ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
CRITÉRIO DE QUANTIFICAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
MOTOCICLO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
EQUIDADE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário


I – A indemnização por dano biológico cobre o esforço acrescido ou suplementar a que o sinistrado se vê obrigado no desempenho da sua actividade laboral, bem como a perda da potencialidade futura para se alcandorar a um patamar superior de rentabilidade da sua actual prestação, com reflexo necessário na diminuição de nível remuneratório a que poderia, noutras circunstâncias e com razoável probabilidade, ascender.
II – Contando o lesado 27 anos à data do sinistro, encontrando-se desempregado, sendo na altura saudável e fisicamente bem constituído; havendo em virtude do evento lesivo sofrido défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 7 em 100, sem impossibilidade do exercício da actividade profissional, mas com esforços acrescidos no seu desempenho; receando o mesmo que potenciais retrocessos se repercutam no trabalho que agora exerce, é equilibrada e equitativa, atendendo aos padrões jurisprudências mais recentes, a fixação da indemnização de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) a título de indemnização por dano biológico.

Texto Integral


Processo nº 6002/21.6T8GMR.G1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.

AA instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra o Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.

Alegou essencialmente:

No dia 13 de Março de 2020, por volta das 15h.35m, na Rua ..., na cidade de ..., ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o Autor, que conduzia um motociclo de matrícula VD ....., e BB, que seguia no veículo de matrícula ..-NA-.., propriedade da empresa “L..., Lda.” e segurado na Ré através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...91, válida à data do acidente.

O acidente ocorreu por culpa da condutora do veículo seguro pela Ré, pois, circulando ambos os veículos no sentido Fe...- F..., quando o Autor se encontrava a ultrapassar aquela, a mesma mudou de direcção à esquerda, sem sinalizar tal manobra, invadindo repentinamente e inopinadamente a hemi-faixa em que aquele circulava, sem ter olhado para a sua retaguarda a verificar se não era ultrapassada por qualquer veículo.

Em consequência, o veículo de matrícula ..-NA-.. acabou por embater no ciclomotor conduzido pelo Autor, tendo este último sofrido uma queda no asfalto com projeção, da qual resultaram diversos traumatismos a nível corporal, dos quais resultaram sequelas que determinaram, para além de um período de incapacidade temporária para o trabalho com consequentes perdas salariais, uma incapacidade permanente geral de 13 pontos e danos não patrimoniais, correspondentes ao dano biológico, às dores, transtornos e limitações que sofreu e ainda sofre.

Concluiu pedindo que seja a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de € 560.956,90 (quinhentos e sessenta e novecentos e cinquenta e seis euros e noventa cêntimos) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, por si sofridos, acrescida dos juros à taxa de 4% ao ano, contados desde a data da citação e até efetivo pagamento.

A Ré contestou, impugnando parcialmente a matéria alegada na Petição Inicial, no que se refere aos danos cuja indemnização é peticionada.

Realizada audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de , em cuja parte dispositiva consta: “(…) julgo parcialmente procedente a acção e, em consequência:

a) Condeno a Ré, “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.”, a pagar ao Autor, AA, a quantia de € 7.119,90, acrescida de juros vencidos desde a data da citação e vincendos até integral e efectivo pagamento, sobre o capital de € 7.119,90, à taxa legal de 4%;

b) Condeno a Ré, “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.”, a pagar ao Autor, AA, a quantia de € 235.000,00, acrescida de juros que se vençam desde a data da presente sentença e até integral e efectivo pagamento, sobre o capital de € 235.000,00, à taxa legal de 4%.”.

Apresentou o A. recurso de apelação, o qual veio a ser julgado parcialmente procedente por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 17 de Outubro de 2024, nos seguintes termos:

“(…) julgar o presente recurso de apelação parcialmente procedente e, em conformidade:

Revogam a sentença recorrida na parte em que condenou a Recorrente a pagar ao Recorrido a quantia de € 7 119,90, acrescida de juros vencidos desde a data da citação e vincendos até integral e efetivo pagamento, à taxa legal de 4%, a título de indemnização por perdas salariais, absolvendo a Ré desta parte do pedido;

Revogam a sentença recorrida na parte em que fixou em € 215 000,00 o montante da indemnização que a Ré foi condenada a pagar ao Recorrido a título de dano patrimonial futuro, reduzindo esse montante para a quantia de € 45 000,00 (quarenta e cinco mil euros);

Confirmam, no restante (compensação pelos danos não patrimoniais e termo a quo da obrigação de juros, tanto sobre a indemnização do dano patrimonial futuro como sobre a compensação dos danos não patrimoniais) o decidido na sentença recorrida.

Custas a cargo de Recorrente e Recorrido, na proporção dos respetivos decaimentos.”.

Veio o A. interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:

i. Da nulidade por excesso de pronúncia quanto à impugnação da matéria de factos dos pontos 43) e 44):

1- Da conjugação dos artigos 615.º alínea d) e nº 2 do 608.º, do CPC, ocorre excesso de pronúncia quando o tribunal aprecia e decide uma questão, isto é, um problema concreto que não foi suscitado pelas partes, salvo se a lei lhe impuser o seu conhecimento oficioso.

2- De salientar que, delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente, nos termos do disposto nos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, não é lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matéria nelas não incluída, salvo as de conhecimento oficioso.

3- Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas os concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração.

4- No recurso interposto pela Ré, no artigo 7º das conclusões, pode ler-se o seguinte: «(…)Quanto aos pontos, 43, 44 e 45 dos factos provados, entende, a Recorrente, salvo melhor opinião, que o Autor apesar de os ter alegado no seu articulado inicial, a verdade é que dos mesmos não produziu qualquer prova clara e inequívoca que pudesse conduzir a tal decisão, tendo a Apelante, impugnado em sede de contestação documento junto pelo Autor com a petição inicial em língua estrangeira (Doc. 3). Além de que, o Autor não cumpriu a sua obrigação de o traduzir para a língua portuguesa, nem o mesmo está assinado e carimbado pela suposta entidade que eventualmente o emitiu; (…)»

5- Ouseja,a Recorrentepretendendo a alteração da matéria defacto provada,atacou-a apenas e exclusivamente por via da prova documental, sem atacar a prova testemunhal produzida, nem as declarações de parte do Autor.

6- Não obstante, o Tribunal recorrido decidiu alterar a factualidade dada como provada, mormente, dar como não provados os factos 43) e 44), admitindo que, a versão da testemunha CC, indicada pelo Tribunal a quo, também afirmada pelo Autor nas suas declarações, apresentava uma evidente aporia.

7- Ou seja, a apreciação do Tribunal da Relação, tinha de se cingir às alegações e considerandos da Recorrente que tivessem por objeto a matéria de facto constante do próprio texto da sentença recorrida e não a que resultasse da prova produzida em audiência de julgamento, porquanto não tinha de a reapreciar, nem tão pouco de a ter em consideração, na medida em que a Recorrente, não indicou nas conclusões da sua motivação de recurso as concretas passagens/excertos/segmentos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigavam à alteração da matéria de facto e, como tal, não havia cumprido os requisitos impostos pelo disposto no art. 640º do CPC.

8 – Aliás, a prova documental que o Tribunal a quo considerou e que a Recorrente atacou, não mereceu qualquer juízo de censura por parte do Tribunal recorrido, que reiterou a posição da 1ª instância quanto à apreciação da referida prova.

9- Assim, consideramos que, o douto acórdão recorrido ao decidir como decidiu, pronuncia-se em excesso em relação ao objeto do recurso, infringindo a delimitação imposta pelo princípio do dispositivo (art. 608.º, n.º 2 do CPC) à atividade jurisdicional, que na sua decisão teria de circunscrever-se ao objeto do recurso.

10- Pelo que, deve ser julgada procedente a invocada nulidade da sentença recorrida com fundamento em excesso de pronúncia quanto à alteração da matéria de facto dos pontos 43) e 44).

11- Mantendo-se inalterada a factualidade dos pontos 43) e 44) da matéria de facto provada, como entendemos que deverá ser, forçosamente o Acórdão recorrido tem de ser revogado, devendo a Ré ser condenada a pagar ao Autor a quantia de € 7.119,90, a título de indemnização por perdas salariais.

ii. Da indemnização pelo dano patrimonial futuro:

12- O Recorrente insurge-se contra a decisão do Tribunal recorrido que, reduziu a indemnização pelo dano patrimonial future de 215.000,00€, para 45.000,00€;

13- A indemnização do chamado dano biológico, com incidência patrimonial, tem como base e fundamento a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.

14- Não devea indemnização detaldano sercalculada com baseem tabelas financeiras, na medida em que o sobredito défice funcional genérico não implica incapacidade parcial permanente para o exercício dessa atividade, envolvendo apenas esforços suplementares. Assim como não deve ser fixada com recurso às tabelas estabelecidas para efeitos de apresentação aos lesados de proposta razoável de indemnização, nos termos do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08, por estas se destinarem a ser aplicadas na esfera extrajudicial.

15- O ajuizamento no cálculo da dita indemnização, à semelhança do que sucede na quantificação dos danos não patrimoniais/morais, deve fundar-se, em último e decisivo termo, em critérios de equidade e sem dissociação de entendimentos jurisprudenciais minimamente uniformizados.

16- A jurisprudência tem-se orientado para considerar que a indemnização pelos danos patrimoniais futuros deve ser fixada segundo critérios de equidade nos termos do art. 566º, nº3 CC, em função dos seguintes fatores: idade do lesado, tempo provável de vida ativa, esperança média de vida, grau de incapacidade geral permanente e salário auferido.

17- Como tem vindo a salientar a jurisprudência do STJ, finda a vida ativa do lesado por incapacidade permanente, não é razoável ficcionar que a vida física desaparece nesse momento ou com elas todas as necessidades, é que atingida a idade da reforma, isso não significa que a pessoa não continue a trabalhar ou simplesmente a viver ainda por muitos anos, como, aliás, é das regras da experiência comum (cfr. a titulo de exemplo os Acs. do STJ de 16/3/99, C.J. ano VII, tomo I, pág.167, de 25/7/2002, C.J. ano X, tomo II, pág.128 ).

18- Nos últimos tempos a jurisprudência do Supremo, face às recentes alterações legislativas, tem-se afastado dos 65 anos e aproximado dos 70 anos), sendo que, a esperança média de vida (segundo os últimos dados do INE é de 77 anos para os homens e 83 para as mulheres).

19- Quanto ao salário, pese embora o Autor na data do acidente estivesse desempregado, não menos certo é que, em Maio de 2021 passou a auferir o vencimento mensal de 4.290,73 francos suíços, pelo que, deve ser esse o montante a considerar como correspondente às suas potencialidades de ganho naquela data, servindo de base para o cálculo da indemnização, pois que esta deve atender às oportunidades profissionais adequadas às qualificações e competências do lesado (Ac. do STJ de 29.10.2019, proc. 683/11.6T8PDL.L1.S2).

20- Aliás, no Acórdão do STJ, de 13.04.2021, do relator Fernando Baptista, questionou-se qual o vencimento a ter em conta: se o da data do acidente, se o existente à data da sentença, tendo concluído que, estando em causa a capacidade de ganho, devia ser considerado o montante mais elevado, por ser esse que melhor permite aferir a potencialidade de ganho do lesado, que não deve ser prejudicado por no momento do acidente estar a auferir um rendimento menor, ou até se encontrar desempregado.

21- Como factualidade relevante para a determinação do quantum indemnizatório, atente-se na seguinte (que também foi a relevante para o Tribunal recorrido): a) idade do Autor à data do acidente (27 anos), uma vez que nasceu em ........1992 e o acidente ocorreu em 13.03.2020; b) a esperança média de vida para a população masculina, em 2020, era de 70,4 anos; c) foi fixado ao Autor uma IPG de 7 pontos; d) o Autor estava desempregado; e) retomou, entretanto, atividade laboral, auferindo um salário mensal de 4.290,73 CHF, evidenciando a sua capacidade de obter ganhos através da prestação de trabalho; f) essa atividade, exercida no setor do transporte de mercadorias, exige esforços físicos; e g) o infortúnio do recorrido foi causado unicamente pela conduta ilícita e culposa da condutora do veículo segurado na Ré;

22- Conforme se referiu no acórdão recorrido, essa redução ter-se-á ficado a dever ao facto de se procurar harmonizar e/ou uniformizar as compensações pelo dano patrimonial sofrido, tese com a qual não podemos concordar;

23- Com o devido respeito, jamais se poderá considerar as decisões jurisprudenciais exemplificativas de que o Acórdão recorrido se socorreu, quando na verdade, ponderados os factos dados como provados e os critérios de equidade de que o Tribunal recorrido se deve prevalecer (e como se prevaleceu), se mostram equidistantes com o caso dos presentes autos.

24- Desde logo, basta atentar ao salário auferido pelo Autor, que é gritantemente superior a todos os exemplos em que o Acórdão recorrido se sustentou e, como tal nunca podem ser vistos como “casos semelhantes”, por muito que a IPG e a esperança média de vida se aproximem do caso concreto (que diga-se em abono da verdade, em muitos deles, nem isso se verifica).

25- Feito este breve excurso, compreende-se que o eventual recurso às chamadas tabelas financeiras seja um ponto de partida, um referencial, e não um ponto de chegada, como parece ter sido o entendimento do Tribunal recorrido, face ao valor fixado.

26- De todo o modo, o recorrente não se resigna com esta forma de cálculo, nem pode, de forma nenhuma, conformar-se com o acórdão recorrido, por várias ordens de razão, uma vez que não se valorou: a) a incapacidade definitiva de exercício da profissão que passou a desempenhar, numa argumentação que nos remete para a perda de oportunidade profissional; b) a impossibilidade consequencial de progressão até ao topo nessa carreira, com a ablação dos correspondentes índices remuneratórios que acompanhariam essa progressão.

27- E, pese embora se repudie a utilização de critérios mais positivistas, baseado em

equações e fórmulas matemáticas, ainda assim, o julgador pode/deve recorrer a tabelas ou fórmulas quantitativas, mais ou menos sofisticadas.

28-Sendo usual o recurso à fórmula matemática constante do Ac. STJ de 05/05/1994

(CJ, ano II, 2.º, pág. 87 e segs.), ajustada nos termos referidos no Ac. Rel. Coimbra de 04/04/1995 (CJ, ano XX, 2.º, pág. 23 e segs.), a qual acompanhamos na íntegra.

29- Assim – ponderando que o Autor apresenta incapacidade permanente geral de 7 pontos, a qual, embora não sendo impeditiva da execução do seu trabalho habitual, implica, porém, esforços suplementares, sendo ainda de salientar que nasceu em ........1992, pelo que tinha apenas 27 de idade quando ocorreu o acidente, com uma vida ativa pela frente muito longa, atenta a esperança de vida média (que é de 77 anos para os homens, segundo informação obtida no INE) e que, embora auferindo à data do acidente estivesse desempregado, retomou a atividade laboral, auferindo um salário mensal de 4.290,73 CHF, devendo ser este o valor a considerar e não o salário mínimo, por ser o montante mais elevado, não se nos afigura descabida, antes pelo contrário, perante os montantes que vêm sendo atribuídos pela Jurisprudência do Supremo Tribunal, o valor ali fixado até se caracteriza pela parcimónia.

30- Daí que se diga, sem receio mas com o devido respeito, que o acórdão recorrido é tudo menos equitativo, justo ou sequer equilibrado.

31- Por isso, a menos que se pretenda viver ad eternum num miserabilismo que julgávamos já afastado dos nossos Tribunais, a quantia que foi arbitrada em 1ª Instância de215.000,00 €parece-nos, com o devidorespeito, maisconsentânea com o grave, penoso e permanente dano não patrimonial sofrido pelo recorrente e com o qual este vai ter de viver até ao fim dos seus dias.

32- Se assim não se entender, o que não se concebe nem concede e apenas se admite por mera hipótese académica, deve o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, fixar outra quantia que considere adequada e justa face às circunstâncias do caso concreto, mas nunca o valor irrisório de 45.000,00€.

Termos em que e nos mais de direito aplicáveis deve ser dado provimento ao presente recurso de revista, revogando-se o acórdão sindicando, e substituindo-o por outro que julgue procedente por provada a nulidade com fundamento em excesso de pronúncia quanto à alteração da matéria de factos dos pontos 43) e 44), devendo o Réu ser condenado a pagar a quantia de 7.119,90€ a título de indemnização por perdas salariais, e ainda que, condene o Réu a pagar ao Autor a título de dano patrimonial futuro, a quantia de 215.000,00€, ou se assim não se entender, fixar outra quantia que considere adequada e justa face às circunstâncias do caso concreto, mas nunca o valor irrisório de 45.000,00€.

Contra-alegou a Ré, pugnado pela improcedência do recurso de revista e manutenção do acórdão recorrido.

II – FACTOS PROVADOS.

Encontra-se provados nos autos que:

1- No dia 13 de Março de 2020, cerca das 15h35m, na Rua ..., na cidade de ..., o Autor conduzia um motociclo, de matrícula VD ......

2- E BB, NIF ...55, residente na Travessa ..., da freguesia e concelho de ..., conduzia o veículo de matrícula ..-NA-.., propriedade da empresa “L..., Lda.”.

3- Na data e local referidos em 1, ambos os veículos circulavam no sentido Fe...- F....

4- Circulando o motociclo de matrícula VD ..... atrás do veículo de matrícula ..-NA-...

5- Porque seguia a velocidade superior à do veículo de matrícula ..-NA-.., o Autor preparou-se para proceder a uma manobra de ultrapassagem.

6- Sucede que, após iniciar a aludida manobra de ultrapassagem, o Autor foi surpreendido com um corte à esquerda efetuado pelo veículo de matrícula ..-NA-...

7- Sem que, para o efeito, fosse acionado o dispositivo do veículo automóvel de matrícula ..-NA-.. que serve para assinalar mudança de direção à esquerda.

8- Além disso, o veículo de matrícula ..-NA-.. não se aproximou do eixo da via, invadindo a hemi-faixa em que circulava o ciclomotor do Autor quando este se encontrava a efetuar a manobra de ultrapassagem.

9- A condutora do veículo de matrícula ..-NA-.. circulava distraída do trânsito.

10- Porquanto não olhou para a sua retaguarda, a verificar se não era ultrapassada por qualquer veículo.

11- Nem tampouco acionou o “pisca-pisca”, assinalando a sua intenção de mudar de direcção para a esquerda.

12- O veículo de matrícula ..-NA-.. acabou por embater no motociclo conduzido pelo Autor.

13- Tendo este último sofrido uma queda no asfalto com projeção, da qual resultaram diversos traumatismos a nível corporal, não obstante o uso do capacete.

14- Por contrato titulado pela apólice n.º ...91 foi transferida para Ré a cobertura dos danos causados a terceiros e decorrentes da circulação do veículo com a matrícula ..-NA-...

15- A condutora do veículo com a matrícula ..-NA-.. fazia a condução por conta, sob as ordens, direção e no proveito da proprietária “L..., Lda.”.

16- A responsabilidade pelo acidente foi assumida na sua totalidade pela Ré.

17- A Ré procedeu ao pagamento dos danos causados ao motociclo propriedade do Autor e, bem assim, ao pagamento das perdas salariais, tendo em conta que o mesmo à data estava a auferir um subsídio de desemprego no montante de € 2.594,00.

18- E formulou proposta de resolução de sinistro, que foi recusada.

19- Em consequência do acidente, o Autor sofreu:

- Escoriação no lábio superior;

- Fractura da omoplata esquerda na base da glenoide e extremidade do acrómio;

- Fractura na cabeça do úmero direito;

- Fractura da diáfise do fémur esquerdo, para tratamento cirúrgico.

- Fractura no 4.°, 5.°, 6.° e 7.° arcos costais esquerdos;

- Enfisema subcutâneo da parede torácica homolateral, assim como área contusional do parênquima pulmonar no segmento posterior da língula e lobo inferior esquerdo;

- Pneumotórax de pequeno volume homolateral, e apenas vestigial anterior paramediastínico no lobo superior direito assim como hemotórax esquerdo de pequeno volume;

- No pulmão direito, discreta densificação subpleural basal;

- Traumatismo abdominal, com laceração esplénica, associada a hematoma subcapsular de pequeno volume;

- Hemoperitoneu de pequeno volume no fundo de saco posterior com 2 cm de espessura;

- Densificação e empastamento das partes moles da raiz da coxa esquerda de natureza contusional.

20- Pelo que foi transportado de imediato para o serviço de urgência do Hospital..., em ..., onde recuperou consciência, foi assistido e ficou hospitalizado, tendo-lhe sido removida a imobilização por colar cervical.

21- Lá foi operado ao fémur esquerdo, com fixação interna por cavilha endomedular, um parafuso proximal dinâmico e dois distais estáticos estabilizadores da instabilidade rotatória fracturária.

22- Tendo ainda sido operado ao ombro – úmero direito – com osteossíntese, bem como sujeito a vários tratamentos médicos.

23- O Autor ficou internado no referido hospital durante 14 dias.

24- Tendo saído no período de contingência nacional porque assinou termo de responsabilidade.

25- O Autor regressou a casa sem estar totalmente curado, tendo de prosseguir com os tratamentos médicos e medicamentos.

26- O Autor foi submetido a várias cirurgias ortopédicas.

27- Bem como a diversos tratamentos de fisioterapia.

28- A data de consolidação médico-legal das lesões corresponde a 11.01.2021.

29- Em consequência das lesões, como sequelas de carácter permanente, advieram ao Autor:

- Tórax: dor à palpação e compressão ântero-posterior e lateral do terço médio do hemitórax esquerdo;

- Membro superior direito: três cicatrizes nacaradas, dispersas pelas faces anterior lateral e superior do ombro, cada uma medindo cerca de 1 cm de comprimento; subjetivos dolorosos ligeiros ao limite da antepulsão;

- Membro inferior esquerdo: três cicatrizes lineares e nacaradas, na face lateral da coxa, a maior no terço proximal, medindo 5 cm de comprimento, e as outras duas no terço distal, medindo 1 cm de comprimento cada; subjetivos dolorosos à palpação do terço proximal e distal da face lateral da coxa – regiões na vizinhança das cicatrizes descritas –, que o Autor relaciona com a presença de material cirúrgico.

30- Sequelas que acarretam, para o Autor, um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 7 pontos, compatível com o exercício da actividade profissional habitual, mas que implica esforços suplementares.

31- O Autor poderá vir a necessitar de nova intervenção cirúrgica no membro inferior esquerdo, para extracção do material de osteossíntese do fémur.

32- As lesões sofridas provocaram-lhe um défice funcional temporário total de 22 dias, quer em regime hospitalar, quer no seu domicílio, neste último em virtude de conselho do médico

33- E um quantum doloris de grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

34- As sequelas de que ficou a padecer definitivamente provocaram-lhe um dano estético permanente de grau 2, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

35- O Autor, antes do acidente, efetuava corrida (“jogging”) e jogava futebol com amigos, atividades que agora não consegue empreender.

36- O Autor deixou de dar passeios mais longos de mota aos fins-de-semana, por ter medo de novos acidentes.

37- As sequelas de que ficou a padecer definitivamente têm uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

38- As lesões sofridas provocaram-lhe dores físicas, tanto no momento do acidente, como no decurso do moroso tratamento.

39- E as sequelas de que ficou a padecer definitivamente continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodo e mal-estar, que o vão acompanhar durante toda a vida

40- A Ré, até Novembro de 2020, pagou ao Autor o montante mensal de € 2.594,00, correspondente ao subsídio de desemprego que este auferia.

41- E efetuou também a compensação dos prejuízos existentes no ciclomotor do Autor, advenientes do acidente.

NP 42- O Autor encontrava-se, à data do acidente e desde 31.12.2019, em situação de desemprego.

NP 43- O Autor iria começar a trabalhar em Junho de 2020, porquanto já havia acordado com a empresa “T..., S.A.”, ..., a celebração de um contrato de trabalho.

44- No entanto, tal não se concretizou em face do acidente.

45- O Autor apenas iniciou a atividade laboral em Maio de 2021, com a aludida empresa “T..., S.A.”, auferindo um salário no montante mensal de 4.290,73 francos suíços.

46- O Autor nasceu em ... de ... de 1992, tendo 27 anos de idade à data do acidente.

47- Era saudável, fisicamente bem constituído, dinâmico, alegre, trabalhador, social e sociável.

48- As lesões que sofreu no acidente dos autos e as sequelas que delas decorreram alteraram a sua vida pessoal e social.

49- Deixou de jogar futebol com o seu habitual grupo de amigos.

50- O que provocou um maior desfasamento social, não obstante os convites que ia recebendo para participar.

51- Deixou igualmente de praticar “jogging”, uma forma de corrida, que exercia regularmente.

52- Situação esta que lhe causa desgosto e amargura.

53- As referidas actividades lúdicas e de lazer representavam para o Autor um espaço de realização e gratificação pessoal.

54- Após o acidente, o Autor já não empreende as aludidas atividades, por temer que com elas possa agravar as lesões advenientes do sinistro, atrasando o seu processo de recuperação.

55- Bem como receia que esses potencias retrocessos se repercutam no trabalho que agora exerce, afetando o normal desempenho da sua atividade profissional.

56- O Autor sente tristeza por ter deixado de realizar passeios mais longos de mota aos fins-de-semana.

57- O Autor teve um susto e sentiu medo, para além de angústia ante a perspetiva de se ver irreversivelmente incapacitado para exercer toda e qualquer atividade.

58- Durante 283 dias o Autor sofreu limitações na sua autonomia individual e nas tarefas a desempenhar no seu domicílio, por múltipla limitação funcional dos membros superiores e inferior esquerdo, com deslocação em cadeira de rodas e, mais tarde, uma canadiana.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

I – Alegada nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), in fine, do Código de Processo Civil, quanto à alteração pelo Tribunal da Relação dos pontos 43) e 44) dados como provados em 1ª instância.

II – Indemnização pelo dano patrimonial futuro. Dano biológico.

Passemos à sua análise:

I – Alegada nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), in fine, do Código de Processo Civil, quanto à alteração pelo Tribunal da Relação dos pontos 43) e 44) dados como provados em 1ª instância.

Na sentença foram dados como provados os seguintes factos:

“43 – O Autor iria começar a trabalhar em Junho de 2020, porquanto já havia acordado com a empresa “T..., S.A.”, ..., a celebração de um contrato de trabalho.

44 - No entanto, tal não se concretizou em face do acidente”.

Tais factos foram objecto da impugnação de facto apresentada por parte da Ré seguradora, alegando que não se produziu prova clara e inequívoca que pudesse conduzir a tal conclusão.

Invocou ainda que o documento apresentado pelo A. a este propósito não se encontra traduzido, nem assinado e carimbado pela suposta entidade que eventualmente o emitiu.

Em suma, a Ré referiu concretamente que o A. não demonstrou tal factualidade, não servindo tal desiderato um mero e singelo escrito não assinado.

A este respeito, escreveu-se no acórdão recorrido:

“Pontos 43, 44 e 45: 43- O Autor iria começar a trabalhar em junho de 2020, porquanto já havia acordado com a empresa “T..., S.A.”, ..., a celebração de um contrato de trabalho; 44- No entanto, tal não se concretizou em face do acidente; 45- O Autor apenas iniciou a atividade laboral em maio de 2021, com a aludida empresa “T..., S.A.”, auferindo um salário no montante mensal de 4.290,73 francos suíços.

O Tribunal a quo considerou, quanto aos enunciados acabados de transcrever, o testemunho de CC, “conjugado com as declarações de parte do Autor e com o documento junto com a petição inicial, correspondente à pág. 8 do 1.º ficheiro intitulado “outro”, especificando que “se trata de matéria que é do conhecimento direto da referida testemunha e que esta relatou em termos coerentes com a aludida prova documental.”

Na tese da Recorrente, não foi produzida qualquer “prova clara e inequívoca” que pudesse conduzir à decisão de considerar os enunciados em questão como provados, “[t]anto mais que a Recorrente/Apelante, impugnou em sede de contestação o documento junto pelo Autor com a petição inicial em língua estrangeira”, “[o] qual deveria antes de mais estar traduzido para língua portuguesa (…)”, “[n]ão se encontrando sequer assinado e carimbado pela suposta entidade que eventualmente o emitiu.”

Na tese do Recorrido, a prova dos factos em questão resulta do referido documento, conjugado com as declarações orais prestadas pelo Recorrido na audiência final e com o depoimento da testemunha CC.

Apreciando.

Estão aqui em causa duas afirmações: a de que o Recorrido iria começar a trabalhar em junho de 2020, o que não aconteceu por causa do acidente; e a de que o Recorrido, desde que começou a trabalhar, em maio de 2021, passou a auferir um salário mensal de 4 290,73 francos suíços.

Sobre primeira afirmação não foi apresentada qualquer prova documental (v.g., um contrato de trabalho escrito; um email com a oferta de trabalho, etc.). O documento referido pelo Tribunal a quo, genericamente a propósito do conjunto factual, consiste, como veremos, num recibo de vencimento emitido em nome do Recorrido e datado de 4 de junho de 2021.

A testemunha indicada pelo Tribunal a quo (CC), administrativa na empresa T..., S.A., disse que esta (ou quem a representa) tinha contratado o Recorrido, em data anterior ao acidente, para prestar a sua atividade laboral, com início em junho de 2020, mediante o pagamento de um salário de 4400 CHF, projeto que teve de ser adiado para o princípio de 2021, por causa do acidente.

Esta versão, também afirmada pelo Recorrido nas suas declarações, apresenta uma evidente aporia a que nem a testemunha, nem o Recorrido, conseguiram pôr termo: admitindo-se que o Recorrido não iniciou a atividade laboral em junho de 2020, conforme estava previsto, “por causa do acidente” – ou, com mais propriedade, por as lesões sofridas serem impeditivas da prestação de trabalho –, não se compreende a razão por que não o fez logo que teve alta clínica e foi considerado apto para o trabalho habitual (em 11 de janeiro de 2021, conforme resulta do facto provado 21 e vem mencionado nos relatórios das duas perícias), mas apenas em maio de 2021. A aporia torna-se ainda mais flagrante quando se atenta que: a testemunha também afirmou que o Recorrido trabalhara para a T..., S.A. até meados de 2019, tendo deixado de o fazer por esta não ter então serviço que justificasse o seu posto de trabalho; e que o hiato compreendido entre o acidente e o início da atividade laboral do Recorrido (maio de 2021) coincidiu com os períodos de maior incidência do vírus SARS-Cov2 e da doença COVID-19, que estiveram na génese do confinamento generalizado, tanto em Portugal como na Suíça, o que necessariamente teve implicações na atividade da T..., S.A., empresa de transportes que tinha como core business, segundo a testemunha, o transporte e montagem de mobiliário ao domicílio (atividade para a qual o Recorrido acabou por ser contratado).

Deste modo, com apelo ao que escrevemos sobre o standard probatório a observar, afigura-se-nos que a prova produzida não permite suportar uma convicção positiva quanto àquela primeira afirmação, pelo que, quanto a ela, a impugnação é procedente, passando os enunciados dos pontos 43 e 44 para o rol dos factos não provados e eliminando-se, da redação do enunciado do ponto 45, o advérbio apenas.

Quanto à segunda afirmação, está em causa o documento “Fiche de salaire 2021”, datado de 4 de junho de 2021 e redigido em francês. Nele estão identificados, como entidade patronal, T..., S.A. e, como trabalhador, o Recorrido. Não contém qualquer assinatura, seja manuscrita, seja digital. Em termos de conteúdo, menciona o “salaire brut” (4150,00 CHF). O “13ème” (345,83 CHF) e, de forma discriminada, as deduções, no total de 532,52 CHF.

O documento foi apresentado pelo Recorrido com a petição inicial. Na contestação, a Recorrente impugnou genericamente o seu teor.

Da conjugação do disposto nos arts. 133/1 e 134/1 do CPC resulta que a aplicação da língua portuguesa vale para os atos processuais, mas não para os documentos apresentados pelas partes. Quanto a estes, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de qualquer parte, pode ordenar a tradução do documento redigido em língua estrangeira, mas apenas quando essa tradução seja necessária para a sua leitura e compreensão.

A exigência da tradução dependerá da familiaridade do tribunal e das partes com a língua do documento. Assim, documentos em língua galega ou castelhana dificilmente carecerão de tradução para português. Documentos em língua francesa, italiana ou inglesa poderão carecer ou não carecer de tradução. Documentos noutras línguas carecerão, em princípio, de tradução. A necessidade da tradução também poderá decorrer da complexidade ou da especialidade da matéria a que o documento se refere, de molde a não haver nenhuma dúvida sobre o seu conteúdo. O juízo dependerá sempre do prudente arbítrio do julgador.

No caso, como dissemos, está em causa um documento redigido em língua francesa. O Tribunal não determinou ex officio a tradução, por ter compreendido o respetivo teor, juízo que, diga-se, se afigura como correto. Afinal, estamos perante um mero recibo de vencimento redigido numa língua que, como a portuguesa, teve origem no latim.

A Recorrente, confrontada com a apresentação do documento, não pediu a sua tradução; limitou-se a impugnar o respetivo teor, sinal de que o apreendeu, pelo que os termos em que deduz a sua impugnação nesta sede de recurso configuram, quanto a este aspeto, um venire contra factum proprium, tornando, assim, ilegítima a sua pretensão.

Por outro lado, é indiscutível que a assinatura é elemento constitutivo dos documentos particulares enquanto obra humana que são (art. 373/1 do Código Civil), por ela se estabelecendo a respetiva autoria. A ausência de tal elemento não preclude, no entanto, a possibilidade de a autoria ser estabelecida por outros meios e, consequentemente, o relevo probatório do documento fica sempre sujeito à livre apreciação do julgador, como proclama o art. 366 do Código Civil.

Ora, foi precisamente isto que considerou o Tribunal a quo: conjugou o documento com outros meios de prova e, na ponderação, formou a sua convicção. Mais concretamente, atentou, desde logo, ao testemunho da referida CC, que confirmou que o Recorrido iniciou a sua atividade laboral por conta da T..., S.A. em maio de 2021, mediante o pagamento de um salário de 4400 CHF. E atentou, também, às declarações orais do Recorrido que confirmou este mesmo facto.

Tudo conjugado, não surgindo aqui qualquer aporia suscetível de inquinar o conjunto desta prova, entendemos que a decisão recorrida não merece censura quanto a esta segunda afirmação”.

Apreciando:

Estando em causa a impugnação dos factos dados como provados nos pontos 43) e 44), o Tribunal da Relação de Guimarães limitou-se a extrair, como lhe competia, o seu próprio juízo probatório autónomo relativamente a essa factualidade, desenvolvendo minuciosamente, de forma séria, objectiva e particularmente completa o seu raciocínio, analisando todos os meios de prova relevantes para o efeito e concluindo pela ausência de prova bastante e convincente.

Não se vê como dessa forma possa ter sido qualquer nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), in fine, do Código de Processo Civil.

Tudo se reconduz à discordância de fundo do ora recorrente quanto ao veredicto em matéria de facto emitido, com total clareza e completude, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, o qual é aliás definitivo em sede de apreciação dos factos provados e não provados, na sequência da impugnação que a este respeito lhe foi apresentada no recurso de apelação.

Trata-se, de resto, de uma comum reapreciação de matéria de facto que teve lugar com o âmbito e alcance que deveria ter e que, por isso mesmo, não sendo sequer sindicável não poderá merecer o menor reparo.

Improcede, por conseguinte, a apelação neste tocante.

II – Indemnização pelo dano patrimonial futuro. Dano biológico.

Na sentença de 1ª instância foram fixados os seguintes montantes indemnizatórios:

- A título de perda de rendimentos - € 7.119.90 (sete mil cento e dezanove euros e noventa cêntimos);

- A título de danos futuros correspondente a perda da capacidade de ganho (dano biológico) - € 215.000,00 (duzentos e quinze mil euros);

- A título de danos não patrimoniais - € 20.000,00 (vinte mil euros);

- e ainda os juros de mora que se vencerem sobre tais quantias contados a partir da data da sentença.

Tudo perfazendo o total indemnizatório global de € 242.119,90 (duzentos e quarenta e dois mil euros e noventa cêntimos) acrescidos de juros nos termos supra expostos.

Interposto recurso de apelação por parte da Ré seguradora, foi impugnada a fixação da verba de € 7.119.90 (sete mil cento e dezanove euros e noventa cêntimos), concedida a título de perda de rendimentos, com fundamento em que o A., aquando do acidente já se encontrava há muito na situação de desemprego; a fixação de € 215.000,00 (duzentos e quinze mil euros) atribuída a título de perda da capacidade de ganho (dano biológico), invocando que o sinistrado ficou apenas a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 7 (sete) pontos (em 100), sendo as sequelas compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual; a fixação, a título de danos não patrimoniais, do montante de € 20.000,00 (vinte mil euros), por se reputar excessiva tal quantificação.

O acórdão recorrido, apreciando a apelação, decidiu nos seguintes termos:

- revogou a sentença quanto à condenação da Ré no pagamento da quantia de € 7.119.90 (sete mil cento e dezanove euros e noventa cêntimos), concedida a título de perda de rendimentos, em virtude de ter passado a considerar como não provados os factos em que assentava essa pretensão (em concreto os supra referidos pontos 43º e 44º da decisão de facto).

- alterou a sentença quanto à condenação da Ré a pagar a quantia de € 215.000,00 (duzentos e quinze mil euros) atribuída a título de perda da capacidade de ganho (dano biológico), para € 45.000,00, avocando para o efeito os critérios e as orientações jurisprudenciais a que fez desenvolvida referência no acórdão.

- manteve a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais.

Interposto recurso de revista por parte do A. está agora em causa a apreciação das seguintes questões jurídicas:

Dano biológico. Natureza e alcance do conceito. Aplicação ao caso concreto. Padrões jurisprudenciais.

A figura do dano biológico tem sido alvo de inúmeras e vastíssimas abordagens na jurisprudência nacional, encontrando-se actualmente perfeitamente consolidados o seu o conceito, natureza e âmbito de abrangência.

Escreveu-se, a este propósito, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 2016 (relator Lopes do Rego), proferido no processo nº 175/05.2TBPSR.E2.S1, publicado in www.dgsi.pt:

“A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a relevante e substancial restrição às possibilidades exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar: na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável - e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, - erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais; e sendo naturalmente tais restrições e limitações particularmente relevantes em lesada com 18 anos de idade, ficando as perspectivas de evolução no campo profissional plausivelmente afectadas pelas irremediáveis sequelas, físicas das gravosas lesões corporais sofridas.

E, nesta perspectiva, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer a recorrente, bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional – considerando-se, em termos de equidade, que representará compensação adequada desse dano biológico o valor de € 15.000, que acrescerá assim ao montante de €85.000 arbitrado pelo acórdão recorrido”.

Ou seja, a limitação funcional em que se consubstancia o denominado dano biológico tem como fundamento a efectiva redução das capacidades físicas e psicológicas do sinistrado, constituindo grave lesão do direito fundamental do lesado à sua integridade física, da qual pode derivar, ou não, conforme os casos, a correspondente perda da capacidade de ganho.

(Sobre esta matéria, vide, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 2017 (relator Oliveira Vasconcelos), proferido no processo nº 1862/13.7TBGDM.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Setembro de 2019 (relatora Rosário Morgado), proferido no processo nº 2706/17.6T8BRG.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de 2021 (relator Abrantes Geraldes), proferido no processo nº 730/17.8T8PVZ.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021 (relatora Rosa Tching), proferido no processo nº 2545/18.7T8VNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2018 (relator Hélder Almeida), proferido no processo nº 3643/13.9TBSTB.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Março de 2013 (relator Salazar Casanova), proferido no processo nº 565/10.9TBPVL.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2011 (relator Gregório de Jesus), proferido no processo nº 7449/05.0TBVFR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2009 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 298/06.0TBSJM.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Setembro de 2011 (relator Vieira Cunha), proferido no processo nº 26422/18.2T8LSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 2023 (relator António Barateiro Martins), proferido no processo nº 5986/18.6T8LRS.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Dezembro de 2022 (relator Aguiar Pereira), proferido no processo nº 2517/16.6T8AVR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2022 (relator António Magalhães), proferido no processo nº 9957/19.7T8VNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Maio de 2019 (relator Oliveira Abreu), proferido no processo nº 1046/15.0T8PNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2022 (relatora Maria da Graça Trigo), proferido no processo nº 1082/19.7T8SNT.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt).

Importa, ainda, a este propósito aludir ao teor do recente acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, datado de 17 de Janeiro de 2023, em que foi relator o Juiz Conselheiro António Barateiro Martins e adjunto o ora relator do presente acórdão.

Todas as considerações aí expendidas sobre esta matéria valem agora, de pleno, para a apreciação e decisão da situação sub judice.

Escreveu-se nesse aresto:

“(…) tendo a lesada ficado afetada “apenas” com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, sendo as lesões sofridas e as sequelas que apresenta compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicando esforços suplementares, não há lugar à atribuição de indemnização a título de danos patrimoniais futuro mas tão só à atribuição de indemnização a título de dano biológico.

Trata-se de posição/entendimento que, num contexto recursivo semelhante, já expusemos no Acórdão deste STJ de 30/11/2021 (proferido no processo 1544/16.8T8ALM.L1.S1, em que, inter alia, referimos o seguinte:

“(…)

E o primeiro tema a dilucidar tem a ver com a circunstância da A. pretender ao longo de todo o processo – quer na PI, quer na apelação, quer agora na revista – que lhe seja concedido um montante indemnizatório a título de perda futura de capacidade de ganho e um outro montante indemnizatório a título de dano biológico, quando o Acórdão recorrido apenas lhe concedeu um montante indemnizatório a título de indemnização por dano biológico.

Hoje – antes mesmo do preambulo da Portaria 377/2008, de 26-05, vir falar em “dano biológico”– fala-se em “dano biológico” para aludir à lesão causada ao corpo e à saúde do lesado, à lesão causada à integridade física e psíquica que a todos assiste; e reconhece-se que o dano causado por tal lesão merece ser reparado independentemente de repercussões sobre a sua capacidade de ganho.

Acrescentando-se, em abono de tal tese, que o homem, na sua integridade psico-somática, desenvolve a sua existência terrena na sua vida e realização profissionais e na sua vida relacional – relacionando-se e interagindo com os demais seres humanos – pelo que pode haver dano corporal, nesta faceta da sua vida relacional, tenha ou não havido qualquer rebate anátomo-funcional.

Porém, também se refere e avisa, que há que evitar “super-equações” de danos (com indemnizações em duplicado ou em triplicado), importando não esquecer “que há zonas de tangência e até de intersecção entre vetores diferenciados e autonomizados duma mesma realidade”.

Tradicionalmente, a análise dualista – patrimonial / não patrimonial – sempre abarcou todo o campo da discussão que os danos corporais comportavam, situando-se toda a discussão em volta da parametrização ressarcitória de tal tipo de danos e da autonomização de um ou outro parâmetro de avaliação, sempre inserido num dos termos da referida dualidade; e, agora, ainda que se erija em categoria autónoma de dano o que (dano biológico), antes, não passava dum parâmetro de avaliação doutro dano, importa que avaliação global não dê lugar a duplicações.

Daí que, após um momento inicial – em que alguns chegaram a admitir que o “dano biológico” seria um “tertium genus”, com um lugar próprio que não caberia no clássico dualismo patrimonial/não patrimonial – se tenha passado a entender que o mesmo (autónomo ou não) cabe em tal dualismo, sem prejuízo de poder ter uma vertente patrimonial e uma vertente não patrimonial, sendo que, quando está em causa e se pretende indemnizar o dano causado por uma incapacidade permanente geral (que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão, mas que não se repercute numa perda da capacidade de ganho), se está perante a vertente patrimonial do “dano biológico (…)”.

Em síntese, a lesão do direito ao corpo e à saúde é, enquanto dano autónomo, fonte de obrigação de indemnização, a suportar pelo autor do facto ilícito e em benefício de quem viu a sua integridade corporal beliscada, independentemente de quaisquer consequências pecuniárias ou atuais repercussões patrimoniais de qualquer natureza, mas a sua avaliação tem que ser acompanhada duma correta delimitação de realidades e conceitos, para que não haja sobreposições. (…)”

E é justamente por isto – estando “apenas” provado (pontos 62 e 64) que a A. “está afetada de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14,8 pontos” e que “tais lesões e as sequelas que a A. apresenta são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares”, e não estando provada qualquer concreta perda da capacidade de ganho – que aquilo que a A./recorrente pretende ver indemnizado a título de perda futura de capacidade de ganho (agora, com a quantia de € 71.723,45€) só possa ser indemnizado, como foi, como dano biológico, na sua vertente patrimonial (como acertadamente foi considerado e decidido no acórdão recorrido.

Daí que tenhamos começado por dizer que a questão da indemnização pelo chamado dano patrimonial futuro (colocada pela A.) e a questão do montante da indemnização pelo chamado dano biológico (colocada pela R,) são dois aspetos e faces da mesma questão jurídica, uma vez que do que se trata é da correta e devida configuração jurídica dos danos sofridos pela A.: de indemnizar todos os danos que sejam de indemnizar, mas evitando “super-equações” de danos (com indemnizações em duplicado ou em triplicado).

Assim, como foi feito pelo entendimento que fez vencimento no Acórdão recorrido, do que se trata é de calcular/fixar o montante indemnizatório que há de reparar a IPG (também chamado de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica) de 14,8 pontos de que a A. ficou a padecer.

E temos, como único critério legal para a sua fixação – nunca é demais enfatizá-lo, para que não paire a menor dúvida – tão só a equidade (cfr. art. 566.º/3 do C. Civil).

O que não significa que em situações como a presente – isto é, sempre que se visa encontrar um capital que se vai diluir ao longo de vários anos – se rejeite a ajuda da lógica matemática; que não se usem, como auxiliar, como instrumento de trabalho, fórmulas matemáticas, que podem ter o mérito de impedir involuntárias discricionariedades e subjetivismos, na medida em que obrigando o julgador à externalização, passo a passo, do seu juízo decisório e a uma maior “densificação” da fundamentação da decisão, contribuem para impedir raciocínios mais ligeiros e/ou maquinais na fixação de indemnização”.

O que significa, desde logo, que haverá que destrinçar escrupulosamente se verificou ou não – e em que termos – perda da capacidade de ganho por parte do sinistrado afectado que, não obstante o evento lesivo sofrido, logrou prosseguir o desempenho da sua prestação laboral em actividade da mesma natureza daquela que antes desenvolvia.

Na situação sub judice, o julgamento da causa revelou o seguinte quadro factual:

O Autor nasceu em ... de ... de 1992, tendo 27 anos de idade à data do acidente.

Era saudável, fisicamente bem constituído, dinâmico, alegre, trabalhador, social e sociável.

As lesões que sofreu no acidente dos autos e as sequelas que delas decorreram alteraram a sua vida pessoal e social.

Deixou de jogar futebol com o seu habitual grupo de amigos.

O que provocou um maior desfasamento social, não obstante os convites que ia recebendo para participar.

Deixou igualmente de praticar “jogging”, uma forma de corrida, que exercia regularmente.

Situação esta que lhe causa desgosto e amargura.

As referidas actividades lúdicas e de lazer representavam para o Autor um espaço de realização e gratificação pessoal.

Após o acidente, o Autor já não empreende as aludidas actividades, por temer que com elas possa agravar as lesões advenientes do sinistro, atrasando o seu processo de recuperação.

Bem como receia que esses potencias retrocessos se repercutam no trabalho que agora exerce, afetando o normal desempenho da sua atividade profissional.

Durante 283 dias o Autor sofreu limitações na sua autonomia individual e nas tarefas a desempenhar no seu domicílio, por múltipla limitação funcional dos membros superiores e inferior esquerdo, com deslocação em cadeira de rodas e, mais tarde, uma canadiana.

Revertendo as considerações assinaladas supra para a situação sub judice, verifica-se que tendo ficado o A. afetado com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica (de 7 em 100), as lesões sofridas e as sequelas que apresenta são, todavia, compatíveis actualmente com o exercício da actividade profissional habitual, implicando, contudo, esforços suplementares.

Note-se que não se trata assim do apuramento de qualquer tipo de incapacidade parcial permanente, com a avocação das regras do direito laboral, inexistindo cabimento para as formulações matemáticas.

Do que se trata é da aplicação unicamente de juízos de equidade, nos termos gerais do artigo 566º, nº 3, do Código Civil, que permitiram calibrar um montante indemnizatório que abranja a menor potencialidade do acidentado no desempenho das funções laborais que, não obstante as lesões sofridas e respectivas sequelas, consegue desenvolver.

O sinistrado é deste modo compensado, no âmbito próprio do dano biológico, pelo esforço acrescido ou suplementar que implica agora o desempenho da sua actividade laboral, bem como pela perda da potencialidade futura para se alcandorar a um patamar superior de rentabilidade da sua actual prestação, com reflexo necessário na diminuição de nível remuneratório a que poderia, noutras circunstâncias e com razoável probabilidade, ascender.

Escreveu-se sobre a natureza do dano biológico no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2022 (relator Fernando Batista), proferido no processo nº 96/98.9T8PVZ.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt:

“Este dano vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais. É um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas. Determina perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado. Poderá exigir do lesado, esforços acrescidos, conduzindo-o a uma posição de inferioridade no mercado de trabalho. Ou, por outras palavras, é um dano que se traduz na diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre.

Ora, o dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral; tanto pode ter consequências patrimoniais como não patrimoniais. Ou seja, depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade. Tem a natureza de perda ‘in natura’ que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.

Como quer que seja visto ou classificado este dano, o certo é que o mesmo é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial. É indemnizável em si mesmo, independentemente de se verificarem consequências para o lesado em termos de diminuição de proventos.

(…) Com efeito, uma incapacidade permanente parcial não se esgota na incapacidade para o trabalho, constituindo em princípio um dano funcional, mas sempre, pelo menos, um dano em si mesmo que perturba a vida da relação e o bem-estar do lesado ao longo da vida. Pelo que é de considerar autonomamente esse dano, distinto do referido dano patrimonial, não se diluindo no dano não patrimonial, na vertente do tradicional pretium doloris ou do dano estético.

O lesado não pode ser objecto de uma visão redutora e economicista do homo faber. A incapacidade permanente (geral) de que está afectada a vítima constitui, nesta perspectiva, um dano em si mesmo, cingindo-se à sua dimensão anátomo-funcional.

A incapacidade permanente geral (IPG) corresponde a um estado deficitário de natureza anatómica-funcional ou psicosensorial, com carácter definitivo e com impacto nos gestos e movimentos próprios da vida corrente comuns a todas as pessoas. Pode ser valorada em diversos graus de percentagem, tendo como padrão máximo o índice 100. Esse défice funcional pode ter ou não reflexo directo na capacidade profissional originando uma concreta perda de capacidade de ganho”.

Perante a factualidade dada como demonstrada, consideramos que o valor total de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), a título de indemnização por dano biológico que importará ressarcir, está perfeitamente em linha com a quantificação de indemnizações a este título realizadas noutros acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça relativamente a situações similares ou equiparáveis, correspondendo, portanto, ao padrão estabelecido no órgão jurisdicional de cúpula do nosso ordenamento jurídico.

Tal quantificação representa efectivamente, em termos equilibrados e razoáveis, a compensação devida ao A. pelo défice funcional permanente que o obriga a desempenhar as suas funções com esforços suplementares e acrescidos, bem como pela perda de rentabilidade que não lhe permite, objectivamente, recuperar a capacidade para obter um nível remuneratório que estaria razoavelmente ao seu alcance, não fora as consequências negativas infligidas na pessoa do A. por força do sinistro que o vitimou.

Vide neste tocante:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Maio de 2017 (relatora Maria da Graça Trigo), proferido no processo nº 2028/12.9TBVCT.G1.S1, que quantificou o dano biológico em € 170.000,00 numa situação de afectação de défice funcional permanente muito mais grave que a sofrida pelo A. (29 pontos versus 15, sendo a idade do lesado relativamente aproximada (41 versus 45 anos), onde foi decidido que:

“Resultando da factualidade provada que o autor: (i) tinha 41 anos à data do acidente; (ii) ficou a padecer de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico Psíquica fixado em 29 pontos; (iii) exercia profissão (trolha na construção civil) que exige elevados níveis de força e destreza físicas, tendo as lesões sofridas determinado que: “O Autor ficou ainda com dificuldade de marcha, não consegue “acelerar” o passo, correr, agachar-se ou mesmo colocar-se de joelhos.”; “Ficou com dor no joelho direito, tal como na região lombar, tipo “moedeira”, permanente, agudizada com esforços de carga e marcha, que o obrigam a tomar diariamente analgésicos; ficou com a sensação de “perna pesada”.”; “Em consequência do acidente de viação, das lesões e respectivas sequelas, o A. ficou a padecer ao nível do membro inferior direito de limitação da flexão do joelho a 110º.”; “Todas as sequelas que o A. sofreu com o relatado acidente não só o acompanham até à data da sua reforma laboral, como o acompanharão até ao termo da sua vida activa.”, afigura-se justo e adequado fixar, a partir da data da consolidação médico-legal das lesões, em € 170.000 a indemnização por perda geral de ganho/dano biológico”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2018 (relator Hélder Almeida), proferido no processo nº 3643/13.9TBSTB.E1.S1, em que a lesada contava 29 anos de idade, tendo sofrido um défice funcional permanente, sem impossibilidade para o trabalho (embora sem lograr obter os rendimentos que, de outra forma, teria possibilidade de auferir), de 21.689 + 5 de danos futuros, onde se fixou a indemnização por dano biológico em € 90.000,00.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021 (relator Nuno Pinto de Oliveira), proferido no processo nº 644/12.8TBCTX.L1.S1, onde o lesado, que contava na altura do acidente 32 anos, apresentando um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 40 pontos, foi fixada indemnização, a título de dano biológico em € 500.00,00, sendo certo que se tratava de uma situação de afectação do lesado incomparavelmente mais grave que a tratada nos presentes autos.

(Desse mesmo aresto consta um importante apanhado jurisprudencial sobre a quantificação do dano biológico em diversas situações apreciadas no Supremo Tribunal de Justiça).

Mais recentemente, vide a apreciação jurisprudencial pelo Supremo Tribunal de Justiça nas seguintes situações:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Janeiro de 2025 (relator Fernando Baptista), proferido no processo nº 3062/22.6T8VCT.G1.S1, publicado in www.dgsi,pt, onde se concluiu:

Tendo o autor, à data do acidente, 19 anos de idade e tendo ficado afetado por um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 3 pontos, compatível com a atividade profissional habitual, mas implicando esforços suplementares, exercendo a atividade de carpinteiro de cofragem e ficando com sequelas consistente numa cicatriz com alterações de sensibilidade e perturbação de dores temporomandibulares pós-traumáticas, passando a sentir comichão quando usa capacete de obra, atendendo aos valores que vêm sendo atribuídos pela jurisprudência para casos similares, entende-se justa e adequada a indemnização de €25.000,00 arbitrada pelo défice funcional permanente, na sua dimensão patrimonial”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Janeiro de 2025 (relatora Fátima Gomes), proferido no processo nº 14.893/19.4T8PRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde nas instâncias inferiores se fixou, sem impugnação quanto a esse montante, a verba de € 55.000,00 a título de dano biológico.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 2025 (relator Ricardo Costa e subscrito pelo ora relator, na qualidade de adjunto), proferido no processo nº 15.721/19.6T8SNT.L1.S1, publicado in www.dgsi,pt, onde se ficou a título de dano biológico a quantia de € 25.000,00, aresto que contém abundante referência ao padrão jurisprudencial em matéria de quantificação da indemnização a título de dano biológico, sendo a factualidade essencial a seguinte:

A data de consolidação médico legal das lesões sofridas pelo A. na sequência do acidente é fixável em 29-07-2019 tendo esta sofrido de: Um período de défice Temporário Parcial fixável em 117 dias (entre 04-04-2019 e 29-07-2019); De sofrimento físico e psíquico, de grau quatro, em sete de gravidade crescente, considerando as lesões do mesmo resultantes e os tratamentos que demandaram. O A. ficou a padecer, em consequência do acidente e lesões sofridas com o mesmo de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 11 pontos de 100, adveniente de rigidez do punho na flexão e na extensão, e consequentes limitações de mobilidade do punho e dor associada; e de rigidez dos dedos. A situação sequelar pode evoluir para artrose precoce, não sendo possível indicar quando nem em que medida se dará esse agravamento. De dano estético permanente de grau 2, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as cicatrizes. E de uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau dois, em sete de gravidade crescente. O A. à data do sinistro tinha 62 anos, vivia com a mulher, estava desempregado desde há 3 anos, e fazia biscates com o que auferia cerca de 50,00€ por mês”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2025 (relator Jorge Leal), proferido no processo nº 2073/20.0T8VFR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Contém-se dentro dos referidos quadros de razoabilidade e igualdade a fixação, respetivamente, por dano biológico stricto sensu e pelo dano patrimonial futuro decorrente da perda aquisitiva (aqui configurado como o dano patrimonial futuro adstrito à perda da capacidade de ganho atinente à profissão habitual) nos montantes de € 100 000,00 e de € 200 000,00 no caso de motorista de pesados, com o 4.º ano de escolaridade e com 36 anos de idade à data do sinistro, que em virtude do acidente sofreu amputação do membro inferior esquerdo, tendo-lhe sido atribuída, no âmbito infortunístico-laboral, uma incapacidade permanente parcial de 97,20%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de motorista de pesados, e ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 41 pontos”

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Janeiro de 2025 (relator António Barateiro Martins), proferido no processo nº 3343/21.6T8PRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Tendo o lesado 28 anos à data do acidente e tendo ficado com uma IPG de 14 pontos, sem rebate profissional, mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional, é equitativo fixar (por reporte à data da petição) a indemnização por tal dano biológico em € 45.000,00”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Janeiro de 2025 (relator Ferreira Lopes), proferido no processo nº 1642/22.9T8VCT.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Mostra-se equilibrada e conforme com os critérios da jurisprudência mais recente do STJ, a indemnização de €40.000,00 fixada na Relação a um lesado, operador de máquinas, com 45 anos à data do acidente, que ficou com uma IPG de 8 pontos, que o impossibilita de executar algumas das tarefas da sua profissão, e a desempenhar as demais com esforço acrescido”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2022 (relator António Magalhães), proferido no processo nº 9957/19.7T8VNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“Tendo a lesada, economista e formadora, com 44 anos de idade à data do acidente, ocorrido em Novembro de 2018, auferido nos três últimos anos (2016, 2017 e 2018), uma média de € 9 090,40 por ano e tendo ficado, em consequência do acidente, com um défice funcional permanente de 8 pontos, justifica-se a fixação da indemnização por danos patrimoniais futuros (dano biológico) em € 21 500,00”.

Conforme se assinalou supra, o A. conseguiu felizmente retomar, com relativa normalidade, a sua actividade laboral habitual, embora com esforços acrescidos ou suplementares no desempenho da respectiva prestação.

Não se trata, nesta sede, do apuramento de uma incapacidade temporal permanente corrente no domínio da jurisdição laboral que poderia transportar os valores indemnizatórios para outra dimensão completamente distinta.

Logo, a revista do A. não poderá proceder, por todos os motivos apontados.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção - Cível) negar provimento à revista do A., mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2025.

Luís Espírito Santo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Rosário Gonçalves

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.