I - O habeas corpus não serve para discutir decisões proferidas em outros tribunais, mormente nos tribunais de Instrução Criminal, em sede aplicação, substituição, modificação, revogação de medidas de coacção, as quais, verificando-se os respectivos pressupostos deverão ser impugnadas pelos meios próprios.
II - De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
III - O que deixa fora do âmbito desta providência a disponibilidade do requerente para que em substituição da prisão preventiva lhe seja aplicada qualquer uma das medidas de coacção previstas nos arts. 197.º a 200.º do CPP.
IV - Estando o arguido em prisão preventiva, indiciado pela prática de 4 crimes de roubo qualificado e 8 de roubo simples, o prazo máximo de prisão preventiva, sem dedução de acusação, é de 6 meses, nos termos do proémio do art. 215.º, n.º 2, do CPP.
I. Relatório
1. No Processo 336/24.5..., a correr na fase de inquérito no DIAP, ....ª secção de ..., o arguido AA, detido a 9.10.2024 e preso preventivamente desde o dia seguinte, apresentou, por intermédio do seu mandatário, petição de Habeas Corpus em virtude de prisão ilegal, invocando os artigos 31.º da CRP e 222.º CPPenal, pedindo se declare a ilegalidade da prisão preventiva e se ordene a sua imediata libertação, admitindo ficar sujeito a(s)alguma(s)das medidasprevistasnos artigos 197.ºa 200.º CPPenal, com os fundamentos que se passam a transcrever:
- em 9.10.2024 foi detido para ser presente a 1º Interrogatório Judicial de arguido detido – artigo 141.º CPPenal;
- no dia seguinte, 10.10.2024, foi ordenada a prisão preventiva do aqui Requerente à ordem do processo de inquérito n.º 336/24.5... do Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca do Porto – DIAP – ...ª Secção de ...;
- até ao momento, não foi deduzida qualquer acusação contra o Requerente;
- a alínea a) do n.º 1 do artigo 215.º CPPenal dispõe que:
“a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação”;
- a situação do requerente é coincidente com o preceito acima transcrito, ou seja, encontra-se preso preventivamente há mais de 4 meses, sem que haja sido deduzida acusação, o que legitima o seu pedido de Habeas Corpus;
- acresce que, apesar de existirem vários processos contra o requerente por crimes praticados antes de lhe ter sido aplicada a prisão preventiva, tal circunstância não permite exceder o prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 215.º CPPenal, conforme o disposto no n.º 7 daquele artigo;
- o crime em causa não se enquadra nos números seguintes do referido artigo 215.º CPPenal;
- o requerente tem 18 anos e está há quase 5 meses em prisão preventiva, pelo que, a libertação do requerente é imperativa e urgente, nos termos do n.º 2 do artigo 217.º CPPenal, podendo V/Exa. sujeitar o requerente a(s) alguma(s) das medidas previstas nos artigos 197.º a 200.º CPPenal.
2. Na informação prestada, nos termos do artigo 223.º1 CPPenal, consignou-se o seguinte:
conforme resulta das peças processuais que compõem este apenso, o arguido AA foi sujeito a prisão preventiva no passado dia 10.10.2024, pela fortemente indiciada prática de:
- 2 crimes de roubo qualificado, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1 e 2 al. b), por referência aos artigos 204.º n.º 2 al. f) do Código Penal;
- 2 crimes de roubo qualificado, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1 e 2 al. b), por referência aos artigos 204.º, n.º 1 al. b) e n.º 2 al. f) do Código Penal;
- 7 crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1, por efeito da desqualificação plasmada no artigo 204.º, n.º 4 do Código Penal;
- 1 crime de roubo, na forma tentada, previsto e punido pelo pelos artigos 22.º, 23.º e 210.º, n.º 1 do Código Penal, por efeito da desqualificação plasmada no artigo 204.º, n.º 4 do Código Penal;
- procedeu-se oportunamente ao reexame dos pressupostos de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, tendo-se entendido que os mesmos não se haviam alterado, mantendo-se os fortes indícios da prática dos aludidos crimes e os perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação do inquérito que haviam fundamentado a aplicação de tal medida;
- no que respeita às razões do habeas corpus, apenas se dirá que os crimes de roubo simples (consumados e tentado) que fundamentaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva constituem criminalidade violenta, nos termos previstos pela alínea j) do artigo 1.º CPPenal e os crimes de roubo qualificado constituem criminalidade especialmente violenta, nos termos previstos pela alínea l) da mesma disposição legal, sendo puníveis com pena de prisão superior a oito anos, pelo que, nos termos do proémio do n.º 2 do artigo 215.º CPPenal, o prazo máximo de prisão preventiva, sem dedução de acusação, é de 6 (seis) meses, que ainda não decorreu, face à data do início daquela (10.10.2024);
- assim, não há razões para se entender que a prisão é ilegal;
- são estas, pois, as condições em que a medida de coacção de prisão preventiva foi aplicada, mantendo-se a mesma actualmente.
3. Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o mandatário/ defensor do arguido, procedeu-se à realização da audiência, com o formalismo legal e em conformidade com o disposto nos artigos 11.º/4 alínea c), 223.º/1, 2 e 3 e 435.º CPPenal.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
1. A questão a decidir, nesta sede, reporta-se, tão só, a saber se o requerente se encontra em situação de prisão ilegal, por ter sido ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva, previsto no artigo 215.º CPPenal.
O que deixa fora do âmbito desta providência qualquer possibilidade de apreciação da sua disponibilidade para ficar sujeito a(s)alguma(s)das medidas previstas nos artigos 197.ºa 200.º CPPenal.
Pretensão, processualmente deslocada, nesta sede.
2. O circunstancialismo factual relevante para o julgamento resulta da petição de habeas corpus, dos documentos com ela juntos, da informação e da certidão que a acompanha e é a seguinte:
- detido a 9.10.2014, o requerente viu no dia seguinte ser-lhe aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, com fundamento em fortes indícios da prática de,
- 4 crimes de roubo qualificado, pp. e pp. pelo artigo 210.º/1 e 2 alínea b) CPenal;
- 7 crimes de roubo, pp. e pp. pelo artigo 210.º/1 CPenal;
- 1 crime de roubo, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 210.º/1 CPenal e,
- pela verificação dos perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação do inquérito;
- medida de coacção, entretanto, reexaminada e mantida no entendimento de que se não haviam alterado os pressupostos que determinaram a aplicação de tal medida de coacção.
2. O Direito
1. O habeas corpus é um meio, procedimento, de afirmação e garantia do direito à liberdade, cfr. artigos 27.º e 31.º da CRP, constituindo uma providência expedita e excecional – a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória, cfr. Artigo 31.º/3 da CRP – para fazer cessar privações da liberdade ilegais, isto é, não fundadas na lei, sendo a ilegalidade da prisão verificável a partir dos factos documentados no processo.
Sobre o pedido de habeas corpus por prisão ilegal, dispõe o artigo 222.º CPPenal que,
“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.
São taxativos os pressupostos do habeas corpus - que também tem consagração constitucional, cfr. artigo 31.º da CRP.
Enquanto no Decreto Lei 35 043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus é um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», hoje, e mais nitidamente após as alterações de 2007, com o aditamento do n.º 2 ao artigo 219.º do CPPenal, o instituto não deixou de ser um remédio excecional, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso.
A providência de habeas corpus que não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Editorial Verbo, 1993, 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.
Convém ter presente, como se refere no artigo 31.º/1 CRP, que “haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente”. Ou seja, esta providência, que inclusivamente pode ser interposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, artigo 31.º/2 CRP, tem apenas por finalidade libertar quem está preso ou detido ilegalmente e, por isso, é uma medida excecional e muito célere.
De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no artigo 222.º/2 CPPenal.
O habeas corpus não serve para discutir decisões proferidas em outros Tribunais, mormente nos Tribunais da Relação, em sede de processos de extradição – as quais, verificando-se os respectivos pressupostos deverão ser impugnadas pelos meios próprios.
E, naturalmente, como, de resto, é jurisprudência constante e pacífica deste Tribunal, para que possa merecer acolhimento o pedido de habeas corpus é ainda necessário que a ilegalidade da prisão seja actual - actualidade reportada ao momento em que é apreciado o pedido.
Baixando ao caso concreto.
Não há margem para dúvida que o enquadramento legal preciso e concreto da pretensão do requerente reside na alínea c) do nº 2 do artigo 222º do CPPenal – prisão ilegal por se manter para além dos prazos fixados pela lei.
Importa, assim, saber se está ultrapassado o período de tempo que o legislador entendeu como razoável que, funcionando como uma causa de certeza para quem está aprisionado, igualmente se apresenta como um corolário do princípio da proporcionalidade, pois reflete / sufraga os limites temporais de restrição admissível do valor liberdade constitucionalmente albergado, cfr. neste sentido, António Gama e outros, Caiado, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, III, 592.
Vejamos, então, o artigo 215.º, as normas incriminatórias e suas molduras penais abstractas.
Dispõe o artigo 215.º CPPenal, sob a epígrafe de “prazos de duração máxima da prisão preventiva”, que,
“1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:
a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;
c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;
d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos (…)”.
Está o arguido indiciado pela prática de,
- 4 crimes de roubo qualificado, pp. e pp. pelo artigo 210.º/1 e 2 alínea b) CPenal, a que corresponde a moldura penal abstracta de prisão de 3 a 15 anos de prisão;
- 7 crimes de roubo, pp. e pp. pelo artigo 210.º/1 CPenal e,
- 1 crime de roubo, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 210.º/1 CPenal.
Os crimes de roubo, como os cometidos pelo arguido, definem-se como crimes complexos e pluriofensivos por atentarem contra bens jurídicos patrimoniais – «direito de propriedade e de detenção de coisas móveis alheias» – e contra “bens jurídicos de ordem eminentemente pessoal» – os quais merecem tutela a nível constitucional – artigos 24.º (direito à vida), 25.º (direito à integridade pessoal), 27.º (direito à liberdade e à segurança) e 64.º (proteção da saúde) da CRP”, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 1.3.2023, processo 978/21.0GCALM.S1, in www.dgsi.pt.
Por outro lado, os 8 crimes de roubo simples (consumados e tentado) constituem criminalidade violenta, nos termos previstos pela alínea j) do artigo 1.º CPPenal e os 4 crimes de roubo qualificado constituem criminalidade especialmente violenta, nos termos previstos pela alínea l) da mesma disposição legal, sendo puníveis com pena de prisão superior a oito anos, sendo as suas vítimas legalmente consideradas como “especialmente vulneráveis”, cfr. artigos 1.º alíneas j) e l) e 67.º-A/1 alínea b) e 3 CPPenal - cuja repressão o legislador erigiu como um dos objetivos específicos da política criminal, quer no biénio de 2020-2022, cfr. artigo 3.º alínea a) da Lei 55/2020, de 27 de agosto, quer no actual biénio de 2023-2025, cfr. artigo 3.º alínea a) da Lei 51/2023, de 28 de agosto.
Incontornavelmente, estamos no âmbito da previsão contida no proémio do n.º 2 do artigo 215.º CPPenal, elevação do prazo de 4 meses – prazo que o requerente tem por aqui aplicável - para 6 meses – situação e enquadramento que o requerente descura e em que não atenta.
E, assim, estando o requerente sujeito à medida de prisão preventiva desde 10.10.2024, o prazo de duração máxima ainda não foi atingido. Apenas o será a 10.4.2025.
Até esta data terá de ser proferida a acusação, se for caso disso.
Sem necessidade de outros considerandos, resta, pois, concluir que o requerente se encontra preso preventivamente, por força de uma decisão judicial exequível, proferida pelo juiz de instrução competente, motivada por quadro factual que a lei permite, mostrando-se respeitados os respetivos limites de tempo fixados por lei.
E, assim sendo, perante a não verificação do fundamento invocado pelo requerente e, nenhum outro se vislumbrando, há que indeferir a peticionada providência.
III. Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este colectivo da 5.ª Secção Criminal, ao abrigo do disposto no artigo 223.º/4 alínea a) CPPenal, em indeferir, por falta de fundamento legal, o pedido de habeas corpus peticionado pelo requerente AA.
Custas pelo requerente, fixando em 4 (quatro) UC,s a taxa de justiça, devida, cfr. artigo 8.º/9 do Regulamento Custas Processuais e Tabela III, anexa.
O Acórdão foi processado em computador e elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artigo 94.º/2 CPPenal), sendo assinado pelo próprio, pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pela Senhora Juíza Conselheira Presidente da Secção.
Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Março de 2025
Ernesto Nascimento (Relator)
Ana Paramés (1.ª Adjunta)
José Piedade (2.º Adjunto)
Helena Moniz (Presidente da secção)