ABUSO DE DIREITO
PRESSUPOSTOS
CONTRADIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário

I - Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica, ocorrendo nulidade da sentença ou do despacho quando se verifique tal contradição.
II - Ocorre obscuridade da sentença ou do despacho quando não seja perceptível o pensamento do julgador traduzido na parte decisória, verificando-se ambiguidade quando ela comportar mais do que uma interpretação.
III - À partida legítimo, se exercido de forma que ofenda manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, o mesmo é dizer, o sentimento jurídico socialmente dominante, o direito torna-se ilegítimo, implicando tal ilegitimidade a paralisação dos respectivos efeitos: a parte que abusa do direito actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.

Texto Integral

Processo n.º 1489/17.4T8MAI-E.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo de Execução do Porto - Juiz 6

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO

Na execução instaurada por AA, BB e CC contra A... Unipessoal Lda. e DD, apresentou este último requerimento nos autos, no qual, após informar ter tomado conhecimento do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto que apreciou o recurso interposto por A... Unipessoal Lda., veio:

“a) arguir a omissão da notificação dos devedores, nos termos do disposto no artigo 773º, n.º 1, omissão essa sancionada com nulidade, ao abrigo do artigo 195º, n.º 1, última parte, do CPC, bem como a de todos os actos subsequentes com ela incompatíveis, designadamente, a penhora e o leilão electrónico em curso; b) arguir a irregularidade do leilão em curso, por do seu anúncio na página oficial regulamentarmente prevista, não constarem todos os ónus ou limitações do direito que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria de forma a evitar que venha a existir erro sobre a coisa transmitida, designadamente, mencionando-se expressamente no mesmo a posição expressa pelo devedor quanto à existência e reconhecimento do crédito, bem como os demais caracteres a que aludem os artigos 773º e 775º. c) arguir a ilegitimidade da mesma penhora, por a indicação do direito de crédito redundar em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium por parte dos exequentes, o que constitui abuso de direito, nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil, nulidade essa de natureza material e do conhecimento oficioso. d) Em consequência do conhecimento das invocadas nulidades, vem requerer se digne ordenar o cancelamento do leilão em curso.”.

Sobre tal requerimento, recaiu o seguinte despacho:

“...Como se escusa o tribunal de repetir, o executado foi citado, deduziu embargos de executado e oposição à penhora do mesmo imóvel, os quais foram decididos por sentença transitada em julgado.

As questões suscitadas relativamente à penhora estão assim totalmente prejudicadas não só pelo caso julgado formado pela decisão proferida no apenso A como também pelo princípio da concentração da defesa na contestação consagrado no art.º 573º do Código de Processo Civil, segundo o qual e salvo os casos de defesa superveniente, toda a defesa deve ser deduzida na contestação (cf. os nº1 e 2 do mesmo artigo).

Não sendo supervenientes as questões suscitadas, improcede a questão suscitada.

Relativamente ao invocado abuso do direito, está mais uma vez a questão totalmente prejudicada pelo caso julgado, desta feita pela decisão proferida no apenso de embargos de terceiro que foi notificada, como todas as outras, também ao executado, concretamente, quanto ao acórdão que os julgou improcedentes, foi notificado ao ora requerente já em 25/02/2022.

Quanto ao anúncio, mutatis mutandis, face à mesma decisão não há nenhum ónus ou limitação que deva ser publicitada que não esteja já decidida e resolvida.

Mais acresce que, se qualquer omissão ou nulidade houvesse, há muito estaria sanada, pois como se vê da tramitação supra enunciada, há muito que estaria precludida a oportunidade de ser invocada – arts. 195º e 199º do Código de Processo Civil”.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs o executado DD recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso recai sobre o despacho com referência 453575828, proferido em 13/11/23, apenas na parte que corresponde à arguição de nulidade com referência 46586297 (página 8 de 9).

2. A qual foi julgada improcedente pelos motivos ai expostos e que supra se transcrevem.

3. Não se conformando o Executado com tal entendimento, donde o presente recurso.

Na verdade e desde logo,

4. O Executado foi notificado, por banda do Exmo. Sr. Agente de Execução, em 1/8/23, com referência de documento 2aVLIx4hY7Z, da abertura de leilão electrónico para venda de direito de crédito, penhorado à ordem dos autos, penhora essa que foi objecto de embargos de terceiro deduzidos pela A... Unipessoal, Lda.

5. De acordo com o vertido no Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (Proc. 1489/17.4 T8MAI-C.P2, com referência 15426587), terá ficado assente que o direito de crédito corresponderia à benfeitoria realizada pelos executados DD e A..., Unipessoal, Lda., integrada na parcela de terreno para construção, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ..., freguesia ..., com inscrição a favor de EE e inscrito na matriz respectiva sob o n.º ... da União de Freguesias ... e ..., que consiste numa moradia composta por rés-do-chão e 1.º andar localizada a poente da construção em banda implantada neste imóvel, no valor de 17.000,00 euros.

6. À penhora de créditos aplica-se o disposto no artigo 773º do CPC;

7. Ou seja, deverá ser efectuada a notificação ao devedor, com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta.

8. Tendo o direito ao crédito por benfeitorias, como devedor, o proprietário do terreno - no qual as mesmas estão implantadas - e como credor, o seu construtor; No caso em apreço, os proprietários do terreno e, portanto, os potenciais devedores do crédito por benfeitorias são os aqui Exequentes.

9. Nessa medida, e por maioria de razão, os Exequentes teriam de ser notificados nessa qualidade.

10.O que não veio a suceder.

11. Tão pouco, na página do leilão electrónico foi feita qualquer menção à omissão dessa notificação, nem consta qualquer informação sobre a qualidade do crédito em causa, por referência às normas constantes dos artigos 775º e 776º do CPC.

12.A notificação a que se faz referência reveste carácter fundamental para que seja dada oportunidade ao devedor (i.e aos próprios Exequentes) “declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução”, uma vez que da publicitação da venda devem constar, também obrigatoriamente, todos os ónus ou limitações do direito que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria de forma a evitar que venha a existir erro sobre a coisa transmitida. – cfr. 838º, n.º 1, a contrario senso.

13.Em face da natureza material da notificação omitida, estamos perante a nulidade prevista no artigo 195º, n.º 1, última parte, do CPC, uma vez que a omissão desse acto inquina os actos subsequentes, na medida em que resulta do texto legal a obrigatoriedade de existir no processo certeza do reconhecimento ou litigiosidade do crédito – cfr. 773º, n.º 4, 775º e 776º do CPC – nulidade essa que pode ser arguida até que o acto omitido seja efectivamente praticado.

No mais, e sem prescindir,

14.Tendo o Executado conhecimento que existência e exigibilidade do crédito foi negada pelos Exequentes, designadamente constando tal situação do Aresto supra referido, a sua indicação à penhora pelos mesmos Exequentes, e proprietários do prédio e, nessa sequência, devedores dessas mesmas benfeitorias, configura um comportamento contraditório, na medida em que estes pretendem ver penhorado um direito cuja existência negam, consubstanciando uma situação de venire contra factum proprium.

15.Assim, é tal comportamento gerador de nulidade, de conhecimento oficioso, reconduzindo-a a Jurisprudência e a Doutrina ao instituto do abuso de direito, previsto no artigo 334º do Código Civil, por se tratar de uma actuação que excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelo fim social e económico desse direito. – cfr. Ac. STJ 12-11-2013, 1464/11.2TBGRD- A.C1.S1.

16.O Executado veio, então arguir a nulidade por omissão da notificação dos devedores nos termos e para os efeitos do art. 773º/1 do CPC.

17.Nulidade essa que, nos termos do art. 195º/2, é geradora de anulação de todos os termos subsequentes que dele dependam absolutamente, como é o caso da diligência de venda através de leilão electrónico.

18.E bem assim, a ilegitimidade da penhora de crédito sobre benfeitorias por a indicação do direito de crédito redundar em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium por parte dos Exequentes, o que constitui abuso de direito, nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil, nulidade essa de natureza material e do conhecimento oficioso.

19.Esta arguição de nulidades surge na sequência da notificação que lhe foi feita, em 22/09/23 do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pela empresa DD, tendo apenas conhecimento da omissão de notificação dos Exequentes, na qualidade de devedores, após a notificação do mesmo, pugnando pela oportunidade dessa mesma arguição.

20.Do que fica, sempre se dirá que, ao ser proferido despacho a apreciar uma nulidade processual, designadamente sob requerimento de alguma das partes - como é aqui o caso -, a questão deixa de ter o tratamento das nulidades processuais para seguir o regime do erro de julgamento, por a infracção praticada passar a estar coberta pela decisão proferida, ficando esgotado, quanto a ela, o poder jurisdicional, nos termos do art. 613.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o que justifica o presente recurso.

21.Pelo exposto, as nulidade arguidas deveriam ter sido admitidas por provadas e, em consequência, anulados todos os actos praticados desde então com legais consequências. Destarte, a decisão do Douto despacho do qual se recorre deverá ser considerada nula por erro de julgamento.

22.A nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la.

23.Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente. Como ensinava o Prof. José Alberto Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, págs. 124, 125, o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os facto.

Fazendo-se JUSTIÇA”.

Os recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- se o despacho recorrido padece de nulidade;

- se foi omitido acto que devia ter sido praticado, gerando nulidade processual;

- (i)legitimidade da penhora por eventual existência de abuso de direito por parte dos exequentes.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Os factos/incidências processuais relevantes ao conhecimento do objecto do recurso são os narrados no relatório introdutório, achando-se ainda documentalmente assente nos autos:

1. A acção executiva na qual foi proferido o despacho sob recurso foi instaurada a 3 de Fevereiro de 2017 por AA, BB e CC contra A... Unipessoal Lda. e DD, baseando-se em sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo nº 2279/09.3TBSTS, que correu os seus termos pelo 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santo Tirso.

2. Em 27 de Março de 2017 a Sr.ª Agente de Execução procedeu à penhora do “Direito de crédito correspondente a uma benfeitoria realizada pelos executados DD e A..., Unipessoal, Lda, integrada na parcela de terreno para construção, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sto Tirso sob o n.º ..., freguesia ..., com inscrição a favor de EE e inscrito na matriz respectiva sob o n.º ... da União de Freguesias ... e ..., que consiste numa moradia compósita por rés-do-chão e 1º. Andar localizada a poente da construção em banda implantada neste imóvel, no valor de 17.000,00 euros”.

3. Na mesma data a Sr.ª Agente de Execução remeteu à sociedade A... Unipessoal, Lda. a missiva que se mostra junta aos autos de execução sob a refª. 380138006, dela constando que a mesma ficava citada “para os termos do presente processo executivo…”.

4. A 1 de Maio seguinte a mesma Sr.ª AE notificou o requerente da decisão proferida no mesmo dia da qual fez constar que a execução prosseguirá apenas contra DD em conformidade com o despacho proferido a 14 de Março de 2017.

5. A 13 de Fevereiro de 2019, A... Unipessoal, Lda. deduziu, por apenso à acção executiva, embargos de terceiro, que constituem o apenso C, afirmando na respectiva a petição de embargos que “foi declarada parte ilegítima e que este prosseguiriam contra o embargado/executado DD, pelo que deve ser desde já considerada como terceira”.

6. DD, em cumulação com os embargos de executado, deduziu oposição à penhora alegando que o direito penhorado – benfeitoria realizada na parcela de terreno para construção (…) com inscrição a favor de EE (…) que consiste numa moradia composta por rés-do-chão e 1º. andar… - não é sua pertença mas sim da sociedade A..., Unipessoal, Lda..

7. Tal oposição foi julgada improcedente, por decisão proferida em 19.10.2018 (apenso A – Embargos de Executado).

8. Nessa mesma sentença mais foi decidido que os exequentes AA, BB e CC gozam de legitimidade para a presente execução, o que se declara. (…). Já o mesmo não ocorre relativamente à co executada A..., Lda.

Na verdade, resultando do requerimento executivo que a mesma vinha demandada enquanto responsável solidária pelas custas de parte cujo pagamento também vinha reclamado, não prosseguindo agora a execução para o pagamento das mesmas em virtude da posição assumida pelos exequentes na sequência do despacho proferido em 15 de fevereiro de 2017 e como resulta do despacho proferido em 14 de março de 2017, não é a mesma parte legítima pois que não é sujeito da obrigação exequenda. Termos em que se declara parte ilegítima a executada A..., Lda, absolvendo a mesma da instância executiva.”.

9. A mesma sentença julgou os embargos parcialmente procedentes, declarando extinta a execução na parte em que excede a quantia de € 9,600,00.”.

10. Interposto recurso da referida sentença, a mesma foi confirmada, na íntegra, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Outubro de 2019, transitado em julgado.

11. Por sentença de 25.06.2021, proferida no apenso C (Embargos de terceiro), foram julgados procedentes os embargos de terceiro deduzidos por A... Unipessoal, Lda.

12. Interposto recurso dessa sentença, foi a mesma revogada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24 de Fevereiro de 2022, transitado em julgado, que julgou “improcedentes por não provados com todas as legais consequências, os embargos de terceiro aqui deduzidos pela embargante A... Unipessoal Lda.».

13. Por sentença de 05.06.2023, proferida no apenso D (habilitação de Herdeiros), foram habilitados os requeridos FF, GG e HH como únicos e universais herdeiros do falecido exequente, BB.

14. Em 20-05-2019 a Sr.ª Agente de Execução notificou as partes do seguinte:

Assunto: Venda em leilão eletrónico Fica deste modo Vª. Exa notificado(a) na qualidade de mandatário(a) do(a) exequente, que nos autos supra referenciados, se encontra aberto, até ao próximo dia 25 de junho de 2019, pelas 10:00 horas, o leilão eletrónico, para se proceder à venda do direito de crédito penhorado nos presentes autos a seguir indicado, podendo qualquer interessado licitar, através da plataforma do e-leiloes, desde que se encontra registado na mesma: Direito de crédito correspondente a uma benfeitoria realizada pelos executados DD e A..., Unipessoal, Lda., integrada na parcela de terreno para construção, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ..., freguesia ..., com inscrição a favor de EE e inscrito na matriz respectiva sob o n.º ... da União de Freguesias ... e ..., que consiste numa moradia composta por rés-do-chão e 1.º andar localizada a poente da construção em banda implantada neste imóvel, no valor de 17.000,00 euros. Valor de venda: 14.450,00€ https://www.e-leiloes.pt/...,

15. Tendo, na mesma data, sido publicado o respectivo anúncio,

16. E repetidas notificações, do mesmo teor, para as datas seguintes indicadas para a realização do leilão.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

1. Da nulidade da sentença.

Imputa o recorrente ao despacho que impugna vício de nulidade que reconduz à previsão da alíneas c), do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, vício que, afirma[1], pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la.

Dispõe o n.º 1 do artigo 615.º do aludido diploma:

“ É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

A nulidade da sentença - ou de despacho[2] - constitui vício intrínseco da decisão, desde que ocorra alguma das circunstâncias taxativamente previstas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que, pela sua gravidade, comprometam a sentença ou o despacho qua tale.

Como o n.º 1 do artigo 668.º do anterior diploma, também o n.º 1 do artigo 615.º do actual Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[3], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[4].
No primeiro segmento da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º enquadra-se o vício da sentença em que ocorra oposição entre os seus fundamentos e a decisão. A nulidade resultará dos próprios termos da sentença e está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos artigos 154.° e 607.°, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil, de fundamentar as decisões e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a consequência ou conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Esta oposição é a que se verifica no processo lógico, que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas, este extrai a decisão a proferir[5].
Não se cuida, no vício contemplado na referida alínea, de indagar se existe contradição/oposição entre a decisão que julga a matéria de facto e os fundamentos que a motivaram, como sucede na hipótese delineada pelo anterior artigo 653.º da lei adjectiva, mas antes de averiguar se essa oposição ocorre entre a decisão que aprecia a matéria controvertida e os fundamentos quer de facto, quer de direito que contribuíram para essa mesma decisão.
Numa perspectiva silogística da sentença, a decisão nela contida deve estar numa relação lógica e coerente com as respectivas premissas, que a haverão de anteceder, sendo aquela o resultado natural decorrente das mesmas.
Isto é, “a decisão tem como antecedentes lógicos os fundamentos de direito (premissa maior) e os fundamentos de facto (premissa menor), não podendo o sentido da decisão achar-se em contradição ou oposição com os fundamentos, o que sucede sempre que na construção da sentença os fundamentos expressos pelo juiz, necessariamente, haveriam de conduzir a uma solução de sentido antagónico: a proposição final (conclusão) revela-se incompatível com as proposições logicamente antecedentes (fundamentos), o que traduz um vício de raciocínio. A nulidade de oposição entre os fundamentos e a decisão não se confunde com o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, ou com a inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão[6].
Configura-se a nulidade tipificada no citado preceito quando “o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”[7].
Ou seja: “…se os fundamentos invocados conduzem logicamente, não ao resultado expresso da decisão, mas a resultado oposto ou pelo menos diferente, em última análise a decisão carece de fundamento[8].
Precisa, também a propósito do vício em análise, Lebre de Freitas[9]: “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se”.
Quanto à “ambiguidade ou obscuridade que torne a sentença ininteligível”, vício a que se refere o segundo segmento do mencionado normativo, ele ocorre “quando não seja percetível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou ela encerre um duplo sentido (ambiguidade), sendo ininteligível para um declaratário normal[10].
Segundo o Prof. Alberto dos Reis[11], a “(…) sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes”, explicitando que “(…) num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”, adiantando ainda ser “(…) evidente que em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade” por “(…) se a determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz”.
Sinteticamente, poderá afirmar-se que ocorre obscuridade quando não seja perceptível o pensamento do julgador traduzido na parte decisória, verificando-se ambiguidade quando ela comportar mais do que uma interpretação.
Segundo o acórdão do S.T.J. de 11.4.2002,[12]só existe obscuridade quando o tribunal proferiu decisão cujo sentido exacto não pode alcançar-se. A ambiguidade só releva se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que não seja possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se diz ambíguo [...].
Mas deve ter-se em conta que o haver-se decidido bem ou mal, de forma correcta ou incorrecta, em sentido contrário ao preconizado pela requerente, é coisa totalmente diversa da existência de obscuridade ou ambiguidade do acórdão [...]”. Em todo o caso, a ambiguidade e a obscuridade só invalidam a sentença se e na medida em que qualquer uma daquelas patologias a tornem ininteligível”.
No caso, a decisão recorrida revela clareza bastante para que o seu sentido possa, sem dificuldades, ser apreendido pela generalidade das pessoas, incluindo o próprio recorrente que, como transparece dos seus argumentos recursivos, não teve dúvidas quanto ao seu alcance e significado.
Também no despacho recorrido não se detecta qualquer oposição entre a decisão nele contida e os respectivos fundamentos.
Assim, não enferma o referido despacho de qualquer vício que afecte a sua validade, designadamente do vício de nulidade que, sem convicção, o recorrente lhe imputa.
2. Do mérito da decisão impugnada.
2.1. Da invocada nulidade processual.
Dispõe o artigo 195.º do Código de Processo Civil:
1 - Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
2 - Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.
[...]”.
Convocando o regime definido no artigo 773.º para a penhora de créditos, alega o recorrente que tendo a penhora recaído sobre o crédito por benfeitorias realizadas em imóvel propriedade dos exequentes, deviam estes, na qualidade de potenciais devedores do referido crédito, ter sido notificados com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta.
Com a epígrafe Penhora de Créditos, dispõe o referido normativo:
1 - A penhora de créditos consiste na notificação ao devedor, feita com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta, de que o crédito fica à ordem do agente de execução.
2 - Cumpre ao devedor declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução.
3 - Não podendo ser efetuadas no ato da notificação, as declarações referidas no número anterior são prestadas por escrito ao agente de execução, no prazo de 10 dias.
4 - Se o devedor nada disser, entende-se que ele reconhece a existência da obrigação, nos termos da indicação do crédito à penhora.
Este mecanismo permite ao devedor, entre o mais:
a) impugnar a existência do crédito, o que, a ocorrer, e no caso de o exequente mantiver a penhora, determina que o crédito passe a ser considerado litigioso;
b) reconhecer a existência do crédito, hipótese em que o crédito ficará imediatamente assente no âmbito da acção executiva, podendo, como tal, ser imediatamente vendido ou adjudicado. Nestas circunstâncias, o acto de reconhecimento servirá de base à formação de um título executivo no qual se pode fundar execução contra o terceiro devedor.
O normativo citado está, pois, delineado para as situações em que o devedor é um terceiro, alheio à execução já instaurada.
Não se enquadra nessa situação o crédito por benfeitorias penhorado nos autos em que foi proferida a decisão aqui objecto de sindicância.
Relembre-se, uma vez mais, que a acção executiva foi instaurada na sequência da sentença, transitada em julgado, proferida no âmbito do processo nº 2279/09.3TBSTS, que correu os seus termos pelo 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santo Tirso, servindo a referida sentença de título executivo.
Nessa acção declarativa, instaurada contra a ré A..., Unipessoal, Lda., e na qual o aqui executado DD teve intervenção como associado daquela, foi este condenado a transmitir para as AA., herdeiras do A. EE, o direito de propriedade sobre as duas “moradias centrais da banda, com os nºs 3 e 4”, por permuta com os prédios identificados no art. 2º da petição, bem como a pagar às AA. uma indemnização pelo atraso na entrega das duas moradias, desde a data da presente sentença até efectiva entrega, indemnização calculada à razão de €400,00 por mês”.
Na execução instaurada com base na referida sentença, foi penhorado, a 27 de Março de 2017, o “Direito de crédito correspondente a uma benfeitoria realizada pelos executados DD e A..., Unipessoal, Lda, integrada na parcela de terreno para construção, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sto Tirso sob o n.º ..., freguesia ..., com inscrição a favor de EE e inscrito na matriz respectiva sob o n.º ... da União de Freguesias ... e ..., que consiste numa moradia compósita por rés-do-chão e 1º. Andar localizada a poente da construção em banda implantada neste imóvel, no valor de 17.000,00 euros”.
Nesta acção executiva apenas intervieram os exequentes, autora e sucessores habilitados do primitivo autor EE, e A..., Unipessoal, Lda., - que, depois de citada para a acção executiva, viria a ser julgada parte ilegítima na mesma por sentença de 19.10.2018, vindo, na sequência de tal decisão, deduzir embargos de terceiro a 13.02.2019, que, por acórdão transitado em julgado seriam julgados improcedentes -, e DD, interveniente naquela acção declarativa e contra prossegue a execução.
Foram, relativamente a estes intervenientes processuais, cumpridas todas formalidades legalmente exigíveis, não se justificando o recurso à notificação prevista no convocado artigo 773.º do Código de Processo Civil dada a qualidade por eles assumida na acção executiva, não havendo terceiros devedores que impusessem o cumprimento da formalidade em causa.
Diga-se, de resto, que os exequentes, conhecedores da penhora realizada na acção executiva, nunca, por qual forma, impugnaram ou questionaram a existência do crédito penhorado, alertando-se ainda para a circunstância, admitida pelo próprio recorrente, de o crédito penhorado respeitar às benfeitorias integradas em imóvel pertencente aos próprios exequentes.
Por estas razões também, não foram omitidos nos actos de publicitação do leilão electrónico quaisquer informações ou dados que deles devessem constar.
Não se verificam, pois, quaisquer das nulidades processuais só agora, prestes que está a concretizar-se a venda do crédito penhorado, denunciadas pelo recorrente.
E, ainda que estas pudessem eventualmente ter ocorrido – o que não é o caso -, há muito estariam as mesmas sanadas pelo decurso do prazo fixado para a sua arguição no artigo 199.º do Código de Processo Civil.
2.2. Do invocado abuso de direito.
Segundo o artigo 334.º do Código Civil, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Para Pires de Lima e Antunes Varela[13], o referido normativo adoptou a concepção objectiva de abuso de direito, não sendo necessária a consciência de se atingir, com o seu exercício, a boa fé, os bons costumes ou o fim social ou económico do direito conferido, bastando que se excedam esses limites.
O normativo em causa traduz, assim, a ideia de que não basta ser titular de um direito para, sem limites, o mesmo poder ser exercido. O exercício de qualquer direito está sujeito a limitações e restrições.
Para Cunha e Sá[14] o abuso de direito constitui um fenómeno revelador de que o direito subjectivo não pode ser abstractamente encarado em termos meramente conceitualistas, pois que em certa e determinada situação, experimentalmente concreta, podemos descobrir concordância com a estrutura formal de um dado direito subjectivo e, simultaneamente, discordância, desvio, oposição, ao próprio valor jurídico que daquele comportamento faz um direito subjectivo, concluindo que “neste encobrir, consciente ou inconscientemente, a violação do fundamento axiológico de certo direito com o preenchimento da estrutura formal do mesmo direito é que reside o cerne, a essência do abuso de direito”.
Defende, a propósito, Castanheira Neves[15], que o abuso de direito é um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjectivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular que são ultrapassados.
Assim, uma das restrições ao exercício de direitos subjectivos é justamente imposta pela necessidade de salvaguarda da boa fé da parte contrária, estando vedado o exercício do direito cujo titular exceda manifestamente os limites da boa fé.
À partida legítimo, se exercido de forma que ofenda manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, o mesmo é dizer, o sentimento jurídico socialmente dominante, o direito torna-se ilegítimo, implicando tal ilegitimidade a paralisação dos respectivos efeitos, tudo se passando como se não existisse na esfera patrimonial do titular, sobrando apenas a sua aparência.
Pode entender-se, juridicamente, por exercício abusivo do direito “um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica --- por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde --- e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício[16].
A parte que abusa do direito actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.
No caso aqui em discussão, a penhora do direito de crédito correspondente à benfeitoria incorporada no imóvel pertencente aos exequentes foi concretizada, a 27.03.2017, pela Sr.ª Agente de Execução após ter a mesma procedido às diligências prévias à penhora, nos termos do disposto no artigo 749.º do Código de Processo Civil.
O crédito sobre o qual recaiu a penhora não foi indicado pelos exequentes, nem estes no decurso da acção executiva negaram a existência do mesmo, designadamente quando foram ouvidos pela Sr.ª Agente de Execução antes de determinada a venda.
Não há, pois, qualquer exercício abusivo do direito por parte dos exequentes, nem se detecta na actuação processual dos mesmos qualquer conduta reprovável ou censurável, ao invés da conduta do executado, aqui recorrente, que, a coberto do apoio judiciário que lhe foi concedido, tem[17] vindo sucessivamente a socorrer-se de expedientes dilatórios para impedir, ou, pelo menos, fazer retardar a venda do direito penhorado, ressuscitando, designadamente, questão relativa à validade da penhora, há muito definitivamente resolvida nos autos.
Não merecendo reparo a decisão recorrida, improcede o recurso.

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Síntese conclusiva:

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, julgando improcedente a apelação, em confirmar o despacho recorrido.

Custas – pelo apelante, nos termos do artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, levando-se em conta o benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Notifique.


Porto, 6.03.2025
Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Judite Pires
João Venade
Isoleta de Almeida Costa
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[1] Conclusão 22.ª.
[2] Artigo 613.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
[3] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[4] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[5] Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, página 246.
[6] Acórdão do STJ, 07.05.2008, processo nº 3380/07, www.dgsi.pt.
[7] Alberto dos Reis, ob. cit., vol. V, pág. 141; cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra, ob. cit., pág. 690.
[8] Anselmo de Castro, ob. cit., pág. 142.
[9] “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 3ª ed., pág. 333.
[10] Lebre de Freitas, “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 3ª ed., pág. 333.
[11] Obra citada, pág. 151.
[12] Processo n.º 01P3821, www.dgsi.pt.
[13] “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 286.
[14] “Abuso de Direito”, pág. 456.
[15] “Questão de facto – Questão de direito”, nota 46, pág. 526.
[16] Castanheira Neves, “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, edição copiografada, Coimbra, 1968/69, pág. 391, citado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.1.2003, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 64.
[17] Juntamente com a sociedade de que é sócio e gerente, que justificou a sua condenação em multa, por litigância de má fé, na sentença proferida na acção declarativa.