I - É válida a deixa testamentária em que o testador declara que deixa a sua quota disponível a sua filha…, a qual começará a ser preenchida pelo prédio urbano… .
II - O preenchimento da quota por aquele imóvel deve ser ponderado como sendo um legado.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
João Venade.
Paulo Dias da Silva.
Ana Vieira.
1). Relatório.
AA requereu, em no Cartório Notarial ...
Inventário por morte de
BB, seu avô, falecido em ../../2008, sendo que o seu pai, CC, faleceu em ../../1991.
A requerente foi nomeada cabeça-de-casal e indicou como herdeiros:
. uma filha – DD;
. quatro netos, filhos do pré-falecido filho CC:
a). EE;
b). A declarante, AA;
c). FF;
d). GG.
O inventariado deixou testamento, o qual foi junto em 13/09/2019.
Por decisão de 29/01/2022, foi decidido remover a requerente do cargo de cabeça de casal, declarando anulados todos os atos praticados pela mesma, nomeando-se cabeça-de-casal a filha do inventariado.
«Por testamento outorgado em 07/05/1991, o inventariado declarou deixar “a sua quota disponível a sua filha DD, a qual começará a ser preenchida pelo prédio urbano que possui no lugar da ..., daquela freguesia ..., inscrito na respectiva matriz sob os artigos ...42 e ...57.”
Não há passivo judicialmente reconhecido.
Em consequência do que fica dito, deve proceder-se à partilha da seguinte forma:
Somam-se os valores dos bens descritos com os valores resultantes das avaliações e eventuais licitações e divide-se a totalidade obtida em três partes, constituindo um terço a quota disponível e os restantes dois terços a quota indisponível do inventariado (art.º 2159.º, n.º 1 do Cód. Civil).
Por força do testamento, a terça parte correspondente à quota disponível do inventariado adjudica-se a DD, que começará a ser preenchida com o prédio identificado no testamento.
Os outros dois terços, correspondentes à quota indisponível, subdividir-se-ão em duas partes iguais, por tantos serem os filhos do inventariado (art.º 2157.º, 2139.º, n.º 2 do Cód. Civil): uma dessas partes será adjudicada a DD; a outra parte, subdivide-se em quatro partes iguais, que se adjudicam a EE, AA, FF e GG (art.º 2139.º, 2042.º, 2044.º, n.º 1, 2136.º do Cód. Civil).
Em suma, são as seguintes as quotas ideais das interessadas na herança:
- DD: 2/3;
- EE: 1/12;
- AA: 1/12;
- FF: 1/12;
- GG: 1/12.
Quanto ao preenchimento dos quinhões, deverá observar-se aquilo que venha a resultar da conferência de interessados.».
Designou-se dia para conferência de interessados, a qual se efetivou em 31/05/2024, com o seguinte resultado:
«Cerca das 12:15 horas, tentou a conciliação das partes, mas tal não se mostrou possível. -.
Neste momento, todos os interessados acordaram que a adjudicação da verba n.º 1, fica adjudicada a todos os interessados na proporção dos seus quinhões.
De seguida, a cabeça de casal, informou o Tribunal que, a partir daquele momento, conferia ao seu cônjuge, HH, os poderes de representação na presente conferência de interessados, nomeadamente, quanto à licitação do prédio misto.
De seguida, tendo os interessados declarado que pretendiam licitar sobre a verba n.º 2, foi acordado que as licitações até ao valor de €120.000,00 (cento e vinte mil euros), seriam lanços de €5.000,00 (cinco mil euros) e depois desse valor seriam lanços de €1.000,00 (mil euros).
Assim, de seguida foi declarada a abertura das licitações, que se traduziu no seguinte:
Verba n.º 2 adjudicada à requerente AA, pelo valor de 142.000,00 (cento e quarenta e dois mil euros).».
Em 25/07/2024, a requerente requereu incidente de habilitação dos cessionários II, e mulher, JJ por alegadamente ter cedido o seu quinhão hereditário.
Foi determinado que tal pedido corresse por apenso (apenso A), não tendo sido proferida decisão.
Em 14/10/2024, a requerente veio reclamar do mapa de partilha alegando a nulidade do conteúdo do testamento elaborado por seu avô pois:
. a Beneficiária e testamenteira (filha do inventariado) em momento algum requereu a adjudicação do imóvel que seria aquele que iria começar por preencher a sua quota disponível;
. também não alegou que tinha vontade de cumprir o encargo determinado pelo testador para beneficiar da deixa testamentária;
. tal atitude tem como consequência a perda da deixa testamentária relativa à quota disponível, já que corresponde à expressa declaração do não cumprimento da vontade do testador, sendo que, nos termos dos artigos 2244.º, 2249.º e 2250.º, do C. C. a beneficiária da deixa testamentária não podia deixar de cumprir a condição ou encargo
. assim, ocorre a resolução do beneficio concedido pelo testador, relativo à deixa da quota disponível;
. reclama igualmente do mapa, pois a disposição testamentária relativa à quota disponível não pode assim ser considerada como integrante do direito à herança da indicada filha, pelo que a herança deve ser dividida em duas parte iguais, sendo uma ½ da filha DD e a outra ½ das quatro netas que representam o pré-falecido filho CC, cabendo por isso a cada um quinhão correspondente a 1/8 da Herança do seu avô.
Inconformada, veio a requerente AA interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
«A) O recurso visa a anulação da sentença homologatória da partilha que julgou improcedente o incidente de nulidade do testamento deduzido e em consequência não ordenou a rectificação do mapa de partilha;
B) Pelo que o Tribunal a quo fez errada aplicação e interpretação das normas dos arts.º 224.º, 271.º, 2244.º, 2249.º e 2250.º do Cód. Civil, razão porque a fundamentação vertida integra absoluta nulidade, na medida em que não conheceu do incumprimento da condição resolutiva resultante do testamento quanto à deixa da quota disponível à Interessada/Recorrida DD, que incumpriu o encargo imposto pelo Testador Inventariado BB, ao ter optado pelo recebimento de tornas para preenchimento da mesma e do seu direito sucessório;
C) Porquanto o Inventariado BB declarou ser sua vontade que o prédio em causa (Verba n.º 2) ficasse para a sua filha DD, para isso lhe deixou a quota disponível, com a condição/obrigação de esta ser preenchida por tal prédio no seu todo, como resulta expresso do teor do testamento, já que a mesma passou a ser titular de 2/3 da sua herança;
D) A deixa testamentária foi feita à Interessada Beneficiária DD, com vista a procurar realizar o seu desejo de não ver vendido ou dividido, facto nuclear da sua vontade, exarada no testamento;
E) A expressa manifestação dessa vontade resulta, à contrário, do facto de o Inventariado Testador não possuir nem à data da feitura do testamento, nem à sua morte outro prédio, que não apenas aquele, que identificou no testamento, bem sabendo que nada mais havia a partilhar entre os seus herdeiros legitimários;
F) Independentemente do valor do prédio, o valor proporcional da quota disponível, para efeitos do cumprimento da deixa, bem como da legítima, sempre ascenderiam a mais de ½ do valor do prédio, pelo que sempre a Beneficiária ficaria com o prédio em causa;
G) Resulta dos presentes autos que a Interessada filha DD, Testamenteira e Cabeça de Casal nada requereu e nada promoveu ou peticionou para dar cumprimento à vontade do de cujus, e constante do testamento, nomeadamente à condição do seu cumprimento no que respeita ao preenchimento das suas quotas hereditárias;
H) Como resulta provado sob o facto n.º 5 dos “Factos Provados”, e do teor da Acta de Conferência de Interessados, com a Ref.ª 460462493, a Interessada Testamenteira não pediu adjudicação, não pediu avaliação e não se opôs a que a Verba n.º 2 fosse licitada e adjudicada pelo valor de 142.000,00 € à Interessada/Recorrente em Conferência de Interessados ocorrida em 23/05/2024;
I) A Interessada DD, enquanto Beneficiária da deixa testamentária, abdicou expressamente da mesma, que lhe impunha que a deixa fosse preenchida por aquele imóvel da herança, correspondente à Verba n.º 2 da Relação de Bens;
J) Pois a explicação em causa “deixa a sua quota disponível …, a qual começará a ser preenchida pelo prédio urbano que possui … artigos ...42 e ...57”, constitui um encargo, enquanto condição resolutiva, imposta pelo Inventariado, à Beneficiária da deixa testamentária DD, na medida em que essa deixa tinha como finalidade que à mesma pertencesse, mais de metade do valor do prédio, para poder ficar com o mesmo;
K) O Testador e Autor da Herança, ao determinar que o preenchimento da quota disponível fosse feito com o imóvel Verba n.º 2, quis impor à Beneficiária o encargo de ficar com o único imóvel que possuía, independentemente de o mesmo exceder a quota disponível e de a deixa ter de ser reduzida, e de a Beneficiária DD ter de repôr tornas aos restantes Interessados;
L) Porém, a Beneficiária em momento algum requereu a adjudicação do imóvel em causa para preenchimento das suas quotas disponível e legítima, nem sequer alegou que tinha vontade de cumprir o encargo determinado pelo Testador, nem na Conferência de Interessados requereu a adjudicação, avaliação, nem se opôs a que o prédio fosse submetido a licitações e, nessa sequência adjudicado pelo valor de 142.000,00 € à Recorrente AA;
M) A Beneficiária DD actuou consciente e de forma deliberada, de modo a não cumprir a condição ou encargo que lhe foi imposto pelo Testador, com total desprezo pela vontade do mesmo, o que resulta expressamente do pedido de pagamento das tornas para preenchimento do seu quinhão;
N) Este comportamento só pode ter como consequência a perda da deixa testamentária relativa à quota disponível, e a resolução do benefício concedido pelo Testador, já que corresponde à expressa declaração do não cumprimento da vontade do Testador;
O) Ao abrigo do disposto nos artigos 2244.º, 2249.º e 2250.º do Cód. Civil a Beneficiária da deixa testamentária não podia deixar de cumprir a condição ou encargo, dado que o mesmo, não é impossível, nem ilegal ou ofensivo dos bons costumes, nos termos dos art.º 224.º e 271.º Cód. Civil.
P) Pelos motivos que acima se invocam, o Tribunal a quo violou as disposições legais imperativas e de acordo com o disposto nos artigos 224.º, 271.º, 2244.º, 2249.º e 2250.º, todos do Código Civil, seja na sua aplicação, seja na sua interpretação, razão pela qual é nula a sentença recorrida, como é igualmente NULA a deixa da quota disponível a favor da filha DD, tendo, por vias disso, o incidente de nulidade deduzido ser julgado totalmente procedente.».
Pede a revogação da decisão, sendo substituída por outra que julgue procedente o incidente de nulidade do testamento e ordene a retificação do mapa de partilha, com as inerentes consequências legais.
. nulidade de decisão;
. validade do testamento;
. alcance da deixa testamentária de indicar o bem que deve iniciar o preenchimento da quota disponível da filha do de cuius;
. validade da mesma;
. tramitação processual e consequência na (in)alteração do mapa de partilha.
2.1). De facto.
Na decisão recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:
«1. Por testamento outorgado em 07/05/1991, o inventariado, no estado de divorciado, declarou:
“Que deixa a sua quota disponível a sua filha Dra. DD, a qual começará a ser preenchida pelo prédio urbano que possui no lugar da ..., daquela freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob os artigos ...42 e ...57;
Que nomeia como testamenteira sua identificada filha, Dra. DD.”
2. Sob o n.º 2 e a epígrafe “bens imóveis”, foi relacionado o seguinte bem:
“Prédio misto situado no Lugar .... (…) descrição predial sob o n.º ...19/20120919 da freguesia ..., correspondendo aos seguintes a[rtigos] matriciais atuais: ...90 urbano (…) (antigo artigo matricial ...84) ...55 C e H urbanos (…) (antigo artigo matricial ...95) ...95 rústico (…) (antigo artigo matricial ...31)
3. O activo da herança a partilhar é composto por duas verbas, a identificada em 2. e um crédito no valor de €2.000, relacionado sob a verba n.º 1.
4. Por todos os interessados (presentes ou representados) foi declarado na conferência de interessados que pretendiam ajudicar a verba n.º 1, na proporção dos respectivos quinhões, e licitar sobre a verba n.º 2.
5. A verba n.º 2 foi licitada e adjudicada à requerente por €142.000.».
A). Da nulidade da decisão.
Ao contrário do sumariamente alegado, inexiste qualquer nulidade da decisão, a qual teria de preencher alguma das situações previstas no artigo 615.º, ex vi 613.º, n.º 3, ambos do C. P. C.. Ora, o que a recorrente alega é a discordância com o decidido e não que o tribunal tenha incorrido nalguma das situações previstas naquele citado artigo 615.º.
Improcede esta argumentação.
O inventariado BB redigiu testamento onde dispôs que:
. deixa a sua quota disponível a sua filha Dra. DD, a qual começará a ser preenchida pelo prédio urbano que possui no lugar da ..., daquela freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob os artigos ...42 e ...57;
Elaborou assim o inventariado uma deixa testamentária determinando que a quota disponível da sua herança fosse atribuída na totalidade a favor de sua filha, ora interessada DD.
Como refere Oliveira Ascensão, in O preenchimento pelo autor da sucessão da quota do herdeiro, página 15, Conferencia proferida nas Jornadas de Direito Civil e Comercial: o Código Civil e o Código Comercial de Macau, em Macau, Setembro de 1999: «O autor da sucessão pode fazer uso da quota disponível como quiser, evitando nesse domínio uma situação de indivisão. Pode, na medida desta, fazer as disposições que entender; e pode fazê-lo, sem prejuízo da qualidade de herdeiro das pessoas beneficiárias. Pode nomeadamente designar naquela quota herdeiros testamentários diferentes dos herdeiros legitimários. (…). O autor da sucessão conserva, enquanto não prejudicar quantitativamente a legítima, total faculdade de disposição.».
Não há dúvida que assim, sendo a própria definição desta quota a sua disponibilidade (ao contrário da quota legítima/indisponível – artigos 2156.º e seguintes, do C. C.) que o inventariado tem aquela liberdade sobre a decisão a proferir sobre a designação dessa quota parte da herança.
A deixa testamentária em causa, não é mais do que a disposição do de cuius da quota disponível a favor de uma herdeira; o que sucede é que o mesmo testador decidiu exarar como se deveria preencher essa quota, iniciando-se por aquele imóvel.
Não está em causa qualquer encargo que tenha sido imposto ao herdeiro pois não se sujeito o mesmo a qualquer atuação para que possa ser válida aquela deixa testamentária, conforme artigos 2229.º e seguintes (condição) e 2244.º e seguintes (encargos), do C. C. e, como se refere na decisão recorrida, a sujeição a condição ou encargos não implica a nulidade do testamento (prevista por exemplo no artigo 2180.º, do C. C.) ou da disposição; implica antes ou a não constituição de herdeiro ou legatário se a condição não se preencher ou a resolução da disposição testamentária (esta nos termos do artigo 2248.º, do C. C.).
O que sucedeu é que o testador determinou como se deveria preencher a quota disponível, referindo um bem em concreto – um imóvel -.
Ora, esta situação não merece um tratamento inequívoco na doutrina seja no sentido de a classificar como instituindo um herdeiro ex re certa (como o fez o tribunal recorrido) seja classificando a situação como um legado particional[1], querendo o testador realizar a partilha em relação a tal bem.
O que sugere alguma dificuldade na análise desta figura é que alguém é instituído como herdeiro de uma quota e, ao mesmo tempo, é destinatário da atribuição de um bem em concreto, o que encaixa na classificação de legatário, assim assumindo as duas qualidades prevista no artigo 2023.º, n.º 1, do C. C..
Uma vez que, no caso, à filha do inventariado é determinado que a sua quota hereditária será preenchida por um bem determinado, pensamos que a solução que melhor defende os interesses da herança e do herdeiro, passará por considerar que o que está em causa é um legado, ainda que com características um pouco diferentes da atribuição de um legado. Neste, pode dar-se vantagem ao legatário nessa atribuição (se, por exemplo, o valor do legado exceder a quota e se detetar na interpretação do testamento que foi vontade do testador beneficiar o legatário); ao contrário, naquele legado particional, apenas se integra o bem numa quota legalmente determinada, ou seja, é um legado que visa determinar a partilha de bens.
Mas, seja considerando que se trata de um verdadeiro legado, seja considerando uma deixa que unicamente visa determinar a partilha de bens, sendo admissível face à legislação portuguesa, apesar de não expressamente prevista, tem então de se retirar algum tipo de consequências com a sua estipulação.
Daí que, querendo o herdeiro e legatário aceitar essa deixa/modo de determinação de partilha do bem, deve então seguir-se um determinado rito processual quanto a tal bem.
Na verdade, se é atribuído um bem a integrar na quota disponível e o herdeiro aceita essa indicação, passa também a ser legatário do mesmo bem.
No caso dos autos, a herdeira, filha do inventariado aceitou essa indicação (para nós, um efetivo legado[2]) já que não o repudiou, o qual, sempre teria de ser efetuado por modo expresso, com a mesma forma exigida para a celebração da alienação de um imóvel – artigos 2063.º, 2126.º, n.º 1, ex vi artigo 2249.º, todos do C. C.). Não pode haver repúdio tácito do legado (o que, salvo erro da nossa parte, é o que a recorrente entende que teria ocorrido quando menciona que filha do inventaria aceitou que o bem fosse licitado; se fosse possível haver o repúdio tácito, porventura estaria correto esse entendimento) pelo que, nada sendo dito em contrário, por aquela forma, o legado foi aceite pela dita interessada, filha do testador.
E, continuando a entender-se aquela deixa como um verdadeiro legado, então a consequência é que o bem não entrava na massa de bens a partilhar pois já estava destinado, no caso, a um herdeiro e legatário (aqui em relação a este bem), não podendo o bem ser licitado (artigos 1113.º, n.º 4 e 1120.º, n.º 4, a), do C. P. C.).[3]
Caso o valor do bem excedesse o valor quota, uma possibilidade seria aferir da inoficiosidade do legado, nos termos do artigo 1118.º, n.º 1, do C. P. C. e 2168.º e 2171.º, do C. C., o que não foi efetuado.
Outra possibilidade seria a de considerar, caso o valor do legado excedesse o valor da quota, o legatário como devedor de tornas, assumindo-se aqui o legado não como um legado na sua plenitude pois não representava uma vantagem para o legatário, mas antes um legado particional, que definia a partilha e, por isso, não sendo uma efetiva liberalidade, não haveria lugar a inoficiosidade mas a acerto de quinhões.
Sucede que, no presente recurso, a recorrente não questiona nem que o bem legado tenha integrado o elenco de bens a serem partilhados e licitados, como não questiona a validade da licitação nem pugna pela invalidade da adjudicação do bem legado a si, requerente, interessada e recorrente, AA.
O que a recorrente pretende é que o testamento seja declarado nulo, o que já vimos que não sucede (como bem mencionou o tribunal recorrido) ou que a filha do inventariado deixasse de ser a beneficiária da quota disponível, o que não tem sustento legal, como também já se referiu – seja por não estar em causa qualquer encargo ou condição seja por não ter havido repúdio do legado -).
Improcedente essa argumentação, face ao teor das respetivas alegações, a recorrente continua a pretender ser a adjudicatária do imóvel legado a outra interessada, assentando desse modo na validade das licitações.
Daí que, mesmo que, na nossa visão, o bem legado (verba n.º 2) não pudesse ser licitado e que, não tendo havido repúdio do mesmo legado, tal verba teria de ser adjudicada à filha do de cuius, não podemos apreciar essas questões não só porque não são objeto do recurso como, a serem apreciadas e decididas no sentido de anular a licitação e a adjudicação à recorrente, esta sofreria um prejuízo com a procedência do recurso[4]: sendo o bem adjudicado à legatária/requerente do inventário, filha do inventariado, a recorrente perderia a propriedade desse bem, algo que pensamos que não pretende já que licitou no sentido dessa mesma adjudicação e aceita quer a licitação quer esta mesma adjudicação.
A falta de conformidade entre a vontade do testador e o que efetivamente acaba por suceder em partilha – adjudicação do bem legado a outra pessoa que não a legatária – não pode ser alterada face ao objeto do recurso -.
O mapa de partilha, a ser efetuado de acordo com o que consta do testamento - com a verba n.º 2 a preencher a quota disponível da filha do inventariado – e como o valor da mesma verba (e da outra parte do direito adjudicado em comum, como verba n.º 1) excederia o seu quinhão -, refletiria a mesma interessada como sendo devedora de tornas aos outros herdeiros.
Sucede que, como o bem não lhe foi adjudicado, então preenche-se a quota da filha do inventariado, com tornas a prestar pelas interessadas que receberam a mais em relação ao seu quinhão, onde se inclui a aqui recorrente, o que está refletido no competente mapa de partilha.
Deste modo, não havendo qualquer vício no testamento nem se podendo concluir, neste recurso, pelo afastamento da adjudicação da quota disponível à filha do inventariado, o mapa de partilha encontra-se corretamente efetuado, concluindo-se assim pela improcedência do recurso.
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.
Registe e notifique.
Porto, 2025/03/06.
João Venade.
Paulo Dias da Silva.
Ana Vieira.
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[1] Socorremo-nos do que entendemos ser um estudo profundo e de elevada qualidade do Professor Daniel Morais, «Do concurso de regimes aplicáveis às liberalidades com relevância sucessória — a herança ex re certa: o legado por conta da quota», páginas 103 a 133, Lex Familiae Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 17, 34, 2020, acessível em https://www.centrodedireitodafamilia.org/sites/cdb-dru7-ph5.dd/files/Rev_34%20-%20Livro.pdf
[2] Naquela mesma obra faz-se referência a um Ac. da R. P. de 07/03/1945 numa situação em tudo semelhante à dos autos em que se concluiu que se estava perante um verdadeiro legado.
[3] Veja-se Miguel Teixeira de Sousa e outros, O novo regime de Processo de inventário…, 2020, página 113.
[4] O que o artigo 635.º, n.º 5, do C. P. C. impede: Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.