1. A partilha, ainda que a decisão dela se tenha tornado definitiva, pode ser emendada se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro suscetível de viciar a vontade das partes.
2. A emenda da partilha não pode ser usada como uma forma de fazer vingar uma nova interpretação dos elementos de facto, supostamente errados ou desconsiderados, mas afinal e ostensivamente certos, ou como uma forma de exercer extemporaneamente direitos processuais que não foram exercidos em momento próprio.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
Estão em causa as seguintes decisões:
Aquela que podemos designar como “preliminar”, de 14.5.2024:
“Por requerimento apresentado 16.02.2024, na sua petição inicial, veio o autor AA pedir, além do mais, a “revogação ou, se não, a retificação do despacho que reconheceu o passivo” da herança, nos autos principais, e a “revogação ou, se não, a retificação da sentença que homologou o mapa da partilha”, convocando, para o efeito, a ofensa do caso julgado material formado pela sentença proferida no âmbito do processo n.º 326/12.0TBNZR, nos termos do artigo 619.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e o “erro de julgamento”.
A questão em causa situa-se ao nível dos vícios da sentença ou do despacho judicial, relevando, in casu, atentos os pedidos formulados, os vícios que podem determinar a retificação da sentença ou despacho decisório.
A respeito da sentença, versa o artigo 614.º do Código de Processo Civil, segundo o qual a sentença pode conter erros materiais, definindo como erro material: o erro de cálculo e o erro de escrita (artigo 249.º do Código Civil), a omissão do nome das partes e omissão de qualquer outro elemento essencial não duvidoso.
Tratam-se, pois, de erros cognoscíveis, deficiências que resultam do próprio contexto da sentença, da qual se retira que a letra se encontra em desconformidade com a intenção do subscritor, sendo retificáveis apenas quando manifestos.
Tal preceito é igualmente aplicável a despachos judiciais, por força do estatuído no artigo 613.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Ora, analisando a fundamentação do autor para a invocação de uma tal necessidade de retificação, rapidamente se conclui que mesma não se afigura possível ao abrigo do referido normativo, porquanto, naturalmente, a eventual ofensa de caso julgado material ou de “erro de julgamento” nunca poderá consubstanciar um simples erro manifesto da sentença ou do despacho decisório.
Na verdade, tais vícios poderão apenas caber no âmbito das nulidades ou anulabilidades da sentença que poderão ser objecto de reclamação para o juiz da causa ou de recurso para o Tribunal da Relação.
A respeito, então, das nulidades ou anulabilidades que podem ser suscitadas perante o juiz da causa (artigo 615.º, n.º 2 e n.º 4), versa o artigo 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil segundo o qual “É nula a sentença quando: (…)
Já os restantes vícios da sentença poderão, a contrario, apenas ser alvo de recurso, nos termos gerais.
Cumpre, então, apreciar.
No que respeita à invocada ofensa de caso julgado, jurisprudência existe que a qualifica como uma verdadeira nulidade da sentença, integrada na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil. Neste sentido, decidiu o Tribunal da Relação do Porto no Acórdão de 25.10.1993, processo n.º 9450253, relatado por Reis Figueira, que “por se pronunciar sobre questão de que não podia conhecer, quer porque não lhe foi posta, quer porque já estava decidida com trânsito, a violação do caso julgado é apenas um vício indireto, resultante de se ter praticado uma nulidade: conhecimento de questão de que não se pode conhecer.”.
Em tal hipótese, a nulidade apenas poderia ser invocada perante o Tribunal que proferiu a decisão caso a mesma não fosse susceptível de recurso, nos termos do disposto do artigo 615.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Ocorre que, atento valor da acção especial de inventário no qual foram proferidas as referidas decisões (valor equivalente ao total de bens a partilhar, nos termos do artigo 302.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), as referidas decisões sempre seriam susceptíveis de recurso - o qual se encontra, aliás, expressamente previsto como admissível, independentemente do valor da acção, no artigo 629.º, n.º 2, alínea a), in fine, do Código de Processo Civil, por via de recurso ordinário de apelação, nos termos do artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil [e, caso se tratasse de Acórdão de Tribunal da Relação, por via de recurso ordinário de revista, nos termos do artigo 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil].
E mesmo que assim não se entendesse, ao abrigo do disposto no artigo 149.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a apontada nulidade poderia apenas ser invocada no prazo geral de 10 (dez) dias perante o Tribunal que proferiu a sentença, prazo que se encontraria, no presente, largamente excedido.
Por seu turno, o invocado “erro de julgamento” constitui sempre vício da sentença que apenas por via de recurso pode ser conhecido, nos termos do artigo 644.º, n.º 1, alínea a), através de recurso ordinário de apelação dirigido ao Tribunal da Relação.
Cumpre referir, ademais, que, por um lado, o requerimento sob apreciação não requer ao Tribunal qualquer admissão de recurso das decisões em causa; e, por outro lado, sempre o prazo para qualquer recurso de apelação se encontraria, igualmente, presentemente excedido, nos termos do disposto no artigo 638.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Conclui-se, assim, que o requerimento de “retificação” e de “revogação” do despacho e sentença proferidos nos autos não poderá proceder, por não serem os mesmos susceptíveis nem de reclamação, nem, atualmente, de recurso ordinário, por manifesta intempestividade.
Nestes termos, indefere-se a requerida “retificação” e “revogação” do despacho judicial que reconheceu o passivo e da sentença de homologação do mapa da partilha, por ofensa de caso julgado e por erro de julgamento.”
No final, depois da discussão da eventual “manifesta improcedência”, o Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, notificou as partes para se pronunciarem, querendo, no prazo de dez dias.
Na sequência, a decisão de 12.7.2024:
“AA intentou a presente acção especial de emenda à partilha contra BB, pedindo, em conformidade com a redução ao pedido operada:
“- A revogação ou, se não, a retificação do despacho que reconheceu o passivo e devendo, sempre e em qualquer caso, ser eliminada a verba do passivo; e a revogação ou, se não, a retificação da sentença que homologou o mapa da partilha no referente aos seus segmentos da responsabilidade do passivo e dos montantes das tornas a pagar e a receber e a consequente retificação em conformidade com o ora alegado ou se vier a determinar a final.
-A emenda à partilha de modo a que seja eliminada a verba 1 do passivo da relação de bens adicional e a consequente retificação dos segmentos do mapa da partilha referentes à responsabilidade do passivo que deve ser eliminado e aos montantes das tornas a receber e a pagar que devem ser retificados em conformidade.
- Em face de todos ou só de alguns dos pedidos e na sua procedência deve ser retificado o que de mais pertinente for no mapa da partilha” (sic).
Na sequência da apresentação dos articulados iniciais, foram as partes convidadas a pronunciar-se a respeito da manifesta improcedência dos pedidos deduzidos pelo Autor.
Em resposta, veio o Autor clarificar a causa de pedir que sustentava o pedido [requerimento de 27.05.2024 sob a referência 10836070 e requerimento de 08.07.2024 sob a referência 10965898].
Por sua vez, a Ré reiterou, em suma, a posição já manifestada na sua contestação, pugnando pela improcedência da acção.
Nos termos do artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente”.
Como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, 2020, Almedina, Coimbra, pp. 721 e 722), a acção qualifica-se como manifestamente improcedente quando “seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permanecem controvertidos”.
É o que se nos afigura estar em causa nos presentes autos.
Com efeito, sob a epígrafe “emenda da partilha”, prevê o artigo 1126.º, n.º 1, do Código de Processo Civil:
“1 – Ainda que a decisão homologatória tenha transitado em julgado, a partilha pode ser emendada no próprio inventário por acordo de todos os interessados, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro suscetível de viciar a vontade das partes.
2 – Na falta de acordo quanto à emenda, o interessado requer fundamentadamente, no próprio processo, que a ela se proceda, no prazo máximo de um ano a contar da cognoscibilidade do erro, desde que esta seja posterior à decisão, aplicando-se à tramitação o disposto quanto aos incidentes da instância”.
A acção especial de inventário a que estes autos seguem por apenso teve o seu início com requerimento apresentado pela cabeça-de-casal a 04.10.2006, conforme é visível no histórico do processo eletrónico sob a referência citius 91098.
A essa data, encontrava-se em vigor o regime jurídico do processo de inventário instituído pelo anterior Código de Processo Civil, de 1961 (Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de dezembro), que será, assim, o diploma aplicável, de acordo com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, da Lei (atualmente em vigor) n.º 117/2019, de 13 de setembro, e nos artigos 7.º e 8.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de março
Similarmente, dispunha o referido diploma que “A partilha, ainda depois de passar em julgado a sentença, pode ser emendada no mesmo inventário por acordo de todos os interessados ou dos seus representantes, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes” (artigo 1386.º, n.º 1).
Estabelecia, por sua vez, no seu artigo 1387.º, n.º 1, que, porém, não se verificando o acordo dos interessados quanto à emenda, “pode esta ser pedida em acção proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à sentença”.
A emenda da partilha constitui, assim, um procedimento a que, mesmo após o trânsito em julgado, pode recorrer qualquer interessado direto na partilha que detete a existência de um erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou de um qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes.
Nestes termos, à parte dos erros na descrição e da qualificação de bens, aproximados dos erros materiais que poderiam ser alvo de retificação nos termos gerais do artigo 614.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, mas para os quais aqui se prevê um regime especial, “Relativamente aos demais erros de facto, como por exemplo, estar o requerente na ignorância da extensão, natureza, características e valor dos bens inventariados, que recaem sobre a qualidade dos mesmos bens, torna-se necessária a alegação prova dos requisitos gerais e especiais desse erro, nos precisos termos dos arts. 247.º e segs. Do C.C” [Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.10.2019, processo n.º 1837/11.0TBMTA-C.L1-7, relatado por José Capacete, consultado em www.dgsi.pt].
Assim, além dos referidos erros materiais, a emenda da partilha pode apenas ser fundada em erro que viciou a vontade das partes, nos termos dos artigos 247.º e seguintes do Código Civil, regime que deverá aplicar-se com maior benevolência, dispensando “o requisito da essencialidade (…), justificando-se a aplicação do regime do artigo 838.º, n.º 1” [Geraldes, António Santos Abrantes; Pimenta, Paulo; e Sousa, Luís Filipe Aires, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª edição, 2022, Almedina, Coimbra, p. 660].
In casu, atentos os fundamentos invocados pelo autor, cumpre chamar à colação como direito aplicável ao erro por si invocado, o disposto no artigo 251.º do Código Civil, referente ao erro-vício incidente sobre o objecto do negócio (suas qualidades ou características, no momento de contratar) – aqui se entendendo por negócio a sua declaração tácita de aceitação do passivo relacionado.
Estabelece o referido normativo que “O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º”, que, por sua vez, determina que “Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
A um tal respeito, não podemos deixar de considerar que a petição inicial, não obstante os aditamentos e clarificações voluntariamente efectuados pelo Autor, se mantém algo rica em obscuridades e contradições que situam a causa de pedir alegada no limiar da ininteligibilidade [artigo 186.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil], sem que o Tribunal vislumbre em que medida poderia a mesma vir a ser aperfeiçoada, na medida em que em causa não se encontra uma insuficiência ou uma imprecisão na sua exposição, de molde a convidar a parte ao seu aperfeiçoamento [artigo 590.º, n.º 2, alínea a) e n.º 4, do Código de Processo Civil], mas antes, verdadeiramente, uma alegação factual abundantemente contraditória, conforme referido no despacho anterior.
Com efeito, para sustentar o seu erro-vício a respeito do imóvel relacionado sob a verba 32, licitado e adjudicado à Ré, alegou o Autor que o mesmo “estava errado ao achar que o imóvel era uma benfeitoria” atenta a circunstância de ter peticionado numa outra acção que este viesse a ser qualificado como tal. No entanto, referiu que “tomou conhecimento do desfecho da acção” e que a mesma, no seu dispositivo, considerou que o imóvel não era uma benfeitoria, mas simplesmente um prédio integrante do património hereditário, mesmo antes da apresentação da nova relação de bens na qual aquele imóvel foi igualmente relacionado como tal (e não como benfeitoria).
Sustenta também o seu erro-vício na circunstância de desconhecer, ao tempo da conferência de interessados, que a cabeça-de-casal havia aditado uma verba ao passivo da herança, no entanto, reconhece ter acordado expressamente em baixar o seu valor e, por conseguinte, ter tido desta forma conhecimento do referido passivo relacionado.
Aduziu ainda que estava em crer que o imóvel se encontrava descrito sob a verba 32 com a área correspondente à ocupada pelo mesmo, indicando acreditar, à data da conferência, que esta área correspondia a 107 m2, embora admita também como possível ter acreditado (?) que o mesmo possuía uma área coberta de 137 m2, concluindo, por fim, que, a final, não sabia qual a área coberta concreta do imóvel, uma vez que apenas “agora” procedeu à sua medição.
E é com base na referida alegação (a acrescer à invocação da ofensa de caso julgado e de erro de julgamento) que o Autor peticiona a revogação ou a retificação do despacho que reconheceu o passivo ou da sentença que homologou o mapa da partilha e que tal passivo seja eliminado.
Mas além de contraditória, afigura-se-nos que a alegação do Autor, mesmo na hipótese de se optar por aquela que melhor lhe conviria, não se subsume aos pressupostos da emenda requerida.
É que a sua alegação relevante, em face da redução do seu pedido à questão do passivo aditado e licitado, é recondutível a dois pontos essenciais:
(i) O Autor, tendo conhecimento da sentença que julgou a questão por si suscitada a respeito da qualificação do imóvel cuja falta invocou no inventário, não atentou a ela, tendo ignorado quer a sua fundamentação, quer o seu dispositivo, por essa razão desconhecendo que não se tinha aí decidido que o bem constituiria uma benfeitoria, conforme peticionou;
(ii) O Autor não atentou à relação de bens apresentada no inventário na sequência desta acção comum, que aditou ao activo o imóvel referenciado, mas também uma verba ao passivo, correspondente à área por este ocupada no terreno de terceiro.
A respeito da primeira questão, diga-se, desde logo, que da mesma nunca poderia advir um erro relevante para os efeitos da presente ação, cuja finalidade é emendar a partilha.
Não tendo naquela acção comum, efectivamente, sido decidido que o bem constituía uma benfeitoria, mas apenas um bem imóvel pertencente à herança, não poderia a questão ser emendada na partilha no sentido contrário, tendo o inventário procedido tal qual decidido naqueloutra acção.
De resto, o exposto não sustenta, como é bom de ver, um qualquer erro de facto na descrição ou na qualificação dos bens partilhados (erro de facto), nem um qualquer erro sobre o objecto ou sobre os motivos sobre os bens (neste caso, créditos) a partilhar.
Isto porque o Autor não alega que o passivo está incorreto ou que acreditava que o mesmo era diverso ou que a ele correspondiam características sem respaldo na sua descrição.
O que o Autor pretende é vê-lo eliminado por não concordar com a circunstância de o mesmo ter sido relacionado, o que deixou acontecer apenas por distração ou por irregularidades no seu patrocínio, não prestando às acções judiciais em que era interveniente a atenção que deveria.
Aduz, pois, que se tivesse estado atento aos procedimentos processuais que se encontravam a decorrer ter-se-ia inteirado da circunstância de ter sido relacionado passivo – razão pela qual o pretende eliminar.
Temos, assim, apenas, uma intenção do Autor em exercer extemporaneamente direitos processuais que não exerceu em momento próprio, como sejam o da apresentação de reclamação contra a relação de bens apresentada quanto ao passivo relacionado, de molde a eliminá-lo (como agora pretende) [artigo 1104.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil] e o direito ao recurso sobre a decisão judicial que não qualificou o bem como benfeitoria.
Sem que, de resto, os fundamentos a que recorre para o justificar se nos afigurem procedentes, pelo simples facto de o mesmo não ter logrado alegar factos dos quais se possa concluir pela existência de qualquer erro nas características dos bens partilhados ou qualquer erro-vício capaz de sustentar o pedido de emenda à partilha, nem mesmo após ter procedido, voluntariamente, ao aditamento e clarificação dos factos inicialmente alegados, nos termos do artigo 1126.º do Código de Processo Civil.
Cremos, pois, que não será esta a finalidade da emenda à partilha, cuja faculdade, admitindo a alteração a todo o tempo do decidido e acordado no inventário, mesmo após o trânsito em julgado, não pode abrir-se a todo e qualquer caso em que os interessados na partilha pretendam exercer direitos que apenas por incúria grosseira não exerceram no local e momento próprios, sob pena de afronta intolerável ao princípio da segurança jurídica e ao instituto do caso julgado das decisões judiciais – sobretudo, como no caso em apreço, em que inexiste acordo dos interessados.
Com efeito, como se disse, o Autor reconhece ter tido conhecimento da prolação da sentença na acção comum onde ficou decidida a questão a respeito da qualificação da verba n.º 32 da relação de bens, reconhece ter tomado conhecimento da relação de bens posteriormente apresentada, reconhece ter estado presente na conferência de interessados e reconhece assistido às licitações e ter tido conhecimento de que o passivo tinha sido relacionado e se encontrava a ser partilhado.
Sob este prisma, pode mesmo sustentar-se que a conduta do Autor constitui um venire contra factum proprium, ferindo as expectativas que a sua conduta criou legitimamente nos demais intervenientes processuais, pretendendo agora extemporaneamente prevalecer-se da sua inação negligente perante todos os mecanismos legais que se encontrava em condições de acionar no momento próprio, o que constitui um comportamento abusivo sempre proibido nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
*
Já a respeito da reiteração feita pelo Autor a respeito do segmento da sua petição inicial referente ao invocado caso julgado e erro de julgamento do Tribunal no âmbito do processo de inventário, ocorre que o Tribunal já se pronunciou, no despacho antecedente, de forma definitiva, a respeito de tais “nulidades”, indeferindo a requerida “retificação” e “revogação” do despacho judicial que reconheceu o passivo e da sentença de homologação do mapa da partilha, com base nestes fundamentos, pelo que o poder jurisdicional deste Tribunal se mostra esgotado quanto a tal questão.
Não constituindo o requerimento apresentado o meio processualmente adequado a reagir contra o referido despacho judicial, nada há a ordenar a tal respeito.
*
Face ao exposto, o Tribunal decide julgar improcedente a presente acção especial de emenda à partilha, por manifesta improcedência, absolvendo a Ré dos pedidos formulados.”
1ª- Por ainda não ter sido proferido despacho a decidir o requerido pelo recorrente em 27.5.2024 , como se diz em 2.1 , deve ser determinado que o tribunal “ a quo” se pronuncie sobre a requerida adequação formal no referente ao pedido I e nos termos ditos em 2.1 e com prejuízo dos demais termos do recurso ; ou , a assim se entender , que seja decidido, em conformidade com o requerido, por esse Venerando Tribunal e atento o que de pertinente se diz e requer em 2.3.
2ª – Deve ser determinado por esse Venerando Tribunal, com prejuízo dos demais termos do recurso, que o Tribunal “a quo” profira despacho a convidar o recorrente ao aperfeiçoamento do seu articulado; ou, se não, que seja proferido despacho pré saneador para os mesmos fins ditos em 2.2.
3ª- Atenta a invocação pelo recorrente, para fundamentar o pedido e a procedência da ação, da exceção perentória da autoridade do caso julgado que não foi impugnada e assim está provada e é de conhecimento oficioso, deve ser determinado, por esse Venerando Tribunal, que o Tribunal “a quo”, oportunamente, convoque a audiência prévia ou profira despacho saneador e para conhecer do mérito da causa e proferir decisão a julgar procedente a ação.
4ª – A não se entender como em 3ª e a entender – se assim nesse Venerando Tribunal, deve ser proferido douto Acórdão a julgar procedente a ação como peticionado pelo recorrente e atenta a mesma exceção da autoridade do caso julgado.
5ª- Ainda, a não se entender como em 3ª ou 4ª e para o caso de esse Venerando Tribunal assim entender, devem os autos ser remetidos ao Tribunal “a quo” para aí prosseguirem os demais termos, mormente para apreciação e decisão da exceção da autoridade do caso julgado.
6ª - Os despachos a) e b) e o despacho liminar são nulos nos termos do artº 615º n º 1- c) e d) do CPC e verificando -se, ainda, nulidade nos termos do artº 195º do CPC, quanto aos despachos a) e liminar.
7ª - Devem ser revogados os despachos a) e b) e o despacho liminar.
8ª - Fazendo errada interpretação e aplicação, foram violadas as disposições legais: - do CPC de 1961: artº 387º e do atual CPC: arts 6º, 547º, 590º, 625º nº1, 591 nº1, 595º nº1, 628º, 629º, 619º nº1, 607º, 195º e 1126º nº 2 - do C. Civil: artº 251º.
As nulidades das decisões por excesso ou omissão de pronúncia, com referência ao conhecimento do caso julgado, à adequação formal e ao aperfeiçoamento do articulado;
O caso julgado;
O erro na partilha.
Correu inventário por óbito de CC.
Nele, foram interessados os filhos, ora Recorrente e Recorrida.
O Recorrente reclamou contra a relação de bens, alegando que a casa de habitação do inventariado, em ..., tinha sido construída num terreno pertencente à sua mãe, DD, com dinheiro do inventariado e que constituía uma benfeitoria da herança do pai e devia ser declarada como um crédito.
Os interessados foram remetidos para os meios comuns, no que respeita à inclusão da alegada benfeitoria
No processo nº 326/12.0TBNZR, o Recorrente pediu o reconhecimento de que o prédio urbano inscrito na matriz sob o ...31 da freguesia ..., concelho ..., constitui uma benfeitoria que pertence à herança por óbito de CC e deve ser relacionado como benfeitoria e a condenação de DD a reconhecer que este prédio não lhe pertence e sim à herança de CC.
Naquele processo, foi proferida sentença, transitada em julgado em 21.11.2016, que condenou DD a reconhecer que o prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o artigo ...31 não é sua pertença e é pertença da herança aberta por óbito de CC.
Na fundamentação, a sentença não qualificou o bem como benfeitoria porque os falecidos pais não eram casados, embora tivesse declarado provado (facto 7) que a parte urbana do prédio misto descrito em 3 foi implantada num terreno rústico pertença exclusiva da Ré.
Naquele Inventário, em 20.2.2017, a Recorrida pediu um aditamento à relação de bens, com o seguinte teor: BB, cabeça de casal, em consequência da decisão, já transitada em julgado, proferida no âmbito o processo nº 326/12.0TBNZR, vem proceder à relacionação das seguintes verbas:
32 – Ativo: Prédio urbano composto por casa de rés-do-chão para habitação e por garagem e logradouro, com a área de 680m2, dos quais 137m2 correspondem à área coberta, sito em ..., lugar e freguesia ..., ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...31, com o valor patrimonial de 32.480,00€;
1 - Passivo: Crédito da herança aberta por óbito de DD correspondente ao valor da parcela de terreno com a área de 680m2, sita em ..., lugar e freguesia ..., ..., na qual foi implantada a construção descrita na verba 32 do ativo, a que atribui o valor de 20.000,00€.”
O Recorrente tomou conhecimento daquele aditamento, esteve na conferência de interessados de 8.3.2017 e concordou com o dito passivo no valor de 17.000,00€.
Do mapa da partilha do mesmo inventário consta que a verba 32 foi adjudicada à interessada pelo valor por que licitou de 38.480,00€.
No mesmo inventário, foi proferida sentença a homologar a partilha constante do mapa da partilha e transitada em julgado em 22.6.2020.
O Tribunal recorrido distingue o ataque que o Recorrente faz às decisões proferidas no inventário e a análise do erro que conduziria à emenda da partilha e fá-lo sob os diferentes prismas, para concluir, de forma lógica, que o que se passou no inventário estava ali consolidado e que o alegado erro do Recorrente não está suportado em factos atendíveis, concluindo que o que o Autor pretende é ver o passivo eliminado, o que deixou acontecer apenas por distração ou por irregularidades no seu patrocínio, não prestando às ações judiciais em que era interveniente a atenção que deveria prestar.
Quanto aos termos do inventário, o Tribunal considerou o disposto nos arts. 613 a 616 do Código de Processo Civil (CPC) e, quanto à emenda, o disposto na lei quanto aos erros admissíveis.
E fê-lo em termos processualmente adequados: ouviu antes as partes sobre a possibilidade de ocorrer manifesta improcedência.
Também ponderou a impossibilidade de se pedir um aperfeiçoamento do articulado porque o vício da falta de factos essenciais era insanável.
Porém, parece-nos que omitiu ponderar a ineficácia de decisões contrárias ao decidido na ação nº 326/12.0TBNZR.
De qualquer maneira, ainda que ocorra esta omissão, discutida que está a questão, esta Relação está em condições de a conhecer e também de todas as questões envolvidas.
No que respeita à adequação formal e ao aperfeiçoamento do articulado:
Não vemos que ocorra qualquer desadequação formal. Na ação, quanto à questão nuclear, o Tribunal ouviu preliminarmente as partes sobre a manifesta improcedência, decidindo de seguida.
Iremos avaliar infra se se justifica um convite ao aperfeiçoamento do articulado, sendo certo que, faltando factos essenciais necessários, o Tribunal não se pode substituir à parte (art.5, nº 1, do CPC).
Comecemos por dizer, a ter ocorrido essa desconsideração no inventário, que os termos deste estão consolidados porque não foram apresentadas reclamações ou recurso a esse respeito.
Mas podemos ponderar a ineficácia de decisões (do inventário) contrárias ao decidido na ação nº 326/12.0TBNZR, no âmbito do previsto no art.625, nº 1, do CPC.
Porém, não encontramos decisões contraditórias sobre a mesma pretensão.
Naquela ação, o Tribunal não decidiu se havia lugar a ponderar ou não o valor do terreno onde está implantado o urbano em questão. Decidindo que o urbano é pertença da herança de CC e não de DD, não qualificando, “ao correr da pena”, o bem como benfeitoria (porque os pais dos interessados não eram casados), nada decidiu decorrente do facto (provado em 7) do urbano estar implantado num terreno rústico pertença exclusiva da DD.
Quer isto dizer que, sendo o urbano levado ao inventário, os filhos não estavam impedidos de, nele, considerar um valor para o terreno “absorvido”, para “compensação” da sua mãe, DD. E foi o que fizeram com o acordado passivo respetivo (cfr. 1106, nº 1, do CPC).
Se bem compreendemos a petição e requerimentos subsequentes, o Recorrente agiu no pressuposto do relacionamento do bem como benfeitoria, tendo ficado convencido que a decisão foi emitida nos termos por si peticionados; que foi baseado em tal crença que, em sede de conferência de interessados, é que permitiu que a verba 32 fosse adjudicada à Recorrida, não tendo licitado acima do valor de 38.480,00 € e que aceitou a diminuição da verba do passivo convicto que a mesma dizia respeito a não mais do que a área do terreno ocupado pela casa e garagem; que, de igual modo, por causa dessa convicção, é que não percebeu que a licitação da verba 32 não se circunscrevia apenas à área de implantação das construções, mas igualmente à área do logradouro, tudo com 680 m2, correspondente ao passivo.
Vejamos:
O Recorrente admitiu sempre que o terreno onde estava implantado o urbano pertencia em exclusivo à sua mãe, DD, o que foi também declarado provado pelo Tribunal.
O Recorrente foi notificado da decisão na ação nº 326/12.0TBNZR, devidamente patrocinado, alegando agora que não a leu com “olhos de ver”.
A Recorrida, em função de tal decisão, procedeu à junção aos autos de uma relação adicional de bens do seguinte teor:
Ativo: Verba 32: Prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão para habitação com quatro divisões, cozinha, duas casas de banho, vestíbulo, sótão, garagem e logradouro, com a área de 680 m2, dos quais 137 m2 correspondem à área coberta, sito em ..., lugar e freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...31, omisso na Conservatória do Registo Predial, com a valor patrimonial de 32.480,00 €
Passivo: Crédito da herança aberta por óbito de DD, correspondente ao valor da parcela de terreno com a área de 680 m2, sita em ..., lugar e freguesia ..., concelho ..., na qual foi implantada a construção descrita na verba 32 do activo, a que se atribui o valor de 20.000,00 €.
O Recorrente foi notificado na pessoa do seu advogado e não apresentou qualquer reclamação.
O Recorrente esteve presente na conferência de interessados.
Ora, a descrição do novo ativo corresponde ao decidido na ação nº 326/12.0TBNZR, sendo clara a área, que inclui área coberta, garagem e logradouro.
Como vimos, mesmo que não fosse qualificada como benfeitoria (e a verba 32 não o fez), tal ação nada decidiu quanto à potencial consideração do valor do terreno “absorvido”.
As partes concordaram em dar um valor ao terreno, na área correspondente de 680 m2, em benefício da DD, no caso já a herança desta, por ter falecido.
Esta concordância é coerente com a posição assumida pelo Recorrente, de que o terreno era só dela.
A área que esteve em causa era clara e nada impunha outra, conforme a ação referida e inscrição do urbano na matriz. Sendo explícita, nada legitima a invocação de “novas áreas cobertas” (mesmo que sejam verdadeiras), quando as mesmas desconsideram ostensivamente a área do logradouro que ali também estava explícita. Com a simples leitura das áreas declaradas e documentadas, conhecendo o local, o Recorrente estava em condições de perguntar, bem avaliar, licitar ou declarar.
No referido contexto e da sua própria alegação, sendo certo que o Recorrente teve há muito conhecimento da sentença na ação nº 326/12.0TBNZR, percebemos que agora o que faz é procurar tirar desta uma interpretação diferente (“fornecida” agora por novos advogados ouvidos), mas que não cabe nela.
O alegado não sustenta um qualquer erro de facto na descrição ou na qualificação dos bens partilhados, nem um qualquer erro sobre o objecto da partilha e passivo.
Estando o Recorrente atento aos termos da partilha (antes não estaria), que nos dados de facto não estão errados, não se alega que, com esses dados (pois apresenta outros), seria diferente o resultado.
É preciso que o erro invocado tenha uma base minimamente credível de sustentação e, face ao alegado, não tem.
Assim, vemos a ação ou como uma forma de fazer vingar uma nova interpretação da ação nº 326/12.0TBNZR, interpretação que nela não cabe (o convencimento atual do Recorrente é um erro interpretativo), ou como uma intenção em exercer extemporaneamente direitos processuais que não foram exercidos em momento próprio, objetivos que não cabem na emenda da partilha.
Como o Recorrente alega factos dos quais se pode concluir pela inexistência de qualquer erro nas características dos bens partilhados, do passivo considerado, ou qualquer outro erro, não se percebendo que outros poderia alegar, intuindo-se que o seu objetivo é um dos acabados de referir, não há lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento do articulado.
Julga-se o recurso improcedente e confirmam-se as decisões recorridas.
Custas pelo Recorrente, vencido.
Notifique.
2025-03-11
(Alberto Ruço)
(Luís Cravo)