LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
PRESSUPOSTOS
Sumário

I - A litigância de má fé visa punir a instrumentalização do direito processual em diversas vertentes: quando os litigantes pretendam alcançar um objectivo considerado ilegítimo pelo direito substantivo, quando a sua actuação constitua um meio de impedir a descoberta da verdade, como forma de obstruir a actividade da máquina judiciária, com a colocação de obstáculos ou com a promoção de expedientes meramente dilatórios, ou com o objectivo de impedir o trânsito em julgado da decisão e, deste modo, prejudicar a parte contrária na tutela ou na realização do direito substantivo que através da decisão lhe seja reconhecido.
II - Demonstrar-se realidade diferente da alegada por uma das partes não significa necessariamente que esta tenha agido com má fé. É necessário que a sua conduta recaia num dos modos de actuação como tal tipificados pelo artigo 542.º do Código de Processo Civil.

Texto Integral

Processo n.º 22435/22.8T8PRT-C.P1

Tribunal Judicial da Comarca ...

Juízo de Família e Menores ...

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

AA, residente na Rua ...., Lisboa deduziu incidente de incumprimento das responsabilidades parentais referentes a seus filhos (então ambos menores) BB, nascido a ../../2005 e CC, nascida a ../../2013, sendo requerida a progenitora dos mesmos, DD, residente na Rua ...., ..., no ....

Alegou, em síntese, que apesar de judicialmente fixado um regime de contactos entre pai e filhos, o mesmo nunca foi cumprido, não mantendo o requerente qualquer contacto com os filhos.

Requereu que sejam ordenadas diligências com vista ao cumprimento integral do regime provisório fixado ou alterado o regime, passando ambos os progenitores a exercer as responsabilidades parentais e a requerida condenada em multa e indemnização a favor do requerente e dos filhos.

Foi designada e realizada conferência de progenitores na qual se procedeu à audição dos menores e da técnica da casa abrigo, não tendo sido possível qualquer entendimento entre os progenitores.

Determinou-se a realização de avaliação psicológica a efetuar pelo INML à menor CC no sentido de apurar se é ou não do interesse da criança a imposição de convívios ou contactos com o progenitor, avaliando se a verbalizada recusa da criança em ter contactos com o pai tem a sua origem em experiências negativas por si vividas ou se é influenciada pela mãe.

Junto o relatório da perícia foram os progenitores notificados para apresentarem alegações e prova a produzir nos termos do artigo 39.º, nº 4 do RGPTC, o que ambos fizeram.

Foi designada e realizada audiência de julgamento, após o que foi proferida decisão que julgou “improcedente o incidente suscitado e a pretensão do requerente”, condenando este nas respectivas custas.

Não se conformando com o decidido, interpôs a requerida recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“1. A Requerida, aqui Recorrente, requereu a condenação do Requerente como litigante de má-fé, no pagamento de uma indemnização a fixar nos termos do artigo 543.º do CPC.

2. Contudo, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre tal pedido.

3. Não podendo, a Requerida, aqui Recorrente, concordar com tal falta de pronúncia, considerando ter-se provado nos autos, pela existência de litigância de má-fé por parte do Requerente e, consequentemente, pela procedência do peticionado pela Recorrente, pelo que devia a Primeira Instância tê-lo condenado.

4. De acordo com o artigo 542.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, litiga de máfé quem, com dolo ou negligência grave: “a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.

5. Para Meneses Cordeiro3: “A litigância de má-fé apresenta uma base legal, constante nos artigos 456.º a 459.º do CPC, consistindo o facto ilícito na circunstância de se estar em juízo de má-fé, consubstanciada esta em dolo ou culpa leve, independentemente da existência de danos para a outra parte. (Correspondendo os referidos artigos 456º a 459º aos atuais artigos 542º a 545º CPC).”.

6. Trata-se de má-fé substancial, em que se altera a verdade, uma violação do dever de verdade, pois a parte fez do processo ou dos meios processuais, um uso manifestamente reprovável.

7. Sobre as partes impende um dever geral de boa-fé e a violação destes deveres de verdade e probidade é que constitui litigância de má-fé, que é susceptível de, no próprio processo, conduzir à responsabilização processual civil.

8. O Requerente, ao longo dos autos, alterou a verdade a seu bel-prazer,

9. Acusou a Requerida de factos falsos, como ter abandonado o lar sem qualquer justificação; ter retirado cerca de € 10.000,00 da casa de morada de família; de manipular os filhos para não contactarem com o pai; utilizando a rede social TikTok para denegrir a imagem da Requerida, cfr. provado nos autos.

10. Pelo que, andou mal o Tribunal a quo ao não se pronunciar sobre o pedido da Requerida.

11. O artigo 615.º, do Código de processo Civil contém as nulidades da sentença de forma taxativa, que têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença, ou sejam erros de actividade ou de construção da própria sentença.

12. A alínea d), do n.º 1, do citado artigo 615.º, do CPC refere que: “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento”.

(negrito e sublinhado nossos).

13. Resultando, deste dispositivo legal, que o vício que afecta a decisão provém de uma omissão (1.º segmento da norma) ou de um excesso de pronúncia (2.º segmento da norma).

14. Esta norma deve ser articulada com o n.º 2, do artigo 608.º, do CPC, onde se determina que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo não se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” (sublinhado nosso)

15. Pelo que, se impõe um duplo ónus ao julgador, o primeiro (o que está aqui em causa) traduzido no dever de resolver todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação pelas partes, e o segundo (que aqui não está em causa) traduzido no dever de não ir além do conhecimento dessas questões suscitadas pelas partes (a não ser que a lei lhe permita ou imponha o seu conhecimento oficioso).

Ao decidir conforme a decisão recorrida violou, o Tribunal a quo, o artigo 615.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, sempre com o Doutíssimo Suprimento de V. Exas., deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado, e, consequentemente a sentença recorrida substituída por outra que condene o Recorrido como litigante de má-fé”.

Com a admissão do recurso, foi proferida, com data de 14.01.2025, a seguinte decisão:

“Antes de ordenar a subida do recurso há que apreciar a questão da nulidade invocada (cf. art. 617º do CPC)

A recorrente alega que a decisão proferida é nula por não se ter pronunciado relativamente ao pedido por si formulado de condenação do requerente como litigante de má fé.

Efetivamente tem a recorrente toda a razão uma vez que o tribunal omitiu a pronunciar quanto a tal pedido.

Entende a progenitora que a atuação como litigante de má fé do progenitor se consubstancia em ter acusado a progenitora de factos falsos como ter abandonado o lar sem qualquer justificação; ter retirado dinheiro da casa de morada de família e manipular os filhos (…)

Ora, a litigância de má-fé constitui um tipo especial de ilícito em que a parte, com dolo ou negligência, agiu processualmente de forma inequivocamente reprovável, violando deveres de legalidade, boa-fé, probidade, lealdade e cooperação de forma a causar prejuízo à parte contrária e obstar à realização da justiça

De harmonia com o disposto no art. 542º, do CPC diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Distinguem-se claramente, na formulação legal, a má fé substancial - que se verifica quando a atuação da parte se reconduz às práticas aludidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 542º - e a má fé instrumental (al. c) e d) do mesmo artigo).

Contudo, em qualquer dessas situações nos encontramos perante uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da atuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva.

Ou seja, “a conduta do agente deve apresentar-se como contrária a um padrão de conformidade da ação pessoal do sujeito processual com o dever de agir de acordo com a juridicidade e a lei. "A má fé processual (...) é toda a atividade desonesta, cavilosa, proteladora (para cansar o adversário) unilateral ou bilateral, verificada no exercício do direito de ação, quando desenvolvida com a intenção de prejudicar outrem, quer ela respeite ao mérito da causa (lide caluniosa, fraudulenta, etc.) quer às medidas instrumentais, desde que seja ilícita, isto é violadora das normais gerais e especificas da conduta processual, tendentes a criar as condições favoráveis a uma boa e justa decisão do pleito”- Cf. Cecília Silva Ribeiro, "do dolo geral e do dolo instrumental em especial no processo civil"; ROA, ano 9, págs.83-113, citada por Paula Costa Ribeiro, in "A Litigância de Má Fé", Coimbra Editora, 2008, pág. 389.

A condenação como litigante de má fé assenta, pois, num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de direito.

No caso dos autos não se vislumbra que a atuação processual do progenitor seja subsumível ao conceito de má fé.

O facto de não se terem demonstrado alegações por si invocadas não significa que tenha alterado a veracidade dos factos ou alegado factualidade que bem sabia não corresponder à verdade, sendo certo que os factos em causa seriam absolutamente inócuos para a apreciação e decisão do que estava em causa nestes autos.

Pelo exposto improcede o pedido de condenação do progenitor como litigante de má fé

Consigna-se que o despacho que antecede se considera parte integrante da sentença proferida (cf. nº 2 do art.617º do CPC)

Notifique, sendo a recorrente nos termos e para os efeitos do disposto no nº 3 do art. 617º do CPC”.

Notificada de tal decisão, veio a recorrente, usando da faculdade conferida pelo n.º 3 do artigo 617.º do Código de Processo Civil, alargar o âmbito do recurso, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:

1. Entende o Tribunal de Primeira Instância que a Recorrente tem razão, quando alega “(...) que a decisão proferida é nula por não se ter pronunciado relativamente ao pedido por si formulado de condenação do requerente como litigante de má fé.” (sic), uma vez que, omitiu a pronúncia quanto a tal pedido.

2. Refere aquele Tribunal que: “No caso dos autos não se vislumbra que a atuação processual do progenitor seja subsumível ao conceito de má fé. O facto de não se terem demonstrado alegações por si invocadas não significa que tenha alterado a veracidade dos factos ou alegado factualidade que bem sabia não corresponder à verdade, sendo certo que os factos em causa seriam absolutamente inócuos para a apreciação e decisão do que estava em causa nestes autos. Pelo exposto improcede o pedido de condenação do progenitor como litigante de má fé.” (sic).

3. Não concorda, a Recorrente com tal entendimento, porquanto, os presentes autos se reportam a um incidente de incumprimento da Regulação das Responsabilidades Parentais, que o Progenitor intentou contra a Progenitora, em que imputa à Recorrente o incumprimento culposo do regime fixado.

4. Assim, tendo o Progenitor, ao longo dos autos, alterado a verdade a seu belprazer, acusando a Requerida de factos falsos, como de manipular os filhos para não contactarem com o pai, ter abandonado o lar sem qualquer justificação; ter retirado cerca de € 10.000,00 da casa de morada de família e ter utilizando a rede social TikTok para denegrir a imagem da Requerida, cfr. provado nos autos, consubstancia, no entendimento da Recorrente, a prática, por parte do Progenitor, de litigância de má-fé.

5. Neste sentido, pois o que estava em discussão, nos presentes autos, era a alegação feita pelo Progenitor de que a Recorrente manipulava a filha menor, para que esta não contactasse o pai, incumprindo, desse modo, a decisão do Tribunal de Primeira Instância - nos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais -, pelo que o Progenitor, ao afirmar que a Progenitora manipula os filhos, lhes fala mal do pai, os impede de contactarem com o mesmo, estava verdadeiramente a alterar a verdade dos factos essenciais para a apreciação e decisão do que estava em causa nos autos.

6. Estando, portanto, a litigar de má-fé, pelo que, devia ter sido condenado.

7. E, nestes termos, mal andou o Tribunal a quo ao determinar a improcedência do pedido de condenação do Progenitor como litigante de má-fé.

8. Devendo a decisão recorrida ser alterada em sentido oposto.

Ao decidir conforme a decisão recorrida violou, o Tribunal a quo, o artigo 542.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Nestes termos, e nos demais de Direito, sempre com o Doutíssimo Suprimento de V. Exas., deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado, e, consequentemente alterando-se a decisão recorrida no sentido do exposto”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. OBJECTO DO RECURSO.

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se se mostram preenchidos os pressupostos necessários à pretendida condenação do requerente, ora apelado, como litigante de má fé.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:

- BB nasceu a ../../2005 e foi registado como filho do requerente e da requerida

- CC nasceu a ../../2013 e foi registada como filha do requerente e da requerida

- Requerente e requerida casaram um com o outro a ../../2003 encontrando-se tal casamento dissolvido por divórcio decretado a 19-05-2023 por mútuo consentimento

- Corre termos ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais na qual a 19-05-2023 foi proferida decisão provisória, após audição dos filhos, nos seguintes termos:

“Considerando a pendência de inquérito crime de violência doméstica com a permanência da mãe e filhos em casa abrigo e, considerando as declarações dos menores em que ambos pretendem residir com a mãe, fixo o seguinte regime provisório:

1. Os menores continuarão a residir com a mãe, determinando-se que a mesma exercerá em exclusivo as responsabilidades parentais mesmo no que se refere a questões de particular importância para a vida dos filhos, tendo em conta a factualidade descrita no inquérito crime e da permanência da progenitora em casa abrigo que aconselha a que não haja contactos entre os progenitores.

2. Relativamente a convívios, quanto ao filho mais velho, tendo em conta a sua idade e maturidade manifestada, determina-se que, quando o jovem terminar os exames de ingresso no ensino superior, passará a comunicar por videochamadas com o progenitor e acordará com este a possibilidade de ir passar alguns fins-de-semana a Lisboa.

3. Relativamente à menor CC, tendo em conta o estado manifestamente sensível em que a criança se encontra, deverá a equipa técnica da casa abrigo, providenciar por estabelecer contactos telefónicos por videochamada, com o pai, os quais devem ser acompanhados pela equipa técnica da casa abrigo com articulação da psicóloga da casa abrigo.

4. Quanto a alimentos e atentas as declarações prestadas, fixa-se a pensão de 400,00 € (200,00€ para cada menor), que o pai remeterá por transferência bancária para o IBAN da progenitora, que a ilustre advogada da mesma se compromete a informar a parte contrária e o Tribunal. Esse montante será a pagar até ao final de cada mês. “

- Até ao inicio da audiência de julgamento nos presentes autos nenhum contacto telefónico, ou outro, foi estabelecido entre pai e filha por a psicóloga que acompanha a criança e a equipa técnica da casa abrigo terem entendido não se encontrarem reunidas as condições para tal atento o estado emocional da criança e a recusa desta quanto a tais contactos

- A CC tem memórias de momentos positivos com o pai mas verbaliza igualmente episódios de violência física e verbal do pai relativamente à mãe a que assistiu

- A perícia realizada à menor pelo INML conclui que “No que respeita a eventual sintomatologia psicopatológica a avaliação da examinanda sinaliza indicadores clinicamente expressivos no âmbito da ansiedade, projetando nos estímulos apresentados um descontrolo emocional da figura parental paterna e decorrentes sentimentos de tristeza. A examinanda apresenta um perfil internalizador e assume uma atitude predominantemente evitante face à abordagem às dinâmicas familiares, identificando-se contudo uma revolta e consequente recusa do contacto com o progenitor que, considerando a narrativa da menor, resulta de experiências vividas. Embora seja possível equacionar que à resposta emocional e afetiva à experiência vivida acrescerá a perceção do risco a que é permeável por parte da progenitora, da avaliação não decorre a evidência de instrumentalização por parte do adulto

A examinada deve manter o acompanhamento psicológico de que beneficiará, considerando-se que o seu perfil internalizador se repercutirá na adesão ao processo psicoterapêutico, sendo importante a manutenção do mesmo e crucial o respeito pelo tempo da menor no trabalho terapêutico”

- Já no decurso da audiência de julgamento no âmbito destes autos foi realizada uma videochamada entre pai e filha, no dia 26 de setembro de 2014, com a presença da psicóloga que acompanha a menor e de técnica da casa abrigo dando-se aqui por integralmente reproduzido o respetivo relatório (refª citius 40347862 – doc. nº 1)

- Encontra-se pendente inquérito crime por violência doméstica e que corre termos com o nº ... da ... do DIAP Regional de Lisboa, não tendo ainda sido proferido despacho final

- A progenitora e os filhos deixaram a casa de morada de família em finais de setembro de 2022, integrando casa abrigo

- Em 2023 foi necessário serem transferidos para outra casa abrigo uma vez que foram localizados pelo requerente.

- Atualmente a progenitora já se autonomizou com os filhos, beneficiando ainda de acompanhamento por parte da equipa técnica da casa abrigo.

- A CC tem acompanhamento psicológico em regra com regularidade quinzenal, por entidade externa à casa abrigo.

- O referido acompanhamento iniciou em maio de 2023 e ainda se mantém

- A CC evita falar do pai em todos os contextos da sua vida.

- A CC assistiu a episódios de discussões, conflitos, gritos e insultos entre pai e mãe

- Após a videochamada realizada a 26-09 a CC revelou sofrimento emocional e desilusão verbalizando “o pai foi igual aos últimos tempos em casa”; esperava que estivesse melhor”

- O progenitor não compreende porque motivo a filha tem acompanhamento psicológico referindo que “os psicólogos têm interesse em afastar a filha do pai e a mãe quer vingar-se e tirar os filhos ao pai

- Em contexto de casa abrigo nunca foi presenciado qualquer tipo de tentativa de instrumentalização por parte da progenitora relativamente aos filhos.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

1. Questão prévia.

Tendo a requerida, aqui apelante, nas alegações que apresentou nos autos de incumprimento das responsabilidades parentais requerido a condenação do requerente, ora apelado, por litigância de má fé e tendo a sentença proferida no âmbito dos referidos autos omitido pronúncia sobre tal pretensão, interpôs a mesma recurso de tal sentença, invocando, para o efeito, padecer a mesma de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil.

No despacho que admitiu o recurso, tomou a Sr.ª Juiz posição sobre a invocada nulidade, ao abrigo do disposto no artigo 617.º do Código de Processo Civil, e, reconhecendo assistir razão à recorrente, proferiu decisão que conheceu o pedido de condenação do requerente por litigância de má fé, cuja apreciação fora omitida na sentença proferida.

Suprida, assim, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à questão da litigância de má fé, mas tendo a recorrente alargado o âmbito do recurso à decisão proferida a 14.01.2025, que, conhecendo da mencionada questão, concluiu pela improcedência do pedido de condenação do requerente por litigância de má fé, apenas terá esta instância de conhecer do recurso que recaiu sobre esta última decisão.

2. Do mérito da decisão relativa ao pedido de condenação por litigância de má fé formulado pela requerida.

De acordo com o n.º 1 do artigo 542.º do Código de Processo Civil, “tendo litigado de má fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir”.

Por sua vez, o n.º 2 do mesmo dispositivo legal delimita o conceito de litigante de má fé nos seguintes termos: “diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Os pressupostos da litigância de má fé encontram-se, assim, regulados no artigo 542.º do Código de Processo Civil, podendo distinguir-se aqueles que têm natureza subjectiva daqueles que têm natureza objectiva. Há litigância de má fé quando estão simultaneamente reunidos pressupostos das duas mencionadas naturezas.
Relativamente aos pressupostos subjectivos da litigância de má fé, exigiam tradicionalmente a actuação dolosa de uma das partes para o seu preenchimento e para justificar a condenação a esse título.
Depois de 1 de Janeiro de 1997 - e como corolário da maior relevância atribuída aos deveres de cooperação aquando das alterações introduzidas pela Reforma de 1995/1996 - os pressupostos subjectivos da litigância de má fé alargaram-se, passando a abarcar também a actuação a título de negligência grosseira.
Como se afirma no Acórdão da Relação do Porto de 15.12.2010[1], “o regime instituído após a última reforma do direito processual civil traduz uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjectiva como na objectiva. A condenação por litigância de má fé pode fundar-se, além de, numa situação de dolo, em erro grosseiro ou culpa grave”.
Quanto aos pressupostos objectivos da condenação por litigância de má fé, é de distinguir a má fé substancial da má fé instrumental: existe má fé substancial se "o litigante usa de dolo ou má fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça" e má fé instrumental se "a parte procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transacção injusta"[2].
Como elucidam Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto[3], “é corrente distinguir má fé material (ou substancial) e má fé instrumental. A primeira relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, actua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objectivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo”.
A litigância de má fé pode levar à aplicação de duas sanções: a multa e a indemnização.
Dará lugar à aplicação de uma multa processual, que pode ser decidida oficiosamente ou a requerimento da contraparte.
Tal multa deve ser fixada pelo juiz, ponderando, designadamente, os efeitos sancionatórios por ela prosseguidos em função da violação da lei na regular tramitação do processo, a situação económica do sujeito passivo e as repercussões da sanção no seu património.
Por outro lado, a litigância de má fé pode também conduzir à condenação no pagamento de uma indemnização.
A indemnização atribuída pode assumir duas modalidades distintas.
Numa primeira modalidade, usualmente designada por indemnização simples, quem for condenado como litigante de má fé deverá liquidar à contraparte o valor das despesas originadas pela litigância de má fé, incluindo os honorários dos advogados e dos técnicos; e
Numa segunda modalidade, normalmente designada por indemnização agravada, a indemnização deverá abarcar essas despesas e os demais prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má fé[4].
Tanto num caso como noutro só serão indemnizáveis as despesas e os prejuízos em que se tenha incorrido em virtude de um comportamento gravemente negligente ou doloso da contraparte.
O juiz deve optar entre as duas modalidades de indemnização referidas com base na gravidade da infracção perpetrada, sendo irrelevante nesta sede a condição económica do litigante de má fé.
Quando haja negligência grosseira, o juiz deve atribuir a indemnização simples e quando se demonstre que houve dolo, o juiz deve optar pela indemnização agravada[5].

A litigância de má fé não constitui uma expressão de responsabilidade civil, visando a reparação de danos, ilícita e culposamente causados a terceiros através de certas actuações processuais, tratando-se antes de um mecanismo sancionatório específico, de âmbito limitado, visando assegurar o uso regular e leal dos mecanismos processuais postos ao dispor dos que pretendam exercer o direito de acção que a lei a todos garante.

A litigância de má fé visa punir a instrumentalização do direito processual em diversas vertentes, quando os litigantes pretendam alcançar um objectivo considerado ilegítimo pelo direito substantivo, quando a sua actuação constitua um meio de impedir a descoberta da verdade, como forma de obstruir a actividade da máquina judiciária, com a colocação de obstáculos ou com a promoção de expedientes meramente dilatórios, ou com o objectivo de impedir o trânsito em julgado da decisão e, deste modo, prejudicar a parte contrária na tutela ou na realização do direito substantivo que através da decisão lhe seja reconhecido[6].

A responsabilidade pela conduta processual deve sempre ser objecto de análise casuística, ponderando-se o princípio da culpa na actuação dos litigantes, não podendo essa ponderação obedecer a critérios rígidos e puramente formais, sob pena de com isso criar nos interessados temor no recurso aos tribunais para fazerem valer os direitos de que se julgam titulares, sem esquecer que a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem até levar consciências honestas a afirmarem um direito de que não são titulares ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir.[7]

Como esclarece Pedro Albuquerque[8], “a proibição de litigância de má fé apresenta-se, assim, como um instituto destinado a assegurar a moralidade e eficácia processual, porquanto com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça. O dolo ou má fé processual não vicia vontades privadas nem ofende meramente interesses particulares das partes envolvidas. Também não se circunscreve a uma violação sem mais do dever geral de actuar de boa fé. A virtualidade específica da má fé processual é outra diversa e mais grave: a de transformar a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial”.

Uma lide temerária e a ousadia de uma construção jurídica manifestamente errada não revelam, por si só, que o seu autor delas se serviu como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual. Aconselha-se, por isso, o uso de critérios de prudência na avaliação do juízo sobre a má fé processual, apenas devendo ser sancionada a actuação processual da parte, como litigante de má fé, quando, em concreto, surja com clamorosa evidência a natureza dolosa ou gravemente negligente dessa actuação, pois como refere o acórdão desta Relação de 7.6.2011[9], “não obstante as alterações introduzidas ao art.º 456° do Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n° 180/96, de 25/09, que visaram alargar o conceito de litigância de má fé e o âmbito da sua aplicação, sobretudo como reflexo do princípio da cooperação e dos inerentes deveres impostos às partes (art.º 266° do C. P. Civil[10]) permanece válido o entendimento de que a condenação por litigância de má fé tem por pressuposto uma actuação consciente das partes contrárias à verdade material e/ou obstrutiva da realização da justiça”.
Demonstrar-se realidade diferente da alegada por uma das partes não significa necessariamente que esta tenha agido com má fé. É necessário que a sua conduta recaia num dos modos de actuação como tal tipificados pelo artigo 542.º do Código de Processo Civil.
Ou seja: a não prova dos factos fundamentadores do pedido do Autor ou dos factos invocados pelo Réu como defesa não pressupõem, por si só, que o Autor ou o Réu tenham agido com má fé[11]. Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 28.05.2009[12], citando o Acórdão do mesmo STJ, de 11.12.03, “…não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má-fé.
A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu”.

A requerida, ora apelante, nas alegações apresentadas ao abrigo do disposto no n.º 4, do art.º 39.º, ex vi do n.º 7, do art.º 41.º, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, impugnando factualidade alegada pelo requerente em articulado da mesma natureza, pediu a condenação deste por litigância de má fé, afirmando, para tanto, entre o mais, que “o Requerente altera a verdade a seu bel-prazer, acusa a Requerida de factos falsos, como ter abandonado o lar sem qualquer justificação; ter retirado cerca de € 10.000,00; manipular os filhos para não contactarem com o pai, entre outros”- artigo 54.º da referida peça processual.

Da alegação dos aludidos factos pelo requerente não se retira que o mesmo tenha, com dolo ou mesmo com negligência grosseira, alterado a verdade, com afirmações que sabia, ou tendo obrigação de saber, não corresponderem à verdade, ainda que os mesmos não tenham obtido comprovação[13]. Tal como refere a decisão sob recurso, “O facto de não se terem demonstrado alegações por si invocadas não significa que tenha alterado a veracidade dos factos ou alegado factualidade que bem sabia não corresponder à verdade, sendo certo que os factos em causa seriam absolutamente inócuos para a apreciação e decisão do que estava em causa nestes autos”.

Não se mostrando, em concreto, preenchidos os pressupostos da litigância de má fé, nenhuma censura merece a decisão que julgou improcedente o pedido de condenação do requerente por litigância de má fé.


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Síntese conclusiva:

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, em julgar improcedente o recurso interposto por DD, confirmando, em consequência, a sentença recorrida que julgou improcedente o pedido, por ela formulado, de condenação do requerente/apelado por litigância de má fé.

Custas: pela apelante, nos termos do disposto no artigo 527,º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Notifique.








Porto, 6.03.2025

Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.

Judite Pires

António Carneiro da Silva

António Paulo de Vasconcelos

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[1] Processo nº 225/08.0TBVLC-A.P1, www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. II, págs. 263-264.
[3] “Código de Processo Civil anotado”, Coimbra Editora, vol. 2º, 2ª ed., págs. 220, 221.
[4] Artigo 543º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.
[5] Cfr. Abrantes Geraldes, “Temas Judiciários”, vol. I, pág. 335.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.9.2013, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. III, pág. 71.
[7] Castanheira Neves, ob. e vol. cit., pág. 263.
[8] “Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo”, Almedina, pág. 56. 
[9] Proc. n.º 73/07.5TBBGC.P1,  www.dgsi.pt.  
[10] Então em vigor.
[11] Cfr. Acórdão da Relação do Porto, 13.03.2008, processo nº 0831101, www.dgsi.pt.
[12] Processo nº 09B0681, www.dgsi.pt.
[13] Sendo certo que alguns deles nem sequer tinham de ser probatoriamente sindicados dada a sua irrelevância para a questão debatida nos autos de incumprimento das responsabilidades parentais.