BB auferia da Ré A..., Lda. retribuições pagas com regularidade mensal, e que os exames e tratamentos a que a Autora se havia de sujeitar, como sujeitou, deveriam ser, como foram, realizados exclusivamente em instalações da Ré A..., Lda. em ..., local por esta indicado; em termos de aparência externa, o Réu BB sempre se apresentou à Autora como um médico atuando por conta, sob direção e autoridade da Ré clínica, integrando os seus quadros de pessoal, pois que sempre foram em instalações ostentando a firma, insígnias e imagem comercial daquela que a Autora foi atendida pelo dito médico e nestas se acolhiam os equipamentos médicos de que este fez uso; a Autora sempre cumpriu atempadamente as obrigações pecuniárias sobre si impendentes, pagando um total de € 824,23 (€ 303,41 + € 260,41 + € 260,41), o que aconteceu até 29/05/2018, data em que revogou a autorização de débitos bancários a favor da Ré A..., Lda., em coerência com contemporânea resolução do contrato com esta celebrado, pelas razões constantes de oportuna comunicação levada ao conhecimento da destinatária; na manhã do dia 6/05/2018, teve lugar a primeira sessão de tratamento de odontológico e procedimento cirúrgico levada a cabo pelo médico dentista BB, com o referido médico a fazer uso de cadeira de dentista e respetiva aparelhagem ali instaladas, designadamente canetas de alta rotação, brocas e outro material cirúrgico, posicionando a Autora deitada na referida cadeira em posição horizontal e quase paralela ao solo, de barriga e cabeça voltadas para cima e boca aberta, tendo os olhos fechados por encandeada pela luz intensa oriunda de candeeiro cirúrgico; dada a posição em que o paciente se encontra e o local de intervenção cirúrgica - cavidade bucal, que o paciente deve manter aberta - tudo o que para ali caia, por convergente acção da força da gravidade, derive para a orofaringe e, daqui, venha a conhecer um de dois percursos : a) -por deglutição, para o esófago, estômago e intestinos ou; b) -por aspiração, para as vias respiratórias e pulmões; Só o médico dentista, o 2º Réu, tinha, em tais circunstâncias, o domínio dos factos, cabendo-lhe a)- verificar se as canetas de alta rotação estavam operacionais, testando-as; b)- se as brocas cirúrgicas não apresentavam defeitos, testando-as; c)- se as brocas ficavam acopladas às canetas em condições destas se não soltarem durante o tratamento, testando ambas; d)- à eventual deteção de alguma falha ou falta de equipamento, recusar-se a levar a cabo a cirurgia; e)- evitar a troca de brocas/pontas odontológicas ou, sem estrita necessidade, manusear material cirúrgico próximo da cavidade bucal da paciente; f)- verificar previamente se tinha à sua disposição todos os instrumentos cirúrgicos que, expectavelmente, iria necessitar durante a cirurgia; g)-fazer dos instrumentos cirúrgicos uso adequado ao fim para que os mesmos foram concebidos; h)- fazer uso do chamado lençol de borracha; naquelas circunstâncias de tempo, lugar e modo de desempenho o Réu BB omitiu aquelas verificações e boas práticas, pois que, iniciou a sua intervenção na cavidade bucal da Autora, anestesiou-a e procedeu a corte na gengiva frontal do maxilar inferior; o 2º Réu referiu-lhe que mantivesse a boca aberta uma vez que iria proceder à colheita de imagens da mesma; para assegurar que a Autora assim mantinha a boca, ao invés de fazer uso de instrumento cirúrgico adequado, afastador, o 2º Réu decidiu servir-se de uma broca filiforme de 3 a 4 cm que, em jeito de escora, uso para o qual o 2º Réu bem sabia não ter sido concebida e não se adequar, broca que colocou entre o céu e base da boca da Autora, imediatamente por trás dos dentes frontais; com a broca em tal posição o 2º Réu afastou-se para ir buscar o aparelho de colheita de imagens; malogradamente, antes que se reaproximasse da Autora, a broca filiforme soltou-se da posição em que o 2º Réu a entendeu deixar, caindo para a orofaringe da Autora, dali sendo, involuntariamente, aspirada para as vias respiratórias, vindo a alojar-se em local recôndito da parte inferior do pulmão direito.
A Autora, não contribuiu com nenhuma ação ou omissão suas para o sucedido. O tratamento médico-cirúrgico é de considerar defeituoso quando não esteja conforme às boas leis da arte médica, em desarmonia com o estádio dos conhecimentos da ciência e técnica ao tempo da prestação dos cuidados de saúde; no caso vertente, como se viu, a desconformidade consistiu em omissão de atos prévios de verificação médica; por indicação do próprio médico dentista, assim aspirada a broca, a Autora foi, acto contínuo mas sem acompanhamento daquele, sujeita a admissão nos Serviços de Urgência do Centro Hospitalar de Tondela- Viseu, E.P.E, Unidade de Viseu, não sem antes ter de suportar uma sutura apressada da ferida cirúrgica aberta nas instalações da clínica, por questões de segurança, até à chegada do INEM; nesse Centro Hospitalar, a Autora foi sujeita a exame RX ao tórax, logo então se verificando que estava um corpo metálico filiforme à direita da linha média, alojado na base do campo pulmonar direito; não obstante os momentos de temor vivenciados, a Autora sempre esteve cooperante e a tudo se sujeitou no sentido de ver lograda a extração da broca, tendo estado internada no dito Centro Hospitalar pelo período de 3 dias, de onde só teve alta a 9 de Maio de 2018; durante o período de internamento foi transferida para o Centro Hospitalar de Coimbra, E.P.E. com o propósito de realizar procedimento designado de FEX VBF, procedimento que visava a extração da broca e que foi repetido, com sedação da Autora, nunca tendo sido possível a remoção do corpo estranho apesar de várias tentativas nesse sentido, mais se tendo concluído que, pela localização da broca, “é muito pouco provável a sua extração endoscópica”; em 23 de Maio a Autora compareceu à consulta onde lhe foram propostos procedimentos adicionais em ordem a uma derradeira tentativa de retirar do seu corpo a broca dentária sem recurso a cirurgia; para sujeição aos mesmos a Autora foi novamente internada no Serviço de Pneumologia do C.H. e Universitário de Coimbra, E.P.E., agora a 04/06/2018; nessa ocasião viria a ser submetida, sem sucesso, a intervenção consistente em broncofibroscopia, sob anestesia e ventilação com máscara laríngea.
Alegou, ainda, que para remoção da broca, submeteu-se: no dia 06 de Maio, em Viseu, com anestesia local, a uma broncofibroscopia; no dia 07 de Maio, em Viseu, com anestesia geral e ida ao bloco operatório, a uma broncofibroscopia; no dia 09/05/2018, em Coimbra, com anestesia geral, a uma broncofibroscopia; no dia 04/06/2018, em Coimbra, com anestesia geral, a uma broncofibroscopia; a broca em questão embrenhou no pulmão que “não foi de todo possível, no momento actual, a visualização do corpo estranho em questão, durante a exploração exaustiva de toda a árvore brônquia direita” mais sendo assumido que “a posição do corpo estranho metálico é extremamente periférica”; nova alta a 06 de Junho de 2018, com consulta de cirurgia cardiotorácica marcada para 18/07/2018, ainda no referido Centro Hospitalar e Universitário; consulta a que a Autora compareceu para ser informada que uma cirurgia para extração da broca dentária é intervenção clinicamente arriscada, sem garantias de êxito à razão da posição do corpo metálico e que terá doravante a Autora de se sujeitar a vigilância rotineira do “corpo estranho de densidade metálica alojado no brônquio lobar inferior direito, adjacente à parede torácica posterior e hemidiafragma direito” (exames radiológicos e consultas de cirurgia cardio-torácica), aguardando a evolução que o mesmo vai desencadear no pulmão mediante sucessivos exames radiológicos; por carta de 20/07/2018 a Autora, com fundamento em quebra de confiança e justa causa para resolução do contrato com esta celebrado com a A..., cancelando os débitos em conta a favor desta e solicitando a restituição do que havia pago uma vez que nada lhe fora, afinal, prestado, o que foi aceite pela identificada Ré, a qual procedeu à devolução à Autora das quantias por esta pagas, no valor de 961,51€; mercê da conduta que acima se deu conta a Autora, que terá de viver o seu dia-a-dia com a certeza que tem um corpo metálico filiforme profundamente alojado num órgão vital seu, pulmão direito; com a certeza, outrossim, que mercê da presença perene da broca : a)- mais cedo ou mais tarde o seu organismo desencadeará uma reação ao corpo estranho, com inflamação da área do pulmão que envolve o mesmo e compromisso da função respiratória do pulmão direito, uma vez que não será possível a respectiva extração/rejeição; b)- ou, para pior, que uma qualquer gripe, constipação, pneumomia ou estado de saúde implicando uma maior debilidade das defesas da Autora, chance que se repetirá a cada Outono/Inverno, a Autora ficará exposta a ver as respectivas consequências exponenciadas no pulmão direito, com risco severo de infeção e até perda do órgão; É todo um quadro ao qual a Autora não estava exposta antes da contratação com a Ré A..., Lda. e intervenção levada a cabo pelo Dr. BB e a que não estaria agora sujeita não fosse a conduta deste último nas circunstâncias de tempo, lugar e modo de que acima se deu conta; a Autora revisita a possibilidade de uma morte precoce, para quem uma tossidela, um espirro, um «pingo ao nariz» passou a ter uma dimensão tão avassaladora quanto corrosiva, sabendo que carrega no seu pulmão direito a «semente» de alteração da sua função respiratória e até causa de morte, o que provoca à Autora um dano físico actual, já consumado e suportado pela Autora no seu efeito lesivo, consistente no alojamento pulmonar da broca dentária em posição tal que a sua remoção é impraticável e nas dores intensas que, até finais de Junho de 2018, a Autora sentiu a nível da gengiva frontal do maxilar inferior, consequência da sutura a que foi sujeita; um dano moral consistente na ansiedade, angústia e temor vivenciados pela Autora nos momentos se seguiram à queda da broca, sua condução e permanência nas Urgências, a que acresceu o seu confinamento em sucessivos internamentos hospitalares e sujeição a vários exames, anestesias, intervenções médicas invasivas (visando a remoção não cirúrgica da broca) e recobros, um dano agravado à frustração de todas aquelas intervenções; um dano moral, consubstanciado na ansiedade, angústia, impotência, desgosto pela exposição quotidiana da Autora a todo um ideário de proximidade da morte ou de complicações de saúde graves, agudizado pela necessidade de vigilância periódica crónica do pulmão direito; um dano moral consistente no receio, pânico até, que vivencia e vivenciará sempre que, após o sucedido se deparar com a necessidade de qualquer intervenção médico-dentária na sua cavidade bucal a que acrescerá o insólito de ter de explicar o que carrega no seu pulmão sempre que cruzar uma qualquer barreira de segurança munida de detetor de metais; um dano futuro, uma vez que, a seu tempo haverá, sempre, maior ou menor compromisso do pulmão direito da Autora por processo inflamatório ou infecciosos que, in extremis, poderá chegar até à respetiva remoção cirúrgica e perda do orgão, com tudo o que isso implica para o normal desempenho da função respiratória e da sua vida; é este um dano cujo concreto valor deverá ser relegado para ulterior liquidação; o 2º Réu vai demandado nesta acção porquanto, além do cumprimento defeituoso a Autora foi, à mão daquele e tal como acima narrado, vítima de violação do seu direito absoluto à integridade física.
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Devidamente citados, vieram os Réus apresentar contestação, concretamente a fls. 53 e ss. e 108 e ss., cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
Por o terem requerido nas respetivas contestações e o Tribunal deferido a fls. 151, dos autos, foi admitida a intervenção acessória e citadas as sociedades intervenientes, as quais, como decorre do conteúdo de fls. 168 e ss. e 174 e ss., apresentaram contestação, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal (como se alcança da respectiva Ata), com discussão nela da prova documental, pericial e testemunhal apresentada pelas partes.
Veio, na sequência, a ser proferida sentença, na qual após identificação em “Relatório”, das partes e do litígio, se alinharam os factos provados e não provados, relativamente aos quais se apresentou a correspondente “Motivação”, após o que se considerou, em suma, que em face do apurado nos autos relativamente à atuação do 2.º Réu e da previsão do art. 800º, do C. Civil [responsabilidade perante a Autora pelos atos dos seus representantes legais, ou de pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação], deveria a 1ª Ré ser condenada pelos danos advenientes para a Autora, danos que só eram de valorar na vertente dos não patrimoniais, relativamente aos quais fixou a indemnização a que a A. tinha direito em € 42.000,00, assim se vindo a concluir pelo seguinte concreto “Dispositivo”:
«Decisão:
Pelo exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente por parcialmente provada e, consequentemente, decide-se:
A) Condenar-se a sociedade “B..., Lda” no pagamento a AA da quantia de € 42.000,00 (quarenta e dois mil euros), a título de danos não patrimoniais pela mesma sofridos em consequência direta e necessária do incumprimento contratual daquela;
B) Absolver-se a sociedade “B..., Lda” e, bem assim, o 2.º Réu, do mais peticionado.
C) Condenar-se AA e a sociedade “B..., Lda”, no pagamento das custas do presente processo, na proporção dos respetivos decaimentos, conforme previsto no art.º 527.°, do Código de Processo Civil.»
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Inconformada, apresentou a Ré “B..., Lda.” recurso de apelação contra a mesma, cuja alegação finalizou com as seguintes conclusões:
«1 - Sem prejuízo da posição que a respeito da matéria dos artºs 21 e 29 a 32 da p.i. se deixou expendida na contestação e demais peças processuais da recorrente, a matéria dos artigos 31 e 32º da p.i. não vem dada como provada na sentença – e não se provou – vindo a ré condenada com base em factualidade completamente diferente como resulta do seu confronto com os factos provados nºs 8 e 9 da sentença !
2 - Daqui resulta como consequência iniludível que a ré, ora recorrente, é condenada com base em matéria que não consta da p.i., não integrando a causa de pedir constante da p.i., e consequentemente a sua citação para contestar ocorre na ausência de invocação pela autora de tal matéria, e sem ter sido alterada a causa de pedir, com a agravante da autora não ter qualquer pretexto para dizer que ignorava que à data em que foi atendida pelo 2ª Réu Dr. BB já não tinha dentes frontais !
3 - Daí que a sentença é nula por força do disposto na alínea d) do nº 1 do artº 615 do C. P. Civil, devendo tal nulidade ser julgada verificada, com todas as legais consequências, e mormente a da absolvição da ré, aqui recorrente.
SEM CONCEDER
4 - O réu BB, médico dentista, nunca integrou os quadros de pessoal da ré A....
5 - No caso sub judice atuou no âmbito de contrato de prestação de serviços celebrado entre ele e a ré, e através do qual se obrigou a prestar actos da sua actividade de médico dentista aos clientes da ré, indicados por esta, e in casu à autora.
6 – No âmbito desse contrato de prestação de serviços a prática desses actos foi feita pelo réu BB com total autonomia técnica e independência funcional.
7 - Dispõe o nº 2 do artº 104 do ESTATUTO DA ORDEM DOS MÉDICOS DENTISTAS (anexo à Lei nº 124/2015 de 2 de Setembro): “2 - No exercício da sua profissão, o médico dentista é técnica e deontologicamente independente, e, como tal, responsável pelos seus atos.”
8 - Não vem imputada à recorrente A... deficiência de materiais ou equipamentos utilizados no tratamento da autora e providenciados por A... (vide artº 38º da sua contestação), como o próprio Dr. BB, perguntado, o confirma no seu depoimento.
9 - Com efeito no na sessão da tarde de 21.10.2022 do julgamento, como consta da respetiva gravação no sistema áudio CITIUS (gravação da sessão com início às 14:21 e termo às 15:54) perguntado pelo signatário ao minuto aos 1:03:57 da gravação “ no dia da cirurgia verificou os equipamentos e materiais…” respondeu “ Todos os instrumentos e todos os aparelhos neste caso é o motor de implante, estava tudo ok” resposta esta finalizada aos 1:04:09 da gravação.
10- Pelo que com base no trecho do depoimento do Réu Dr. BB, gravado e transcrito na conclusão anterior, e pela sua importância para a decisão da causa deve ser dado como provado que não houve deficiência de materiais ou equipamentos utilizados no tratamento da autora e providenciados pela recorrente A....
11- O Dr. BB na sessão de julgamento da manhã do dia 21.10.2022 como consta da respetiva gravação dessa sessão no sistema áudio CITIUS (gravada com início às 11:42 e termo às 12:54) ao minuto 10:45 a 10:55 da gravação do seu depoimento refere “ Nós pedimos autorização para realizar a cirurgia ao domingo”
E na sessão de julgamento da tarde do mesmo dia, como consta da respetiva gravação no sistema áudio CITIUS (gravação com início às 14:21 e termo às 15:54) perguntado pelo signatário aos 1:05:10 dessa gravação: “ Normalmente a Clínica abria ao domingo” responde “Não” (gravado aos 1.05.13), e perguntado pelo signatário (gravado aos 1:05:55) “Quem agendou a cirurgia” responde “ Fui eu com acordo da D. AA e autorização da A...” (gravado até aos 1:06:02). 1
12- Pelo que com base no depoimento do Dr. BB, transcrito na conclusão anterior e constante das gravações aí referidas, deve ser dada como provada a matéria alegada no artº 70 da contestação da recorrente aí confirmada, importante para a decisão da causa, a saber: a cirurgia de 06.05.2018 ocorreu, a um domingo, fora do horário de funcionamento da clínica, conforme especial pedido da autora ao Dr. BB, pois a autora queria brevidade, e devido à falta de agenda do réu Dr. BB, e ao facto de se tratar de uma cirurgia demorada, acordaram (médico e paciente) em realizar a cirurgia no domingo.
13- Acresce que inclusive no dia em questão o réu se fez assessorar pela Drª CC, sua esposa, e que não integra os quadros de pessoal da recorrente A..., nenhuma ligação tendo com esta.
14- Na sessão de julgamento da manhã do dia 21.10.2022 como consta da respetiva gravação dessa sessão no sistema áudio CITIUS, (gravação com início às 11:42 e termo às 12:54), o Dr. BB como consta do minuto 10:45 ao minuto 10:55 da gravação do seu depoimento, refere “ Geralmente trabalhavam 2 assistentes na A...… naquele dia tinha uma assistente”(10:55).
E mais adiante (minuto 11:10 a 11:22 dessa gravação) refere: “ Apesar de ter a assistente eu quando é este tipo de cirurgias costumava trazer sempre a Drª CC para fazer este tipo de cirurgias comigo e estava presente também naquele dia.”
15- Pelo que pela relevância para a boa decisão da causa, e com base no trecho do depoimento do réu gravado e acima transcrito, deve ser dado como provado que o réu foi assessorado na dita cirurgia de 6 de Maio de 2018, pela Drª CC, por sua iniciativa, a qual não tem qualquer ligação de trabalho ou outra com a ré A....
16- Tudo o acima alegado e comprovado demonstra que o réu Dr. BB, para além de “técnica e deontologicamente independente, e, como tal, responsável pelos seus atos.” atuou com uma autonomia tal na dita cirurgia, que a entender-se que o mesmo incumpriu as leges artis – o que não se concede – deve ser considerado o único responsável perante a autora, com consequente absolvição da Ré A...
SEM CONCEDER
17- Com a assinatura do consentimento informado pela autora o médico réu cumpriu com a sua obrigação deontológica, ou seja houve um cumprimento integral e cuidadoso de todos os procedimentos referentes às boas práticas clínicas e relacionamento e responsabilidade.
18- Ora como consta da gravação do depoimento do réu, este explicou à autora o consentimento informado (anexo 2 do doc 1 da contestação da recorrente), na presença do filho da autora (sessão de julgamento da manhã do dia 21.10.2022 com respetiva gravação dessa sessão no sistema áudio CITIUS, gravação com início às 11:42 e termo às 12:54, estando o trecho em causa do depoimento do réu gravado de 11:57 até 12:25; e sessão da tarde desse mesmo dia com respetiva gravação no sistema áudio CITIUS, gravação com início às 14:21 e termo às 15:54, estando trecho do depoimento do réu em causa gravado de 3:09 a 3:30).
19- De resto estando tal consentimento informado assinado pela autora tem força probatória plena nos termos conjugados dos artºs 374 e 376 do C. Civil
20- Pelo que, e com base nos referidos trechos gravados do depoimento do réu, deve em aditamento ao que consta dos factos provados da sentença (vide v.g. facto provado nº 5) acrescentar-se que a autora leu e compreendeu o dito consentimento informado, tendo sido previamente a tal assinatura, informada pelo réu a propósito.
21- Por outro lado, de acordo com o informado pelo médico Dr. BB no decorrer do dito procedimento cirúrgico de 6/5/2018, a autora ”involuntariamente, deglutiu um instrumento cirúrgico, apesar de ter sido advertida para manter a boca aberta naquele preciso momento.” – doc. 1 da contestação da recorrente.
22- Como a recorrente referiu na sua contestação, sendo certo que desconhece o que efetivamente se passou, o que é facto é que pela descrição do Dr. BB a autora não cumpriu com a determinação do médico, não colaborando assim – como podia e devia – com o médico.
23- Não deixando de ser significativo que já depois de saber o que se passara, a autora compareceu em nada menos do que 4 consultas com o Dr. BB na mesma Clínica da A... em ... (em 22/05/2018, 29/05/2018, 12/06/2018 e 19/06/2018), o que deve ser dado como provado com base não só do acervo documental já junto aos autos – vide v.g. doc 1 da contestação da recorrente – mas também com base no depoimento do réu na sessão de julgamento da manhã do dia 21.10.2022 com respetiva gravação dessa sessão no sistema áudio CITIUS, gravação com início às 11:42 e termo às 12:54, em que à pergunta do Exmº Advogado da autora gravada aos 48:20 dessa gravação “ Depois disto a Drª AA regressou às suas mãos, aos seus cuidados ?” responde seguidamente o réu “ Sim, fizemos cerca de 4 consultas pós cirugia.” (resposta finalizada aos 48:31 da gravação desse depoimento).
24- Tal factualidade, constante dessa gravação dita na conclusão anterior, além de ser importante para a decisão da causa, desmente o trecho final do nº 28 dos factos provados – e acrescendo também a prova documental - devendo em consequência retirar-se dos factos provados da sentença, e dar-se como não provado, que a autora tenha “receio de recorrer aos serviços médico-dentários;”
25- Acresce que nesse decurso – das ditas 4 consultas com o réu DR. BB após a dita cirurgia de 6/5/2018 - a autora já tinha alegadamente, segundo a própria, recebido informações e assistência hospitalares!
26- O que é sintomático de que não só queria seguir com os tratamentos previstos como não houve quebra de confiança no médico/réu.
27- O que inculca que em momento algum lhe atribuiu responsabilidade pelo que quer que tenha acontecido !
28- E inculca que o referido pelo Dr. BB, de que no decurso da cirurgia de 06.05.2018 a autora não cumpriu as suas instruções, corresponde inteiramente à verdade.
29- Como consta do consentimento informado (anexo 2 do doc. 1) a autora foi tão só anestesiada localmente, como se prova ainda pela gravação do depoimento do réu na sessão de julgamento da manhã do dia 21.10.2022 com respetiva gravação dessa sessão no sistema áudio CITIUS, gravação com início às 11:42 e termo às 12:54, em resposta às perguntas do Exmº Advogado da autora: com efeito ao minuto 13:30 dessa gravação consta a pergunta: “ Anestesiou a senhora indiscutivelmente, olhe não foi anestesia geral ?” seguindo-se a resposta do réu finalizada aos 13:40 “Não, claro que não, e nem tenho competências para fazer” e nova pergunta daquele aos 13:40 “Anestesia local, certo ?” resposta do réu “ Certo, exatamente” finalizada aos 13:45 da gravação do seu depoimento.
30- Pelo que no facto provado 6 da sentença, e pela importância para a decisão da causa, deve acrescentar-se e explicitar-se que a anestesia aí referida foi anestesia local
31- A autora aquando da cirurgia de 6/5/2018 não estava – apesar do que tenta fazer crer na p.i. - incapaz de entender e colaborar com o réu, no decurso desse procedimento cirúrgico, quanto ao pedido deste de manter a boca aberta.
32- No caso vertente a autora segundo o Dr. BB não colaborou com o mesmo, e ante a instrução simples deste de manter a boca aberta não obedeceu, e engoliu uma broca.
33- Pelo que tendo deglutido a broca na cirurgia de 6 de Maio de 2018 efectuada pelo Dr. BB, e por não ter mantido a boca aberta como este lhe havia transmitido, deve-se entender que houve culpa da autora, e que tal facto culposo da autora concorreu para a produção dos danos e deve ficar excluída a indemnização à autora por parte da ré A..., ou se assim não se entender – o que não se concede – ser a mesma reduzida – artº 570 do C. Civil.
34- Devendo ser dado como provado que a autora deglutiu a broca por não ter mantido a boca aberta como determinado pelo réu como se prova pelo trecho do depoimento do réu na sessão de julgamento da manhã do dia 21.10.2022 com respetiva gravação dessa sessão no sistema áudio CITIUS, no trecho gravado de 24:34 a 24:44 e em que consta“ tinha informado a paciente que tinha que manter a boca aberta ela tosse e fecha a boca e a broca desaparece”
SEM CONCEDER
35- O valor indemnizatório arbitrado à autora na sentença recorrida é manifestamente exagerado.
36- Devendo ter-se presente que conforme consta de relatórios de urgência juntos aos autos (a título exemplificativo: relatório do Hospital de S. Teotónio relativo à data de admissão na urgência 19 de Março de 2020 constante da notificação ao signatário refª 87880265 de 14-04-2021) e do relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito cível de 9 de Setembro de 2021, com carimbo de entrada de 10.09.2021 (refª 4858447) a autora tinha “Como antecedentes patológicos e/ou traumáticos relevantes para a situação em apreço, a referir: Sindorme de Cushing ACTH dependente cíclico – operada em 2013 a nódulo da supra-renal, DM2, Displipidemia, Depressão Major, Excesso ponderal, HTA”. (negrito nosso)
37- Pelo que todos esses antecedentes patológicos e/ou traumáticos, referidos na conclusão anterior, provados que estão ad nauseam, e relevantes para a decisão da causa, devem ser incluídos nos factos provados, e não apenas os que constam do nº 30 dos factos provados da sentença.
38- Por outro lado também deve ser dado como provado, por importante para a decisão da causa, o que consta do esclarecimento de 21.12.2021 do Director do Serviço de Pneumologia do Centro Hospitalar Tondela Viseu (junto aos autos em 22.12.021) de que “atualmente o corpo estranho não apresenta repercussão sobre a função respiratória.”
39- Sendo certo que a autora não reclama danos patrimoniais, deve ser devidamente relevada a circunstância referida na sentença da “ Autora ter optado pela não remoção/extração da broca filiforme que se encontra alojada na base do campo pulmonar direito, apesar de medicamente viável, com o mínimo de ressecção de parênquima pulmonar. “
40- Tal opção tomada pela autora não deve servir para onerar a recorrente, e sendo certo que é manifesta a falta de fundamento e exagero do peticionado pela autora.
41- Pelo exposto, e sem prejuízo de tudo quanto antecedentemente se defende, a indemnização à autora por danos não patrimoniais não deverá exceder os € 15.000,00.
JULGANDO PROCEDENTE O RECURSO
FARÃO V. EXªS INTEIRA JUSTIÇA »
*
Também apresentou recurso de apelação o co-R. BB, de cujas alegações extraiu as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso é interposto da decisão do tribunal a quo que julgou parcialmente o pedido formulado pela Autora e em consequência:
A) “Condenar-se a sociedade “B..., Lda” no pagamento a AA da quantia de €42.000,00 (quarenta e dois mil euros, a título de danos não patrimoniais pela mesma sofridos em consequência directa e necessária do incumprimento contratual daquela;
B) Absolver-se a sociedade “B..., Lda” e, bem assim, o 2º Réu, do mais peticionado.
C) Condenar-se AA e a sociedade “B..., Lda” no pagamento das custas do presente processo, na proporção dos respectivos decaimentos, conforme previsto no art.º 527, do Código de Processo Civil.”
2. Da legitimidade para recorrer.
Nos termos do nº 2 do art. 631º do CPC, sendo o Recorrente diretamente afetado por esta decisão, que fere o seu bom nome e brio profissional, colocando-o numa situação de vulnerabilidade face à 1ª Ré, e arvorando-se a possibilidade desta vir exercer o direito de regresso, vem interpor o presente recurso.
3. Ora no que tange à fundamentação de facto da douta sentença e analisando os elementos que determinaram a convicção do tribunal (v. pág 6 a 12 da sentença), se diz que apreciação da prova por parte do Juiz a quo deve assentar em critérios e factos objetivos, não podendo limitar-se à confirmação de uma determinada versão quando sobre ela nenhum facto ficou demonstrado, o que se verificou na sentença recorrida.
4. Na esteira deste entendimento é vasta a jurisprudência que assenta a fundamentação em critérios materiais e activos, em que a exigência legal de motivação da decisão sobre a matéria de facto não se satisfaz com a simples referência aos meios de prova que o julgador considerou decisivos para a formação da sua convicção, devendo indicar as razões que, na sua análise crítica, relevaram para a formação da sua convicção, expondo o processo lógico e racional que seguiu, por ser esta a única forma de tornar possível o controlo da razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto, e de convencer os destinatários sobre a sua correcção.
5. É por demais inegável, a falta de fundamentação da matéria de facto invocada da douta decisão recorrida, que, numa parte é totalmente inexistente, e noutra parte claramente insuficiente, chegando alguns factos a não ter qualquer fundamentação, ou fundamentarem-se com mera referencia às “as regras da experiência”, sem qualquer justificação.
6. A fundamentação da matéria de facto feita pelo Tribunal a quo, não demonstra com clareza e objectividade o processo lógico e racional que seguiu, para dar como provada tal matéria, pois nunca concretiza o que de relevante disse cada testemunha que se mostre decisivo para a decisão, chegando a desvalorizar testemunhas porque cônjuge, tios, irmão, filho e, que por essa razão não merecem credibilidade, como depois, cônjuge, filho, irmão e tios já merecem credibilidade, sem se saber por que razão o parentesco nuns casos é razão de exclusão da valoração do seu depoimento e se noutros casos não.
7. Foi dado como provada e não provada além do mais, a seguinte matéria de facto:
a) Dos factos provados
(…)
9 - “… sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança, para que funcionasse como material radiopaco e, dessa forma, permitisse apurar a profundidade da perfuração”;
10 - “Durante tal procedimento, BB afastou-se AA, tendo, nesse momento, a dita “broca lança” saído do local onde se encontrava, tendo sido aspirada por AA, alojando-se no campo pulmonar direito”;
(…)
28- Em consequência direta e necessária do descrito de 6- a 17-, AA ficou impedida de sujeitar a ressonâncias magnéticas e, bem assim, com receio de recorrer aos serviços médico-dentários;
29- Em consequência direta e necessária da aspiração da broca filiforme por AA aumentou o risco de inflamação na área do pulmão que envolve a broca, de infeção (pneumonia e/ou bronquiectasias) devido à obstrução ocasionada pela broca, perda parcial de função respiratória, pneumotórax e pneumomediastino;
(…)
8. Dos factos não provados
b) Dos factos não provados, são os últimos quatro, os pontos considerados incorrectamente julgados.
- A Autora não tenha cumprido a instrução dada pelo 2.º Réu para manter a boca aberta, tenha tossido e, por via disso, aspirado a broca cirúrgica;
- A aspiração da broca cirúrgica pela Autora tenha resultado de comportamento adotado pela mesma;
- O 2.º Réu tenha usado fio dentário como amarra da broca filiforme que foi aspirada pela Autora;
- No momento imediatamente anterior à aspiração da broca cirúrgica pela Autora, o 2.º Réu estivesse a segurar a mesma com os dedos indicador, médio e polegar da sua mão direita;
9 - A motivação e fundamentação invocada para a decisão recorrida, supra referida é a seguinte:
a) Quanto aos factos provados (na parte em que se impugna a decisão sobre a matéria de facto).
- Quanto ao facto provado 9), foram considerados na sentença recorrida os:
* Depoimento do R. Dr. BB,
* Declarações da A. I(AA.
- Quanto ao facto provado 10), foram invocados na sentença recorrida as:
* Declarações de parte da A. AA
- Quanto ao facto provado 28) foram invocados na sentença recorrida os:
* Depoimentos de DD, EE, FF e GG.
- Quanto ao facto provado 29), foram invovados na sentença recorrida os:
* Documentos de fls. 17 a 19v, 23 a 34º, 41 . 64v a 70, 90 a 98, 100, 101, 103,105, 107, 121 a 126, 128, 128v, 246 a 289, 312 a 318, 332 a 336, 363 a 368, 420, a 426, 450 a 452, 465 a 475, 480 e 481.
10. Quanto aos factos não provados, o M.º Juiz a quo mais não fez do que limitar-se na fundamentação da douta sentença recorrida, em relação a todos os factos não provados, a dizer que "não resultou provado", sem qualquer invocação de fundamentação, que não fosse que "resultaram os mesmos da ausência de prova da sua verificação, seja por as testemunhas ouvidas os não terem confirmado ou não o terem feito de uma forma considerada credível, inexistindo nos autos qualquer outro elemento probatório da sua verificação", embora para aqui só interessem os factos impugnados, que são os últimos quatro.
11. Os concretos meios de prova constantes do processo ou de registos ou gravação nele realizado que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida são:
a) Quanto ao facto provado 9:
“… sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança…” os depoimentos do Réu Dr BB nas transcrições acima feitas das 18:15 às 26:15; e da testemunha Dra CC das 5:30 a 12:53.
12. Ambos os depoimentos coincidiram no sentido de que o 2ª réu BB declarou que, a determinada altura do procedimento cirúrgico, necessitava de efectuar uma radiografia, e informou a Autora que teria de manter a boca aberta, e colocou uma a broca na perfuração previamente efectuada, por ser o instrumento apropriado e utilizado para naquele local, poder verificar até onde podia perfurar, de forma a não atingir o nervo alveolar, e declarou que como sempre faz, atou um fio dentário à broca, tomando assim as devidas precauções, e ordenou à Autora que mantivesse a boca aberta.
13. Quanto ao facto provado 10:
“Durante tal procedimento, BB afastou-se AA…”
Quanto a tal facto, é a própria Autora que refere ao longo de todo o seu depoimento que o 2º Réu, não se afastou, mas sim que se levantou, como acima transcrito nas passagens 18’:01’’ a 20’:10’’,
na pág. 25, e passagem 20:10’’ a 22’:02’’ e 29’:20’’ a 30’:19’’, na pág. 27, respectivamente.
14. Ainda em relação ao mesmo facto provado 10, tal como resulta das declarações do 2º Réu e da testemunha Dra. CC o Réu estava junto da A.
O 2º Réu é que estava a segurar a broca colocada no orifício, estando assim junto da A. resultando também do depoimento do R. Dr. BB que não se afastou e esteve sempre junto da A. a segurar a broca colocada no orifício.
15. Ainda em relação ao facto provado 10, o depoimento da testemunha Dra. CC nas passagens de 5’:30’’ a 6’:38’’, atrás transcritas na página 18.
16. E em relação ainda ao facto 10, refere também a testemunha Dra CC, que o braço do RX está ao lado da cadeira, v. passagem transcrita acima de 06’;00’’ a 08’:03’’ da página 30, pelo que o 2ª Réu se tivesse chegado a fazer o RX, não precisaria de se afastar, pelo que o 2º réu não se afastou.
17. Quanto ao facto provado 28
Os depoimentos destas testemunhas são globalmente todos coincidentes, mas pese embora o facto de as testemunhas arroladas pela Autora GG, DD, EE e FF referirem em determinados momentos pontuais, que a Autora estava impedida de fazer exames radiológicos, nomeadamente ressonâncias magnéticas, as mesmas declararam, segundo elas por terem ouvido dizer .
18. Ora, o M.º Juíz a quo, tinha nos autos elementos suficientes que lhe permitiam decidir em sentido contrário, e não se servir unicamente dos depoimentos destas testemunhas só por si, para dar como provado este facto de a Autora estar impedida de fazer ressonâncias magnéticas.
19. Em sentido contrário, o perito médico Dr. HH nas suas declarações v. passagem de 05’:01’’ a 05’:33’’, da transcrição acima referida na pág. 33 diz que “pode perfeitamente”, só terá que dar indicação dessa presença do corpo metálico, que é a broca alojada no pulmão.
20. Já quanto à outra circunstancia de a Autora ter receio de recorrer aos serviços médico-dentários, cumpre dizer que das testemunhas referida (GG, DD, EE e FF) nada dos seus depoimentos foi dito que possa fundamentar tal matéria.
21. Quanto ao facto provado 29
O mesmo refere-se à possibilidade de o facto de a broca estar alojada no pulmão aumentar o risco de inflamação na área do pulmão que envolve a dita broca.
Ora, pelos esclarecimentos prestados pelo Perito Médico, Dr. HH, o mesmo vem dizer que a broca está fixa, que está envolta num tecido de granulação, "em volta da broca cria-se um tecido de granulação e aquilo fica como que ali rodeado por um tecido de granulação e, portanto, essa hipótese é uma hipótese pouco provável(…)", o que impede a mesma de se deslocar, ver passagem 05’:25’’ a 06’:29’’ na transcrição supra nas págs. 33 e 34.
22. Declarou ainda este Perito Médico que o que pode acontecer nestes casos " é a probabilidade a jusante da, do corpo estranho haver uma infecção respiratória mais frequente".
Mas que em termos funcionais "não há qualquer repercussão". E acrescenta “Aliás, pode-se fazer o estudo da função respiratória completa que não vamos encontrar nenhuma alteração que altere, ou que impeça que a pessoa tenha uma vida perfeitamente normal".
23. Pelo exposto, quanto ao facto provado 29 o Juiz a quo devia na sua fundamentação ter usado como meio de prova, o esclarecimento do senhor Perito Dr HH "Sim, também devido à localização onde está esta, esta broca, em termos funcionais, não há qualquer repercussão. Aliás, pode-se fazer o estudo da função respiratória completo que não vamos encontrar nenhuma alteração que altere, ou que impeça que a pessoa tenha uma vida perfeitamente normal. A infeção, a ocorrer, se, é, de facto, uma possibilidade, terá que ser tratada com antibióticos e, portanto, aquilo que se faz em qualquer infeção respiratória”.
Estando pois o facto 9, incorrectamente julgado.
24. Quanto ao facto não provado: " A Autora não tenha cumprido a instrução dada pelo 2º Réu para manter a boca aberta, tenha tossido e, por via disso, aspirado a broca cirúrgica.”
Quanto aos factos não provados e neste em particular, o M.º Juiz a quo, vem invocar as versões contraditórias apresentadas pela Autora e pelo 2º Réu, relativa à causa directa da aspiração da broca.
No entanto não releva as declarações do Réu e do que resulta do seu depoimento, na parte que se deixou transcrita (v. passagem acima transcrita de 22’:01’’ a 24’:01’’ pág 13 e 14)
25. Resulta também, deste facto não provado, em parte, das declarações da própria A. quando espontaneamente na passagem na transcrição acima 24’:03’’ até 26’:03’’ na pág. 10 e 11, disse:
"Ele até, eu até, ele até me mostrou a broca e disse assim, "Olhe, agora a senho ...., quando eu tossi, quando a broca entrou …"., sendo confrontada pelo M.º Juíz a quo na passagem 29’:01’’ a 30’:19’’ na transcrição acima na pág. 34 e 35.
26. Ainda quanto a este facto não provado, pela espontaneidade com que a Autora disse que tossiu, sem sequer alguém lhe ter perguntado, não deixa quaisquer duvidas que tal tosse foi no momento em que a broca "entrou", e que tal afirmação, confirma a versão do Réu desde logo na sua contestação, versão que sempre manteve, num depoimento coerente, sem se lhe poder apontar qualquer contradição ou hesitação.
A testemunha Dra. CC confirma também que foi no momento em que a Autora tossiu, que a broca foi aspirada, conforme depoimento já transcrito acima prestado na mesma audiência de 21/10/2022 mas entre as 16:23’:34’’ e as 16:54’:37’’ ao minuto 04’:02’’ a 06:01’’ (segunda parte do depoimento)
27. Facto não provado: " A aspiração da broca cirúrgica pela A. tenha resultado de comportamento adoptado pela mesma".
Invoca-se para este facto o que aqui atrás se disse quanto ao facto não provado anterior, por um não se dissociar um do outro.
28. Facto não provado " O 2º Réu tenha usado fio dentário como amarra da broca filiforme.”
O recorrente invoca aqui o que já atrás disse quanto ao facto provado 9, invocando as mesmas razões, para o mesmo ser dado como não provado, e nesta parte ser provado o seu contrário.
29. Facto não provado: “No momento imediatamente anterior à aspiração da broca cirúrgica pela A., o 2º Réu estivesse a segurar a mesma com os dedos indicador médio e polegar da sua mão direita".
Valem também as declarações já referidas para o facto 9 e ainda as declarações do 2º réu Dr. BB de 22’:01’’ a 24’:01’’ e da testemunha Dra. CC prestadas na parte do seu depoimento entre as 16:23:34 e 16:54:37, de 00:00’:00’’ a 02’:02’’.
30. Assim, a decisão sobre a matéria de facto impugnada devia ser a seguinte:
a) - Quanto ao facto provado 9, deve retirar-se: “Sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança”, ficando assim:
“9 - Entretanto, BB decidiu colocar uma broca filiforme, designada por “broca lança” no orifício criado pelo mesmo com a perfuração óssea do maxilar de AA, para que funcionasse como material radiopaco e, dessa forma, permitisse apurar a profundidade da perfuração”.
b) - Quanto ao facto provado 10, deve ser retirada a expressão “afastou-se” de AA”, ficando:
“Durante tal procedimento a dita “broca lança” saiu do local onde se encontrava, tendo sido aspirada por AA, alojando-se no campo pulmonar direito.”
c)- Quanto ao facto provado 28, o mesmo deve considerar-se não provado.
d)- Quanto ao facto provado 29, deve dar-se como provado que “Em consequência directa e necessária da aspiração da broca filiforme por AA, embora possam acontecer infecções respiratórias mais frequentes , mas em termos funcionais não há repercussões na vida corrente da Autora e a infecção a ocorrer deverá ser tratada “com antibióticos como qualquer outra”.
31. Quanto aos factos não provados (os últimos quatro) devem ter a seguinte resposta:
- “A Autora, aquando do procedimento referido em 10) a Autora tossiu, fechou a boca e, por via disso, aspirou a broca cirúrgica”, tendo sido devido a este comportamento que a broca foi aspirada.
- “A aspiração da broca resultou deste comportamento adotado pela mesma”.
- “O 2ª Réu aquando do procedimento referido em 9) usou fio dentário como amarra da broca filiforme que foi aspirada pela Autora”.
- “No momento imediatamente anterior à aspiração da broca cirúrgica pela Autora, o 2ª R. estava a segurar a mesma com os dedo indicador , médio e polegar da sua mão direita”.
32. Conhecidas as divergências do recorrente na demonstração da sua impugnação tendo em conta o agora proposto em 5, em relação aos fundamentos que terão sido os decisivos para a formação da convicção do M.º Juiz a quo, temos de pugnar pela improcedência da acção.
33. A Ré B..., Lda, vem demandada no âmbito da responsabilidade contratual, pela Autora, e nesse pressuposto, celebraram um acordo entre si em que a Ré B..., Lda, se obrigou a prestar àquela um determinado tratamento médico-dentário, mediante um preço.
34. Este contrato celebrado entre as partes espelha-se num contrato de prestação de serviço nos termos do artigo art. 1154º e ss do Código Civil, «aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição» tendo em conta a prova produzida e carreada para os presentes autos.
O resultado a que alude o dito art. 1154º do Código Civil não é a cura em si, mas somente a obrigação de empreender todos os meios adequados à obtenção de tal resultado.
Como se diz na douta sentença ao presente contrato são aplicáveis as disposições relativas ao contrato de mandato, por força do disposto no art. 1156º do C. Civil.
35. De igual modo, pacífico é outrossim que, em sede de responsabilidade civil contratual (tal como, de resto, também na extracontratual), a obrigação que da mesma emerge pressupõe, enquanto factos constitutivos, a prova da verificação dos seguintes pressupostos : a) a existência de um facto objectivo (acção ou omissão); b) a sua ilicitude; c) a culpa ; d) o dano/prejuízo e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
36. Todos os referidos pressupostos, à excepção do atinente à culpa (em face da presunção de culpa a que alude o artº 799º, do CC), é ao credor que incumbe o ónus de alegação e prova, designadamente e também o da ilicitude do não cumprimento, e o qual, no âmbito da responsabilidade obrigacional, corresponderá no essencial a uma relação de desconformidade entre a prestação debitória devida e o comportamento observado.
37. Estando a prova da culpa prevista no art. 799, segundo o qual é o devedor que tem o ónus de provar que a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, ao credor compete, por sua vez, fazer prova dos pressupostos da responsabilidade civil, como sejam, a ilicitude, o danos, o defeito e o nexo de causalidade, por força da norma supletiva do art. 342º do Código Civil, pois o elemento decisivo para que a Autora veja ser satisfeita a sua pretensão, é provar a existência de uma obrigação a cargo do Réu e a culpa no seu incumprimento do preceito legal, ou seja, a Autora na qualidade de credora, provar a falta de cumprimento do referido dever objetivo de cuidado na actuação técnica como fundamento de ilicitude na responsabilidade contratual médica art. 342º, 1, Cciv., e sobre o médico, na qualidade de devedor, recai o ónus de contra-provar arts. 342º, 2, 346º, CCiv. a inexigibilidade de comportamento contrário ao adoptado, em actuação conforme com as leges artis, a fim de afastar a responsabilidade, actuação não ilícita ou justificada; actuação sem ser causa do dano ocorrido; ilidir a presunção da culpa, nos termos do art. 799.º do CC.
38. No caso vertente do processo sub judice incumbia à Autora alegar e demonstrar a existência de uma obrigação e, bem assim, os pressupostos legais da responsabilidade civil, ou seja, os factos constitutivos do seu direito.
Mas da prova produzida ficou por se demonstrar um adequado nexo de causalidade entre a acção /conduta da Ré e o dano constado na pessoa da Autora, mesmo na versão originária da matéria de facto dada como provada e não provada.
É incontroverso (cfr. Consulta Técnico Científica do Instituto Nacional de Medicina Legal, com dada de 4/5/2022) que a broca podia ser utilizada com o fim de servir de material radiopaco na realização da radiografia.
39. Na verdade, de acordo com a matéria de facto originalmente decidida, isto é, sem ter em conta a impugnação feita pelo recorrente por via do presente recurso , nenhuma responsabilidade se pode atribuir à Ré quanto ao facto de a broca ter sido aspirada pela Autora.
40. Como erradamente se vem dizer na douta sentença recorrida, quanto ao “facto voluntário” que deu "como provado que o 2º réu, por sua iniciativa e sem qualquer obrigatoriedade em termos procedimento médico - pois que existem pinos em plástico destinados a tal fim, como resultou do seu depoimento e do depoimento de II - decidiu colocar uma broca filiforme, designada por “broca lança”, no orifício…”.
41. Ora ficou provado precisamente o contrário, até no que respeita ao depoimento da testemunha indicada pelo Juiz a quo, pois na verdade, por mais que se procure, em parte nenhuma da matéria provada, (assim como não foi alegado) se pode extrair que existem pinos de plástico, que pudessem ser utilizados em substituição da broca utilizada, podendo assim exercer a mesma função.
42. Decorre desta análise, que nem sequer se trata de matéria alegada, nem de matéria dada como provada pelo Tribunal a quo, e nesse pressuposto, andou mal o Tribunal a quo em proferir tal afirmação.
43. Como se pode constatar da "Consulta Técnico-científica do INML”, com data de 4/5/2022, cujo relator foi o professor Doutor JJ, junta aos autos em 19/5/2022, verificamos que consta o seguinte: "Se a realização da radiografia visar controlar a relação ente o espaço criado no tecido ósseo pela broca e as estruturas anatómicas adjacentes pode ser utilizada a broca para esse fim"; ou seja, nem se põe aqui em causa se existem ou não outros instrumentos que possam servir de material radiopaco, mas sim saber-se se é proibido ou é má prática médica, violando-se assim as leges artis se se utilizar a broca lança para esse fim, sendo forçoso concluir que o Réu não violou as boas práticas médicas, nem praticou factos ilícitos ou negligentes.
44. É incontroverso (cfr. Consulta Técnico Científica do Instituto Nacional de Medicina Legal, com dada de 4/5/2022) que a broca podia ser utilizada para o fim de servir de material radiopaco na realização da radiografia.
45. Da mesma forma mal andou o Tribunal a quo quando diz que foi sem qualquer amarra. É que, por um lado não está protocolizado que se imponha a utilização da amarra, por outro lado foi amplamente esclarecido pelo Perito do INML professor Doutor JJ, assim como das testemunhas Dr II e Dr KK, que as brocas não estão preparadas nem foram configuradas para poderem ser eficazmente amarradas.
46. É de estrema relevância o que também se pode ler na supra referida Consulta Técnico-científica, que, referindo-se ao acidente dos autos, diz que " m termos abstratos um acidente do tipo descrito pode ocorrer de forma imprevisível".
47. Quanto à culpa, entendida como um juízo de censura interno, significando que poderia e deveria ter havido uma atuação distinta por parte do Réu, considerando a matéria de facto dada como provada, no que se refere ao facto voluntário, como pressuposto da responsabilidade civil contratual, com ou sem amarra tal requisito não se verifica, tal como não se alcança a referencia que é feita pelo M.º Juiz a quo aos pinos em plástico em alternativa, à utilização da broca, tendo de se colocar a questão, que é se é ou não de má prática utilizar-se a broca como aconteceu no caso.
48. Da mesma forma, impõe-se concluir que não está demonstrada a ilicitude, isto é, não se demonstrou provado qualquer comportamento objetivo adotado pelo Réu que contrariasse as boas práticas médicas, assim como, não obstante a prova da ilicitude recair sobre a Autora, esta nada logrou provar nesse sentido.
49. Na verdade, não se provou a existência de qualquer ilicitude, desde logo, porque, para o M.º Juiz a quo nem sequer se apurou a razão porque a broca foi aspirada, mas já não para o recorrente que considera que se provou que a broca foi aspirada porque a Autora tossiu e fechou a boca.
O que se sabe, de acordo com a matéria de facto dada como provada, é que foi aspirada. Dai que tudo o que vem afirmado na douta sentença a propósito da ilicitude não tem qualquer sustentação, porque não vem suportado em factos, nem sequer a propósito vai repetidamente dito que os RR. não violaram qualquer norma de conduta, ou seja, as leges artis.
50. Vem também o M.º Juiz, pôr em causa o consentimento informado, não obstante a Autora ter assinado e prestado o seu consentimento livre e esclarecido, como a própria refere nas suas declarações, assumindo os riscos inerentes, dizendo que "certo é também que tal consentimento não abrangeu a colocação de uma broca lança sem qualquer sistema de segurança [...] pelo que, a aspiração da dita broca adveio de uma situação nunca consentida pela Autora".
51. Aliás estar a admitir este entendimento era estar a aceitar um abuso de direito na modalidade de venire contra factum próprium.
O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia, está presente, desde logo a norma do artº 334º do CC, que ao falar nos limites impostos pela boa fé no exercício dos direitos,pretende por essa via assegurar a protecção da segurança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.
52. Ou seja, actua com abuso de direito , na modalidade de venire contra factum próprium, quem como a Autora, num primeiro momento, após ser informada quanto ao tipo de procedimento médico que ia realizar, consente na realização do mesmo, assume os riscos inerentes, para depois vir afirmar que consentiu no procedimento, mas não nos riscos.
53. Ora, tais afirmações, do M.º Juiz, não fazem nenhum sentido, pois a utilização de brocas como material radiopaco, não tem que constar do consentimento da A., pois faz parte dos procedimentos normais.
54. Atendendo ao supra citado, forçoso é concluir pelo não preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil.
55. Não há qualquer facto ilícito ou culposo praticado pelo Réu Dr BB.
56. Assim, mesmo sem se proceder a qualquer alteração sobre a matéria de facto dada como provada, a acção devia ser julgada totalmente improcedente.
2 - A propósito da nulidade da douta sentença, importa referir que a Autora alegou, além do mais como causa de pedir o que consta do art. 29º, 30º, 31º, 32º, 33º e 34º da sua PI.
57. a) - Com propósito desconhecido o médico disse à Autora que se mantivesse a boca aberta pois iria colher imagem da mesma. (v. art. 29º).
b) - Para assegurar que a A. tinha a boca aberta, serviu-se de uma broca filiforme de 3 a 4 cm (v. art. 30º).
c)- Que colocou em jeito de escora. (v. art. 31º)
d) - Entre o céu e a base da boca, imediatamente por trás dos dentes frontais. (v. art. 32º).
e) - E com a broca nesta posição o médico afastou-se e foi buscar o aparelho de colheita de imagem.(v. art. 33º).
f) - Só que antes de voltar para junto da A. a broca soltou-se da posição e caiu para a orofaringe da A. (v. art. 34º).
E alega ainda nos arts. 18º a 27º da P.I.:
g) - Que a Autora estava deitada na cadeira em posição quase paralela ao chão, com a
barriga e a cabeça voltadas para cima, boca aberta e olhos cerrados por encadeada pela luz
intensa oriunda do candeeiro cirúrgico.
h) – Que o médico devia ter feito e não fez uso do lençol de borracha, (dique de borracha),
que a melhor literatura médica considera obrigatório e que no caso foi ignorado.
58. Ora, na decisão recorrida, estamos perante matéria de facto dada como provada que é muito
diferente desta alegada pela Autora.
59. Ou seja, a maior parte da matéria alegada na P.I. como causa de pedir não se provou. E provou-se outra nunca alegada pela Autora.
60. Ficou amplamente demonstrado na audiência de julgamento que as suas declarações, no essencial, continuaram na linha do que já vinha alegado na P.I., pelo que estas foram feitas de uma forma, inverosímil, confusa, cheias de contradições, e por repetidos lapsos, beneficiando, injustificadamente, de uma postura desculpante pelo Tribunal a quo, quanto a matéria essencial para a descoberta da verdade, nomeadamente toda a matéria que respeita à prova produzida quanto à identificação da broca, na versão da Autora.
61. Pelo que deveriam ter sido descredibilizadas, ao invés de valorizadas quando em contradição com outros depoimentos, nomeadamente os do 2ª Réu e da testemunha Dra. CC que estavam junto dela, no consultório onde foi realizado o procedimento cirúrgico, depoimentos estes que, salvo o devido respeito, foram desconsiderados de forma desvirtuosa pelo M.º Juiz a quo.
62. Restando dizer, como já acima referido, que se a acção já devia ser julgada improcedente com a matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida, então com maioria de razão deve o presente recurso sobre a matéria de facto merecer o acolhimento de V.as Ex.as.
63. Tudo matéria não provada. Em contrapartida o M.º Juiz a quo deu como provados os factos 8) e 9), matéria, que, no entanto, vai em parte impugnada no presente recurso, que não foi alegada pela Autora e, portanto, não faz parte da causa de pedir, não tendo, nem o ora recorrente, ou a Ré, ou intervenientes sido citados para contestar.
64. Assim, tal constitui causa de nulidade da sentença, em termos do art. 615º, nº 1 –d) do C.P. Civil.
65. Finalmente, quanto ao montante indemnizatório, devendo a acção ser julgada improcedente, não deve ser atribuída qualquer indemnização.
66. Mas, mesmo que a matéria de facto julgada provada não fosse objecto de qualquer alteração, que não se concede, o montante da indemnização é de um manifesto exagero impossível de compreender.
67. Como comprovado pelos relatórios clinicos, carreados para o presente processo, a Autora já sofria de síndrome de Cushing, ACTH dependecíclico (tendo sido operada em 2013 a nódulo da supra-renal) Diabetes Mellitus Tipo 2, Dislipdemia, Depressão Major, Excesso ponderal, HTA.
68. A este propósito, esclareceu o senhor Perito Médico Dr. HH que o corpo estranho não apresenta repercussão sobre a função respiratória, e que o risco de infecções respiratórias mais frequentes é também pequeno, e que a acontecer se tratam como qualquer outra infecção respiratória, odendo a Autora fazer uma vida normal, pelo que indemnização nunca devia ser superior a € 12.500,00 (Doze mil e quinhentos euros).
Na douta decisão foram foi violado o vertido nos artºs, 615 n1 d), do Código do Processo Civil e o artº 342 do Código Civil.
NESTES TERMOS
Deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se nula ou revogando-se a decisão recorrida, com as legais consequências.
SÓ ASSIM SE DECIDINDO SERÁ
CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA»
*
Apresentou, ainda, recurso de apelação a interveniente acessória sociedade “C... – Companhia de Seguros, S.A.”, rematando as respetivas contra-alegações com as seguintes conclusões:
«1. Com o presente recurso a Recorrente impugna a douta Sentença, ante a condenação da 1ª Ré, “no pagamento a AA da quantia de €42.000,00 (quarenta e dois mil euros), a título de danos não patrimoniais pela mesma sofridos em consequência direta e necessária do incumprimento contratual daquela. (...)”
2. O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito, pelo que, as presentes obedecerão ao disposto nos artigos 639º e 640º do Código de Processo Civil.
3. Sufraga a ora Apelante as presentes alegações na análise de seis questões primordiais, a saber: 1- Nulidade da Sentença por, salvo o devido e merecido respeito, o Mm. º Juiz ter conhecido questões de que não podia tomar conhecimento; 2 - Impugnação da matéria de facto provada e não provada; 3 -_ Omissão de inclusão, nos factos provados, de matéria de facto relevante; 4 - Violação do disposto no artigo 342º do Código Civil; 5 - Errada aplicação do direito; e 6 - Do montante indemnizatório fixado.
4. A Segurada da ora Apelante, 1ª Ré, alega no recurso que intentou - com o que concordamos e subscrevemos, dando-o, nessa parte, por reproduzido, por celeridade -, que foi condenada com base em factualidade completamente diferente da alegada como causa de pedir, o que resulta cristalino do confronto dos artigos 21º, 29º, 30º 31 e 32º da P.I. com os factos provados nºs 8 e 9 da sentença.
5. Por tal facto, é a sentença nula por força do disposto na alínea d) do nº 1 do artº 615 do Código de Processo Civil, devendo tal nulidade ser julgada verificada, com todas as legais consequências, absolvendo-se a Segurada da aqui recorrente do pedido – cfr., entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.10.2028, proferido no processo nº 34503/15.8T8LSB.L1-7 e disponível e, www.dgsi.pt.
6. Ante a evidente contradição entre o alegado e o julgado, deve a Sentença sob sindicância ser considerada nula por força do disposto na alínea d) do nº 1 do artº 615 do Código de Processo Civil.
Sem prescindir,
7. O Tribunal não dispunha de prova suficiente e cabal que lhe permitisse concluir que o 2º Réu, nem no referido dia, nem nunca, havia colocado uma amarra num instrumento cirúrgico – facto provado 9 e facto não provado.
8. Desde logo, porquanto, do depoimento do Réu BB, supra coligido e, ainda, do depoimento da testemunha CC, resulta que a amarra/fio dentário foi utilizado, a qual se mostrava presa à broca e “escorria” pela mão do 2º Réu.
9. Assim, o facto provado 9 deveria ter a seguinte redação: “Entretanto, BB decidiu colocar uma broca filiforme, designada por “broca lança”, no orifício criado pelo mesmo com a perfuração óssea do maxilar de AA, para que funcionasse como material radiopaco e, dessa forma, permitisse apurar a profundidade da perfuração.”
10. E excluir-se dos factos não provados o supra coligido.
Também,
11. Deveria ter sido dado como provado que “A Autora não cumpriu a instrução dada pelo 2.º Réu para manter a boca aberta, tendo tossido e, por via disso, aspirado a broca cirúrgica” e que “A aspiração da broca cirúrgica pela Autora resultou de comportamento adotado pela mesma.” – cfr. depoimento do 2º Réu e da testemunha CC, supra coligidos.
12. Consequentemente, ante a alteração da matéria factual, dever-se-á concluir que a A. concorreu para a produção dos danos, devendo, por isso, ficar excluída a indemnização nos termos do disposto no artigo 570º do Código Civil (ou, no limite, e sem conceder, ser a mesma reduzida).
Acresce que,
13. Porque se afigura especialmente relevante, deveria ter sido levado aos factos provados que o evento dos autos não se ficou a dever a qualquer deficiência de material ou equipamento utilizado no tratamento da autora, propriedade da A... – cfr. depoimento do Réu Dr. BB supra transcrito, que se reproduz.
14. Bem como, deveria ter sido dado como provado que o ato médico ocorreu a um domingo, fora do horário de funcionamento da clínica, conforme pedido especial da autora e do Dr. BB, e no qual participaram terceiros alheios à Segurada da Recorrente, aqui 1ª Ré - cfr. depoimento do Réu Dr. BB supra transcrito, que se reproduz.
Acresce, ainda, que,
15. Dispõe o artigo 342º do Código Civil que “[à]quele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.” No caso, a A. alegou factos, como já deixámos supra exposto no ponto 1_, diametralmente opostos daqueles que vieram a sustentar a condenação da 1ª Ré/Recorrente A....
16. Os factos alegados na P.I. sob os artigos 21º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º e 44º não resultaram provados, os quais constituíam a sua causa de pedir, pelo que, não os tendo provado, deveria a ação ter sido julgada improcedente, por não provada, o que ora se requer seja decido por este Venerando Tribunal.
Também,
17. Resulta da Sentença proferida que “da factualidade apurada, importa concluir que os pressupostos da obrigação de indemnizar da Ré, em sede responsabilidade contratual, se encontram preenchidos.”
18. Da análise que o Tribunal a quo faz dos requisitos necessários à imputação e responsabilidade, v.g., existência de um facto humano voluntário, qualificado como ilícito, cometido com culpa, que tenha causado um dano e que se estabeleça um nexo causa entre o facto e o dano, é sempre imputado ao 2º Réu, BB, a responsabilidade pelos danos advenientes à A./Recorrida – vide factos provados.
19. Porém, condena a 1ª Ré, relativamente à atuação do 2º Réu, e ante a previsão do artigo 800º do Código Civil.
20. A problemática do concurso de responsabilidades emerge da possibilidade real de um mesmo facto preencher os pressupostos da responsabilidade contratual, quer da responsabilidade extracontratual. Trata-se de um problema omnipresente na matéria da responsabilidade médica.
21. A propósito desta temática muito se tem dividido a doutrina. A divisão faz-se entre os que são partidários do cúmulo e os que o não são, e tudo acontece sobre o silêncio da lei. Note-se que, mesmo aqueles que defendem a ideia do cúmulo, não procuram que o lesado possa, pelo mesmo dano, obter duas indemnizações, trata-se de atribuir uma única indemnização.
22. In casu, considerando os factos provados ínsitos na Sentença e aqueles que se pretendem incluir – e porque tal decisão se apresentaria indiferente à A. – é facto que poderia o Tribunal a quo ter condenado diretamente o 2º Réu, tanto que é exclusivamente a ele que imputa responsabilidade, por via da sua atuação, pelos danos advenientes para a Autora.
23. Evitando-se, ademais, eventuais ações de regresso entre os aqui Réus.
Por fim,
24. O montante da indemnização fixado pelo Mm. º Juiz ultrapassa, em larga medida, qualquer quantia equitativa e apresenta-se, por isso, manifestamente exagerada, considerando que a A. apresentava diversas patologias pré-existentes e corpo estranho que se mostra alojado no pulmão da A. não lhe determina qualquer limitação, nem apresenta repercussão sobre a função respiratória.
25. Ao assim decidir, violou, assim, o Mm.º Juiz o disposto nos artigos 342º, 405º, 483º do Código Civil e os demais que V. Exas. vierem a considerar.
TERMOS EM QUE,
Com o sempre mui Douto suprimento de Vossas Excelências deve o presente recurso de Apelação ser julgado procedente e, em consequência, alterando-se a factualidade nos termos expostos, revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que absolva a 1ª Ré/Recorrente do pedido, assim se fazendo
JUSTIÇA!»
*
Apresentou, igualmente, recurso de apelação a interveniente acessória sociedade “D... – Companhia de Seguros, S.A.”, a qual finalizou as suas contra-alegações com as seguintes conclusões:
«1ª/ A douta sentença, no que se refere à decisão sobre a matéria de facto ou tem fundamentação insuficiente ou mesmo em relação a alguns factos não tem mesmo fundamentação nenhuma., acabando por, na parte impugnada, se traduzir em erro grosseiro na sua apreciação.
2º/ Actualmente já não é aceite uma fundamentação meramente formal ou passiva, tendo de ser antes material e activa, consistente na invocação própria e concreta de fundamentos, que mesmo não concordantes com os invocados pelas partes, sejam expostos num discurso próprio, capazes de demonstrar que houve uma verdadeira reflexão autónoma.
3ª/ Tudo o que seja remeter em abstrato para o que disseram as testemunhas, com expressões do género " prestaram o seu depoimento de forma segura e isenta" , "com objectividade e clareza e, por isso com credibilidade" não é fundamentação, pois o Tribunal deve concretizar o que de relevante disse cada testemunha e em que medida e por que razão é relevante e em que sentido, para a decisão.
4ª/ O mesmo vale quando se diz que as conclusões a que se chegou "estão de acordo com as regras da experiência comum", sem justificar como.
5ª/ Da mesma forma está vedado afirmar apenas que não se atendeu aos depoimentos de determinadas testemunhas por " terem revelado falta de clareza" e/ ou manifesto comprometimento sem explicitar como.
6ª/ É que chega a não se dar valor a determinadas testemunhas porque se é cônjuge, uma das partes e por essa razão não merecerem credibilidade, como também tios, filhos ou irmãos já merecem credibilidade, ficando sem se saber por que razão o parentesco nuns casos é razão de exclusão da valoração do seu depoimento e se noutros casos não.
7ª/ Assim, os seguintes pontos da matéria de facto julgada provada estão incorretamente julgados:
- O facto provado 9/ na parte em que refere " sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança"..
- O facto provado 10/ na parte em que diz: "afastou-se de AA".
- O facto provado 28/.
- O facto provado 29/.
8ª/ Quanto aos pontos da matéria de facto considerada não provada são os seguintes os pontos incorrectamente julgados, ou seja, os quatro últimos da decisão.
- " A Autora não tenha cumprido a instrução dada pelo 2º réu para manter a boca aberta, tenha tossido e, por via disso, aspirado a broca cirúrgica".
- “A aspiração da broca cirúrgica pela Autora tenha resultado do comportamento adotado pela mesma".
- " O 2º réu tenha usado fio dentário como amarra da broca filiforme que foi aspirada pela autora".
- " No momento imediatamente anterior à aspiração da broca cirúrgica pela Autora, o 2º réu estivesse a segurar a mesma com os dedos indicador, médio e polegar da sua mão direita".
9º/ A fundamentação que foi invocada na douta sentença recorrida para os factos considerados provados foi a seguinte:
- Para o facto provado 9/ o depoimento do 2º réu Dr. BB e as Declarações de parte da A. AA.
- Para o facto provado 10/, as declarações de parte da A. AA.
- Para o facto provado 28/ os depoimentos das testemunhas GG (filho da Autora), DD (Tia da Autora), EE ( irmã da A.), e FF (Irmã da A.).
- Quanto ao facto provado 29/: os documentos de fls. 17 a 19v, 23 a 34, 41, 64v a 70, 90 a 98, 100, 101, 103,105, 107, 121 a 126, 128, 128v, 246 a 289, 312 a 318, 332 a 336, 363 a 368, 420, a 426, 450 a 452, 465 a 475, 480 e 481.
10ª/ A fundamentação da matéria de facto para os factos não provados não foi nenhuma, pois, apenas consta da sentença que " resultaram os mesmos da ausência de prova da sua verificação, seja por as testemunhas ouvidas os não terem confirmado ou o não terem feito de uma forma considerada credível, inexistindo nos autos outros elementos probatórios da sua verificação".
11ª/ Os concretos meios de prova constantes do processo que impunham decisão diversa sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida são, quanto ao facto 9/, na parte em que refere "sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança": os depoimentos do réu Dr. BB nas transcrições atrás feitas das 18:15 às 26:15; e da testemunha Dra CC das 5:30 a 12:53.
12ª/ Ambos foram coincidentes no sentido de que o 2ª réu BB informou a A. que ia tirar uma radiografia e que lhe disse para ter a boca aberta, tendo introduzido no orifício acabado de fazer, a própria broca com que o tinha feito, para servir de material radiopaco, à qual atou para servir de amarra um fio dentário.
13ª/ Quanto ao facto provado 10/ na parte em que diz que o 2º réu Dr. BB "afastou-se da A. E... é esta mesma que refere no seu depoimento, não que se afastou, mas que se levantou (v. passagem do seu depoimento, atrás transcrito na pág. 28, de 29:00 até 30:19).
14ª/ Ainda em relação ao mesmo facto provado 10/ resulta também do depoimento do R. Dr. BB que não se afastou e esteve sempre junto da A. a segurar a broca colocada no orifício.
15ª/ E também em relação ao facto provado 10/ o depoimento da testemunha Dra. CC nas passagens de 5:30 a 6:38, atrás transcritas nas páginas 17 e 18.
16ª/ Quanto ao facto 28 é certo que as testemunhas GG, DD, EE e FF referem circunstancialmente que a A. não pode fazer ressonâncias magnéticas, mas por, segundo elas terem ouvido dizer .
17ª/ Todavia, o perito médico Dr. HH nas suas declarações (V. passagem de 05:01: a 05:33) diz que “pode perfeitamente” (a transcrição está na página 26); só terá que dar indicação dessa presença do corpo metálico, que é a broca alojada no pulmão.
18ª/ Quanto ao facto provado 29/ também resulta dos esclarecimentos do mesmo perito Dr. HH, que “em volta da broca cria-se um tecido de granulação” e que impede a mesma de se deslocar.
19ª/ Por isso, diz o mesmo perito médico, a única repercussão que pode acontecer é a probabilidade de a jusante haver uma infecção respiratória mais frequente, mas que, em termos funcionais “não há qualquer repercussão” (v. passagens de 05:25 a 06:29, transcrita na pagina 27).
20ª/ Assim, o facto provado 29/ devia ter resposta diferente, ou seja, devia ser complementado com o esclarecimento do Sr. Perito Médico , acrescentando-se “embora se trate de uma hipótese pouco provável , e em termos funcionais não há qualquer repercussão, que impeça que a Autora tenha uma vida normal.
21º/ Quanto ao facto não provado “A Autora não tenha cumprido a instrução dada pelo 2º Réu para manter a boca aberta, tenha tossido e, por via disso aspirado a broca cirúrgica, impõem decisão diversa p depoimento do 2º Reu Dr. BB, na passagem 22:01 a 24:01, as declarações da própria Autora quando espontaneamente na passagem entre 24:03 e 26:03 refere que tossiu e depois o próprio Meritíssimo Juiz a confronta com aquela afirmação (v. passagem de 29:01 a 30:19), bem como do depoimento da testemunha Dra. CC, na passagem de 05:30 a 6:00 já atrás transcrita nas páginas 17 e de 00:00:00 a 06:01 ( na 2ª parte do seu depoimento, gravado entre as 16:23:34 e de 16:54:37), nas pags. 29 a 31.
22ª/ Quanto ao facto não provado “ a aspiração da broca cirúrgica pela A. tenha resultado de comportamento adoptado pela mesma” vale o que se disse na conclusão anterior, pois um é inseparável do outro.,
23º/ Quanto ao facto não provado “o 2º Réu tenha usado fio dentário como amarra da broca filiforme” vale o que se disse em relação ao facto provado 9, uma vez que estão interligados: ao pretender que neste último se retire da matéria de facto provada que a A, não usou qualquer amarra ou sistema de segurança é porque se entende que usou a amarra que se dá como não provada.
24ª/ O mesmo acontece em relação ao facto não provado “No momento imediatamente anterior à aspiração da broca cirúrgica pela A.”, o 2ª Réu estivesse a segurar a mesma com os dedos indicador médio e polegar da sua mão direita, vale também as declarações já referida para o facto 9 e ainda as declarações do 2º réu Dr. BB de 22:01 a 24:01 e da testemunha Dra. CC prestadas na parte do seu depoimento entre as 16:23:34 e 16:54:37, de 00:00:00 a 02:02).
25ª/ Assim, a decisão sobre a matéria de facto impugnada devia ser a seguinte
a) Quanto ao facto provado 9/, deve retirar-se o seguinte segmento: “Sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança”, ficando assim: “9 - Entretanto, BB decidiu colocar uma broca filiforme, designada por “broca lança” no orifício criado pelo mesmo com a perfuração óssea do maxilar de AA, para que funcionasse como material radiopaco e, dessa forma, permitisse apurar a profundidade da perfuração”.
b) Quanto ao facto provado 10/ deve ser retirada a expressão “afastou-se de AA”, ficando: “Durante tal procedimento a dita “broca lança” saiu do local onde se encontrava, tendo sido aspirada por AA, alojando-se no campo pulmonar direito.”
c) Quanto ao facto provado 28, o mesmo deve considerar-se não provado.
d) Quanto ao facto provado 29, deve dar-se como provado apenas: “Em consequência directa e necessária da aspiração da broca filiforme por AA, embora possam acontecer infecções respiratórias mais frequentes , em termos funcionais não há repercussões na vida corrente da Autora e a infecção a ocorre deverá ser tratada “com antibióticos como qualquer outra”.
e) Deve ainda dar-se como provado que aquando do procedimento referido em 9/ dos factos provados a Autora tossiu e fechou a boca, tendo sido por causa deste seu comportamento que a broca foi aspirada.
f) Bem ainda que “o 2º Réu aquando do mesmo procedimento referido em 9/ prendeu a broca com amarra de fio dentário".
g) E finalmente que " imediatamente antes da aspiração da broca cirúrgica pela Autora o 2ª Réu estava a segurar a mesma com a sua mão direita, utilizado os dedos da indicador médio e polegar".
26ª/ Perante a matéria de facto julgada provada na sentença recorrida, com as alterações pretendidas na impugnação feita no presente recurso, a acção terá de ser julgada totalmente improcedente.
27ª/ Tratando-se de um caso de responsabilidade civil contratual em que , como se diz na douta sentença recorrida, são aplicáveis as disposições relativas ao contrato de mandato , por força do disposto no art. 1156º do C.C. , já que se está perante um contrato de prestação de serviços previsto no art. 1154º e ss.
28ª/ Nos termos do art. 799º cabe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, mas compete ao credor fazer prova dos pressupostos da responsabilidade civil, como sejam a ilicitude, os danos e o nexo de causalidade, por força da norma supletiva do art. 342º do C.Civil, pois o elemento decisivo para que a Autora veja ser satisfeita a sua pretensão é provar a existência de uma obrigação a cargo do réu e a culpa do seu incumprimento do preceito legal.
29ª/ Da prova produzida ficou por demonstrar um adequado nexo de causalidade entre a acção/conduta da Ré e o dano constado na pessoa da Autora, mesmo na versão da matéria de facto dada como provada e não provada da douta sentença, isto é, mesmo que não fosse impugnada como foi no presente recurso.
30ª/ É incontroverso (cfr. Consulta Técnico Científica do Instituto Nacional de Medicina Legal, com dada de 4/5/2022) que a broca podia ser utilizada para o fim de servir de material radiopaco na realização da radiografia.
31ª/ Por outro lado, tais brocas não foram concebidas para ser eficazmente amarradas, nem têm que o ser, sendo que, como diz o relatório da referida consulta Técnico Científica, um acidente do tipo do que veio a acontecer pode ocorrer de forma imprevisível .
32º/ Não se provou a existência de qualquer ilicitude , pois , para o Meritíssimo Juiz também não se apurou a razão por que a broca foi aspirada, já não para a recorrente que considera que se provou que a broca foi aspirada porque a Autora tossiu e fechou a boca.
33ª/ Também não faz sentido dizer-se como se faz na douta sentença que a Autora nunca deu o seu consentimento a que broca fosse utilizada como material radiopaco, pelo que a aspiração resultou de uma situação nunca consentida pela autora.
34ª/ Na verdade, a utilização de brocas para aquele fim não tem de constar de qualquer consentimento do paciente, pois trata-se de procedimentos que se enquadram no tratamento contratado.
35ª/ Assim, mesmo sem se proceder a qualquer alteração da decisão sobre a matéria de facto dada como provada a acção também devia ser julgada totalmente improcedente.
36ª/ Acresce que a A. alegou como causa de pedir factos nos arts. 29º, 30º, 31º, 32º, 33º e 34º que não se provaram.
37ª/ A matéria de facto dada como provada é muito diferente desta alegada, tendo o Meritíssimo Juia a quo. dado como provados factos nunca alegados (v. factos provados 7.,8., 9, da douta sentença).
38ª/ De onde resulta que a Ré foi condenada com base em factos que não foram alegados na p.i., o que constitui nulidade da sentença (gfr art. 615º, nº 1-d do C.Civil).
39ª/ Finalmente, quanto ao montante indemnizatório, sendo a acção julgada improcedente, obviamente que não há lugar a indemnização , mas mesmo que se provasse a ilicitude e a culpa da Ré , a indemnização atribuída é exagerada , pois a A. já tinha como antecedente síndrome de Cushing, ACTH dependente cíclico (operada em 2913 a nódulo supra-renal) Diabetes Mellitius Tipo 2, Dislipidemia , Depressão Major , Excesso Ponderal e HTA,
40ª/ Sendo certo que o Senhor Perito Médico Dr. HH esclareceu que o corpo estranho alojado no pulmão não apresenta repercussão sobre a função respiratória e que o risco de infecções respiratórias mais frequentes é também pequeno e que estas , se acontecerem , tratam-se como todas as outras, a indemnização adequada não devia ser superior a € 12 500,00.
41ª/ Foram violadas, entre outras , as normas contidas no art. 615º, nº 1-d), na medida em que conheceu de factos não alegados e no art. 342º do C. Civil, ma medida em que a A. não fez prova dos pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente que a Ré praticou de um acto ilícito .
Será, assim, feita JUSTIÇA.»
*
Apresentou a A. contra-alegações e recurso subordinado, os quais finalizou com as seguintes conclusões:
«1-Atento o alegado nos artigos 22º a 26º da P.I., os termos em que o Tribunal a quo delimitou o objecto do litígio e fixou os temas de prova por despacho saneador de 04/02/2021 (sem reclamação) não há falta de alegação do que quer seja por parte da Autora; não há violação do principio do dispositivo, não há nulidade; o Tribunal a quo conheceu do que podia conhecer;
2-Impendia sobre a Autora, apenas, o ónus de alegar e provar que durante a cirurgia às mãos e sob os cuidados da Ré A... e do médico da contratação desta (Réu BB), uma broca cirúrgica filiforme caiu na sua orofaringe alojando-se, depois, no seu pulmão, sem necessidade de especificar a causa de tal queda;
3-Recaía sobre a Ré A..., caso quisesse exonerar-se da responsabilidade emergente da queda da broca, demonstrar que essa queda era imputável à Autora, a terceiro ou a caso fortuito (o que não logrou);
4-A relação da Autora com a Ré A... é, além do mais, uma relação jurídica de consumo; havendo, por imperativo legal, uma garantia de bom funcionamento, não cabe ao comprador do serviço identificar ou individualizar a causa concreta do mau funcionamento - Calvão da Silva ob. citada;
5- A distinção entre obrigações de meios/obrigações de resultado não tem razão de ser à luz do nosso direito; neste sentido Vaz Serra, Menezes Cordeiro, Menezes Leitão, ob. citada - “em ambos os casos aquilo que o devedor se obriga é sempre uma conduta e aquilo que o credor visa é sempre um resultado que corresponde ao seu interesse (artº. 398, nº2), cabendo sempre ao devedor o ónus da prova de que realizou a prestação ou de que a falta de cumprimento não procede de culpa sua”;
6- Evitar a queda de instrumentos cirúrgicos para a orofaringe era um resultado manifestamente esperado da prestação da Ré A... e do médico por esta contratado (Réu BB) que emerge, logicamente, do facto da Autora não se ter entregue aos cuidados de uma pessoa qualquer, antes de uma clínica médica;
7-Nem a Ré A..., nem o Réu BB, lograram provar que usaram na cirurgia de todos os procedimentos adequados a evitar a queda da broca cirúrgica, nem que aquela queda resultasse, ou só pudesse resultar, de causas exteriores às suas intervenções, ónus impendente sobre estes – artº. 799 do C.C.;
8- Submetendo-se a Autora a cirurgia para reabilitar os espaços edêntulos mandibulares da sua boca e saindo da mesma com uma broca cirúrgica alojada no seu pulmão direito resulta evidente que não foi atingida a finalidade da prestação assumida pela Ré A... no que respeita à intervenção cirúrgica o que se traduziu em incumprimento;
9- A Ré A... não afastou a presunção de culpa sobre a mesma impendia quanto ao não cumprimento da obrigação de proporcionar à Autora, através do contrato de prestação de serviços, um resultado claro: fazer bem o exame radiográfico, fazer bem a cirurgia;
10- Em situações como a dos autos torna-se claro qual é o interesse do credor e que a este apenas interessa o resultado final da atividade desenvolvida, sendo-lhe indiferente o modo seguido pelo credor para obter esse resultado;
11- Quando o devedor não cumpre aquilo a que, qualitativamente, se obrigou há incumprimento ou, pelo menos cumprimento defeituoso;
12-Tratando-se de acto médico com margem de risco ínfima, a obrigação assume a natureza de obrigação de resultado; resulta evidente do programa contratual definido pelas partes que deste nunca fez parte a Autora ingressar na clínica para reabilitar espaços edêntulos e dali sair com uma broca cirúrgica alojada num pulmão;
13- Ficou provada a desconformidade da prestação da Ré A... com o interesse da Autora enquanto credora contratual;
14- Não foi afastada a presunção de culpa que impendia sobre a Ré A... quanto ao cumprimento defeituoso da obrigação de fazer bem a cirurgia;
15- É de considerar verificado o pressuposto da ilicitude quando a lesão sofrida (queda de broca filiforme na orofaringe com aspiração e alojamento num pulmão) seja, em alto grau, estranha ao cumprimento do fim do contrato e a sua gravidade resulte desproporcionada quando comparada com os riscos normais para o lesado, inerentes àquela concreta intervenção ou acto médico;
16- Não se suscitam dúvidas quanto ao facto voluntário, ao dano e ao nexo causal que intercede entre ambos : tendo a Autora sofrido, no decurso de exame radiológico no âmbito de uma cirurgia de implantologia efectuada pelo Réu BB nas instalações da Ré A... uma queda de uma broca cirúrgica filiforme para a orofaringe, com aspiração e alojamento no pulmão direito, que exigiu a realização das intervenções cirúrgicas de que dão conta os autos, sem que nunca fosse lograda a respectiva remoção, conforme factos provados 12 a 19 da sentença recorrida, resulta evidente o preenchimento de tais pressupostos;
17- A inexecução da prestação contratual, como violação do contrato, é um acto ilícito, elemento integrante da responsabilidade contratual (a ilicitude traduz-se aqui, tão só, numa relação de desconformidade entre o comportamento devido, que seria necessário para a realização da prestação devida, e o comportamento tido pelo agente (art. 762º do C.C.);
18- Quanto à culpa, médicos e unidades privadas de prestação de cuidados de saúde estão obrigados para com os seus doentes, quer pelos específicos deveres que resultam do contrato com eles celebrado, quer por um dever geral de cuidado e tratamento que a própria deontologia profissional lhes impõe quando fazem o juramento de Hipócrates;
19- Tal padrão de conduta é mais exigente se o médico é um especialista na área respectiva, como é o caso do Réu BB;
20-Apurou-se que de acordo com o cuidado, a perícia e os conhecimentos compatíveis com os padrões dos médicos-dentistas cuidadosos do nosso tempo agindo em semelhantes circunstâncias o Réu BB deveria ter utilizado uma amarra cirúrgica na broca, prendendo esta com dois nós; tal amarração não aconteceu;
21- A Autora efectuou a radiografia no contexto de cirurgia de implantologia para reabilitar os seus espaços edêntulos - a Ré A... e o Réu BB aceitaram e executaram a obrigação de realizar a radiografia, colher o respectivo resultado e, em função deste, conduzir a posterior actuação cirúrgica;
22- Não era exigido ou sequer suposto, em condições normais, que para o cumprimento do resultado se viesse a verificar a lesão que sobreveio (deglutição de broca cirúrgica filiforme);
23-Objectivamente ocorreu uma lesão da integridade física da Autora, não exigida pelo cumprimento do contrato, a este completamente estranha e de gravidade desproporcionada à vista da saúde da Autora e riscos inerentes à intervenção; está verificada a ilicitude;
24- Se a intervenção não apresenta complexidades significativas, se é comum, não exige internamento ou anestesia geral, se a mesma tem um risco baixo de complicações, desembocando a mesma num dano que, supostamente, não devia ter ocorrido e, sobretudo, num dano com a gravidade provada nos autos, em termos de lógica dos acontecimentos tal sucedeu, não por força da complexidade do acto médico (não invocada) ou dos riscos que lhe estão associados (muito reduzidos), mas devido a falha no procedimento por quem o praticou;
25-Nestas hipóteses, demonstrada a ilicitude, devem ser o médico ou a clínica, pela sua proximidade com os factos e com os meios de prova, a demonstrar os factos que permitam afastar a sua culpa presumida;
26-Avulta aqui, ainda, a doutrina dos deveres acessórios da prestação; no caso sob apreciação, a obrigação principal – a função de reabilitação dos espaços edêntulos – era acompanhada do dever de não afectar qualquer outro bem jurídico da Autora;
27- Vai suscitada a subsidiária ampliação do âmbito do recurso a requerimento da Recorrida nos termos do disposto no artº. 636º, nº2 do C.P.C. - deveria o Tribunal a quo ter dado por provado o que foi alegado no artigo 22º da P.I.;
29-A subsidiariedade da ampliação é sublinhada pelo que resulta do sumário do Acordão da Relação de Coimbra de 22/06/2010, Proc. nº 1803/08.3TBVIS.C1 - não carecendo os factos notórios de alegação, nem de prova, não devem figurar no questionário;
30-Qualquer cidadão comum - que todos têm, ou tiveram, dentes - conhece e tem por segura a obrigação do médico dentista tal como alegada no artº 22º da P.I.;
31- Sustentam a ilicitude de actuação e a requerida ampliação a requerimento da Autora/Recorrida :
- Depoimento (esclarecimentos) do Perito JJ, médico dentista, professor universitário, conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 21/10/2022, gravado através do sistema audio citius em uso no Tribunal das 10H:46m às 11H:33m com Transcrição facultativa do minuto/segundo 01:53 ao minuto/segundo 02:33; Transcrição facultativa do minuto/segundo 06:15 ao minuto/segundo 07:20; Transcrição facultativa do minuto/segundo 09:59 ao minuto/segundo 10:14; Transcrição facultativa do minuto/segundo 11:47 ao minuto/segundo 13:40; Transcrição facultativa do minuto/segundo 24:09 ao minuto/segundo 24:12; Transcrição facultativa do minuto/segundo 37:18 ao minuto/segundo 38:17;
- Depoimento/Declarações de Parte do Réu BB, conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 21/10/2022, gravado através do sistema audio citius em uso no Tribunal das 11H:42m às 12H:54m com Transcrição facultativa do minuto/segundo 58:00 à hora/minuto/segundo 1:06:06; Transcrição facultativa do minuto/segundo 37:55 ao minuto/segundo 39:37;
- Depoimento da testemunha CC, médica dentista (cônjuge do Réu BB), conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 21/10/2022, gravado através do sistema áudio citius em uso no Tribunal das 16H:23m às 16H:54m com Transcrição facultativa do minuto/segundo 09:50 ao minuto/segundo 16:53 e Minuto/segundo 15:22 ao minuto/segundo 26:38;
- Depoimento da testemunha KK, médico (Coordenador clínico da Ré A...), conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 09/04/2024, gravado através do sistema audio citius em uso no Tribunal das 11H:16m às 11H:51m com Transcrição facultativa do minuto/segundo 15:46 ao minuto/segundo 16:55; Transcrição facultativa do minuto/segundo 19:05 ao minuto/segundo 20:05;
- Depoimento da testemunha II, médico dentista e professor na Universidade ... onde leciona em cirurgia (professor do Réu BB), conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 09/04/2024, gravado através do sistema audio citius em uso no Tribunal das 15H:17m às 15H:31m, com Transcrição facultativa do minuto/segundo 08:03 ao minuto/segundo 08:28; Transcrição facultativa do minuto/segundo 32:08 ao minuto/segundo 33:10; Transcrição facultativa do minuto/segundo 35:56 ao minuto/segundo 37:37; Transcrição facultativa do minuto/segundo 40:53 ao minuto/segundo 41:16; Transcrição facultativa do minuto/segundo 46:18 ao minuto/segundo 47:58;
- Relatório pericial do Instituto Nacional de Medicina Legal, especialidade de medicina dentária, com entrada nos autos a 19/05/2022, datado de 4/05/2022, subscrito pelo Perito, Professor Dr. JJ, destacando as respostas aos quesitos “A”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G” e “R”;
- o email de dia 23/11/2018, junto a fls. 68, no qual, o 2.º Réu apresentou uma descrição do sucedido muito diferente da de 12/10/2018, só agora falando em tosse, dedos a segurar a broca e amarra;
32-A responsabilidade da Ré A... enquanto clínica médica devedora dos serviços de saúde decorre do princípio geral previsto no art. 800º do Código Civil: o devedor que, para efeitos de cumprimento, lança mão de auxiliares - daí colhendo vantagens - deve, em contrapartida, aceitar o risco pelos prejuízos causados a terceiros, a título de culpa (mesmo que presumida), pelos seus auxiliares; os actos dos auxiliares no cumprimento do contrato de prestação de serviços médicos (sejam eles dependentes ou independentes) são imputáveis ao devedor (clínica médica) como se tivessem sido cometidos pelo próprio;
33-Num caso de responsabilidade médica em que foi celebrado um contrato total com a clínica como é o caso (a Autora nada contratou como Réu BB, vejam-se os Docs. nºs 1 e 2 juntos à P.I.), a clínica responde por todos os danos ocorridos, sejam eles de carácter médico, assistencial, de equipamento ou até mesmo de hotelaria, respondendo nos termos do art. 800.º do C.C.;
34-A nossa mais recente jurisprudência vem afirmando que, confluindo a violação de um direito subjectivo absoluto e a violação de deveres contratuais, assiste ao paciente/lesado a faculdade de aproveitar as soluções de cada regime conforme lhe aprouver e se mostre, em concreto, mais vantajoso para a salvaguarda dos seus interesses; a Autora optou pela responsabilidade contratual, formulando pedidos subsidiários;
35- Nesta parte há que revisitar o depoimento de LL, ao tempo enfermeira dos quadros da Ré A..., presente no dia, hora e local dos factos, coadjuvando o Dr. BB, conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 10/05/2024, gravado através do sistema áudio citius em uso no Tribunal das 15H:43m às 16H:58m, com Transcrição facultativa do minuto/segundo 48:40 ao minuto/segundo 49:09 e Transcrição facultativa do minuto/segundo 50:30 ao minuto/segundo 50:53;
36- Ficou provado que nesse famigerado domingo o Dr. BB não só dedicou o seu trabalhou à Autora, como a outros clientes da clínica que lhe ocuparam o resto do dia, de tal modo que ali permaneceu, sequer interrompendo para acompanhar a Autora ao Hospital de Viseu após deglutição da broca;
37-O que bem mais interessa é que foi imputada à Ré deficiência na prestação do colaborador ou auxiliar que a mesma empregou na cirurgia;
38- Também não se pode dizer que não se tenham verificado deficiências de materiais ou equipamentos utilizados; aqui há que recuperar o depoimento da testemunha LL, enfermeira ao tempo na A..., conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 10/05/2024, gravado através do sistema audio citius em uso no Tribunal das 15H:43m às 16H:58m com Transcrição facultativa do minuto/segundo 25:30 ao minuto/segundo 27:18;
39- Na clínica havia, apenas e só, uma broca-lança de tal sorte que sobrevindo uma intercorrência, como sobreveio, não havia outra redundante, de reserva (como será de notória prudência) o que, no caso vertente, implicou que tivesse que ser entregue uma outra broca, apenas semelhante e mais grossa, para exibição no Hospital;
40- Tanto que o Tribunal a quo, assinalou na douta sentença “(…)a memória que a Autora tem da broca em questão tenha resultado do facto de ter visto uma broca que o 2.º Réu lhe entregou, quando o INEM chegou ao local, para ser levada para o hospital para saberem de que se tratava, broca esta que, como se apurou, não era uma “broca lança” mas uma outra com diferente configuração, mais grossa, por o 2.º Réu não ter consigo outra “broca lança”;
41- As expressões “fui informada dos riscos de possíveis complicações da cirurgia”, “riscos e benefícios da cirurgia”, de tão genéricas e indeterminadas, são nulas à luz do disposto no artº. 280º do C.C., não cumprindo os propósitos do consentimento informado;
42-Como refere Ana Prata, ob. citada, não se trata apenas de comunicar, antes e autenticamente de informar, ónus que corre por conta do predisponente;
43- Segundo JORGE FIGUEIREDO DIAS e JORGE SINDE MONTEIRO, ob. citada, “a Doutrina é unânime em salientar que a generalidade dos deveres cuja violação, de forma típica, envolve responsabilidade médica são impostos por normas de ordem pública, pelo que pouco espaço fica para a válida estipulação de cláusulas de exclusão ou limitação de responsabilidade”;
44-Nas cirurgias de reabilitação os deveres de informação do médico são mais exigentes e rigorosos do que na cirurgia curativa ou assistencial;
45- O consentimento informado do doente (o conhecimento de risco, muito remoto, de deglutição de instrumentos cirúrgicos) não exclui a ilicitude do acto médico; o consentimento não abrange, a lesão física perpetrada;
46-O consentimento é prestado para o médico intervir fazendo bem o procedimento, não para o fazer mal;
47- O consentimento da Autora nunca abrangeu o dano em discussão nos autos; o dano que sobreveio, em termos de normalidade ou previsibilidade, não era exigido para a realização, nem da radiografia, nem da cirurgia reabilitante, em cumprimento do contratado; apresenta-se, assim, como ilícito;
48- A tosse não precedeu a deglutição da broca filiforme, sucedeu a mesma; ficou provado que quando se tosse se abre espontaneamente a boca e se expira, não o contrário;
49- Estivesse a broca filiforme presa por alguma amarra cirúrgica de segurança (e bem presa), que não estava, e a mesma sempre seria resgatada pelo médico em qualquer circunstância pois quando deglutiu a broca a Autora não possuía dentes;
50- Edêntula não tinha a Autora como soltar a amarra cirúrgica que, tendo a qualidade esperada, não é susceptivel de ser cortada por tecidos moles;
51-Se, como a Ré A... alega, a Autora tivesse tossido de forma involuntária, nunca poderia esta concorrer com consciência e vontade suas (com culpa), directamente dirigidas ao incumprimento de ordens do seu médico;
52-Se, como refere a Ré A..., a deglutição de instrumentos cirúrgicos é um evento bem documentado na literatura médico-dentária cabia ao médico, não à Autora, tomar as adequadas precauções, desde logo, a não ser de usar o lençol de borracha, sempre e em todo o caso uma amarração segura do instrumento cirúrgico manuseado, o que também não aconteceu;
53- Autora, voluntaria ou involuntariamente, a nada desobedeceu, nada recusou, nada desvalorizou ou desrespeitou, sempre esteve calma e cooperante, como se provou por :
- Depoimento/Declarações de Parte da Autora AA, conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 17/11/2022, gravado através do sistema audio citius em uso no Tribunal das 10H:48m às 12H:32m, com Transcrição facultativa do minuto/segundo 19:30 ao minuto/segundo 26:37; Transcrição facultativa do minuto/segundo 26:48 ao minuto/segundo 28:24; Transcrição facultativa do minuto/segundo 28:45 ao minuto/segundo 32:57;
- Relatório pericial do Instituto Nacional de Medicina Legal, especialidade de medicina dentária, com entrada nos autos a 19/05/2022, datado de 4/05/2022, subscrito pelo Perito, Professor Dr. JJ, destacando as respostas aos quesitos “S” e “T”;
- Depoimento da testemunha LL, enfermeira ao tempo na A..., conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 10/05/2024, gravado através do sistema audio citius em uso no Tribunal das 15H:43m às 16H:58m, com Transcrição facultativa do minuto/segundo 43:34 ao minuto/segundo 46:45; Transcrição facultativa do minuto/segundo 47:18 ao minuto/segundo 48:02;
- Depoimento (esclarecimentos) do Perito JJ, médico dentista, professor universitário, conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 21/10/2022, gravado através do sistema audio citius em uso no Tribunal das 10H:46m às 11H:33m com Transcrição facultativa do minuto/segundo 24:09 ao minuto/segundo 24:12; Transcrição facultativa do minuto/segundo 37:18 ao minuto/segundo 38:17;
54-A Autora apenas regressou às mãos do Réu BB na medida estritamente necessária à sutura, encerramento e cicatrização da ferida cirúrgica por este aberta;
55-O alegado nesta parte é, para mais, desmentido pela forma como a Autora fez cessar o contrato com a Ré A..., Lda., tal como alegado no artigo 57º da P.I. e Doc. nº 10 ali junto;
56- Está admitido, por confissão, o estorno de todas as quantias pagas pela Autora à Ré A..., facto que, este sim, inculca a ideia de admissão de culpa por parte desta (mais consta do documento nº 13 junto à P.I.);
57-Mais se convoca, nesta parte, o depoimento da testemunha GG, advogado (filho da Autora), conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 17/11/2022, gravado através do sistema áudio citius em uso no Tribunal das 13H:23m às 16H:16m com Transcrição facultativa do minuto/segundo 06:54 ao minuto/segundo 07:47; Transcrição facultativa do minuto/segundo 11:54 ao minuto/segundo 12:55;
58-Não releva a circunstância da Autora ter vindo, após a cirurgia falhada em apreço, ser assistida pela Ré A... acompanhando a evolução da cicatrização da sutura apressada levada a cabo aquando da deglutição da broca cirúrgica; não só aquela testemunha cuidou de explicar que outros médicos declinaram acompanhar o que outro, antes, havia feito, como se a Autora se tivesse mudado corria o risco da Ré A... vir, ulteriormente, dizer que havia agravamento ou concurso nos danos à razão de ter prosseguido um qualquer acompanhamento junto de terceiros;
59-A cirurgia reabilitante nunca mais foi retomada junto da Ré A...;
60-A condição de alguma fragilidade prévia da Autora (síndrome de Cushing) tornou para esta ainda mais avassaladores os danos descritos no artigo 66º da P.I.; convocam-se, nesta parte e não exaustivamente, os seguintes meios probatórios :
- Relatório pericial em Clinica e Patologia Forenses com entrada nos autos em 10/09/2021, datado de 09/09/2021, subscrito pelo Dr. MM, destacando as respostas em Sexto, Sétimo, Oitavo, Nono, Decimo primeiro, Décimo segundo e Décimo quinto;
- Depoimento (esclarecimentos) do Perito MM, médico especialidade de medicina legal, conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 21/10/2022, gravado através do sistema audio citius em uso no Tribunal das 10H:30m às 10H:45m com Transcrição facultativa do minuto/segundo 04:54 ao minuto/segundo 05:07 e Transcrição facultativa do minuto/segundo 07:38 ao minuto/segundo 08:04;
61-Em lado algum a Autora alegou que esteve sob efeitos de anestesia geral; o que a Recorrente preconiza nesta parte não é de molde a interferir com qualquer solução plausível da lide porquanto nunca esteve, sequer, em equação processual;
62- Dos factos provados de 27 a 29 resulta que a saúde - que já alguém definiu como silêncio orgânico - da Autora ficará perenemente marcada pela presença do ruído mudo da broca alojada no seu pulmão direito; está, perenemente, instalado o desassossego;
63-No caso em apreço, os danos não patrimoniais que a factualidade provada retrata assumem-se de evidente gravidade, merecendo a tutela do direito;
64- A indemnização visa proporcionar, dentro do possível, uma melhor qualidade de vida assumindo significado enquanto reconhecimento da dignidade da pessoa humana, da sua dor, do seu desgosto, da afectação da sua saúde e/ou da sua qualidade de vida, na vertente social e pessoal;
65- Mostra-se equitativo o valor de indemnização fixado que, a pecar, é por defeito: a alternativa de vida com que ficou a Autora, após se sujeitar reiteradamente a sucessivas provações para remoção hospitalar da broca, com outros tantos internamentos e anestesias gerais, é :
a)- de para sempre coexistir com a broca alojada no seu pulmão direito e, como ficou demonstrado, conviver com risco acrescido de infecção nomeadamente pneumonia e bronquiectasias devido à obstrução ocasionada pelo corpo estranho, a jusante do mesmo, sem que se possam excluir totalmente ocorrências de eventual pneumotórax ou pneumomediastino com as correspondentes complicações;
b)- submeter-se a intervenção cirúrgica invasiva que permita aceder ao seu pulmão direito com tudo o que este procedimento implica;
66- A opção que os Réus deixaram à Autora foi, pois, a opção entre dois males com que nenhum homem médio gostaria de ter de conviver até ao fim dos seus dias, como terá que conviver a Autora;
67-A indemnização não perdeu de vista os critérios legais e de justiça, mostrando-se proporcional e adequada;
68- Com interesse recuperam-se, nesta parte, entre outros, os seguintes meios de prova:
- Depoimento (esclarecimentos) do Perito HH, médico pneumologista, conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 21/10/2022, gravado através do sistema audio citius em uso no Tribunal das 10H:11m às 10H:29m com Transcrição facultativa do minuto/segundo 6:34 ao minuto/segundo 6.54 e Transcrição facultativa do minuto/segundo 9:33 ao minuto/segundo 18.40;
- Relatório pericial especialidade de Pneumologia com entrada nos autos em 22/11/2021, datado de 17/11/2021, subscrito pelo Dr. A. HH, Director do Serviço de Pneumologia CHTV-EPE destacando as respostas a Terceiro d), e), Quarto e Segundo;
- Depoimento da testemunha GG, advogado (filho da Autora), conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 17/11/2022, gravado através do sistema audio citius em uso no Tribunal das 13H:23m às 16H:16m com Transcrição facultativa do minuto/segundo 18:50 ao minuto/segundo 20:35;
- Depoimento da testemunha NN, médico reumatologista (irmão do Réu BB), conforme respectiva acta, prestado em audiência de julgamento, sessão de 09/04/2024, gravado através do sistema áudio citius em uso no Tribunal das 15H:17m às 15H:31m com Transcrição facultativa do minuto/segundo 10:37 ao minuto/segundo 11:34
69- Há, enfim, razoabilidade na formação da convicção do julgador; é possível controlar a racionalidade e bondade do iter cognoscitivo/valorativo da própria decisão.
Termos em que,
e com outros que, melhores de direito, essa Veneranda Relação suprirá, a Autora vem pugnar pela confirmação da decisão da 1ª Instância (ressalvando a subsidiária ampliação a requerimento do recorrido).
Assim se fará JUSTIÇA !»
*
Antes de determinar a subida do recurso devidamente instruído, o Exmo. Juiz a quo proferiu despacho a indeferir as nulidades arguidas.
*
Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
*
2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:
- nulidade da sentença [al.d) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil];
- incorreto julgamento da matéria de facto, devendo ser dado como “provado” que não houve deficiência de materiais ou equipamentos utilizados no tratamento da autora e providenciados pela recorrente A...; devendo retirar-se dos factos “provados” da sentença, e dar-se como “não provado”, que a autora tenha “receio de recorrer aos serviços médico-dentários; que no facto “provado” “6-” da sentença, deve acrescentar-se e explicitar-se que a anestesia aí referida foi anestesia local; devendo ser dado como “provado” que a autora deglutiu a broca por não ter mantido a boca aberta como determinado pelo réu; deve ser incluído nos factos “provados” que a autora tinha “Como antecedentes patológicos e/ou traumáticos relevantes para a situação em apreço, a referir: Sindorme de Cushing ACTH dependente cíclico – operada em 2013 a nódulo da supra-renal, DM2, Displipidemia, Depressão Major, Excesso ponderal, HTA”; que deve ser dado como “provado” que “atualmente o corpo estranho não apresenta repercussão sobre a função respiratória”;
- incorreto julgamento da matéria de direito, mais concretamente, que «a indemnização à autora por danos não patrimoniais não deverá exceder os € 15.000,00»;
b) recurso do Réu BB
- nulidade da sentença, «em termos do art. 615º, nº 1 –d) do C.P. Civil»;
- incorreto julgamento da matéria de facto, no que concerne aos pontos de facto “provados” sob “9)”, “10)”, “28)” e “29)” [que quanto ao facto “provado” 9, deve retirar-se “Sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança”, ficando «9 - Entretanto, BB decidiu colocar uma broca filiforme, designada por “broca lança” no orifício criado pelo mesmo com a perfuração óssea do maxilar de AA, para que funcionasse como material radiopaco e, dessa forma, permitisse apurar a profundidade da perfuração»; que quanto ao facto “provado” 10, deve ser retirada a expressão “afastou-se” de AA”, ficando «Durante tal procedimento a dita “broca lança” saiu do local onde se encontrava, tendo sido aspirada por AA, alojando-se no campo pulmonar direito.»; que quanto ao facto “provado” 28, o mesmo deve considerar-se “não provado”; que quanto ao facto “provado” 29, deve dar-se como “provado” que «Em consequência directa e necessária da aspiração da broca filiforme por AA, embora possam acontecer infecções respiratórias mais frequentes, mas em termos funcionais não há repercussões na vida corrente da Autora e a infecção a ocorrer deverá ser tratada “com antibióticos como qualquer outra.»] e que relativamente aos factos “não provados” (os últimos quatro) devem figurar como “provados”, com a redação que respetivamente enuncia [mais concretamente, - «A Autora, aquando do procedimento referido em 10) a Autora tossiu, fechou a boca e, por via disso, aspirou a broca cirúrgica, tendo sido devido a este comportamento que a broca foi aspirada»; - «A aspiração da broca resultou deste comportamento adotado pela mesma»; - «O 2ª Réu aquando do procedimento referido em 9) usou fio dentário como amarra da broca filiforme que foi aspirada pela Autora»; - «No momento imediatamente anterior à aspiração da broca cirúrgica pela Autora, o 2ª R. estava a segurar a mesma com os dedo indicador, médio e polegar da sua mão direita.»];
- incorreto julgamento da matéria de direito, mais concretamente, que nenhuma responsabilidade se pode atribuir à Ré quanto ao facto de a broca ter sido aspirada pela Autora (faltando os requisitos da culpa e ilicitude); que a Autora atua com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium; que «quanto ao montante indemnizatório, devendo a acção ser julgada improcedente, não deve ser atribuída qualquer indemnização», sendo que, no limite, a indemnização nunca devia ser superior a € 12.500,00;
c) recurso da interveniente acessória sociedade “C... – Companhia de Seguros, S.A.”
- nulidade da sentença [al.d) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil];
- incorreto julgamento da matéria de facto, posto que o ponto de facto “provado” 9 deveria ter a redação «Entretanto, BB decidiu colocar uma broca filiforme, designada por “broca lança”, no orifício criado pelo mesmo com a perfuração óssea do maxilar de AA, para que funcionasse como material radiopaco e, dessa forma, permitisse apurar a profundidade da perfuração.» (e excluindo-se dos factos “não provados” o que daí consta em sentido contrário); que deveria ter sido dado como “provado” que «A Autora não cumpriu a instrução dada pelo 2.º Réu para manter a boca aberta, tendo tossido e, por via disso, aspirado a broca cirúrgica» e que «A aspiração da broca cirúrgica pela Autora resultou de comportamento adotado pela mesma»; que deveria ter sido levado aos factos “provados” que «o evento dos autos não se ficou a dever a qualquer deficiência de material ou equipamento utilizado no tratamento da autora, propriedade da A...»; que deveria ter sido dado como “provado” que «o ato médico ocorreu a um domingo, fora do horário de funcionamento da clínica, conforme pedido especial da autora e do Dr. BB, e no qual participaram terceiros alheios à 1ª Ré»;
- incorreto julgamento da matéria de direito, mais concretamente, que devia ter-se concluído que a A. concorreu para a produção dos danos, devendo, por isso, ficar excluída a indemnização nos termos do disposto no artigo 570º do Código Civil (ou, no limite, ser a mesma reduzida); que não resultaram provados, os factos que constituíam a causa de pedir formulada pela A., donde devia a ação ter sido julgada improcedente; que considerando os factos provados na Sentença (e aqueles que se pretendem incluir), «poderia o Tribunal a quo ter condenado diretamente o 2º Réu»; que «O montante da indemnização fixado pelo Mm. º Juiz ultrapassa, em larga medida, qualquer quantia equitativa e apresenta-se, por isso, manifestamente exagerada»;
d) recurso da interveniente acessória sociedade “D... – Companhia de Seguros, S.A.
- nulidade da sentença [al.d) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil];
- incorreto julgamento da matéria de facto, quer quanto aos ponto de facto “provados” [ que quanto ao facto provado 9/, deve retirar-se o segmento: “Sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança”, ficando «9 - Entretanto, BB decidiu colocar uma broca filiforme, designada por “broca lança” no orifício criado pelo mesmo com a perfuração óssea do maxilar de AA, para que funcionasse como material radiopaco e, dessa forma, permitisse apurar a profundidade da perfuração.»; que quanto ao facto provado 10/ deve ser retirada a expressão “afastou-se de AA”, ficando «Durante tal procedimento a dita “broca lança” saiu do local onde se encontrava, tendo sido aspirada por AA, alojando-se no campo pulmonar direito.»; que quanto ao facto provado 28, o mesmo deve considerar-se “não provado”; que quanto ao facto provado 29, deve dar-se como “provado” apenas «Em consequência directa e necessária da aspiração da broca filiforme por AA, embora possam acontecer infecções respiratórias mais frequentes , em termos funcionais não há repercussões na vida corrente da Autora e a infecção a ocorre deverá ser tratada “com antibióticos como qualquer outra.»], quer em termos de factos “não provados”, mais concretamente, que deve agora dar-se como “provado” que «aquando do procedimento referido em 9/ dos factos provados a Autora tossiu e fechou a boca, tendo sido por causa deste seu comportamento que a broca foi aspirada.»; que «o 2º Réu aquando do mesmo procedimento referido em 9/ prendeu a broca com amarra de fio dentário.»; que «imediatamente antes da aspiração da broca cirúrgica pela Autora o 2ª Réu estava a segurar a mesma com a sua mão direita, utilizado os dedos da indicador médio e polegar.»;
- incorreto julgamento da matéria de direito, mais concretamente, que nenhuma responsabilidade se pode atribuir à Ré quanto ao facto de a broca ter sido aspirada pela Autora (faltando os requisitos do nexo de causalidade e ilicitude); que «mesmo sem se proceder a qualquer alteração da decisão sobre a matéria de facto dada como provada a acção também devia ser julgada totalmente improcedente»; que a indemnização adequada não devia ser superior a € 12 500,00;
e) recurso subordinado da Autora
- subsidiária ampliação do âmbito do recurso a requerimento da Recorrida nos termos do disposto no art. 636º, nº2 do n.C.P.Civil - deveria o Tribunal a quo ter dado por provada a obrigação do médico dentista tal como alegada no art. 22º da P.I.;
- confirmação da decisão da 1ª Instância (ressalvando a subsidiária ampliação a requerimento da A./recorrida).
*
3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado como “provado” pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação poderá ter um carácter “provisório”, na medida em que um dos recursos tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.
Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados no tribunal a quo:
«1- No dia 12.03.2018, AA e a sociedade “A..., Lda.” acordaram, por escrito, que ambas assinaram – aquela pelo seu punho e esta pelo punho da sua legal representante – sob o título de “contrato de pagamento em prestações para exames e ou tratamentos n.º 471/2018”, o constante de fls. 17 e 17v., dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;
2- O orçamento descrito no acordo referido no ponto 1-, encontra-se junto aos autos a fls. 18, com o título “plano de tratamento”, devidamente assinado pela pelo punho da Autora e pelo médico dentista BB, cujo conteúdo de se dá por integralmente reproduzido;
3- Em cumprimento do acordo referido em 1-, nos dias 27.03.2018, 10.04.2018 e 12.04.2018 tiveram lugar consultas de preparação cirúrgica de AA, as quais foram realizadas pelo médico dentista BB, nas instalações da Ré, sitas na Rua ..., ...;
4- Em cumprimento do acordo referido em 1-, no dia 6.05.2018, teve lugar a primeira sessão de tratamento e procedimento cirúrgico de AA, a qual foi realizada pelo médico dentista BB nas referidas instalações da Ré, em ...;
5- No mesmo dia 6.05.2018, em momento anterior ao início do acordado procedimento cirúrgico, AA assinou o documento junto a fls. 66v. e 67, dos autos;
6- No referido dia e local, em sala devidamente equipada para o efeito e da propriedade da sociedade “A..., Lda.”, BB iniciou os acordados trabalhos médicos na cavidade oral de AA, procedendo a anestesia na gengiva do maxilar inferior e ao seu corte e perfuração, com vista à aplicação de próteses dentários;
7- Durante tais trabalhos, AA encontrava-se deitava de barriga para cima na cadeira de dentista, a qual foi posicionada por BB de forma a que o maxilar ficasse paralelo ao solo – posicionada com um ângulo de 135.º –, com vista a permitir os procedimentos médico-cirúrgicos que pretendia executar;
8- Durante a perfuração do maxilar e com vista a avaliar a profundidade da perfuração e sua proximidade aos tecidos nervosos, BB decidiu recolher imagens radiográficas na cavidade oral de AA, tendo, para tal, comunicado à mesma que deveria manter a boca aberta enquanto procedia à preparação do equipamento radiográfico;
9- Entretanto, BB decidiu colocar uma broca filiforme, designada por “broca lança”, no orifício criado pelo mesmo com a perfuração óssea do maxilar de AA, sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança, para que funcionasse como material radiopaco e, dessa forma, permitisse apurar a profundidade da perfuração;
10- Durante tal procedimento, BB afastou-se AA, tendo, nesse momento, a dita “broca lança” saído do local onde se encontrava, tendo sido aspirada por AA, alojando-se no campo pulmonar direito;
11- De seguida, foi chamado ao local o INEM, tendo BB entregue uma broca mais grossa que a “broca lança” para ser levada para o hospital e, bem assim, decidido suturar as feridas cirúrgicas que AA tinha no maxilar inferior, o que provocou fortes dores na boca desta, que perduraram por cerca de duas semanas;
12- Após, uma vez chegado o INEM, AA foi encaminhada para os Serviços de Urgência do Centro Hospitalar de Tondela- Viseu, E.P.E, Unidade de Viseu, tendo, naquele local, sido sujeita a exame RX ao tórax, no qual foi possível detetar um corpo metálico filiforme à direita da linha média, alojado na base do campo pulmonar direito;
13- AA esteve internada no dito Centro Hospitalar pelo período de 3 dias, tendo durante esse período, sido transferida para o Centro Hospitalar de Coimbra, E.P.E. com vista realizar broncofibroscopia destinado à extração da broca, a qual, embora tendo sido repetida, mediante sedação, resultou infrutífero, concluindo-se que, pela localização da broca, é muito pouco provável a sua extração endoscópica;
14- AA teve alta hospitalar no dia 9.05.2018;
15- No dia 23.05.2018 AA compareceu a consulta médica, onde lhe foram propostos procedimentos adicionais com vista à extração da broca dentária sem recurso a cirurgia;
16- Nesta sequência, no dia 4.06.2018, AA foi internada no Serviço de Pneumologia do C.H. e Universitário de Coimbra, E.P.E., onde foi submetida, sem sucesso, a broncofibroscopia, sob anestesia e ventilação com máscara laríngea;
17- AA teve novamente alta hospitalar no dia 6.06.2018, com consulta de cirurgia cardiotorácica marcada para 18.07.2018, ainda no referido Centro Hospitalar e Universitário;
18- No dia 18.07.2018 AA compareceu na referida consulta, tendo sido submetida a fibroscopia rígida, não tendo sido visualizada a broca;
19- No dia 27.02.2019 AA compareceu a nova consulta cirúrgica cardiotorácica no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, na qual foi informada que a remoção da broca cirúrgica era cirurgicamente possível, com o mínimo de ressecção de parênquima pulmonar, bem como, esclarecida dos riscos/benefícios do procedimento;
20- AA optou pela não remoção/extração da broca filiforme que se encontra alojada na base do campo pulmonar direito;
21- No dia 20.07.2018 AA, enviou à ré “A...” o documento junto a fls. 38 e ss., cujo conteúdo se dá por reproduzido;
22- Nessa sequência, a Ré “A...” procedeu à devolução a AA das quantias por esta pagas, no valor de 961,51€;
23- A intervenção médico-dentária que BB levou a cabo em AA teve por base um contrato de prestação que serviços, sem exclusividade, celebrado entre o mesmo e a sociedade “A..., Lda.”;
24- No âmbito do referido contrato de prestação de serviços, BB auferia da sociedade “A..., Lda.” retribuições pelos serviços prestados aos clientes desta, as quais variavam em funções da natureza e duração dos serviços que eram prestados;
25- Mediante prévia solicitação da sociedade “A..., Lda.”, no dia 12.10.2018, BB elaborou a informação constante de fls. 64v. e 65, cujo conteúdo se dá por reproduzido;
26- Após, no dia 23.11.2018, BB remeteu para OO, funcionária da sociedade “A..., Lda.”, o email junto a fls. 68, cujo conteúdo se dá por reproduzido;
27- Em consequência direta e necessária do descrito de 6- a 17-, AA ficou ansiosa, triste, com angustia e preocupação com a sua saúde, não só durante o trajeto para o hospital, internamentos, sujeição a exames, anestesias, intervenções médicas para remoção da broca do seu corpo, como posteriormente, receando que a broca se desloque e que, por via disso, o seu estado de saúde se agrave ou até possa morrer;
28- Em consequência direta e necessária do descrito de 6- a 17-, AA ficou impedida de sujeitar a ressonâncias magnéticas e, bem assim, com receio de recorrer aos serviços médico-dentários;
29- Em consequência direta e necessária da aspiração da broca filiforme por AA aumentou o risco de inflamação na área do pulmão que envolve a broca, de infeção (pneumonia e/ou bronquiectasias) devido à obstrução ocasionada pela broca, perda parcial de função respiratória, pneumotórax e pneumomediastino;
30- No dia 6.05.2018 AA padecia de Síndrome de Cushing e de Depressão Major, a qual, habitualmente causa adinamia, tristeza, ansiedade, angustia e insónia de caracter crónico, encontrando-se, porém, medicada com antidepressivos e antipsicóticos e ansiolíticos;
31- Mediante a Apresentação n.º ...15, junto da Conservatória de Registo Comercial, a sociedade “A..., Lda.”, pessoa coletiva n.º ...73 alterou a sua firma para “B..., Lda”;»
*
Sendo consignado o seguinte em termos de factos “não provados” pelo tribunal a quo:
« Aquando do descrito de 6- a 10-, dos factos provados, a Autora estivesse encadeada pela luz cirúrgica e a cadeira onde se encontrava deitada estivesse posicionada de forma a ficar paralela ao chão;
Aquando do descrito de 6- a 10-, dos factos provados, o 2.º Réu tenha usado a broca filiforme que se encontra alojada na base do campo pulmonar direito da Autora como “escora” ou afastador, de modo a garantir que a mesma não fechasse a boca;
O 2.ª Réu faça parte dos quadros do pessoal da 1.ª Ré;
Mais cedo ou mais tarde o seu organismo da Autora desencadeará uma reação ao corpo estranho, com inflamação da área do pulmão que envolve o mesmo e compromisso da função respiratória do pulmão direito;
A extração cirúrgica da broca filiforme que se encontra alojada na base do campo pulmonar direito da Autora não seja possível;
Em consequência direta e necessária do descrito de 6- a 10- exista risco de remoção do pulmão o de morte para a Autora;
A Autora tenha sentido dores até finais de Junho de 2018, ao nível da gengiva frontal do maxilar inferior, consequência da sutura a que foi sujeita pelo 2.º Réu;
A Autora não tenha cumprido a instrução dada pelo 2.º Réu para manter a boca aberta, tenha tossido e, por via disso, aspirado a broca cirúrgica;
A aspiração da broca cirúrgica pela Autora tenha resultado de comportamento adotado pela mesma;
O 2.º Reu tenha usado fio dentário como amarra da broca filiforme que foi aspirada pela Autora;
No momento imediatamente anterior à aspiração da broca cirúrgica pela Autora, o 2.º Reu estivesse a segurar a mesma com os dedos indicador, médio e polegar da sua mão direita;».
*
3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a da alegada nulidade da sentença [al. d) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil], questão que foi suscitada em todos os 4 recursos deduzidos, isto é, por cada um dos co-RR,. e por cada uma das intervenientes acessórias.
Esta questão foi suscitada com poucas nuances entre si por cada um dos ditos recursos, consistindo, em síntese, na alegação de que a A. havia apresentado nos arts. 29º, 30º, 31º, 32º, 33º e 34º da sua P.I. uma determinada versão dos factos, sucedendo que a matéria de facto que veio a ser dada como “provada” na sentença recorrida é «(…) muito diferente desta alegada pela Autora, (…) Ou seja, a maior parte da matéria alegada na P.I. como causa de pedir não se provou. E provou-se outra nunca alegada pela Autora», e que «(…) portanto, não faz parte da causa de pedir, não tendo, nem o ora recorrente, ou a Ré, ou intervenientes sido citados para contestar», daí ter sido cometida a arguida nulidade.
Que dizer?
Salvo o devido respeito, esta arguição de nulidade improcede manifestamente.
Vejamos, antes de mais, o conceito jurídico-dogmático do que está em causa.
Segundo o dito artigo 615º, nº1, al.d), é nula a sentença quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Estando em causa nesta sede quer o vício designado por “omissão de pronúncia”, quer o do “excesso de pronúncia”, é sabido que essa causa de nulidade se traduz no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no nº2 do art. 608º do mesmo n.C.P.Civil, que é, por um lado, o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes (salvo aquelas em que a lei lhe permite delas conhecer oficiosamente).
Como sustentar, então, que na circunstância se conheceu de “questão” de que não se podia tomar conhecimento?
Vejamos, antes de mais, o conceito jurídico-dogmático do que está em causa.
Segundo o dito artigo 615º, nº1, al.d), é nula a sentença quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Estando em causa nesta sede quer o vício designado por “omissão de pronúncia”, quer o do “excesso de pronúncia”, é sabido que essa causa de nulidade se traduz no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no nº2 do art. 608º do mesmo n.C.P.Civil, que é, por um lado, o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes (salvo aquelas em que a lei lhe permite delas conhecer oficiosamente).
Não assiste qualquer razão às recorrentes por várias ordens de razão.
Desde logo porque «A palavra ‘questões’ deve ser tomada aqui em sentido amplo: abrange tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade de umas e outras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem, [a menos que] o exame de uma só parte [imponha] necessariamente a decisão da causa».[2]
Depois, porque um dos princípios da motivação das sentenças é o princípio da exaustão.
Segundo este princípio, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (cf. art. 608º, nº2 do n.C.P.Civil).
A lei não prescreve que o juiz conheça de todas as questões suscitadas pelas partes, nem, muito menos, que analise todos os argumentos e linhas de raciocínio por elas deduzidos ou seguidos[3], mas sim que examine todas mas tão-só as questões efetivamente relevantes para a boa decisão da causa, quer as que tenham sido invocadas pelas partes, quer as que sejam de conhecimento oficioso.
Quer isto dizer que o juiz tem de conhecer «todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer»[4], excetuadas as questões, quanto ao pedido, à causa de pedir ou às exceções, cuja apreciação quede prejudicada pela solução dada às outras.
Ora, confrontando a sentença não vislumbramos que com a definição factual do “acidente” propriamente dito, traduzida nos factos quer foram dados como “provados”, basicamente constante sob “8-”, “9-” e “10-”, o Tribunal a quo tenha conhecido de questão que não podia conhecer…
Simplesmente deu como apurado um acontecimento histórico na convicção que do mesmo formou, o qual, bem visto, integra partes das versões apresentadas (quer de factos essenciais, quer de factos instrumentais), sem ser fiel a nenhuma delas.
Com o que, aliás, não violou o disposto no art. 5º do n.C.P.Civil.
Antes, com tal, correspondeu ao dever de apreciação amplo e exaustivo que lhe estava imposto, designadamente da causa de pedir, para aferição da efetiva e positiva “fundabilidade” da mesma.
Inexiste, assim, também, a arguida nulidade da al.d) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil.
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3.3 – Vejamos, de seguida, da impugnação da matéria de facto.
As questões deste âmbito foram suscitadas também em todos os recursos, e se o foram com inegável amplitude, sendo mesmo em grande número, ocorre que podem ser distribuídas por dois grupos, a saber,
1) concretas circunstâncias do “acidente”, com reporte aos factos “provados” sob “9-” e “10-”, e factos “não provados” questionados [os últimos 4 do correspondente elenco];
2) danos/consequências para a A. desse “acidente”, particularmente sob o ponto de vista de estado físico (em termos médicos), com destaque para os factos “provados” sob “28-” e “29-”.
Começaremos a análise, naturalmente, pelos pontos de facto do primeiro grupo.
Entre estes logo surgem os apontados factos “provados”.
Rememoremos o seu teor literal, a saber:
«9- Entretanto, BB decidiu colocar uma broca filiforme, designada por “broca lança”, no orifício criado pelo mesmo com a perfuração óssea do maxilar de AA, sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança, para que funcionasse como material radiopaco e, dessa forma, permitisse apurar a profundidade da perfuração;»
«10- Durante tal procedimento, BB afastou-se AA, tendo, nesse momento, a dita “broca lança” saído do local onde se encontrava, tendo sido aspirada por AA, alojando-se no campo pulmonar direito;»
Os Recorrentes, com pontuais distinções, no fundo pretendem, quanto ao primeiro destes pontos de facto, que se retire o segmento “Sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança”.
Para tanto, esgrimem, no essencial, que não há razão ponderosa para que o Tribunal tivesse dado como provado que foi sem qualquer amarra apenas com base nas declarações de parte da Autora [a qual na circunstância foi sujeita ao ato médico], quando, em sinal contrário, do depoimento do 2º R. [Dr. BB, o médico dentista que procedia à intervenção cirúrgica em causa] e da testemunha Dra. CC [também médica dentista, a qual assessorava o anterior nesse procedimento] resultava que tinha sido feito pelo médico Dr. BB a dita amarra.
Que dizer?
É certo que as referidas 3 pessoas foram as únicas que estiveram presentes e envolvidas pessoalmente no ato cirúrgico em causa [o qual teve lugar no dia 6.05.2018], em cujo decurso ocorreu o “acidente” ajuizado, e que as mesmas, grosso modo, se perfilaram – nos seus relatos! – pelo modo assinalado, a saber, a Autora a negar a amarra da broca com fio, e as outras duas a confirmar positivamente essa existência.
Sucede que a convicção neste particular não se alcança só pelo confronto e sopeso dos ditos relatos – a que também nunca poderiam ser alheias a ponderação que se tratava das partes envolvidas e com interesses/posições processuais nestes autos, acrescendo que a referenciada testemunha Dra. CC era a mulher do médico Dr. BB[5].
Na verdade, para além disso, não se podia olvidar qual foi o relato (por escrito) mais próximo no tempo por parte do médico Dr. BB, o qual não falou então de ter feito ou existir uma amarra na broca [cf. fls. 64-65, datado de 12.10.2018], aspeto que já introduziu na “resposta” às “questões”, em data posterior [a saber, em 23.11.2018], o que, s.m.j., já representava um “afeiçoar” (com o sentido de “desculpabilização” pessoal] do relato do sucedido, face ao litígio a prenunciar-se.
Também se pode invocar para este efeito, face ao consignado na “motivação” da sentença, que o dito 2º R. [Dr. BB] quando instado na audiência de julgamento a demonstrar a amarra que tinha feito, demonstrou uma “inépcia” na correspondente execução, o que muito sagazmente é de interpretar no sentido da “novidade” para o próprio de tal situação.
É à luz destes considerandos que pode e deve ser apreciada e valorada a prova feita quanto a este particular, resultando-nos manifesto que não existe qualquer “erro de julgamento” na opção que consta da sentença recorrida, por não se “impor”[6] decisão diversa quanto a este particular.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, improcede a impugnação quanto ao dito ponto de facto “provado” sob “9-”.
¨¨
Passando ao ponto de facto “provado” sob “10-”, temos que os Recorrentes pugnam no sentido de que seja retirada a expressão “afastou-se” de AA.
Para tanto, esgrimem, no essencial, que a expressão “afastou-se” fez apenas parte da descrição feita pela A. na P.I., nem tendo sido confirmada por esta nas “declarações de parte” que prestou na audiência – em que apenas aludiu a que o 2º R. [Dr. BB] “se levantou”! – acrescendo que os já referidos Dr. BB e Dra. CC o negaram convictamente.
Que dizer?
Compulsando as transcrições dos relatos em causa [a cuja audição integral se procedeu] é efetivamente possível concluir que não existe nenhum elemento de prova consistente no sentido da versão do “afastou-se” [com referência ao médico Dr. BB nesse concreto momento do procedimento que o mesmo levava a cabo][7].
Por outro lado, no contexto espácio-temporal em questão, procedendo à conjugação dos relatos descritivos que sobre tal tiveram lugar, mormente na ponderação que era a testemunha Dra. CC que ia manobrar a ampola de Raio X, para fazer o disparo, e face às regras do normal acontecer, também não se vislumbra a necessidade ou utilidade de tal ato de “afastamento” por parte do médico Dr. BB…
Fica, assim, a dúvida legítima, sobre se o dito médico Dr. BB nas circunstâncias de tempo e lugar descritas neste ponto de facto se “afastou” da cadeira onde a Autora se encontrava.
Dúvida, por esta via, extensiva às concretas circunstâncias do “acidente”…
E assim, na medida em que se deteta uma conveniência na apreciação do demais circunstancialismo controvertido relativamente a este mesmo momento que antecedeu o “acidente”, cremos ser aqui e agora o momento de proceder à apreciação dos pontos de facto “não provados” questionados, a saber, os 4 últimos do correspondente elenco.
Por razões de melhor referenciação, e também para facilitar a compreensão da exposição a que se vai proceder, rememoremos o teor literal respetivo, a saber:
« A Autora não tenha cumprido a instrução dada pelo 2.º Réu para manter a boca aberta, tenha tossido e, por via disso, aspirado a broca cirúrgica;
A aspiração da broca cirúrgica pela Autora tenha resultado de comportamento adotado pela mesma;
O 2.º Reu tenha usado fio dentário como amarra da broca filiforme que foi aspirada pela Autora;
No momento imediatamente anterior à aspiração da broca cirúrgica pela Autora, o 2.º Reu estivesse a segurar a mesma com os dedos indicador, médio e polegar da sua mão direita;»
De referir que os Recorrentes pugnam neste particular, em síntese, por que seja dada como “provada” a versão do “acidente” que trouxeram aos autos, e que se basicamente se traduz no seguinte:
- que a autora deglutiu a broca por não ter mantido a boca aberta como determinado pelo réu;
- que a autora (também) tossiu, e fechou a boca, e por via disso aspirou a broca;
- que a aspiração da broca resultou deste(s) comportamento(s) adotados pela mesma;
- que o 2º Réu aquando do mesmo procedimento referido em “9-” prendeu a broca com amarra de fio dentário;
- que imediatamente antes da aspiração da broca cirúrgica pela Autora o 2º Réu estava a segurar a mesma com a sua mão direita, utilizando os dedos do indicador, médio e polegar.
Vejamos.
Quanto ao aspeto da amarra da broca com fio dentário, já supra se afastou essa versão.
Falta-nos, assim, no essencial, apreciar os aspetos de a Autora ter tossido e fechado a boca, tendo sido por via disso que aspirou a broca, sendo que nesse instante o 2º Réu estivesse a segurar a broca com a sua mão direita (utilizando os dedos do indicador, médio e polegar).
Como é bom de ver trata-se do núcleo central da defesa do 2º Réu, e que, a provar-se, permitiria a desresponsabilização da 1ª Ré (e bem assim das intervenientes acessórias), tendo o mesmo, no essencial, intentado afirmá-la no seu depoimento.
Ora, salvo o devido respeito, no que concerne à alegada atuação do 2º Réu de estar a segurar a broca com a sua mão direita (utilizando os dedos do indicador, médio e polegar), se lhe aditarmos o que o mesmo sustentava em modo paralelo e complementar, a saber, que tinha a broca presa com amarra de fio dentário, resultaria tratar-se de um agente extremamente zeloso e diligente.
Sucede que não é essa a convicção que nos resulta relativamente à sua atuação na circunstância: ao não ter sido convincente com a sua alegação da amarra, o seu relato de estar a segurar a broca afigura-se-nos igualmente inconsistente, por pouco plausível.
Sobretudo quando, a outrance, invoca a tosse e deglutição pela Autora como únicos factores causais do sucedido!
Atente-se que nada disso o mesmo deu nota no seu primeiro relato por escrito a que já supra se aludiu.
Nem foi versão que a testemunha LL [enfermeira ao tempo na 1ª Ré A... e que se encontrava presente naquele dia na clínica onde sucedeu o “acidente”] tivesse confirmado como sendo o oportuno relato do ocorrido[8]…
Sendo certo que a Autora denegava essa versão, e, ainda que tivesse aludido à tosse, sempre restava a interpretação perfeitamente lógica, de que esta teria sido ato reflexo e consequente da deglutição da broca…
Assim também foi a avaliação e ponderação do Tribunal recorrido quanto a este particular, como cremos resultar paradigmaticamente do que se exarou relativamente ao mesmo em termos de “motivação” na sentença, a saber:
«(…)
Em concreto, o tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos dados como provados:
Depoimento de Parte de BB, o qual, de forma serena, pausada, clara, esclarecida e isenta – e, dessa forma, com credibilidade –, confirmou o descrito de 1- a 9-, com exceção da ausência da amarra ou de outro sistema de segurança, 10-, com exceção do facto de se ter afastado da Autora, 11-, 12- e 23- a 26-, dos factos provados.
Quanto ao mais declarado, concretamente, no relativo ao momento que antecedeu a aspiração da broca filiforme pela Autora, não mereceu o mesmo credibilidade, porquanto, revelou hesitação, falta de clareza, de segurança e isenção no declarado.
Com efeito, por um lado, o Réu referiu que se encontrava junto da Autora, preparando-se para efetuar um RX, quando se deu a aspiração da broca pela mesma e que tal se deveu ao facto de a mesma ter tossido, o que foi negado frontalmente pela Autora, a qual, pelas razões que infra se aduzirão, mereceu credibilidade nesse concreto ponto.
Por outro lado, como ficou devidamente esclarecido nas respostas dos Srs. Peritos às perguntas que lhe foram formuladas – e resulta, inclusive, das regras da experiência comum – o ato de tossir consiste numa reação do corpo humano de expulsão e não de inalação, pelo que não seria possível a aspiração da broca devido à alegada, mas não provada, tosse da Autora.
Por outro lado, refere o 2.º Réu que se posicionou junto da Autora no momento em que iria realizar o RX, o que contraria frontalmente as regras de segurança inerentes ao uso de RX e, assim, a prática instituída entre os médicos dentistas – que, obviamente, não se irão expor a radiações que, como é sabido desde que se apuraram as causas da morte de polaca Marie Curie (leucemia devido a exposição a radiações), são suscetíveis de potenciar ou aumentar o risco de várias doenças –, adiantando, ainda, que no momento imediatamente antecedente à aspiração, o mesmo se encontrava a segurar a dita broca filiforme com os dedos indicador, médio e polegar da mão direita, no interior da cavidade oral da Autora, tendo, ainda, uma amarra na broca com fio dentário, a qual pendia para o exterior da boca da Autora passando na mão direita do Réu, e que, quando a Autora tossiu, por ato reflexo, tirou os dedos do interior da cavidade oral da Autora, agarrou a amarra e puxou, verificando que a broca não estava na sua extremidade.
Tal descrição do sucedido revelou-se inovadora face à descrição que o mesmo Réu fez à 1.ª Ré no dia 12.10.2018, constante de fls. 64v. e 65, na qual, de forma espontânea, num momento em que não previa a pendência do presente processo e a sua eventual responsabilização pelos danos sofridos pela Autora, referiu que no decorrer do procedimento cirúrgico: «(…) a paciente, involuntariamente, deglutiu um instrumento cirúrgico, apesar de ter sido advertida para manter a boca aberta naquele preciso momento; (…)».
Ora, se assim foi, não se concebe que o Réu pudesse ter parte da sua mão direita no interior da boca da Autora, pois que, neste caso, não seria possível àquela fechar a boca, dado o obstáculo da mão do Réu. Acresce, que na dita informação o Réu nada referiu quanto a um surto de tosse da Autora que teria provocado a aspiração da dita broca, o que, por apelo às regras da experiência, seria de prever que tivesse sucedido, caso efetivamente tal correspondesse à verdade.
Pelo contrário, o Réu sugere que a Autora fechou a boca, apesar de ter sido advertida para manter a boca aberta, sendo sabido por todos que no ato de tossir implica a abertura da boca e não o seu fecho!
Quanto à dita amarra com fio dentário, foi verdadeiramente elucidativa a constrangedora demonstração que o Réu fez em audiência da aplicação da amarra, para que se possa concluir, com segurança, que não a colocou no referido dia, nem nunca a tinha colocado em qualquer instrumento cirúrgico até ao momento!
De facto, como ficou bem esclarecido em audiência final, convidado a demonstrar como aplicava a dita amarra de segurança, o Réu revelou que não sabia dar um simples nó na broca de modo a permitir a sua fixação, dando apenas uma laçada, o que, como resulta das regras da experiência comum, não permite a fixação de qualquer objeto, soltando-se à mínima pressão do fio, como sucedeu na demonstração em audiência final. Já o nó que tivemos oportunidade de fazer perante o Réu – de dupla laçada simples ou nó simples de dupla laçada – logrou, como seria de esperar, a fixação da broca utilizada para a dita demonstração, que apenas se soltou após o 2.º Réu ter feito várias tentativas, tendo em cada uma delas aumenta a pressão exercida sobre o fio. Daí se poder concluir, por apelo às regras da experiência, que o Réu, contrariamente ao declarado, não sabia fazer uma amarra de fixação da broca, que a não fez no dia em questão, nem anteriormente, pois que, caso tal tivesse sucedido, já saberia que, pelo simples contacto do fio com uma laçada simples com a superfície humedecida da boca, o mesmo se soltaria dos instrumentos que utiliza na sua profissão.
Quanto a esta questão da amarra, igualmente a testemunha II, médico dentista e professor universitário, que mereceu credibilidade como infra se referirá, soube confirmar que a amarra deve ser executada com um nó de dupla laçada simples, de modo a permitir a sua fixação ao instrumento em questão e, bem assim, que não é plausível que o médico segure a broca que serve de material radiopaco enquanto tira um RX.
Do mesmo modo, a Autora negou, de forma que consideramos credível, dada a segurança e isenção reveladas, a existência da dita amarra com fio dentário, assim como, que o 2.º Réu tivesse junto da mesma, com a sua mão direita introduzida parcialmente na cavidade oral, e que tivesse tossido no momento em que aspirou a broca, como infra se referirá.
Por último, não podemos deixar de referir que o email no dia 23.11.2018, junto a fls. 68, no qual, o 2.º Réu apresentou uma descrição do sucedido muito diferente da de 12.10.2018, falando agora em tosse, dedos a segurar a broca e amarra, o que, pelas razões já expendidas e que aqui se renovam, não merece acolhimento, afigurando-se tratar-se de uma narrativa desculpabilizadora perante a 1.º Ré, embora não coerente com a verdade.
(…)
Por último, de referir que dadas as versões contraditórias apresentadas pela Autora e pelo 2.º Réu relativamente à causa direta e necessária da aspiração da broca pela Autora, e na ausência de qualquer outra prova considerada credível, devidamente analisada em audiência, o tribunal não pode considerar provada a referida causa, mas apenas que se verificou a aspiração da broca durante o procedimento cirúrgico levado a cabo pelo 2.º Réu, melhor descrito nos factos provados.»
Nesta linha de entendimento – que temos por inquestionável e inabalável – onde é que se evidencia o erro de julgamento neste particular?
Salvo o devido respeito, com exceção do aspeto do 2º Réu se ter “afastado” da Autora no momento que antecedeu o “acidente” ocorrido, não o vislumbramos!
Isto porque, mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, era necessário demonstrar, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelos apelantes ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade, pois que, à Relação apenas cabe um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal “a quo” lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou, apontando-se como casos excecionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas – v.g. por distração – determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.
Sucede que, ao invés, quanto a nós o Tribunal “a quo” ponderou adequada e pertinazmente todo o material probatório produzido, aqui se incluindo, como flui da “motivação” apresentada, os meios de prova convocados pelos Recorrentes [embora na sua necessária conjugação e confronto com os demais]!
Sobretudo porque importa não olvidar, como já doutamente foi a este propósito salientado, que o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, «deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal de 1ª instância (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, aos restantes meios probatórios, v.g., documentos, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada e é com esses elementos que a parte contrária deverá ser confrontada, a fim de exercer o contraditório, no âmbito do qual poderá proceder à indicação dos meios de prova que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente».[9]
O que tudo serve para dizer que não se afigura determinante nem decisiva a invocação constante das alegações recursivas no sentido de que devia ser valorado quase única e exclusivamente o depoimento do 2º Réu BB, quando havia dados de facto objetivos a corroborar o sentido da prova pessoal e testemunhal feita e em que se fundamentou a decisão recorrida [para além de dados da prova pericial, com rigor científico/técnico]!
Termos em que improcede globalmente esta pretensão dos Recorrentes quanto ao que sustentaram relativamente aos factos “não provados”.
Sem embargo do ora vindo de dizer, subsiste o que se começou por considerar, donde, na reponderação de toda a prova produzida, decide-se proceder à reformulação da redação do ponto de facto “provado” sob “10-”, o qual passa a figurar do seguinte modo:
«10- Durante tal procedimento executado pelo BB, em circunstâncias não concretamente apuradas a dita “broca lança” saiu do local onde se encontrava, tendo sido aspirada por AA, alojando-se no campo pulmonar direito;»
Consequente e correspondentemente, decide-se aditar um ponto de facto ao elenco dos “não provados”, no qual passará a figurar em último lugar e com a seguinte redação:
« Enquanto procedia à preparação do equipamento radiográfico, BB afastou-se de AA.»
Sendo certo que os demais pontos de facto deste último elenco se mantêm nos seus precisos termos.
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Antes de passarmos à análise do segundo grupo de questões supra enunciado – o relativo aos danos/consequências para a A. do “acidente”! – ainda falta apreciar alguns aspetos do primeiro grupo, posto que igualmente suscitados em dois dos recursos interpostos, a saber:
a) aditamento requerido pela 1ª Ré A... e interveniente acessória C... de «não houve deficiência de materiais ou equipamentos utilizados no tratamento da autora e providenciados pela recorrente A...»
Sucede que se trata claramente de uma proposição argumentativa e/ou facto conclusivo, donde improceder a pretensão do aditamento correspondente;
b) aditamento requerido pela 1ª Ré A... ao facto “provado” sob “6-” que a anestesia aí referida foi anestesia local
Trata-se efetivamente de um ponto de facto pacificamente assente nos autos e que pode ter relevância, donde deferir-se a esta pretensão, através da reformulação do dito ponto de facto, o qual passa a figurar com a seguinte redação:
«6- No referido dia e local, em sala devidamente equipada para o efeito e da propriedade da sociedade “A..., Lda.”, BB iniciou os acordados trabalhos médicos na cavidade oral de AA, procedendo a anestesia local na gengiva do maxilar inferior e ao seu corte e perfuração, com vista à aplicação de próteses dentários;»
c) aditamento requerido pela interveniente acessória C... de «o ato médico ocorreu a um domingo, fora do horário de funcionamento da clínica, conforme pedido especial da autora e do Dr. BB, e no qual participaram terceiros alheios à 1ª Ré»
Neste particular diremos que embora não se trate de factualidade com direta relevância para a aferição dos pressupostos do direito de indemnização peticionado pela A. na presente ação, poderá relevar para o eventual e futuro exercício do direito de regresso, pelo que, com a correção pontual que se justifica relativamente aos “terceiros” [por apenas se detetar sentido lógico quanto à presença, no singular, da já aludida Dra. CC], se defere a esta pretensão através do aditamento de um ponto de facto ao elenco dos factos “provados”, onde passará a figurar com a seguinte numeração e teor:
«4-A - O ato médico ocorreu a um domingo, fora do horário de funcionamento da clínica, conforme pedido especial da autora e do Dr. BB, e no qual participou terceira pessoa sem vínculo contratual à 1ª Ré»
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Vejamos então, e sem mais, da impugnação à decisão sobre a matéria de facto que envolve a questão dos danos/consequências para a A. desse “acidente”, particularmente sob o ponto de vista de estado físico (em termos médicos), com destaque para os factos “provados” sob “28-” e “29-”
Quanto ao ponto de facto “provado” sob “28-”, sustentam os Recorrentes (que dele falam), que o mesmo deve considerar-se “não provado”, argumentando, no essencial, que este ponto de facto foi assim considerado com base nos testemunhos não fundamentados (sob o ponto de vista técnico-científico) das testemunhas GG (filho da Autora), DD (tia da Autora), EE (irmão da Autora), e FF (irmã da Autora), quando, em contraponto, o Perito Médico Dr. HH teria afirmado que ela podia perfeitamente ser sujeita a ressonâncias magnéticas, tendo apenas que dar a indicação de que existia a presença de um corpo metálico (a broca), mas que teria confirmado que a A. não estava impedida de o fazer.
Que dizer?
Rememoremos, antes de mais o seu teor literal, a saber:
«28- Em consequência direta e necessária do descrito de 6- a 17-, AA ficou impedida de sujeitar a ressonâncias magnéticas e, bem assim, com receio de recorrer aos serviços médico-dentários;»
Compulsando toda a prova produzida sobre este particular, se é certo que as afirmações das testemunhas familiares da A. não tinham base técnico-científica, e que a invocada opinião do Perito Médico Dr. HH foi efetivamente no sentido invocado, sucede que existiu, pelo menos, uma outra opinião com valia técnico-científica, que foi a expressa pelo Dr. NN, médico reumatologista (aliás, irmão do Réu BB), a qual foi mais concretamente a seguinte [cf. gravação áudio correspondente, do minuto 10:37 ao minuto 11:34]:
«Adv. Autora : Só ver se é capaz de me responder a isto : o problema das ressonâncias magnéticas, como sugere e etimologia da palavra é que aquilo funcciona com magnetismos, certo?
Testemunha : Certo
Adv. Autora : Ora, havendo um objecto metálico, qual é a perigosidade, se é capaz de nos explicar?
Testemunha : A questão da propriedade do metal, primeiro depende da constituição do próprio metal porque nem todos os objectos são contraindicados para fazer a ressonância magnética, por exemplo, próteses mais recentes não são contraindicadas a fazer uma ressonância magnética, o risco é do corpo em causa.
Adv. Autora : Se deslocar? Pergunto eu…
Testemunha : Existem dois riscos : que é aquecer e, eventualmente, se deslocar, começar a vibrar. De qualquer forma, quando isso acontece a pessoa sente e, imediatamente, pára a ressonância magnética.»
Assim sendo, se parece correto afirmar-se que a Autora não se encontra impedida de fazer ressonâncias magnéticas, salvo o devido respeito, a mesma tem riscos e encontra-se condicionada na realização das mesmas, o que sendo algo distinto não é despiciendo.
Por outro lado, não nos merece acolhimento a invocação de que não houve depoimentos consistentes e concludentes no sentido de a Autora ter agora “receio de recorrer aos serviços médico-dentários”, sendo como é tal estado em grande medida o normal acontecer e situação que nos é evidenciada pela experiência comum.
Nesta linha de entendimento se considera também improcedente o pedido de eliminação deste segmento que também foi formulado pela Ré A....
Assim, no deferimento apenas parcial da impugnação quanto a este ponto de facto, decide-se pela reformulação da sua redação, passando o mesmo a figurar com a seguinte redação:
«28- Em consequência direta e necessária do descrito de 6- a 17-, AA tem riscos e encontra-se condicionada quando se sujeita a ressonâncias magnéticas e, bem assim, tem receio de recorrer aos serviços médico-dentários;»
¨¨
Já quanto ao ponto de facto “provado” sob “29-”, os Recorrentes enfatizam a discordância quanto ao seu teor, nomeadamente invocando os esclarecimentos prestados em audiência pelo Perito Médico, Dr. HH, pugnando, mais concretamente – e com pequenas variações – no sentido de que ficasse consignado neste ponto de facto que à Autora embora possam acontecer infecções respiratórias mais frequentes, em termos funcionais não há repercussões na vida corrente, e a infecção a ocorrer deverá ser tratada com antibióticos como qualquer outra.
Que dizer?
Desde logo que, pelo confronto do teor literal deste ponto de facto, resulta que o punctum saliens do mesmo é a expressão “aumentou o risco de”, seguida de uma enumeração das situações visadas por essa afirmação[10].
Ora, compulsando a globalidade da prova produzida com relevância para este particular – e atente-se que a mesma foi vasta, como flui da própria motivação da sentença recorrida[11]! – não pode deixar de se concluir que até o dito deu respostas mais completas e com sentido mais ambivalente, nomeadamente que «(…) a jusante do local onde se encontra a broca pode ocorrer com maior frequência uma infecção respiratória.»[12]
Acrescendo que no Relatório por escrito havia deixado consignado expressamente o seguinte:
«d)- a jusante do corpo estranho broca pode ocorrer risco acrescido de infecção nomeadamente pneumonia e eu bronquiectasia as devido à obstrução ocasionada pelo corpo estranho broca.
e)- na eventualidade de ocorrerem intercorrências infecciosas de repetição poderá haver dano do segmento pulmonar onde está alojado corpo estranho (segmento póstero basal do brônquio loba inferior direito) não sendo contudo prever a perda total do pulmão embora possa ocorrer perda parcial da função respiratória.
Quarto- a repercussão que o corpo estranho broca pode provocar na qualidade de vida e no quotidiano da autora está dependente da evolução clínica. Permanecendo localizado não é de prever repercussão significativa, se pelo contrário ocorrerem infecções respiratórias de repetição a repercussão está dependente da gravidade destas intercorrências infeciosas.
Segundo- do ponto de vista clínico local onde está alojado o corpo estranho impossibilitou a sua remoção por via endoscópica devido à sua posição muito periférica não se podendo excluir totalmente a ocorrência de eventual pneumotórax/pneumomediastino como eventuais complicações».
Assim, porque o que está subjacente ao sentido do que consta deste ponto de facto é a expressão “aumentou o risco de”, entende-se que não é dar acolhimento ao requerido.
O que idem se diga relativamente ao pedido de aditamento que também foi formulado pela Ré A... quanto a este particular, a saber, que devia ser dado como “provado” que “atualmente o corpo estranho não apresenta repercussão sobre a função respiratória”.
Por outro lado, o aditamento de aspetos de pormenor sobre eventuais futuros tratamentos é desnecessário.
Não obstante o vindo de dizer, parece-nos justificar-se uma pequena correção de sintaxe verbal deste ponto de facto, tendo em vista ficar mais explícito e compreensível o seu sentido, donde se decide pela reformulação da sua redação, passando o mesmo a figurar com a seguinte redação:
«29- Em consequência direta e necessária da aspiração da broca filiforme por AA aumentou o risco de inflamação na área do pulmão que envolve a broca, de infeção (pneumonia e/ou bronquiectasias) devido à obstrução ocasionada pela broca, de perda parcial de função respiratória, e de pneumotórax e pneumomediastino;»
¨¨
Aqui chegados, falta para finalizar a impugnação em apreciação, apreciar o pedido da Ré A... no sentido de que deve ser incluído nos factos “provados” que a autora tinha “Como antecedentes patológicos e/ou traumáticos relevantes para a situação em apreço, a referir: Sindorme de Cushing ACTH dependente cíclico – operada em 2013 a nódulo da supra-renal, DM2, Displipidemia, Depressão Major, Excesso ponderal, HTA”;
Salvo o devido respeito, tal é pretensão que claramente improcede, por desnecessidade, face ao que já consta de relevante no ponto de facto “provado” sob “30-”.[13]
*
4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
As questões colocadas nesta sede, com inegável extensão, podem resumir-se a aspetos ligados à efetiva verificação dos requisitos/pressupostos da obrigação de indemnizar e ao quantum da indemnização atribuída à Autora.
Começaremos por dizer que a sentença recorrida procedeu – e bem! – atenta a precedência lógica no conhecimento dos pedidos formulados, à apreciação do aspeto do incumprimento, pela 1ª Ré, das obrigações emergentes do contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos que celebrou com a Autora e inerente obrigação de indemnizar aquela pelos danos sofridos.
Ora – e releve-se o juízo antecipatório! – quanto a nós, a procedência dos recursos interpostos, quanto ao seu primeiro objetivo, qual seja, o da desresponsabilização total dos RR., estaria sempre dependente da prévia e necessária procedência da impugnação à decisão sobre a matéria que deduziram e que vimos de apreciar.
Sucede que não se deu qualquer procedência a essa impugnação à decisão sobre a matéria de facto que contenda com esse preliminar aspeto do positivo incumprimento, pela 1ª Ré, das obrigações emergentes do contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos que celebrou com a Autora.
Senão vejamos.
É certo que ao ponto de facto “provado” sob “10-”, em acolhimento parcial da impugnação que versava sobre o mesmo, foi dada uma diferente redação, passando a ser «10- Durante tal procedimento executado pelo BB, em circunstâncias não concretamente apuradas a dita “broca lança” saiu do local onde se encontrava, tendo sido aspirada por AA, alojando-se no campo pulmonar direito;»
Esta alteração consistiu na eliminação da expressão “afastou-se” de AA que constava da redação inicial do ponto de facto – reportada ao decurso do procedimento de recolha de imagens radiográficas que o 2º Réu, Dr. BB levava a cabo – por se ter considerado que ficaram dúvidas sobre tal “afastamento” ter efetivamente ocorrido, dúvidas essas que, por essa via, se estenderam às concretas circunstâncias do “acidente”.
Sucede que não é por as concretas circunstâncias do “acidente” serem agora em alguma medida desconhecidas que se pode ou deve concluir pela desresponsabilização dos RR., mormente da 1ª Ré A....
É que algumas outras coisas subsistem certas e inquestionáveis.
Em termos de circunstâncias existentes no contexto espácio-temporal em questão, temos a positiva verificação de que o 2º Réu, Dr. BB, não tinha qualquer amarra ou outro sistema de segurança a segurar a “broca lança” com que estava a operar.
Neste sentido muito claramente aponta o ponto de facto “provado” sob “9-”, a saber, «9- Entretanto, BB decidiu colocar uma broca filiforme, designada por “broca lança”, no orifício criado pelo mesmo com a perfuração óssea do maxilar de AA, sem qualquer amarra ou outro sistema de segurança, para que funcionasse como material radiopaco e, dessa forma, permitisse apurar a profundidade da perfuração;» [com destaque da nossa autoria]
Ora, se esse Réu decidiu colocar a dita “broca lança” no orifício criado pelo mesmo com a perfuração óssea do maxilar de AA, tendo em vista a recolha de imagens radiográficas, estando como estava a Autora na posição de “deitada de barriga para cima na cadeira de dentista, a qual foi posicionada por BB de forma a que o maxilar ficasse paralelo ao solo – posicionada com um ângulo de 135.º” [cf. facto “provado” sob “7-”], parece-nos óbvio que é de concluir por uma falha no procedimento que o 2º Réu praticava, se, ainda que em circunstâncias não concretamente apuradas, a dita «(…) “broca lança” saiu do local onde se encontrava, tendo sido aspirada por AA, alojando-se no campo pulmonar direito;» [cf. facto “provado” sob “10-”].
Atente-se que, como doutamente aduziu a A. nas suas contra-alegações com a subsidiária ampliação do âmbito do recurso, «[É] de considerar verificado o pressuposto da ilicitude quando a lesão sofrida (queda de broca filiforme na orofaringe com aspiração e alojamento num pulmão) seja, em alto grau, estranha ao cumprimento do fim do contrato e a sua gravidade resulte desproporcionada quando comparada com os riscos normais para o lesado, inerentes àquela concreta intervenção ou acto médico.
(…)
Voltando à ilicitude, enquanto pressuposto da responsabilidade civil contratual médica se recordará, desde logo, que a inexecução da prestação contratual, como violação do contrato, é um acto ilícito, elemento integrante da responsabilidade contratual. Aqui a ilicitude traduz-se, tão só, numa relação de desconformidade entre o comportamento devido, que seria necessário para a realização da prestação devida, e o comportamento tido pelo agente (art. 762º do Cód. Civil). Tal desconformidade marcou presença no caso sub judice.
Quanto à culpa, no que concerne aos médicos e, bem assim, unidades privadas de prestação de cuidados de saúde em geral os mesmos estão obrigados para com os seus doentes, quer pelos específicos deveres que resultam do contrato com eles celebrado, quer por um dever geral de cuidado e tratamento que a própria deontologia profissional lhes impõe quando fazem o juramento de Hipócrates. Espera-se dos médicos, enquanto profissionais, que dêem provas de cabal perícia e competência.
Avultam aqui as «legis artis» que Vera Lúcia Raposo, define como “os métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a «standards» contextualizados de actuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica como os mais adequados e eficazes” - Vera Lúcia Raposo, “Do ato médico ao problema jurídico”, 2016.
Este padrão de conduta será mais exigente se o médico é um especialista na área respectiva ou lhe é reconhecida uma especial competência técnica, como é o caso do Réu BB, médico dentista especialista em implantologia (Vide respectiva Contestação).
Apurou-se que de acordo com o cuidado, a perícia e os conhecimentos compatíveis com os padrões que regem os médicos-dentistas cuidadosos do nosso tempo agindo em semelhantes circunstâncias o Réu BB deveria ter utilizado uma amarra cirúrgica na broca, prendendo esta com dois nós.
Do confronto do depoimento do Réu BB (inclusive com o Mmo. Juiz a levar a cabo, em plena audiência de julgamento, um ensaio de amarração com um e dois nós, demonstrando a eficácia da amarração nas duas circunstâncias, ineficaz na primeira, eficaz na segunda) com o depoimento da testemunha II (professor universitário do Réu BB, por este arrolado como testemunha), resultou que uma tal amarração não aconteceu.
Houve, portanto, actuação negligente - o médico ou a instituição prestadora de cuidados de saúde não exercitaram todo o seu zelo, nem colocaram em prática toda a sua capacidade técnica e científica na execução das suas tarefas para propiciar à Autora os serviços acordados.
(…)
Se a intervenção não apresenta complexidades significativas – como sucede com uma radiografia preparando cirurgia de implantologia que é uma intervenção comum que nem sequer exige internamento ou anestesia geral, se a mesma tem um risco baixo de complicações, como a prova pericial assinalou, desembocando a mesma num dano que, supostamente, não devia ter ocorrido e, sobretudo, num dano com a gravidade que a factualidade provada nos autos bem espelha, em termos de lógica dos acontecimentos tal sucedeu, não por força da particular complexidade do acto médico (que não foi sequer invocada) ou dos riscos que lhe estão associados (que são muito reduzidos), mas devido a falha no procedimento de quem o praticou.
Nestas hipóteses, demonstrada a ilicitude, devem ser o médico ou a clínica, pela sua proximidade com os factos e com os meios de prova, a demonstrar os factos que permitam afastar a sua culpa presumida, como decorre do previsto no art. 799º, n.º 1 do Cód. Civil.
Nos autos não existe prova de uma qualquer causa de exclusão da culpa, caso fortuito, facto do lesado ou um qualquer outro facto explicativo do evento, o qual - insiste-se - se apresenta como radicalmente desproporcionado no contexto da execução da radiografia e cirurgia que aqui estão em causa.
Não havendo ilisão da presunção de culpa, como não houve, todos os pressupostos da obrigação de indemnizar se devem ter por verificados.
Avulta aqui, ainda, a chamada doutrina dos deveres acessórios da prestação – deveres fundados na exigência do princípio da boa fé no cumprimento das obrigações, consagrado no art. 762º, nº 2, do CC, e agrupados nas categorias de deveres de informação, deveres de lealdade e deveres de protecção – com acolhimento e desenvolvimento na doutrina nacional (cfr. Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Vol. II, 1984, págs. 586 e segs., Tratado de Direito Civil, Vol. VI, 2012, págs. 498 e segs.).
O seu desenvolvimento deve-se a Carneiro da Frada (Contrato e deveres de protecção, 1994, págs. 44 e seg.), que assim sintetiza a doutrina dos deveres de protecção, acessórios em relação ao contrato: “Ao lado da relação de prestação dominante e dos deveres conexos”, o contrato “fundaria ainda entre as partes uma ordem especial de protecção dos seus bens pessoais ou patrimoniais (…). Na verdade, o contrato potencia inquestionavelmente riscos acrescidos de danos nas esferas dos intervenientes, riscos esses que seriam compensados pela decorrência daquele dos correspondentes deveres destinados a evitar a sua concretização. Por isso, a sua violação representaria a violação de um regulamento radicado no contrato e geraria uma autêntica responsabilidade contratual subordinada às especificidades de regime próprias desta forma de responsabilidade.”
Em suma, entende-se que, a par do interesse essencial que o credor visa satisfazer com o cumprimento da prestação debitória, existe, simultaneamente, um interesse de salvaguarda da integridade da sua pessoa e do seu património relativamente a danos que o contacto negocial pode causar.
Esta doutrina dos deveres de protecção, acessórios em relação ao deveres principais do contrato tem especial acuidade na prestação de serviços médicos : ao lado da obrigação principal – a de curar, a de minorar o sofrimento, a de aumentar a expectativa de vida – existe uma obrigação de não causar danos noutros bens pessoais ou patrimoniais do doente, diferentes daquele que constitui o objecto do negócio jurídico - Rute Teixeira Pedro, A responsabilidade civil do médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, 2008, pág. 80.
No caso em discussão, a obrigação principal – a reabilitação dos espaços edêntulos – era acompanhada do dever de não afectar qualquer outro bem da Autora. A queda da broca para a orofaringe, sua deglutição e alojamento no pulmão direito da Autora constitui o desrespeito de um tal dever. Há, por isso, ilicitude.»
Com efeito, não vislumbramos como dissentir desta linha de argumentação.
Atente-se que ao 2º Réu, Dr. BB, acrescia uma obrigação de proteção e conservação da integridade física e saúde do paciente (em ultima ratio, a própria vida), in casu, da Autora, coberta pela tutela da personalidade, nos termos previstos no art. 70º, nº 1, do C.Civil, como dever lateral de conduta abrigado nas obrigações secundárias em relação ao cumprimento da prestação principal.
Sendo que «(…) a lesão da pessoa tutelada - o paciente - deve considerar-se ilícito na forma de violação contratual (positiva, enquanto defeito de cumprimento), resultante do dever de cuidado necessário para evitar esse dano pessoal, susceptível de ser desencadeado pela actividade que a parte devedora está obrigada a executar ou legitimada para realizar contratualmente. O "erro médico" consiste na consecução dessa obrigação de meios com descaracterização e desadequação aos fins do procedimento ou tratamento, numa acção ou omissão reveladas numa tríptica perspectiva comportamental: imprudência, imperícia e negligência.»[14]
Assim, verificada a ilicitude nos termos vindos de expor, por força do preceituado no art. 799º, nº 1 do C.Civil, incumbia aos RR. afastar a presunção de culpa, comprovando que adotaram, eficaz e proficientemente, os procedimentos exigidos pelas «legis artis» aplicáveis ao caso.
Sucede que não o fizeram.
Desta forma se dá tutela à subsidiária ampliação do âmbito do recurso.
Assim constituindo o reforço possível da argumentação expendida na sentença recorrida, e que se encontra sublinhada no seguinte trecho da mesma:
«(…)
No caso dos autos, dadas as características anatómicas da broca utilizada pelo 2.º Réu, o local da perfuração, o posicionamento da Autora durante o procedimento médico e o risco de deslocação da broca e ser deglutida ou aspirada, como efetivamente o foi, é de considerar que aquele violou com a sua conduta deveres básicos e/ou elementares de cuidado/segurança para com a Autora, os quais seriam certamente respeitados por um médico dentista, medianamente sagaz, competente e diligente, que teria certamente aplicado uma amarra de segurança (com um nó de fixação eficaz) na broca em questão, amarra esta que, a ter sido aplicada pelo 2.º Réu, teria evitado a aspiração da broca ou permitido a sua fácil recuperação das vias respiratórias da Autora.
Acresce, que tal conclusão não é afastada pelo facto de no procedimento em causa estar associado um risco de deglutição ou aspiração, pois sempre que tal risco se verifica forçosa é a conclusão de que o médico agiu ilicitamente, produzindo resultado anómalo relativamente ao pretendido, em violação da prestação acordada. E visto que ocorreu uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato, haverá que concluir pela verificação da ilicitude (neste sentido, Ac. STJ, de 1.10.2015, proc. n.º 2104/05.4TBPVZ.P.S1, disponível in www.dgsi.pt).»
A esta luz, cremos não existir qualquer legítimo obstáculo a que considerem positivamente verificados todos os requisitos de verificação da responsabilidade, e, mais concretamente, os questionados da ilicitude e da culpa.
Culpa esta que se presumia, ex vi do disposto no nº 1 do art. 799º do C.Civil, e que, como já visto, mormente face ao factualismo que subsiste como “provado”, os RR. não lograram afastar.
Dispensando-nos do correspondente aprofundamento deste requisito da culpa, por claramente desnecessário.
Sendo certo, em todo o caso, que soçobra inapelavelmente a questão recursiva – inserta no recurso da interveniente acessória sociedade “C... – Companhia de Seguros, S.A.” – fundamentada no instituto da culpa do lesado, previsto nos termos do art. 570º do C. Civil, por não se detetar qualquer apoio factual para tanto.
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Passando a outro aspeto questionado em sede recursiva, a saber, o ter-se concluído que a 1ª Ré é responsável perante a Autora pelos atos dos seus representantes legais, ou de pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como decorre do art. 800º do C. Civil.
Cremos que a convincente resposta neste particular surgirá depois de se confrontar os dados de facto apurados com relevância para este efeito.
Eles encontram-se plasmados nos pontos de facto “provados” sob “1-”, “23-”, “24-” e “25-”, do seguinte concreto teor:
«1- No dia 12.03.2018, AA e a sociedade “A..., Lda.” acordaram, por escrito, que ambas assinaram – aquela pelo seu punho e esta pelo punho da sua legal representante – sob o título de “contrato de pagamento em prestações para exames e ou tratamentos n.º 471/2018”, o constante de fls. 17 e 17v., dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;»
«23- A intervenção médico-dentária que BB levou a cabo em AA teve por base um contrato de prestação que serviços, sem exclusividade, celebrado entre o mesmo e a sociedade “A..., Lda.”;»
«24- No âmbito do referido contrato de prestação de serviços, BB auferia da sociedade “A..., Lda.” retribuições pelos serviços prestados aos clientes desta, as quais variavam em funções da natureza e duração dos serviços que eram prestados;»
«25- Mediante prévia solicitação da sociedade “A..., Lda.”, no dia 12.10.2018, BB elaborou a informação constante de fls. 64v. e 65, cujo conteúdo se dá por reproduzido;»
Sendo que face a eles se conclui, insofismavelmente, que nos encontramos no caso vertente perante aquilo que a doutrina qualifica como “contrato total”[15], isto é, perante a modalidade face à qual, como nos foi sublinhado por douto aresto[16], «[N]o âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos atos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC.».
No mesmo sentido já foi doutamente sublinhado que «[N]um caso de responsabilidade médica em que foi celebrado um contrato total, “a clínica responde por todos os danos ocorridos, sejam eles de carácter médico, assistencial, de equipamento ou de hotelaria; e responde, nos termos do art. 800.º do CCivil, pelos atos dos seus auxiliares, sejam estes médicos, enfermeiros ou auxiliares administrativos ou de limpeza, os quais, por sua vez, nenhuma relação contratual mantêm com o paciente” (…)».[17]
A esta luz, a condenação pela sentença recorrida da 1ª Ré, em exclusividade, mostra-se juridicamente correta, sendo perfeitamente desajustada a invocação recursiva – no recurso da interveniente acessória sociedade “C... – Companhia de Seguros, S.A.” – no sentido de que «poderia o Tribunal a quo ter condenado diretamente o 2º Réu».
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Que dizer relativamente à invocação recursiva de que a Autora atua com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium?
Este argumento recursivo – feito pelo 2º Réu – ao que é dado perceber, assenta na invocação de a Autora ter assinado um “consentimento informado”.
Este 2º Réu/recorrente discorre nas alegações recursivas nos seguintes termos:
«52. Ou seja, actua com abuso de direito , na modalidade de venire contra factum próprium, quem como a Autora, num primeiro momento, após ser informada quanto ao tipo de procedimento médico que ia realizar, consente na realização do mesmo, assume os riscos inerentes, para depois vir afirmar que consentiu no procedimento, mas não nos riscos.
53. Ora, tais afirmações, do M.º Juiz, não fazem nenhum sentido, pois a utilização de brocas como material radiopaco, não tem que constar do consentimento da A., pois faz parte dos procedimentos normais.»
Será assim?
Tem-se entendido que a obrigação de informação também constitui elemento essencial da legis artis (em sentido amplo), decorre do princípio geral da boa fé e como fonte de especiais deveres integrantes do contrato, cuja amplitude e intensidade é variável de caso para caso, assumindo, porém, autonomia, visto que esta particular regra de comportamento médico visa a tutela da autodeterminação.[18]
Naturalmente que se compreende a importância da informação, pois o consentimento do paciente (livre e esclarecido) é um dos requisitos da licitude da atividade médica, ainda que o seu conteúdo seja “elástico”[19], pelo que terá, além do mais, de adequar-se às especificidades de cada caso.
E daí que se venha entendendo que a informação e o consentimento do paciente não devam ser prestados de forma genérica.[20]
Sucede que, como flui manifestamente do ponto “provado” sob “5-”, no confronto com o teor literal do documento no mesmo referenciado, no caso vertente tratou-se claramente de um consentimento prestado de forma genérica.
O que é quanto basta para a improcedência deste argumento recursivo!
Sem embargo do vindo de dizer, pode questionar-se se cabia à Autora provar que caso fosse informada dos riscos possíveis (de haver a possibilidade de se verificar um resultado que veio a ocorrer – a possibilidade de deglutição/aspiração de corpos estranhos, incluindo instrumentos cirúrgicos, durante procedimentos dentários) não teria dado o consentimento ou, ao invés, cabia aos RR. demonstrar que a Autora daria o seu consentimento mesmo que tivesse essa informação.
A nosso ver, funcionando o consentimento como causa de exclusão da ilicitude da sua atuação, é sobre o médico que impende o ónus de prova do consentimento (livre e esclarecido) prestado pelo paciente.
Isto porque é o R. médico que tem a necessidade de demonstrar que a afetação da integridade física da Autora pela intervenção que realizou era, afinal, lícita por existir uma causa de exclusão da ilicitude congénita a intervenções dessa natureza (art. 342º, nº 2, do C.Civil).
Sendo certo que a ser suscitado a questão do consentimento hipotético – que não foi! – também caberia ao autor do acto médico fazer a demonstração dos respetivos elementos constitutivos.
O que tudo serve para dizer que, na circunstância ajuizada, dos autos, é contra os RR. que devem ser retiradas as consequências de não ter ficado provado o que faria a Autora se tivesse sido confrontado com os riscos possíveis da cirurgia (com a possibilidade, não a certeza de eles ocorrerem): arts. 414º do n.C.P.Civil e 346º do C.Civil, segunda parte.
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Vejamos, para finalizar, a questão do quantum indemnizatório correspondente aos danos não patrimoniais sofridos pela Autora.
Recorde-se que o montante arbitrado na sentença recorrida foi de € 42.000,00, e que nos recursos deduzidos, os RR./recorrentes pugnam pela sua redução para montante não superior a € 12.500,00 ou € 15.000,00.
Já a Autora sustenta a confirmação do julgado.
Vejamos.
Neste particular importa ajuizar se a sentença recorrida atendeu com ponderação e equilíbrio, no seu juízo de equidade, às consequências sofrida pela Autora, e que se encontram patentes na lista dos factos provados, acima transcrita.
Encontramos pelo confronto da sentença proferida, a respetiva ponderação:
«No caso concreto, resultou provado que após a aspiração da broca pela Autora, foi chamado ao local o INEM, tendo, entretanto o 2.º Réu, decidido suturar as feridas cirúrgicas que Autora tinha no maxilar inferior, o que provocou fortes dores na boca desta, que perduraram por cerca de duas semanas; uma vez chegado o INEM, a Autora foi encaminhada para os Serviços de Urgência do Centro Hospitalar de Tondela- Viseu, E.P.E, Unidade de Viseu, onde foi sujeita a exame de RX ao tórax, tendo estado internada no dito Centro Hospitalar pelo período de 3 dias, embora, durante esse período, fosse transferida para o Centro Hospitalar de Coimbra, E.P.E. com vista realizar broncofibroscopia destinado à extração da broca, a qual, embora tendo sido repetida, mediante sedação, resultou infrutífera; após aalta hospitalar no dia 9.05.2018, teve a Autora de comparecer a consulta médica no dia 23.05.2018, onde lhe foram propostos procedimentos adicionais com vista à extração da broca dentária sem recurso a cirurgia, tendo, nessa sequência, a Autora sido internada, no dia 4.06.2018, internada no Serviço de Pneumologia do C.H. e Universitário de Coimbra, E.P.E., onde foi submetida, sem sucesso, a broncofibroscopia, sob anestesia e ventilação com máscara laríngea, tendo nova alta hospitalar no dia 6.06.2018, com consulta de cirurgia cardiotorácica marcada para 18.07.2018, ainda no referido Centro Hospitalar e Universitário, na qual compareceu, submetendo-se, sem sucesso, a fibroscopia rígida, com vista à extração da broca; em dia 27.02.2019 a Autora compareceu a nova consulta cirúrgica cardiotorácica no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, na qual foi informada que a remoção da broca cirúrgica era cirurgicamente possível, com o mínimo de ressecção de parênquima pulmonar, bem como, esclarecida dos riscos/benefícios do procedimento.
Mais se provou, que a Autora, em consequência direta e necessária do supra descrito ficou ansiosa, triste, com angustia e preocupação com a sua saúde, não só durante o trajeto para o hospital, internamentos, sujeição a exames, anestesias, intervenções médicas para remoção da broca do seu corpo, como posteriormente, receando que a broca se desloque e que, por via disso, o seu estado de saúde se agrave ou até possa morrer; que ficou impedida de sujeitar a ressonâncias magnéticas e, bem assim, com receio de recorrer aos serviços médico-dentários; e, por último, que em consequência direta e necessária da aspiração da broca filiforme pela Autora aumentou o risco de inflamação na área do pulmão que envolve a broca, de infeção (pneumonia e/ou bronquiectasias) devido à obstrução ocasionada pela broca, perda parcial de função respiratória, pneumotórax e pneumomediastino;
Por outro lado, há ainda que considerar neste sede que no dia em que se deu a aspiração da broca a Autora padecia de Síndrome de Cushing e de Depressão Major, a qual, habitualmente causa adinamia, tristeza, ansiedade, angustia e insónia de caracter crónico, encontrando-se a Autora medicada com antidepressivos e antipsicóticos e ansiolíticos.
Por último, releva inda nesta sede a circunstância de a Autora ter optado pela não remoção/extração da broca filiforme que se encontra alojada na base do campo pulmonar direito, apesar de medicamente viável, com o mínimo de ressecção de parênquima pulmonar.
Por conseguinte, face à natureza, gravidade, duração, extensão dos supra referidos danos que a Autora padeceu e padece em consequência direta e necessária da aspiração da broca filiforme, considera-se que os mesmos são merecedores da tutela do direito, impondo-se à Ré a obrigação de compensar a Autora pelos mesmos.
No entanto, não se poderá olvidar que, salvo melhor opinião, tendo a Autora optado pela não remoção cirúrgica da broca que se encontra alojada no seu pulmão – contrariando a proposta que lhe foi apresentada no dia 27.02.2019 – não poderá a mesma reclamar compensação monetária pelo facto de deter aquela no seu corpo e, dessa forma, o tribunal acolher, nesta parte. a sua pretensão, tanto mais que, sendo cirurgicamente viável a extração da broca, nada impedia a Autora que, após fixação de reclamada compensação monetária e seu recebimento, decidisse remover a broca do seu corpo, frustrando, dessa forma, os pressupostos em que assentou a decisão judicial.
Ponderando os apontados critérios de fixação da compensação devida pelos descritos danos, considera o Tribunal equitativo, atendendo, ainda, aos valores fixados pela jurisprudência para ressarcir danos da mesma natureza, atribuir à Autora a quantia de € 42.000,00 (quarenta e dois mil euros) a esse título compensação pelos danos não patrimoniais sofridos.»
Sustentam os Recorrentes, nas alegações recursivas, que o valor atribuído peca por excesso, ou é “manifestamente exagerado”.
Mas se invocam a desconformidade com os valores fixados pela jurisprudência para casos equiparados, não especificam quais sejam.
Também essa falta de especificação se deteta na sentença recorrida, ainda que expressamente nela se tenha invocado que se devia atender “aos valores fixados pela jurisprudência para ressarcir danos da mesma natureza”.
Que dizer?
Quanto a nós que a fixação da compensação por danos não patrimoniais deve implicar efetivamente o recurso aos padrões definidos pela jurisprudência, de molde a obter-se uma uniformização de critérios que evite o subjetivismo na determinação do quantum indemnizatur.
Assim sendo, o juízo a fazer por esta instância de recurso consistirá basicamente em avaliar se os valores arbitrados se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, devem ser os seguidos em situações análogas ou equiparáveis.[21]
Vejamos então.
- no acórdão de 10.10.2012[22], foi atribuída à vítima uma indemnização de € 45.000,00 pelos danos morais, numa situação de acidente que originou lesões múltiplas, nomeadamente gravosas lesões ortopédicas, insuficientemente ultrapassadas, face às sequelas permanentes para a capacidade de movimentação da lesada; afetação relevante e irremediável do padrão de vida de sinistrada jovem, com praticamente 20 anos de idade, associada, desde logo, ao grau de incapacidade fixado (suscetível de, em prazo não muito dilatado, alcançar os 22%) com repercussões negativas, não apenas ao nível da atividade profissional, mas também ao nível da vida e afirmação pessoal; várias cicatrizes, geradoras do consequente dano estético; internamentos e tratamentos médico-cirúrgicos muito prolongados, com imobilização e períodos de total incapacidade do doente e envolvendo dores e sofrimentos físicos e psicológicos muito intensos;
- no acórdão de 19-09-2019[23], foi considerada equitativa uma indemnização de €50.000,00 destinada a compensar danos não patrimoniais num caso em que o lesado contava com 45 anos à data do acidente, foi sujeito a exames médicos e vários ciclos de fisioterapia, bem como a uma intervenção cirúrgica; ficou afetado com um défice funcional permanente de 32 pontos; sofreu dores quantificáveis em 5 numa escala de 7 pontos; sofreu um dano estético quantificado em 3 numa escala de 7 pontos; a repercussão das sequelas sofridas nas atividades desportivas e de lazer foi quantificada em 3 numa escala de 7 pontos; sofreu um rebate em termos psicológicos, em virtude das lesões e sequelas permanentes, designadamente por não poder voltar a exercer a sua profissão habitual e/ou outra no âmbito da sua formação profissional;
- no acórdão de 5.12.2017[24], foi de € 20.000,00 o montante fixado equitativamente, num caso de acidente de viação, sem culpa da vítima, a qual teve um sofrimento físico e psíquico (quantum doloris) de grau 4, um dano estético de grau 3, e sendo a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 2.
Revertendo agora ao caso ajuizado.
Os danos sofridos pela Autora são inegáveis, ainda que objetivamente se tenha verificado uma ligeira atenuação dos mesmos nesta instância de recurso [cf. nova redação ao ponto de facto “provado” sob “28-”].
Sendo que atenta a opção por ela assumida de não se submeter a operação, possível, para remoção da broca lança, está ela destinada a para sempre coexistir com a broca alojada no seu pulmão direito e, conviver com o risco acrescido de infecção (nomeadamente pneumonia e o bronquiectasias) devido à obstrução ocasionada pelo corpo estranho, e bem assim de pneumotórax ou pneumomediastino (com as correspondentes complicações).
Ademais, já se sujeitou a sucessivas provações, sem sucesso, para remoção hospitalar da broca, o que lhe acarretou outros tantos internamentos e anestesias gerais.
Por outro lado, se optar submeter-se a intervenção cirúrgica que permita aceder ao seu pulmão direito tendo em vista a remoção em causa, tratar-se-á de um ato invasivo, com tudo o que o mesmo implica em termos de dores e padecimentos, para além dos riscos associados.
Mas que permitiria resolver, seguramente, grande parte dos riscos que ter aquele corpo estranho dentro de si representa e implica…
Assim, no caso vertente, parece-nos ser de ponderar decisivamente ter o “acidente” ocorrido sem qualquer culpa da Autora, cuja consternação e abalo psíquico face à situação já vivida e com que optou por viver, é de grau relevante, mas que sendo uma lesão em órgão interno, não se pode considerar ser de intensidade superior.
Ocorrendo que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem arbitrado compensações de montante quase igual ao que foi arbitrado na sentença recorrida, mas para casos de superior gravidade ao presente.
Donde, atenta a função uniformizadora que o nosso mais alto tribunal desempenha e as exigências de que casos similares tenham um tratamento tanto quanto possível igual, afigura-se-nos adequado reduzir a compensação por este dano para € 37.000,00.
Nesta medida procedendo os recursos deduzidos neste particular.
*
5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (…).
*
6 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam a final em dar apenas parcial procedência às apelações dos RR. e intervenientes acessórias, alterando-se o montante indemnizatório constante da sentença recorrida a título de danos não patrimoniais sofridos pela A., cuja compensação é reduzida de € 42.000,00 para € 37.000,00, valor este a pagar pela 1ª Ré A..., em tudo o demais se mantendo a sentença de 1ª instância.
Custas da ação pela Autora e pela 1ª Ré A... na proporção dos respetivos decaimentos, e dos recursos principais e subordinado, pelos RR., intervenientes acessórias e Autora, na proporção dos seus decaimentos.
*
Coimbra, 11 de Março de 2025
Luís Filipe Cravo
Fernando Monteiro
Vítor Amaral
[1] Relator: Des. Luís Cravo
1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
2º Adjunto: Des. Vítor Amaral
[2] Citámos LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 3ª ed., Livª Almedina, 2017, a págs. 713.
[3] Cf., inter alia, os acórdãos do S.T.J. de 26.04.84 (no BMJ 336, a págs. 406), de 27.01.93 (no BMJ 423, a págs. 444) e de 07.07.94 (no BMJ 439, a págs. 299).
[4] Assim JOSÉ LEBRE DE FREITAS in “A Acção Declarativa Comum”, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, a págs. 299.
[5] Neste particular, encontra-se grafado na “motivação” da sentença recorrida, «Não se atendeu ao depoimento de CC, mulher do 2.º Réu, por se afigurar manifesta a hesitação, falta de clareza e segurança reveladas, conjugado com o comprometimento revelado, certamente inerente aos laços que a unem ao 2.º Réu, o que prejudicou a credibilidade do deposto».
[6] O art.662º, nº1 do n.C.P.Civil preceitua que «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.» [com sublinhado da nossa autoria]
[7] Sendo certo que efetivamente a Autora, nas suas “declarações de parte”, apenas aludiu a que se o dito Réu se “levantou da cadeira” (pois estava sentado numa cadeira a fazer o serviço)…
[8] Cf. a gravação áudio correspondente, particularmente do minuto 47:18 ao minuto 48:02.
[9] Assim ANA LUÍSA GERALDES, “Impugnação e Reapreciação da decisão da matéria de facto”, in www.cjlp.org /Ana Luísa Geraldes, a págs. 5-6.
[10] Cf. «29- Em consequência direta e necessária da aspiração da broca filiforme por AA aumentou o risco de inflamação na área do pulmão que envolve a broca, de infeção (pneumonia e/ou bronquiectasias) devido à obstrução ocasionada pela broca, perda parcial de função respiratória, pneumotórax e pneumomediastino;» [com destaque da nossa autoria]
[11] Cf. «Os esclarecimentos dos Srs. peritos dados em audiência, permitiram ao tribunal uma melhor compreensão dos relatórios que apresentaram nos autos, como infra se referirá. Atendeu-se, ainda, ao conteúdo dos documentos fls.17 a 19v., 23 a 34, 41, 64v. a 70, 71 a 77, 90 a 98, 100, 101, 103, 105, 107, 121 a 126, 128, 128v., 246 a 289, 312 a 318, 332 a 336, 363 a 368, 420 a 426, 450 a 452, 465 a 475 e 480 a 481 (…)».
[12] Vide gravação áudio correspondente, do minuto 6:34 ao minuto 6:54.
[13] Cf. «30- No dia 6.05.2018 AA padecia de Síndrome de Cushing e de Depressão Major, a qual, habitualmente causa adinamia, tristeza, ansiedade, angustia e insónia de caracter crónico, encontrando-se, porém, medicada com antidepressivos e antipsicóticos e ansiolíticos;»
[14] Assim o acórdão do STJ de 15.12.2020, proferido no proc. nº 765/16.8T8AVR.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[15] Em contraponto, na modalidade designada por “contrato dividido”, a clínica/hospital assume, em regra, as obrigações decorrentes da realização da operação (locação de equipamentos, fornecimento de medicação, não tendo existido internamento “in casu”), enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (atos médicos). Bem se compreende assim que, em tais casos, «(…) a responsabilidade da clínica e do médico assistente é dividida nos exatos termos acordados no contrato, isto é, a clínica responde pelas prestações genéricas de assistência hospitalar: preparação das instalações e equipamentos, contratação e disponibilização de assistentes e ajudantes da equipa médica (excluindo aqueles que o médico escolher pessoalmente), prestação de medicamentos, comida e instalações hoteleiras. O titular da clínica responde, pois, pelos comportamentos dos seus órgãos, representantes e auxiliares (art. 800.º). O médico contratado, por seu turno, responde pelas prestações de natureza médica e terapêutica, pelo seu próprio incumprimento (art. 798.º) e os dos seus auxiliares (art. 800.º).» - cf. ANDRÉ DIAS PEREIRA, in “Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica”, a págs. 600, acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf.
[16] Trata-se do acórdão do STJ de 23.03.2017, proferido no proc. nº 296/07.7TBMCN.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[17] Trata-se do acórdão do STJ de 9.12.2021, proferido no proc. nº 3634/15.5T8AVR.P1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[18] Vide, por ex., MARIANO ALONSO PEREZ, in “La relación médico-enfermo pressuposto de responsabilidade civil em torno a la “lex artis”, em Perfiles de la Responsabilidad Civil en el Nuevo Milenio, 2000, pág. 14 e segs., e VERA RAPOSA, in “Do ato médico ao problema jurídico, 2014, pág. 14 e segs..
[19] A este propósito vide o acórdão do STJ de 9.10.2014, proferido no proc. nº 3925/07.9TVPRT, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[20] Cf., inter alia, o acórdão do STJ de 22.03.2018, proferido no proc. nº 7053712.7TBVNG.P1.S1, também ele acessível em ´www.dgsi.pt/jstj
[21] Cf., também neste sentido, o acórdão do STJ de 08.06.2017, proferido no proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P1.S1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[22] Proferido no proc. nº 632/2001.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[23] Proferido no proc. nº 2706/17.6T8BRG.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj
[24] Proferido no proc. nº 505/15.9T8AVR, acessível em www.dgsi.pt/stj.