EXTRADIÇÃO
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
CIDADÃO ESTRANGEIRO
DIREITOS FUNDAMENTAIS
INCONSTITUCIONALIDADE
REJEIÇÃO
Sumário


I - Nos termos da al. f) do n.º 1 do art. 3.º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP, que enumera os casos de “inadmissibilidade de extradição”, não há lugar a extradição “quando se encontrarem prescritos o procedimento criminal ou a pena em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido”.
II - Suscitando-se a questão no processo de extradição passiva, nele deve ser apreciada e decidida, com a autonomia que lhe é própria, de modo a determinar-se se o procedimento criminal ou a pena estariam ou não prescritos de acordo com o direito nacional.
III - Nesse conhecimento, deve o tribunal levar em conta todas as informações e documentos recebidos do Estado requerente, que devem instruir o pedido, bem como solicitar a esse Estado os esclarecimentos que forem necessários à decisão, incluindo informações sobre “os motivos de interrupção ou de suspensão da prescrição segundo o direito do Estado que formula o pedido”.
IV - O art. 3.º, n.º 1, al. f), da Convenção obriga, assim, a um duplo controlo da prescrição, a efectuar de acordo com a lei do Estado requerente e com a lei portuguesa.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 5.ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Por acórdão de 19.2.2025, do Tribunal da Relação de Lisboa, entendendo estarem preenchidos os pressupostos legais do pedido de extradição, deferiu à sua execução e determinou a entrega de AA, de nacionalidade cabo-verdiana, às autoridades judiciárias de República de Cabo Verde, para cumprimento da pena de 6 anos e 6 meses de prisão, pela prática de dois crimes de abuso sexual de dois menores.

2. Inconformado, recorre o requerido para o Supremo Tribunal de Justiça, rematando o corpo da motivação com a conclusões que se passam a transcrever:

Em Portugal

Legislação Portuguesa

1-Nos termos do artigo 120.º do Código Penal Português, a prescrição da pena ou do procedimento criminal pode ser interrompida por atos processuais específicos, desde que validamente notificados ao arguido. No entanto, o artigo 113.º CPPenal Português estabelece que as notificações, em especial aquelas que impliquem prazos relevantes para o arguido, devem ser feitas pessoalmente ou, quando permitido, por outras formas legalmente admitidas.

Como não se mostrou nos autos que tal notificação ocorreu pessoalmente, não se poderá considerar interrompida a prescrição, dado que a comunicação ao arguido é condição essencial para a eficácia da interrupção.

Legislação Cabo-Verdiana

De forma semelhante, o Código Penal e o Código de Processo Penal de Cabo Verde estabelecem regras análogas às do sistema jurídico português. O artigo 118.º do Código Penal de Cabo Verde trata da prescrição do procedimento criminal, sendo que a interrupção da mesma está condicionada à notificação do arguido. O artigo 113.º do Código de Processo Penal Cabo-Verdiano estipula que a notificação deve ser pessoal, salvo disposição expressa em contrário.

2-Alteração Legislativa Posterior e a Proibição da Retroatividade

3-O artigo 118.º/5 CPenal, que determina que o prazo de prescrição dos crimes sexuais contra menores começa a contar apenas quando a vítima completa 23 anos, só foi introduzido pela Lei 27/2015, de 14 de abril.

4-Assim, como os factos ocorreram antes dessa alteração legislativa, essa norma não pode ser aplicada retroativamente.

5-Em conformidade com o artigo 29.º/1 da Constituição da República Portuguesa, a aplicação retroativa de uma norma penal que agrava a situação do arguido é expressamente proibida:

6-Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou omissão, nem sofrer pena ou medida de segurança cuja aplicação não esteja expressamente cominada em lei anterior.

7-Adicionalmente, o artigo 2.º/4 CPenal Português, consagra que as normas penais não retroagem, salvo se forem mais favoráveis ao arguido, o que manifestamente não é o caso.

8- Aplicação do Regime Prescricional Correto

9-Para factos ocorridos em julho de 2010, aplica-se a redação anterior do artigo 118.º CPenal, que estabelecia um prazo prescricional de 10 anos.

10-Consequentemente, a prescrição teria ocorrido em julho de 2020, salvo se tivessem ocorrido causas de interrupção validamente comprovadas até 2011, conforme disposto no artigo 121.º CPenal.

11-Esta é a correcta interpretação do artigo 118.º/5 CPenal.

Está, pois, prescrito.

3. Admitido o recurso, respondeu a Sra. PGA, defendendo o seu não provimento, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. O Requerido AA vem interpor recurso do Acórdão proferido a 19 de fevereiro de 2025, que autorizou a sua extradição para efeitos de cumprimento de pena, conforme solicitado pelas autoridades judiciárias da República de Cabo Verde.

2. AA, de nacionalidade cabo-verdiana, foi detido provisoriamente a 18 de dezembro de 2024, pelas 10h15, na cidade da ..., em cumprimento de notícia vermelha inserida no sistema da Interpol, com o nº de controle ...24 e file nº...68, segundo a qual era procurado para efeitos de cumprimento de uma pena de seis anos e seis meses de prisão, em que fora condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, um deles na forma tentada, previstos e punidos nos termos do artigo 144.º, nºs. 1 e 2, com referência ao artigo 141.º, alínea a), do Código Penal de Cabo Verde.

3. Por sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de ..., em Cabo Verde, a 28 de março de 2014, AA foi condenado pela prática, em julho de 2010, de dois crimes de abuso sexual infantil, um deles na forma tentada, relativamente a duas crianças (nascidas a ... de ... de 2002), na pena única de sete anos e seis meses de prisão.

4. No âmbito do referido processo, o Requerido foi constituído arguido a 27 de julho de 2011; foi notificado da acusação a 20 de setembro de 2011; e foi notificado do despacho que marcou data para a realização do julgamento a 17 de março de 2014, julgamento a que esteve presente.

5. O Arguido/Requerido interpôs recurso da sentença da 1.ª Instância, que mereceu parcial provimento, tendo sido mantida a condenação daquele pela prática dos dois crimes que lhe eram imputados e fixada a pena única em seis anos e seis meses de prisão, conforme acórdão proferido a 30 de janeiro de 2023, pelo Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde.

6. A notificação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde foi realizada por meio de éditos afixados a 10 de abril de 2023.

7. Ao abrigo do disposto no artigo 39.º da Lei 144/99, de 31 de agosto, a 19 de dezembro de 2024, procedeu-se à audição de AA, tendo a detenção sido validada e ficando aquele detido em ordem a garantir a efetivação da eventual decisão de extradição.

8. Na sequência da detenção provisória, com data de 15 de janeiro de 2025 as autoridades de Cabo Verde formalizaram pedido de extradição, que se encontra instruído com cópia certificada das decisões condenatórias - sentença proferida a 28 de março de 2014 pelo Tribunal Judicial da Comarca de ... e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde nº19/2023, de 30 de janeiro de 2023 -, as quais descrevem os concretos factos pelos quais se requer a extradição, indicando o lugar e a data da sua ocorrência, a sua qualificação jurídica, cópia do mandado de detenção e condução emitido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 2 de fevereiro de 2024 (que não foi cumprido por haver informação de que o visado “se encontrava fora do território nacional”), e cópia dos textos legais que tipificam e sancionam os crimes em investigação, bem como os que estabelecem o respetivo regime prescricional.

9. Os factos em causa também se encontram tipificados como crime no ordenamento jurídico português, conforme previsão dos artigos 171.º e 172.º, do Código Penal português.

10. Atendendo aos dados transmitidos pelas autoridades judiciárias de Cabo Verde, cremos ser claro que não ocorreu a prescrição do procedimento criminal nem da pena aplicada, como sugere o Recorrente,

11. No que concerne á prescrição do procedimento criminal, convém ter presente que o artigo 108.º/2 alínea a) do Código Penal de Cabo Verde estabelece o prazo de 15 anos (e não de 10, como sugerido pelo Recorrente), para a extinção da responsabilidade criminal por efeito de prescrição,

12. E que o disposto artigo 118.º/1 alínea a) 5, do Código Penal português (este último, na redação introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de setembro, e não pela Lei 27/2015, de 14 de abril, como, certamente por lapso, refere o Recorrente), e a circunstância de nenhuma das vítimas ter atingido os 23 anos de idade (nasceram a ... de ... de 2002), afastam a possibilidade de prescrição á luz do nosso ordenamento jurídico.

13. O pedido de extradição das autoridades da República Federativa do Brasil preenche os requisitos previstos nos artigos 2.º e 10.º, da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa, e 31.º da Lei 144/99, de 31 de agosto.

14. No que respeita à pena aplicada, também não ocorreu a sua extinção por prescrição, uma vez que tanto a lei cabo-verdiana como a lei portuguesa preveem o prazo de 15 anos, conforme previsão dos artigos 113.º/1 alínea b) do Código Penal cabo-verdiano, e 122.º/1 alínea b) e 2 do Código Penal português.

15. O pedido de extradição das autoridades da República de Cabo Verde preenche os requisitos previstos nos artigos 2.º e 10.º, da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa, e 31.º da Lei 144/99, de 31 de agosto.

16. O mandado de detenção internacional foi emitido para efeitos de cumprimento de pena, os factos em causa também se encontram tipificados como crime na lei portuguesa, não se verificando qualquer causa de recusa da sua execução, designadamente as circunstâncias previstas nos artigos 3.º e 4.º, da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

17. Assim sendo, nenhuma censura merece o acórdão proferido a 19 de fevereiro de 2025, que autorizou a extradição do cidadão AA para efeitos de cumprimento de pena, conforme solicitado pelas autoridades judiciárias da República de Cabo Verde.

4. Remetido o processo a este Supremo Tribunal, ao abrigo do artigo 58.º/4 da Lei 144/99, distribuído e concluso ao Relator, com a remessa do projecto de acórdão foram colhidos os vistos, em simultâneo e foram os autos presentes à conferência, para julgamento.

II. Fundamentação

1. Objecto e âmbito do recurso

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente, cfr. artigos 402.º, 403.º e 412.º CPPenal.

Deste modo, a questão a decidir prende-se com a prescrição do procedimento criminal, como motivo de inadmissibilidade da extradição.

2. A decisão do Tribunal da Relação assenta na seguinte fundamentação de facto.

Factos provados

1- O arguido é cidadão cabo-verdiano.

2- Por acórdão proferido pelo Tribunal da Comarca de ..., a 28/3/2014, o arguido foi condenado nas penas de 5 anos e 6 meses e de 3 anos de prisão, pela prática em Julho de 2010 de, respectivamente, dois crimes de abuso sexual infantil, um deles na forma tentada, relativamente a duas crianças, de 7 e 8 anos de idade, e em cúmulo jurídico na pena de 7 anos e seis meses de prisão.

3- As crianças nasceram, ambas, a .../.../2002.

4- O extraditando foi constituído arguido a 27/7/2011.

5- O arguido foi notificado da acusação a 20/9/2011.

6- O arguido foi notificado do despacho que marcou data para a realização do julgamento a 17/3/2014, julgamento esse em que esteve presente.

7- Tendo o arguido recorrido dessa sentença, pelo recurso 105/2014, por acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde, a 30 de Janeiro de 2023, o arguido foi condenado, na pena única seis anos e seis meses de prisão, em cúmulo jurídico das penas parcelares, cuja medida foi mantida.

8- A notificação do acórdão foi feita por via edital, afixados a 10/4/2023.

9- Apresentado o detido neste Tribunal, no seguimento da detenção em cumprimento de pedido formulado na notícia vermelha, foi ouvido a 19/12/2024 e sujeito à medida de detenção para extradição.

10- O arguido deduziu, entretanto, oposição ao pedido de extradição, invocando o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal, quer relativamente à lei Portuguesa quer relativamente à Lei Cabo-verdiana, com fundamento em que não há evidência de que tenha sido notificado antes de 2020. Mais invocou integração na sociedade portuguesa, pelo que a sua extradição viola o direito à estabilidade social e pessoal e refere intenção de cumprir a pena em Portugal face ao risco de tratamento desumano, caso se demonstre que a existência de condições degradantes nas prisões em Cabo-Verde.

11- Nos termos do disposto no art. 48.º, nº2, da Lei nº 144/99, de 31 de agosto, por despacho nº 25/MJ/2024, de 24 de Janeiro de 2025, Sua Excelência a Ministra da Justiça emitiu decisão declarando ser admissível o pedido de extradição de AA.

12- Recebido o pedido formal de extradição, neste processo, no dia 22/1/2025, foi o arguido ouvido de novo, tendo-lhe sido dado conhecimento do teor respectivo. O arguido reiterou o não consentimento na extradição e não prescindiu do princípio da especialidade.

13- Na referida inquirição o arguido declarou que sabia ter sido julgado e condenado, até porque recorreu da decisão condenatória.

14- O Ministério Público pronunciou-se pela ausência de prescrição quer do procedimento criminal quer da pena, e consequente deferimento do pedido de extradição e considerou que se verificam os pressupostos do deferimento do pedido de extradição.

15- Os crimes pelos quais o arguido foi condenado estão previstos e são punidos pelos artigos 144.º, n.ºs 1 e 2, com referência ao artigo 141.º do Código Penal de Cabo Verde, com pena de 7 a 14 anos de prisão.

16- E são igualmente puníveis no ordenamento jurídico Português, pelo disposto no artigo 171º do CP, com penas de prisão de 1 a 8 anos e de 3 a 10 anos, respectivamente.

17- Nos termos do artigo 108º/2-a), do CP de Cabo-verde, o procedimento criminal relativo a crimes puníveis com prisão superior a 10 anos e a crimes sexuais cometidos contra menor, prescreve decorridos 15 anos. O decurso do prazo suspende-se a partir da notificação da acusação ou pronúncia, num máximo de 3 anos;

interrompe-se com a constituição de arguido e notificação da acusação e a prescrição ocorre desde o início do prazo, ressalvado o tempo da suspensão, tenha decorrido o prazo normal acrescido de metade (artigos 109º, 110º, 111º e 112º do mesmo diploma).

18- Nos termos do artigo 118º/CP Português a prescrição do procedimento criminal, considerando a pena aplicada, ocorre aos 10 anos, sendo que no caso de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, ele só se verifica depois do ofendido perfazer 23 anos.

19- No referido diploma determina-se que as penas prescrevem em 15 anos, se iguais ou superiores a 6 anos de prisão, contando-se o respectivo prazo a partir do trânsito em julgado da decisão que as aplicar, prazo esse que é igual no CPP português para crimes punidos com penas entre 5 e 10 anos de prisão.

3. Apreciando a - suscitada na oposição, que o recorrente deduziu ao abrigo do artigo 55.º da Lei 144/99 - questão da prescrição do procedimento criminal (bem como a da prescrição da pena, não suscitada, nem na oposição, nem agora em sede de recurso, consta do acórdão recorrido a seguinte fundamentação:

“A extradição entre Portugal e Cabo-Verde regula-se pela Convenção de Extradição entre os Estados-Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, subscrita em 23/11/2005 e aprovada pela Resolução da AR n° 49/2008, de 18/7, no DR n° 178, de 15/09/2008, com entrada em vigor em 01/03/2010 e, supletivamente, pelas normas gerais contidas na Lei 144/99.

Por força do princípio do primado do Direito Internacional convencional, tendo primazia sobre o direito interno infraconstitucional, a Convenção, ratificada por Cabo Verde a 2/10/2018, vigora na ordem interna, face ao disposto no art° 8º/1 e 2, da Constituição da República (CRP) - segundo o qual « As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português» e «As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português».

Significa isto que os seus dispositivos prevalecem sobre normas concorrentes contidas na legislação ordinária interna, o que é reiterado pelo artigo 229º/CPP e, designadamente, sobre as disposições paralelas da Lei nº 144/99.

A referida Convenção estabelece um processo claro de cooperação, tendo em vista os objectivos que a mesma define, de incrementar, simplificar e agilizar a cooperação judiciária internacional em matéria penal, no propósito de combater de forma eficaz a criminalidade.

Os estados membros estabeleceram uma “Obrigação de extraditar” (artigo 1º) excepcionada de forma taxativa (artigos 3º e 4º). Da lista das excepções à obrigação de extraditar consta a prescrição do procedimento criminal ou da pena, em conformidade com o Estado requerente ou com o Estado requerido (artigo 3º/1-f).

O extraditando invocou “prescrição do crime”, dizendo que não há prova que as sentenças lhe tenham sido pessoalmente notificadas.

A primeira questão a dilucidar resulta de no requerimento de oposição não se separar o regime da prescrição do procedimento criminal do da prescrição da pena.

Numa linguagem simplista a prescrição do procedimento criminal reporta-se ao período de tempo que vai desde a consumação do crime até ao trânsito em julgado da sentença/acórdão proferido sobre o mérito da causa (artigo 119º do CP). A prescrição da pena inicia-se na data em que transitar em julgado a decisão que aplica a pena.

Ora, o arguido foi notificado pessoalmente da sentença proferida em primeira instância, em 17/3/2014. E foi notificado editalmente da sentença proferida no Supremo Tribunal apenas em 2023, o que foi determinado em 29 de Março e certificado a 10 de Abril.

Claramente que não ocorreu prescrição da pena, nem pela lei cabo-verdiana nem pela lei portuguesa.

Quer no CP de Cabo-verde, quer no CP Português, o prazo de prescrição da pena aplicável é de 15 anos.

Resta, então, analisar sobre a ocorrência, ou não, de prescrição do procedimento criminal.

Na legislação da República de Cabo-Verde o prazo de prescrição do procedimento criminal em causa, é de 15 anos e não de 10, como o arguido refere, por força do disposto no artigo 108º/2-a) do respectivo Código Penal (CP).

Este prazo interrompeu-se com a constituição de arguido e notificação da acusação, começando a correr novo prazo em momento seguinte à prática destes actos. Tendo o extraditando sido constituído arguido a 27/7/2011 e notificado da acusação a 20/9/2011, não correu o prazo de 15 anos sobre nenhuma dessas datas e, nem tão pouco, decorreram 22 anos e meio sobre a data da prática do crime, para efeitos de aplicação do disposto no artigo 112º do respectivo CP – que coincide com a primeira parte do nosso artigo 121º/3 do CP. Ou seja, ainda que se considere inoperante, para efeitos de contagem do prazo a notificação edital, os prazos estão longe de ser atingidos.

No que se reporta à lei portuguesa, não tendo nenhum dos menores atingido 23 anos de idade, está igualmente afastada a possibilidade de prescrição.

Temos, então por assente, que não ocorreu prescrição de procedimento criminal nem da pena, que obste à entrega do extraditando ao estado requerente.

(…).

Face a todo o exposto, não ocorrem fundamentos que obstem â entrega e, mostrando-se cumpridos todos os trâmites processuais de que depende o deferimento do pedido a que Portugal se vinculou, resta decidir pela procedência do pedido de extradição”.

E, assim se concluiu que,

- a Convenção dos Estados Membros da CPLP ao prever a prescrição como fundamento de inadmissibilidade da extradição impõe que se opere um duplo controlo da prescrição, ou seja, quer do procedimento criminal quer da pena (sendo disso caso) fundamentado de acordo com a lei do Estado requerente e de acordo com a lei Portuguesa;

- a apreciação reporta-se unicamente aos motivos de interrupção ou de suspensão da prescrição, segundo os regimes jurídicos em análise.

4. O Direito.

Nas relações entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde a extradição rege-se pela Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na Cidade da Praia, em 23 de novembro de 2005, ratificada pelos dois Estados [aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República (RAR) n.º 49/2008 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República (DPR) n.º 67/2008, DR, 1.ª Série, 15.9.2008, e Aviso n.º 183/2011, do MNE, de 11.8.2011, DR 1.ª Série, 11.8.2011; doravante “Convenção”] e, subsidiariamente, na falta ou insuficiência de normas, pela Lei 144/99, de 31 de agosto.

Com base na Convenção, os Estados Contratantes obrigam-se a entregar, reciprocamente, segundo as regras e as condições nela estabelecidas, as pessoas que se encontrem nos seus respetivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Contratante, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena privativa da liberdade por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente, cfr. artigo 1.º.

Dão causa à extradição os factos tipificados como crime segundo as leis do Estado requerente e do Estado requerido, independentemente da denominação dada ao crime, os quais sejam puníveis em ambos os Estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a um ano; se a extradição for requerida para o cumprimento de uma pena privativa da liberdade exige-se, ainda, que a parte da pena por cumprir não seja inferior a seis meses, cfr. artigo 2.º.

Devendo, neste caso, o pedido de extradição ser acompanhado de original ou cópia certificada da sentença condenatória e de certidão ou mandado de prisão dos quais conste qual a pena que resta cumprir, cfr. artigo 10.º/2.

Nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 3.º, que enumera os casos de “inadmissibilidade de extradição”, não há lugar a extradição “quando se encontrarem prescritos o procedimento criminal ou a pena em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido”.

Esta disposição inspira-se, como é comummente reconhecido, no artigo 10.º da Convenção Europeia de Extradição (Paris, 1957), do Conselho da Europa, que constitui o primeiro instrumento multilateral nesta matéria, o qual, na sua redação originária, sob a epígrafe “Prescrição” (“lapse of time”, no original em língua inglesa), dispunha que “A extradição não será concedida se o procedimento criminal ou a pena estiverem extintos por prescrição, nos termos da legislação da Parte requerente ou da Parte requerida”.

Diversamente, no sistema do Conselho da Europa, tratando-se de um pedido de execução de uma condenação estrangeira, este apenas poderá ser recusado com fundamento na prescrição da pena, mas já não do procedimento criminal, na assunção de que o processo foi validamente concluído e que a questão da prescrição do procedimento criminal é matéria que diz exclusivamente respeito ao Estado da condenação (cfr. relatório explicativo da Convenção Europeia sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais, A Haia, 1970, em https://rm.coe.int/16800c930f).

Este artigo 10.º veio a ser alterado pelo Quarto Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Extradição (Viena, 2012), passando a dispor que a extradição não pode ser concedida se o procedimento criminal ou a pena da pessoa reclamada estiverem extintos por prescrição, nos termos da lei da Parte requerente, cfr. n.º 1 e, que não pode ser recusada pelo facto de o procedimento criminal ou a pena da pessoa reclamada terem sido declarados extintos por prescrição, nos termos da lei da Parte requerida, cfr. n.º 2; permite, porém, que qualquer Estado possa declarar que se reserva o direito de não aplicar o n.º 2 se a sua legislação interna proibir explicitamente a extradição nos casos em que, nos termos da sua lei, o procedimento criminal ou a pena da pessoa reclamada estariam extintos por prescrição, cfr. n.º 3 alínea b). Acrescentando o n.º 4 que, ao determinar se o procedimento criminal ou a pena da pessoa reclamada deveriam ser considerados extintos por prescrição nos termos da sua lei, a Parte que tenha formulado uma reserva ao abrigo do n.º 3 deste artigo deverá ter em consideração, de acordo com a sua lei, quaisquer atos ou factos que tenham ocorrido na Parte requerente, sempre que atos ou factos da mesma natureza interrompam ou suspendam o prazo de prescrição na Parte requerida.

Significativamente, ao ratificar este Protocolo (artigos 2.º da RAR 17/2019 e do DPR 10/2019, DR 1.ª Série, de 6.2.2019), a República Portuguesa formulou uma reserva nos termos do n.º 3 do artigo 10.º da Convenção, na redação dada pelo artigo 1.º do Protocolo, dizendo que “declara que se reserva o direito de não aplicar a disposição prevista no n.º 2 do artigo 10.º da Convenção, se: (…) ii) Nos termos da legislação portuguesa, a extradição for proibida devido à extinção, por prescrição, do procedimento criminal ou da pena”.

Ao fazer esta reserva, Portugal assume que a verificação de que o procedimento criminal ou a pena estariam extintos, por prescrição, nos termos da lei portuguesa, é causa de proibição da extradição. E se o é no quadro da Convenção Europeia de Extradição, não poderá, por razões de coerência e unidade do sistema, deixar de o ser fora dele, salvo disposição expressa em contrário, que, no caso presente, não existe.

A norma de direito internacional contida no artigo 3.º/1 alínea f) da Convenção não confere eficácia, no Estado requerido, ao trânsito em julgado da condenação no Estado requerente, para efeitos de funcionamento do motivo de inadmissibilidade da extradição por prescrição do procedimento ou da pena; remete a matéria para o direito interno - “em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido”.

Daí que, suscitando-se tal questão no processo de extradição passiva, nele deve ser apreciada e decidida, com a autonomia que lhe é própria, de modo a determinar-se se o procedimento criminal ou a pena estariam ou não prescritos de acordo com o direito nacional.

Nesse conhecimento, deve o tribunal levar em conta todas as informações e documentos recebidos do Estado requerente, que devem instruir o pedido, bem como solicitar a esse Estado os esclarecimentos que forem necessários à decisão (artigos 10.º e 12.º da Convenção CPLP e, subsidiariamente, artigos 23.º/3 e 45.º da Lei 144/99), incluindo informações sobre “os motivos de interrupção ou de suspensão da prescrição segundo o direito do Estado que formula o pedido”, que, de acordo com o disposto no artigo 12.º/1 alínea a) da Lei 144/99, aplicável nos termos do artigo 3.º/1 da Lei 144/99, produzem efeitos em Portugal, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 21.11.2013, apud acórdão, também, deste Tribunal de 29.12.2022, processo 254/22.1YRCBR.S1-5.ª, que vimos seguindo de perto, mesmo com transcrição - ambos consultados no site da dgsi, como outros sem diversa menção de origem.

O artigo 3.º/1 alínea f) da Convenção obriga, assim, a um duplo controlo da prescrição, a efetuar de acordo com a lei do Estado requerente e com a lei portuguesa. Não estando o funcionamento da prescrição no Estado requerido associado à fase do processo no Estado requerente ou à finalidade visada pela extradição – procedimento criminal ou execução da pena – esse controlo há de efetuar-se com referência aos dois momentos geradores de imunidade pelo decurso do tempo do procedimento e para execução da pena, que constituem motivo de proibição da extradição, no caso de esta se destinar ao cumprimento de uma pena.

Foi este o entendimento subjacente e seguido nos recentes acórdãos deste Supremo Tribunal de 14.7.2022, processo 16/22.6YRPRT-A.S1-5.ª e de 6.9.2022, processo 181/22.2YRPRT.S1-3.ª, também citados no referido acórdão de 29.12.2022, processo 254/22.1YRCBR.S1-5.ª, bem como nos acórdãos de 15.3.2023, mesmo processo 254/22.1YRCBR- 3.ª (agora) e de 26.6.2024, processo 1002/24.7YRLSB.S2-3.ª , sendo que em todas as situações estava em causa a questão da prescrição do procedimento criminal em pedidos de extradição para o Brasil, para efeitos de cumprimento de penas de prisão aplicadas por decisões transitadas em julgado.

Ou seja, tendo sido suscitada a questão da prescrição do procedimento, tal questão não poderá deixar de ser apreciada no âmbito deste processo, à luz do direito cabo-verdiano e das informações obtidas (como indicado supra) e do direito português, levando em conta o disposto no artigo 12.º/1 alínea a) da Lei 144/99.

Esta apreciação não pode, todavia, como pretende o recorrente, conduzir a uma decisão sobre a prescrição do procedimento criminal, por aplicação da lei cabo-verdiana, matéria que é da competência dos tribunais cabo-verdianos.

Os tribunais portugueses apenas podem e devem levar em conta os motivos de interrupção ou de suspensão da prescrição segundo o direito cabo-verdiano.

E, assim, sempre se pode colocar, por um lado, a questão de saber se face à lei portuguesa, o procedimento criminal se encontrava, ou não, prescrito à data do trânsito em julgado da sentença que impôs a pena cuja execução se visa com a apresentação do pedido de extradição.

E, não a questão da prescrição da pena, apenas e tão só, porque não foi suscitada em sede de recurso.

O entendimento – que aqui não releva - de que apenas poderíamos cuidar desta segunda questão, poderia conduzir a soluções inaceitáveis, por ignorarem o tempo dos processos em que foram pronunciadas, por factos antigos e longínquos, de punição carecida de justificação pelo decurso do tempo à luz da natureza e das finalidades penais que presidem ao instituto da prescrição, agravada por um elemento de discriminação relativamente a processos nacionais, em resultado da aplicação da pena por um tribunal estrangeiro.

Em flagrante violação do direito a uma decisão judicial em tempo razoável consagrado em instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos de dimensão universal, cfr. artigo 14.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de dimensão regional, cfr. artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e artigo 8.º da Convenção Americana dos Direitos Humanos.

Como vimos já, no caso concreto, apesar de ter suscitado a questão da prescrição do crime na oposição e de na decisão se ter abordado e decidido e não atendido, quer a prescrição do procedimento criminal, quer a prescrição da pena, o certo é que o recorrente deixou aqui, neste recurso, cair a questão da (re)apreciação da prescrição da pena, mostrando a sua irresignação, apenas e, tão só, quanto à questão da (não) prescrição do procedimento criminal.

Porventura o recorrente nem sequer terá pretendido, na dita oposição, invocar, expressamente a prescrição da pena, atente-se que o acórdão do STJ de Cabo Verde é recente, foi proferido a 30.1.2023,

E, assim, sobre aquela questão – como supra enunciado – nos pronunciaremos.

A extinção do procedimento criminal por efeito da prescrição depende da pena aplicável, nos termos do artigo 118.º CPenal, isto é, da verificação da dupla incriminação, que constitui um dos pressupostos da extradição.

Dispõe o artigo 2.º/1 da Convenção, que dão causa à extradição os factos tipificados como crime segundo as leis do Estado requerente e do Estado requerido, independentemente da denominação dada ao crime, os quais sejam puníveis em ambos os Estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a um ano.

Acrescentando o n.º 2 que se a extradição for requerida para o cumprimento de uma pena privativa da liberdade exige-se, ainda, que a parte da pena por cumprir não seja inferior a seis meses.

Por isso, o artigo 10.º dispõe que, quando se tratar de pedido para cumprimento de pena, o pedido de extradição seja acompanhado de original ou cópia certificada da sentença condenatória e de certidão ou mandado de prisão dos quais conste qual a pena que resta cumprir, cfr. n.º 2 e, ainda da descrição dos factos pelos quais se pede a extradição, indicando-se o lugar e a data de sua ocorrência, sua qualificação legal e fazendo -se referência às disposições legais aplicáveis, cfr. n.º 3 alínea a).

5. Baixando ao caso concreto

Entende o recorrente que o acórdão recorrido incorreu em erro na aplicação do direito, porquanto o procedimento criminal se encontrava prescrito antes da decisão final, impedindo, assim, a extradição, defendendo, por isso, a sua revogação e substituição por outro que recuse a execução do pedido de extradição uma vez que o procedimento criminal já estava prescrito antes da decisão final de Cabo Verde.

Sendo certo que não releva aqui a “denominação dada ao crime”; importa a tipificação dos factos, que devem ser concretizados e descritos, independentemente da denominação, cfr. artigo 2.º/1 da Convenção, apreciando a dupla incriminação, o acórdão recorrido diz que,

“15- Os crimes pelos quais o arguido foi condenado estão previstos e são punidos pelos artigos 144.º/1 e 2, com referência ao artigo 141.º do Código Penal de Cabo Verde.

16- E são igualmente puníveis no ordenamento jurídico Português, pelo disposto no artigo 171.º CPenal.

Sem mácula..

Na decisão recorrida sobre a questão da prescrição do procedimento criminal, entendeu-se que,

- na legislação da República de Cabo-Verde o prazo de prescrição do procedimento criminal em causa, é de 15 anos e não de 10, como o arguido refere, por força do disposto no artigo 108º/2-a) do respectivo Código Penal;

- este prazo interrompeu-se com a constituição de arguido e notificação da acusação, começando a correr novo prazo em momento seguinte à prática destes actos;

- tendo o extraditando sido constituído arguido a 27/7/2011 e notificado da acusação a 20/9/2011, não correu o prazo de 15 anos sobre nenhuma dessas datas e, nem tão pouco, decorreram 22 anos e meio sobre a data da prática do crime, para efeitos de aplicação do disposto no artigo 112º do respectivo CP – que coincide com a primeira parte do nosso artigo 121º/3 do CP. Ou seja, ainda que se considere inoperante, para efeitos de contagem do prazo a notificação edital, os prazos estão longe de ser atingidos;

- na legislação portuguesa, não tendo nenhum dos menores atingido 23 anos de idade, está igualmente afastada a possibilidade de prescrição.

A isto contrapõe o recorrente,

- legislação Cabo-Verdiana:

- de forma semelhante, o Código Penal e o Código de Processo Penal de Cabo Verde estabelecem regras análogas às do sistema jurídico português. O artigo 118.º do Código Penal de Cabo Verde trata da prescrição do procedimento criminal, sendo que a interrupção da mesma está condicionada à notificação do arguido. O artigo 113.º do Código de Processo Penal Cabo-Verdiano estipula que a notificação deve ser pessoal, salvo disposição expressa em contrário;

- legislação Portuguesa

- nos termos do artigo 120.º CPenal, a prescrição da pena ou do procedimento criminal pode ser interrompida por atos processuais específicos, desde que validamente notificados ao arguido - no entanto, o artigo 113.º estabelece que as notificações, em especial aquelas que impliquem prazos relevantes para o arguido, devem ser feitas pessoalmente ou, quando permitido, por outras formas legalmente admitidas;

- não se mostrou nos autos que tal notificação ocorreu pessoalmente, não se poderá considerar interrompida a prescrição, dado que a comunicação ao arguido é condição essencial para a eficácia da interrupção;

- entretanto, o artigo 118.º/5 CPenal passou a determinar que o prazo de prescrição dos crimes sexuais contra menores começa a contar apenas quando a vítima completa 23 anos;

- como os factos ocorreram antes dessa alteração legislativa, essa norma não pode ser aplicada retroativamente.

- para factos ocorridos em julho de 2010, aplica-se a redação anterior do artigo 118.º CPenal, que estabelecia um prazo prescricional de 10 anos;

- consequentemente, a prescrição teria ocorrido em julho de 2020, salvo se tivessem ocorrido causas de interrupção validamente comprovadas até 2011, conforme disposto no artigo 121.º CPenal.

Vejamos.

Começando pelo fim.

A legislação do Estado requerido.

A redacção actual do artigo 118.º/5 Código Penal português foi introduzida Através da Lei 59/2007, de 4 de setembro - e não pela Lei 27/2015, de 14 de abril, como pretende o recorrente, que apenas introduziu alterações ao CPPenal, o artigo 118.º/5 CPenal, passou a dispor que, “nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, o procedimento criminal não se extingue, por efeito de prescrição, antes de o ofendido perfazer 23 anos”.

Posteriormente, através da Lei 83/2015 passou a dispor que, “nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, bem como no crime de mutilação genital feminina sendo a vítima menor, o procedimento criminal não se extingue, por efeito da prescrição, antes de o ofendido perfazer 23 anos”.

E, a redacção actual foi conferida pela Lei 4/2024, “nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, bem como no crime de mutilação genital feminina sendo a vítima menor, o procedimento criminal não se extingue, por efeito da prescrição, antes de o ofendido perfazer 25 anos”.

Uma vez que os factos datam de JUL2010, quando já estava aquela primeira disposição legal em vigor, não se coloca, por isso, a questão em que o recorrente enfoca o recurso, atinente com a proibição de aplicação rectroactiva de lei penal desfavorável.

Assim, a circunstância de nenhuma das vítimas ter atingido, ainda, os 23 anos de idade (nasceram a ... de ... de 2002), afasta a possibilidade de prescrição à luz do nosso ordenamento jurídico.

Vejamos agora a legislação do Estado requerente.

Havendo que ter presente os seguintes momentos processuais:

- os factos datam de JUL2010;

- o arguido foi constituído como tal a 27.7.2011;

- foi notificado da acusação a 20.9.2011;

- foi notificado do despacho que marcou data para a realização do julgamento a 17/3/2014, julgamento esse em que esteve presente;

- foi condenado por sentença de 28.3.2014, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão;

- interposto recurso, veio a ser condenado por acórdão de 30.1.2023, que diminui a pena em 12 meses, passando para 6 anos e 6 meses;

- os crimes pelos quais o arguido foi condenado estão previstos e são punidos pelos artigos 144.º/1 e 2 do Código Penal de Cabo Verde – com remissão para o artigo 141.º, que contém definição do que seja acto sexual, e sem que corresponda à realidade a moldura penal absctracta que é de prisão de 4 a 10 anos de prisão e não de 7 a 14.

Dispõe o artigo 144.º CPenal caboverdiano, na versão de 2003, sob a epígrafe de “abuso sexual de crianças” que,

“1. quem praticar acto sexual com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, será punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2. Se houver penetração sexual, a pena será de prisão de 4 a 10 anos”.

Quanto aos prazos de prescrição do procedimento criminal dispõe o mesmo texto legal, em vigor à data da prática dos factos, no artigo 108º, sob a epígrafe de ”prazos de prescrição” que,

“1. Extingue-se o procedimento criminal, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do facto punível tiverem decorrido os seguintes prazos:
(…)

b) 10 anos, quando se tratar de infracção punível com pena de prisão cujo limite máximo seja igual ou superior a seis anos, mas que não exceda 10 anos;
(…)”.

Sobre a contagem do prazo, dispõe o artigo 109.º que,

“1 - O prazo de prescrição do procedimento criminal começa a correr a partir da meia-noite do dia em que o facto foi consumado, ou em que cessou a consumação, tratando-se de crime permanente.

(…)

3 - Nos crimes tentados, o prazo corre desde o dia da prática do último acto de execução.

(…)”.

Por sua vez, dispõe o artigo 110.º, sob a epígrafe de “suspensão da prescrição” que,

“1. A prescrição do procedimento criminal deixa de correr, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de decisão a proferir por tribunal não penal sobre questões prévias ou prejudiciais, enquanto o agente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade, ou durante a pendência de processo após a marcação do dia de julgamento em processo de ausentes.
2. A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão”.

E, o artigo 111.º, sob a epígrafe de “interrupção da prescrição” que,

“1. Interrompe-se a prescrição do procedimento criminal, começando a correr novo prazo prescricional, com a notificação do despacho de pronúncia ou despacho materialmente equivalente ou quando o agente cometer outro facto punível.

2. Verificando-se a situação prevista na parte final do número antecedente, começa a correr o prazo prescricional referente ao facto punível mais grave”.

Finalmente, dispõe o artigo 112.º que, “a prescrição do procedimento criminal terá sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal acrescido de metade”.

Aplicando estas disposições legais ao caso vertente, temos que o prazo de prescrição do procedimento criminal é indubitavelmente de 10 anos, contados desde JUL2010.

Não se suscitando qualquer situação de suspensão, ocorre, contudo uma causa de interrupção da prescrição, reportada à notificação do despacho de pronúncia ou despacho materialmente equivalente.

No caso o despacho que designou dia para julgamento.

Recorde-se que por acórdão de 1.3.2001 decidiu este Supremo Tribunal, a este propósito, fixar jurisprudência, no sentido em que, “(…) a notificação ao arguido do despacho que designa dia para julgamento, proferido nos termos dos artigos 311.º a 313.º CPPenal suspende e interrompe a prescrição do procedimento criminal, de acordo com os artigos 119.º, n.º 1, alínea b), e 120.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal de 1982”.

E o arguido foi notificado do despacho que designou data para julgamento a 17.3.2014, donde há que concluir que tendo começado, então, a contar novo prazo de 10 anos, o mesmo se completaria a 17.3.2024.

Só que o acórdão que conheceu do recurso da sentença condenatória foi proferido a 30.1.2023.

Como é sabido, para efeitos de contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal só pode atender-se ao prazo decorrido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.

A partir daqui coloca-se a questão da prescrição da pena.

Sem que para este feito, naturalmente, conte o tempo decorrido desde a data da prática dos factos.

Apesar de se referir no processo que o acórdão do STJ cabo verdiano transitou em julgado, o facto é que não se diz, quando, desde logo.

E, tal não está certificado.

Apenas consta que a notificação do acórdão foi feita por via edital, afixados a 10.4.2023.

Sendo certo que foram passados mandados de detenção e condução do recorrente datados de 2.2.2024.

A pressupor, que estava o acórdão transitado em julgado.

Daqui se evidencia que na data da prolação do acórdão o procedimento criminal não se encontrava extinto, por prescrição

Assim não decorreu o prazo de prescrição do procedimento criminal, contado até ao trânsito em julgado da decisão condenatória.

Seja 10 anos, desde a prática dos factos, com a interrupção derivada da notificação da data para julgamento – no caso da legislação do Estado requerente.

Seja, ao abrigo da legislação do Estado requerido, porque as vítimas ainda não atingiram os 23 anos de idade.

A prescrição não ocorreu. E não ocorreu, nem à luz da lei penal portuguesa, nem à luz da lei cabo-verdiana, sendo cada um dos regimes penais, necessariamente apreciado e aplicado em bloco.

Atendendo aos dados transmitidos pelas autoridades judiciárias de Cabo Verde, cremos ser medianamente evidente, que não ocorreu a prescrição do procedimento criminal, como defende o recorrente,

Os tribunais portugueses apenas podem e devem levar em conta os motivos de interrupção ou de suspensão da prescrição segundo o direito cabo-verdiano.

E, assim, perante a questão de saber se face à lei portuguesa, o procedimento criminal se encontrava, ou não, prescrito à data do trânsito em julgado da sentença que impôs a pena cuja execução se visa com a apresentação do pedido de extradição, a resposta é, inequivocamente, negativa.

Não se verifica, pois, a mencionada causa de recusa da extradição.

Como vimos, nos termos da mencionada alínea f) do n.º 1 do artigo 3.º da Convenção, não há lugar a extradição “quando se encontrarem prescritos o procedimento criminal ou a pena em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido”.

Assim sendo, ainda que com fundamentos substancialmente, diversos, nenhuma censura merece o dispositivo do acórdão recorrido, que julgando não extinto pro prescrição o procedimento criminal, autorizou a extradição do recorrente, para efeitos de cumprimento de pena, conforme solicitado pelas autoridades judiciárias da República de Cabo Verde.

Conclui-se, pois, pela improcedência do recurso, sendo certo que não foram violados os princípios e normas constitucionais, invocados pelo recorrente.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto por AA, mantendo-se, ainda que com fundamentação diferente, a decisão recorrida no segmento impugnado.

Sem custas, cfr. artigo 73.º/1 da Lei 144/99.

Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e, assinado eletronicamente por si e pelos Srs. Juízes Conselheiros adjuntos, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Março de 2025

Ernesto Nascimento (Relator)

José Piedade (1.º Adjunto)

Jorge Gonçalves (2.º adjunto)