ARGUIDO
DECLARAÇÃO DE CONTUMÁCIA
CONSEQUÊNCIAS
CADUCIDADE
PRESSUPOSTOS
CARTA ROGATÓRIA
JURISPRUDÊNCIA FIXADA
Sumário

I – De acordo com o disposto no artigo 335.º, n.º 3, do Código Processo Penal, a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos posteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sendo apenas admissível a prática de atos urgentes.
II – A caducidade da contumácia ocorre exclusivamente com a apresentação do arguido ou com a sua detenção, nos termos do artigo 336.º, n.º 1, do Código Processo Penal.
III – Depois de declarada a contumácia e face ao conhecimento da residência do arguido no estrangeiro, carece de fundamento a expedição de carta rogatória às autoridades judiciárias estrangeiras para prestação de TIR e notificação da acusação e despacho que a recebeu, e ainda de que pode requer a abertura de instrução, contestar e solicitar a realização da audiência na sua ausência (cf. artigos 287.º, 315.º, 334.º, n.º 2 e 4, do Código Processo Penal), com vista à cessação da contumácia e subsequente prosseguimento dos autos.
IV – A prestação de TIR e notificação do arguido, por meio de carta rogatória, nos moldes referidos, não constitui meio admissível e eficaz para fazer cessar a contumácia, o que somente por poderá ocorrer numa das situações previstas na lei (cf. artigo 336.º, n.º 1, do Código Processo Penal).
V – Tal tramitação processual colide frontalmente com o sentido e alcance da jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2014, de 26 de Março de 2014.
VI – A situação descrita aproxima-se daquela que foi tratada no aludido aresto, porquanto em ambas as situações está em causa, na sua essência, a interpretação da norma que regula a caducidade da contumácia, ou seja, a delimitação do sentido da previsão do artigo 336.º, n.ºs 1 e 2, do Código Processo Penal.
VII – Sendo que, como decorre da fundamentação ali constante, não existe meio legalmente admissível de fazer cessar a contumácia, na hipótese em que o arguido não se apresente ou não seja concretizada a sua detenção, uma vez que é o contacto pessoal do arguido com o tribunal (por meio da apresentação ou da detenção) que permite considerar caducada a contumácia, que é caracterizada precisamente pela impossibilidade de efetuar esse contacto.
VIII – O procedimento pretendido visa provocar a comparência do arguido perante autoridade judiciária estrangeira e a subsequente prestação de TIR e notificação nos termos referidos.
IX – Nessas circunstâncias, a deslocação do arguido ao tribunal rogado, a concretizar-se, não configura uma apresentação voluntária ou espontânea do mesmo, tal como não consubstancia um contacto pessoal do arguido com o tribunal que decretou a contumácia, não sendo assim idónea a assegurar a efetiva disponibilidade dele para os posteriores termos do processo.
X – Atento o aludido Acórdão n.º 5/2014, a presença do arguido e prestação de TIR perante o tribunal rogado, depois de convocado para o efeito, com a subsequente notificação pessoal do mesmo para os termos do processo, não é suscetível de equiparação ao ato de o arguido se apresentar a que alude a norma do artigo 336.º, n.º 1, do Código Processo Penal.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Processo: 1847/10.5T2AVR-A.P1

Relatora: Maria dos Prazeres Silva

1.ª Adjunta: Carla Carecho

2.º Adjunto: José Castro

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I. RELATÓRIO

No âmbito do processo n.º 1847/10.5T2AVR, após ter sido declarada a contumácia do arguido AA, por despacho de 10-09-2024 (Referência: 134587954) foi indeferida a pretensão formulada pelo Ministério Público de expedição de carta rogatória às autoridades francesas de Toulon, com vista à prestação de termo de identidade e residência, notificação, entre o mais, da acusação e do despacho que a recebeu, para fazer cessar a contumácia.


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Inconformado o Ministério Público interpôs recurso que remata com as seguintes

CONCLUSÕES:

1. O arguido AA foi acusado nos presentes autos pela prática de um crime de passagem de moeda falsa, previsto e punido pelo artigo 265.º n.º 1 alínea a) do Código Penal.

2. Na sequência, foram efetuadas todas as diligências necessárias à sua localização, não se logrando, contudo, proceder à sua notificação.

3. Ao abrigo do disposto no artigo 335.º n.º 3 do Código de Processo Penal, foi o mesmo declarado contumaz, por despacho datado de 15-03-2013 – e cujos efeitos se iniciaram

a 18-03-2013 –, ficando os autos suspensos até à sua detenção ou apresentação a juízo.

4. Em 19-08-2024, foi remetida aos autos, informação pelo Gabinete Nacional Sirene, da qual consta que o arguido se encontra a residir em França, indicando-se, inclusive, a sua concreta morada – ... Toulon.

5. Na sequência desta informação, em 09-09-2024, o Ministério Público promoveu a expedição de carta rogatória dirigida às autoridades judiciárias francesas por forma a que o arguido seja notificado da acusação e do despacho que a recebeu, tal como dos seus direitos enquanto arguido, para, assim, fazer cessar a contumácia.

6. Em 10-09-2024, o M.mo Juiz proferiu despacho manifestando a sua discordância com o promovido, e, bem assim, não determinando a expedição de carta rogatória, com fundamento no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 5/2014.

7. Ora, nos termos do n.º 1 do artigo 336.º do Código de Processo Penal, “A declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido”.

8. O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 5/2014 estipulou que a prestação de TIR por arguido a residir no estrangeiro, possibilitada através de carta rogatória, não faz cessar a contumácia.

9. A prestação de TIR por parte do arguido, pressuporia a posterior utilização do regime de notificação postal simples com prova de depósito, a qual não sendo utilizada noutros países, impossibilitaria o contacto do arguido com o restante decorrer do processo.

10. Com a expedição de carta rogatória, o que aqui se pretende é que o arguido seja apresentado às autoridades judiciárias francesas, por forma a ser pessoalmente notificado dos despachos de acusação e seu recebimento, tal como dos direitos que lhe assistem previstos no artigo 61.º do Código de Processo Penal, com observância pelo disposto no artigo 58.º n.ºs 2 e 5 do Código de Processo Penal e do previsto nas disposições conjugadas dos artigos 336.º n.º 2 e 196.º n.º 1 do mesmo Código.

11. Conforme dispõe o n.º 1 do artigo 172.º do Código de Processo Civil, aplicável por via do artigo 4.º do Código de Processo Penal, “A prática de atos processuais que exijam intervenção dos serviços judiciários pode ser solicitada a outros tribunais ou autoridades por (…) carta rogatória quando o seja a autoridade estrangeira”.

12. Ademais, a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 8.º, refere expressamente que “As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português”.

13. De facto, atualmente, temos um quadro de cooperação judiciária internacional em matéria penal, de que fazem parte diversos instrumentos normativos, que integram a nossa ordem jurídica, e que visam uniformizar a legislação e implementar um sistema célere e simplificado de cooperação judiciária internacional, e que integram o nosso ordenamento jurídico ao abrigo desta norma constitucional.

14. Entendemos que o artigo 336.º n.º 1 do Código de Processo Penal não pode ser interpretado ao arrepio de tais normativos.

15. Para além disso, esta norma, em parte alguma refere que a apresentação do arguido tem de decorrer perante Tribunal português.

16. Assim, com base no exposto, entendemos que a apresentação do arguido a um Tribunal estrangeiro representa uma apresentação pessoal junto do Tribunal – neste caso, o Tribunal rogado –, apta a fazer cessar a contumácia nos termos do n.º 1 do artigo 336.º do Código de Processo Penal.

17. Na verdade, o Tribunal rogado funciona como que uma extensão do Tribunal em que corre termos o processo, pelo que a apresentação pessoal do arguido perante o mesmo é, para todos os efeitos, como se tratasse de uma apresentação junto deste último.

18. Só por esta via são acautelados todos os direitos e garantias constitucionais de defesa do arguido.

19. Este entendimento tem total acolhimento no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28-02-2024, relatado por FRANCISCO MOTA RIBEIRO, que, em face de idêntica situação à do presente recurso, concluiu não compreender “como possa ser considerada juridicamente inviável a pretensão deduzida pelo Ministério Público, de ver emitida carta rogatória, tendo em vista a cessação da contumácia e o prosseguimento do processo para julgamento dos factos objeto da acusação, de um modo que salvaguarde a eficiente realização da justiça penal e sem que daí resultem sacrificadas as garantias constitucionais de defesa do arguido, assegurando-se-lhe o direito a “ser julgado no mais curto prazo” e de um modo compatível com as suas “garantias de defesa”, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa”.

20. No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25-01-2023, relatado por LÍGIA TROVÃO, que concluiu que esta “situação é equiparável à apresentação do arguido mencionada nesse artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal” e que “A tal não obsta a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2014”.

21. Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, substituindo-o por outro que determine a expedição de carta rogatória às autoridades judiciárias francesas, por forma a ser o arguido pessoalmente notificado dos despachos de acusação e seu recebimento, tal como dos direitos que lhe assistem previstos no artigo 61.º do Código de Processo Penal, com observância pelo disposto no artigo 58.º n.ºs 2 e 5 do Código de Processo Penal e do previsto nas disposições conjugadas dos artigos 336.º n.º 2 e 196.º n.º 1 do mesmo Código, e, bem assim, a fim de posteriormente ser cessada a contumácia do arguido, nos termos do n.º 1 do artigo 336.º do Código de Processo Penal, seguindo-se os ulteriores trâmites processuais.


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Não foi apresentada resposta ao recurso.

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Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no qual se pronunciou nos termos seguintes:

A jurisprudência fixada pelos tribunais portugueses vem, por larga maioria, decidindo em sentido oposto ao do requerido pelo Ministério Público na 1ª instância.

A jurisprudência seguida pelos tribunais vem decidindo que a notificação do arguido, através de carta rogatória, nos termos promovidos, não constitui meio eficaz e admissível para fazer cessar a contumácia (cf. artigo 336.º, n.º 1, do Código Processo Penal).

Com efeito, entende-se que não é a prestação de TIR (como se decidiu no AFJ), nem a notificação do despacho de acusação ao arguido que precede e provoca a caducidade da contumácia, antes, é a caducidade da contumácia que determina e provoca a prestação de TIR e a realização da notificação, para os ulteriores termos do processo.

Tal equivale dizer que só com a apresentação ou com a detenção, a implicar a caducidade da contumácia, é que o arguido presta TIR e é notificado da acusação e informado dos direitos que lhe assistem previstos no art.º 61º do Código de Processo Penal não do julgamento.

Vem, assim, sendo entendido que a promovida notificação, sem ser precedida de apresentação ou de detenção, não faz, por si só caducar a contumácia, sendo que tal traduz a inutilidade de qualquer iniciativa por parte do tribunal em providenciar pela dita notificação, antes das referidas apresentação ou detenção. Ainda que o tribunal tenha conhecimento da residência do arguido (declarado contumaz) no estrangeiro, não é pelo facto de ele ser aí notificado pessoalmente que cessa a contumácia, neste caso, o tribunal deve providenciar pela detenção do arguido, a fim de fazer cessar a contumácia, já que a apresentação depende já iniciativa e vontade do arguido contumaz.

A titulo meramente exemplificativo, indica-se nesse sentido os Acórdãos de 29.11.023 e de 10.03.21, do T.R. do Porto, proferidos nos processos nºs 229/16.0PAVFR.P1 e nº 2354/11.4TDPRT-A.P1, respectivamente, bem como o Acórdão do T.R. de Lisboa de 24.03.022 e Ac. do T.R.de Évora de 10.03.020 e ainda o referido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 5/2014, no sentido que “a emissão de carta rogatória para prestação de TIR pelo arguido residente no estrangeiro não seria idónea para fazer cessar a caducidade. (…), porque só a apresentação pessoal do arguido ou a sua detenção asseguram a sua efetiva disponibilidade para os posteriores termos do processo.

É este também o sentido do nosso parecer.


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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código Processo Penal, não foi apresentada resposta.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Decisão recorrida:

Despacho de 10-09-2024 (Referência: 134587954)

Vista a promoção que antecede por parte do Ministério Público (ref. n.º 134391977), dos autos resulta que o aqui arguido AA se encontra neste momento declarado contumaz nos presentes autos desde 18 de Março de 2013, mediante o despacho dessa data com a ref. n.º 17851386.

Não se ignora o referido pelo Ministério Público no sentido de que o Gabinete Nacional Sirena informou mediante o expediente com a ref. n.º 16536175 que o arguido em causa terá residência em Toulon, França. Como é óbvio, tratando-se de país estrangeiro, não poderemos ordenar a respectiva detenção nem ordenar a passagem de mandados para o efeito.

Neste quadro, dispõe então o artigo 335º, n.º 3, do Cód. de Proc. Penal, que “a declaração de contumácia (…) implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo do disposto no n.º 4 e da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320º.” Encontram-se por isso os presentes autos suspensos até à apresentação ou detenção do arguido, que até ao momento não ocorreu.

Por seu turno, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 5/2014, publicado no DR I Série de 21 de Maio de 2014, no qual se fixou jurisprudência no sentido de que “Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia.”. A razão de ser fundamental para o assim decidido é no sentido de que a emissão de carta rogatória e a notificação do arguido que a mesma se destina não equivale à detenção nem à apresentação voluntária do arguido, pelo que nunca teria a virtualidade de cessar a correspondente contumácia: “Entende-se, pois, convergindo com o acórdão-fundamento, que a prestação de TIR por arguido contumaz residente no estrangeiro não faz cessar a contumácia, cuja caducidade depende exclusivamente da apresentação pessoal ou detenção do arguido, pelo que não deve ser emitida carta rogatória para aquele efeito para o país da residência do arguido”.

Assim, entendemos que os procedimentos que acaba de ser promovido pelo Ministério Público, não devem ser levados a cabo por os presentes autos se encontrarem suspensos e assim deverem continuar, na medida em que não existiu apresentação nem detenção do arguido aqui contumaz.

Indefere-se por isso o que acaba de vir promovido pelo Ministério Público e determina-se se lhe abra nova vista, a fim de o mesmo promover algo mais que tenha por ajustado.

Notifique.


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2. Elementos processuais relevantes:

a) O arguido AA foi declarado contumaz por despacho de 15-03-2013 (Referência: 17851386).

b) Em 19-08-2024 deu entrada informação do Gabinete Nacional SIRENE (Referência: 16536175) de que o arguido foi localizado em 16/08/2024 pelas autoridades francesas e tem residência em França, na morada: ... Toulon.

c) O Ministério Público formulou promoção de 09-09-2024 (Referência: 134391977) do teor seguinte:

(Ref.ª 16536175), de 19-08-2024

Tendo em consideração a informação do Gabinete Nacional Sirene de que o arguido se encontra a residir em ... Toulon, em França, promovo a expedição de carta rogatória às autoridades francesas de Toulon, solicitando que, nos termos previstos na alínea b) do n.º 3 do artigo 111.º do Código de Processo Penal:

i. preste termo de identidade e residência;

ii. seja notificado de que lhe foi nomeada defensora;

iii. seja notificado da acusação e do despacho que a recebeu;

iv. seja notificado nos termos e para os efeitos previstos no artigo 287.º do Código de Processo Penal;

v. seja notificado nos termos e para os efeitos previstos no artigo 315.º do Código de Processo Penal;

vi. seja informado de que pode requerer o julgamento na ausência, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 4 do artigo 334.º do Código de Processo Penal, (cessando dessa forma a situação de contumácia) devendo para esse efeito fazer chegar ao processo declaração por si assinada, manifestando expressamente essa vontade.

d) O despacho recorrido incidiu sobre a promoção transcrita supra.


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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO:

Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as questões que sejam de conhecimento oficioso.

No caso concreto, o recurso suscita a questão de saber se, conhecida a morada no estrangeiro do arguido contumaz, a prestação de Termo de Identidade e Residência (TIR) e subsequente notificação da acusação e do despacho que a recebeu, e ainda para os efeitos previstos nos artigos 287.º e 315.º do Código de Processo Penal, operadas através de carta rogatória dirigida às autoridades judiciárias estrangeiras, é suscetível de determinar a cessação da contumácia.

A alegação recursória baseia-se na consideração de que, comparecendo o arguido no tribunal rogado, após convocatória do mesmo tribunal, uma vez concretizada a prestação de TIR e a aludida notificação solicitadas às autoridades judiciárias da República Francesa, ocorre motivo que determina a caducidade da contumácia, apoiando-se no teor dos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25-01-2023 e de 28-02-2024[1].

Diversamente decorre do despacho impugnado o entendimento de que o procedimento promovido não é eficaz para fazer cessar a contumácia, a qual apenas caducará com a apresentação do arguido ou a sua detenção, nos termos do artigo 336.º, n.º 1, do Código Processo Penal, convocando a jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 5/2014.

Vejamos.

De acordo com o disposto no artigo 335.º, n.º 3, do Código Processo Penal, a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos posteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sendo apenas admissível a prática de actos urgentes.

A lei prevê, como decorrência da declaração de contumácia, a imediata passagem de mandado de detenção do arguido para efeito de sujeição do mesmo a termo de identidade e residência, sem prejuízo de outras medidas de coação, observando-se o disposto nos n.ºs 2 e 4 a 6 do artigo 58.º (cf. artigo 337.º, n.º 1, do Código Processo Penal).

A caducidade da contumácia ocorre exclusivamente com a apresentação do arguido ou com a sua detenção, nos termos do artigo 336.º, n.º 1, do Código Processo Penal.

No caso presente, depois de declarada a contumácia do arguido AA, face ao conhecimento da sua residência no estrangeiro, o Ministério Público solicitou a expedição de carta rogatória às autoridades judiciárias francesas para prestação de TIR e notificação da acusação e despacho que a recebeu, e ainda de que pode requer a abertura de instrução, contestar e solicitar a realização da audiência na sua ausência (cf. artigos 287.º, 315.º, 334.º, n.º 2 e 4, do Código Processo Penal), com vista à cessação da contumácia e subsequente prosseguimento dos autos, pretensão que foi indeferida pelo despacho recorrido.

Ora, a prestação de TIR e notificação do arguido, por meio de carta rogatória, nos termos promovidos, não constitui meio admissível e eficaz para fazer cessar a contumácia, o que somente por poderá ocorrer numa das situações previstas na lei, às quais se fez menção supra (cf. artigo 336.º, n.º 1, do Código Processo Penal).

Outrossim, considera-se que a tramitação processual promovida colide frontalmente com o sentido e alcance da jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2014, de 26 de Março de 2014[2], nos termos seguintes: «Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia».

Na realidade, a situação concreta do presente processo, apesar de não ter exata correspondência com os contornos daquela que foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça no citado Acórdão n.º 5/2014[3], dados os específicos termos da carta rogatória promovida pelo Ministério Público no caso em análise, aproxima-se da situação tratada no citado Aresto, porquanto em ambas as situações está em causa, na sua essência, a interpretação da norma que regula a caducidade da contumácia, ou seja, a delimitação do sentido da previsão do artigo 336.º, n.ºs 1 e 2, do Código Processo Penal[4].

Como decorre da fundamentação constante do Acórdão n.º 5/2014, não existe meio legalmente admissível de fazer cessar a contumácia, na hipótese em que o arguido não se apresente ou não seja concretizada a sua detenção, uma vez que é o contacto pessoal do arguido com o tribunal (por meio da apresentação ou da detenção) que permite considerar caducada a contumácia, que é caracterizada precisamente pela impossibilidade de efetuar esse contacto (sublinhado e realce nossos).

Neste seguimento, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que a emissão de carta rogatória para prestação de TIR pelo arguido residente no estrangeiro não seria idónea para fazer cessar a caducidade. (…), porque só a apresentação pessoal do arguido ou a sua detenção asseguram a sua efetiva disponibilidade para os posteriores termos do processo. É o contacto pessoal que viabiliza, por meio da prestação de TIR, a manutenção de uma ligação do arguido ao processo até ao seu termo.(sublinhado e realce nossos).

Tal fundamentação é perfeitamente ajustável à realidade do caso presente, uma vez que a almejada prestação de TIR e notificação do arguido, a realizar por meio de carta rogatória expedida às autoridades judiciárias de França, não equivale ao contacto pessoal do arguido com o tribunal, por um dos meios previstos na lei.

Invoca o recorrente que, com a expedição de carta rogatória às autoridades judiciárias francesas o que se pretende nos presentes autos, mais do que a mera prestação de TIR – e consequente uso do regime da notificação por via postal simples que resulta da nossa lei penal –, é que o arguido seja confrontado por tais autoridades judiciárias, ou se apresente junto das mesmas, por forma a ser pessoalmente notificado dos despachos de acusação e seu recebimento, tal como dos direitos que lhe assistem previstos no artigo 61.º do Código de Processo Penal, com observância pelo disposto no artigo 58.º n.ºs 2 e 5 do Código de Processo Penal e do previsto nas disposições conjugadas dos artigos 336.º n.º 2 e 196.º n.º 1 do mesmo Código – o que consubstancia uma apresentação pessoal, tal como ocorreria caso se encontrasse em território nacional.

Todavia, não lhe assiste razão, pois, inexiste fundamento para a pretendida equiparação de situações.

O procedimento pretendido visa provocar a comparência do arguido perante autoridade judiciária estrangeira e a subsequente prestação de TIR e notificação nos termos referidos, diligências a ser executadas pela mesma autoridade por solicitação do tribunal onde se encontra pendente o processo. Desse modo, a deslocação do arguido ao tribunal rogado, a concretizar-se, não configura uma apresentação voluntária ou espontânea do mesmo, tal como não consubstancia um contacto pessoal do arguido com o tribunal que decretou a contumácia, não sendo assim idónea a assegurar a efetiva disponibilidade dele para os posteriores termos do processo.

Ademais, a convocação do arguido para se deslocar ao tribunal rogado visa unicamente a prestação de TIR e notificação dos termos processuais, o que não se afasta significativamente do quadro factual e procedimento apreciados no Acórdão n.º 5/2014.

Sublinha-se que, como reconhece e assinala o recorrente - citando o mesmo Aresto-, a única forma de fazer cessar a contumácia é através “exclusivamente da apresentação pessoal ou detenção do arguido”. Ora, a promovida expedição de carta rogatória não permitirá alcançar qualquer uma das vias legalmente admissíveis para operar a extinção da contumácia, designadamente a apresentação pessoal, como já assinalado.

Alega o recorrente, na esteira da jurisprudência citada, que a utilização dos mecanismos de cooperação internacional penal possibilita a apresentação pessoal do arguido junto do tribunal rogado, que funciona como uma extensão do tribunal em que corre termos o processo, sendo apta a fazer cessar a contumácia, porque é, para todos os efeitos, como se tratasse de uma apresentação junto do Tribunal em que corre termos o processo, mas em que, para tal, este faz uso de um pedido de cooperação judiciária internacional e, bem assim, faz-se representar pelo tribunal rogado.

Contudo, essa argumentação desconsidera que a promovida via de cooperação judiciária era já suscetível de ponderação no âmbito do Acórdão de Fixação de Jurisprudência e neste resulta nitidamente excluída pela afirmação, suprarreferida, de que unicamente a apresentação pessoal ou detenção do arguido podem operar o termo da contumácia, recordando-se que em causa sempre esteve a emissão de carta rogatória com vista à prestação de TIR por arguido residente no estrangeiro. Além disso, não subsistem dúvidas de que a menção feita no citado Aresto a contacto pessoal do arguido com o tribunal (por meio da apresentação ou da detenção) se refere sempre e unicamente ao tribunal onde está pendente o processo em que foi decretada a contumácia[5].

Sendo assim, não se acompanha o entendimento expresso nos Acórdãos convocados no recurso[6], porquanto se considera, atento o aludido Aresto do Supremo Tribunal de Justiça, que a presença do arguido e prestação de TIR perante o tribunal rogado, depois de convocado para o efeito, com a subsequente notificação pessoal do mesmo para os termos do processo, não é suscetível de equiparação ao ato de o arguido se apresentar a que alude a norma do artigo 336.º, n.º 1, do Código Processo Penal[7].

Portanto, a pretensão do Ministério Público não tem acolhimento legal, sendo contrária ao sentido da jurisprudência fixada no citado Acórdão n.º 5/2014[8], relativamente à qual não encontramos novos fundamentos para divergir, nos termos do artigo 445.º, n.º 3, do Código Processo Penal.

Por conseguinte, o despacho recorrido não merece censura.


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III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Sem custas.


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Porto, 5 de março de 2025

Maria dos Prazeres Silva

Carla Carecho

José Castro

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[1] Acórdão de 25-01-2023, proc. 720/03.8PUPRT-A.P1 e Acórdão de 28-02-2024, proc. 73/18.0PAVFR.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Publicado no D.R., I Série, de 21 de Maio de 2014.
[3] A questão decidenda tratada consiste em saber se, estando o arguido contumaz no estrangeiro, mas sendo conhecida a sua residência, é admissível a expedição de carta rogatória para o país da residência para que o arguido preste TIR, com vista à cessação da contumácia.
[4] Vd. Acórdão n.º 5/2014, A questão decidenda prende-se essencialmente com a interpretação do art. 336.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, que regula a caducidade da declaração de contumácia.
[5] Interpretação que também se colhe da declaração de voto do Ex.mo Conselheiro Santos Cabral constante do Acórdão n.º 5/2014: A apresentação ou detenção do arguido a que se refere o art. 336.º n.º 2 do CPP assume natureza instrumental em relação à prestação de TIR, sendo certo que a lei processual não convoca outra consequência em relação à presença do arguido que não seja tal prestação. Consequentemente, nada impede que a prestação de TIR se efectue através dos instrumentos de cooperação judiciária em matéria penal o que representa o afastamento dum ónus para o arguido que, por outra forma, terá de suportar a privação da liberdade ou de se deslocar a Portugal com a finalidade de prestar o referido termo. Importa ainda sublinhar que, admitindo a legalidade de tal prestação por carta rogatória e caduca a situação de contumácia, o mesmo arguido pode solicitar ou aceitar a dispensa da sua presença nos termos do art. 334.º n.º 2 do CPP.
Igualmente se entende que a circunstância de o arguido residir no estrangeiro não impede, nesses casos, a aplicação do regime estabelecido nos arts 196.º n.ºs 1 c) e 3, 313.º n.º 3 e 113.º n.º 1 c), todos do CPP, para as notificações subsequentes sendo admissível obter a notificação pessoal do arguido de acordo com as normas que regulam o serviço postal internacional. (sublinhado e realce nosso)
[6] E bem assim no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-07-2023, proc. 298/18.8GDVFR-A.P1, disponível em www.dgsi.pt,  do qual foi interposto Recurso Para Fixação de Jurisprudência, tendo por fundamento o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, da mesma data, proc. 10168/13.OTDPRT-A.P1 (não publicado, em que interveio a ora relatora, na mesma qualidade), que veio a ser rejeitado por falta de um requisito formal (cf. art. 437.º, n.º 4, do CPP).
Entendimento que foi depois seguido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2024, proc. 179/06.8PLLSB-A.L1-5, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Como se declara no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-03-2021, proc. 2354/11.4TDPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt,  a propósito da redação do n.º 1 do artigo 336.º do CPP: (…) apresentar (e a lei fala em o arguido “se apresentar”, a ele mesmo, portanto), significa vir o arguido em presença ao Tribunal, ao edifício, ao espaço onde o mesmo funciona, aliás, na decorrência de toda a panóplia de medidas resultantes da declaração de contumácia que a tal o compelem. Presença essa que ocorrerá, seja nos casos em que se apresente voluntariamente, seja naqueles em que for detido, daí a lei usar a disjuntiva “ou”, ao prescrever: “A declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido”. (realce  nosso)
[8] Cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-05-2018, proc. 158/12.6GDMR-A.G1; de 18-06-2018, proc. 605/05.3PBGMR.G1, disponíveis em www.dgsi.pt; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10-03-2020, proc. 128/11.1T3STC-A.E1, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 24-03-2022, proc. 6731/19.4T8LSB-A.L1-9 (citados no parecer); Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-03-2021, proc. 2354/11.4TDPRT-A.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.
Vd. também em sentido concordante, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, 10-07-2019, proc. 10168/13.OTDPRT-A.P1 e de 12-07-2023, proc. 90/19.2T9VLC-A.P1, ambos relatados pela ora relatora, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-11-2013, proc. 229/16.0PAVFR-A.P1, Decisão Sumária do Tribunal da Relação do Porto de 15-05-2019, proc. 790/08.2TDLSB-D.P1 [na qual se declara: Não é o facto de num caso ser efectuada por autoridade judiciária de país estrangeiro e no outro pela GNR que faz a diferença.], Decisão Sumária do Tribunal da Relação do Porto de 27-06-2019, proc. 540/15.7SMPRT-H.P1, decisões que não se encontram publicados mas podem ser consultadas no livro de registo de decisões deste tribunal.