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ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
RENUNCIA AO DIREITO
ABUSO DO DIREITO
SUPPRESSIO
Sumário
I - O direito a alimentos reveste-se das caraterísticas de indisponibilidade e impenhorabilidade, pois não pode ser renunciado ou cedido, não é penhorável e o obrigado não pode livrar-se por meio de compensação, neste último caso ainda que se trate de prestações já vencidas. Todavia, os alimentos podem deixar de ser pedidos e pode haver renúncia quanto a prestações vencidas (art. 2008º, do CC). II - A renúncia é uma forma de extinção do direito que ocorre por mera declaração unilateral de vontade emitida pelo respetivo titular. Em obediência ao princípio da liberdade de forma ou da consensualidade consagrado no art. 219º do CC, a declaração de renúncia pode ser expressa ou tácita (art. 217º do CC), mas tem sempre de ter lugar de maneira clara e inequívoca. III - “Na declaração tácita, entre os factos concludentes e a declaração há um nexo de presunção, juridicamente lógico-dedutivo. A declaração não é formada pelos factos concludentes, deduz-se deles”, cabendo ao juiz apurar se, de certo comportamento, se pode deduzir, de modo indireto, mas com toda a probabilidade, certa vontade negocial. IV - Desacompanhado de outros elementos e considerado por si só, o mero decurso do tempo nada permite presumir quanto à (in)existência de qualquer renúncia ao exercício do direito, pois dele não se infere nenhuma vontade, sendo absolutamente inócuo para tal efeito. IV - Desacompanhado de outros elementos e considerado por si só, o não acionamento dos meios coercivos nada permite presumir quanto à desnecessidade de alimentos. V - A necessidade/capacidade económicas do credor em contraponto com as do devedor não podem servir de bitola para aferir da existência de excesso manifesto dos limites impostos pelo fim social ou económico do direito.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
RELATÓRIO AA (progenitora) e BB (filho) vieram deduzir incidente de incumprimento das responsabilidades parentais contra BB, invocando o incumprimento, por parte deste, da prestação alimentar judicialmente fixada.
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Decorrida a normal tramitação dos autos (que optamos por não descrever porquanto se encontra referida nas conclusões de recurso infra transcritas), em 7.6.2024, foi proferida decisão (ref. Citius 191012539), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, com o seguinte teor decisório:
“Em suma, seja pela via do abuso de direito, seja pela via da renúncia ou, ainda, pela concorrência de um facto impeditivo / extintivo, é de concluir que se extinguiu o direito, por banda dos requerentes, a exigir a quantia correspondente ao diferencial entre as prestações devidas ao filho menor e maior não emancipado e as prestações pagas pelo requerido, a título de cumprimento parcial. Pelo exposto, indefere-se o requerido. Custas pelos requerentes. Registe e notifique.”
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Os requerentes não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões: “1.ª Os Recorrentes entendem que não renunciaram, tacita ou expressamente a algum direito, ao contrário da decisão recorrida; 2.ª Conforme consta dos autos: a) A 27.01.2023, os Recorrentes apresentaram o incidente de incumprimento, (Ref. CITIUS 14078279); b) A 06.02.2023, foi proferido despacho para o Requerido se pronunciar, com a cominação de que não provasse documentalmente o pagamento ter-se-ia, como provado o incumprimento (Ref. CITIUS 183323553); c) a 17.07.2023, o Requerido apresentou as suas alegações (Ref. CITIUS 14863775), admitindo, ainda que de forma subtil, que não tinha pago as pensões de alimentos; d) a 31.10.2023, os Recorrentes pronunciaram-se sobre o as alegações do Requerido, peticionando que fosse declarado o incidente de não cumprimento – o que não sucedeu – uma vez que o Requerido não fez prova do pagamento (Ref. CITIUS 15267222); e) a 19.12.2023, foi realizada conferencia de pais, não tendo havido acordo, tendo ainda os Recorrentes notificados para discriminarem mês a mês os valor em divida, mas tendo sido o Requerido notificado para “se pronunciar sobre o alegado incumprimento, para querendo impugnar especificadamente cada um dos incumprimentos que lhe é imputado, ficando o mesmo desde já advertido de que se não provar documentalmente o pagamento das quantias agora indicadas, ter-se-á como provado o alegado incumprimento, sem prejuízo de eventuais ilações jurídicas que o tribunal venha a extrair da situação.” (Ref. CITIUS 188247066); f) a 17.01.2024, vieram os Recorrentes dar cumprimento ao ordenado, juntando requerimento, onde explicaram tudo o que foi pago, tudo o que estava em dívida, bem como o modo como receberam (seja através dos apensos, seja através do processo de insolência que recaiu sobre o Requerido) – cfr. Ref CITIUS 15609507; g) A 21.02.2024, o Requerido pronunciou-se, não tendo feito prova de mais algum pagamento que não fossem aqueles que resultaram da penhora promovida pelos Recorrentes (Ref. CITIUS 15777962); h) a 25.02.2024, foi proferido despacho para que “Repita o oficio de notificação, dando cumprimento ao que consta da ata, devendo o progenitor ser devidamente notificado para se pronunciar sobre o alegado incumprimento, para querendo impugnar especificadamente cada um dos incumprimentos que lhe é imputado, ficando o mesmo desde já advertido de que se não provar documentalmente o pagamento das quantias agora indicadas, ter-se-á como provado o alegado incumprimento, sem prejuízo de eventuais ilações jurídicas que o tribunal venha a extrair da situação.”, sendo que o Requerido não mais se pronunciou (Ref CITIUS 189326904) 3.ª Ora os autos demonstram que o Requerido incumpriu o seu dever de pagamento das pensões, tendo até numa primeira fase sido notificado que caso não demonstrasse documentalmente o pagamento das quantias em divida, seria declarado o incidente de incumprimento, o que não sucedeu, como se percebeu, pelo que a decisão recorrida não deixa de ser em certa medida uma surpresa; 4.ª Por outro lado os Recorrentes não tiveram uma conduta que resultasse numa inercia e se traduzisse, numa renúncia ou qualquer abuso de direito; 5.ª Ora, o apenso dos autos corresponde ao quinto, ou seja, os Recorrentes, por mais de uma vez tiveram de recorrer a juízo para verem satisfeitas as suas pretensões, relacionadas com o pagamento da pensão de alimentos; 6.ª Para alem dos vários incidentes, os Recorrentes também tentaram obter o pagamento que era devido pelo Recorrido, através do processo de Insolvência, tanto assim é que demonstraram ter recebido parte das quantias em divida em momentos diferentes. 7.ª Assim, não pode concluir que houve uma inação dos Recorrentes, por um lado, não se podendo afirmar que existiu um hiato de 23 anos sem que os Recorrentes nada tivessem feito, já que os os autos demonstram o contrário; 8.ª E mesmo que hipoteticamente tal tivesse existido, não significa que estejamos perante uma renúncia a um direito, já que o Requerido não estaria desobrigado a não pagar pelo facto de nada lhe ter sido judicialmente exigido; 9.ª A obrigação alimentar, por parte do progenitor, a partir, sobretudo do momento em que se encontra regulada judicialmente, não carece de interpelações constante, pois é continua e apenas cessa com maioridade do menor ou que o mesmo perfaça 25 anos, nas situações em que ainda encontra a estudar – o que é o caso. 10.ª Tal direito - o da prestação de alimentos- é irrenunciável e indisponível!; 11.ª Neste sentido veja-se a Jurisprudência, nomeadamente o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 22.10.2020, sob o processo n.º 2216/19.7T8BCL.G1, in www.dgsi.pt, que sumaria o seguinte: “I - A essencialidade de que se reveste a prestação de alimentos a filho menor impõe ao tribunal que lhe confira o necessário conteúdo e lhe assegure o efetivo cumprimento, rodeando-a de defesas que a tornem imune às vicissitudes do relacionamento dos progenitores. II - A compreensão da obrigação de alimentos, posta no plano do direito inerente à personalidade do alimentando e constituindo como tal um direito irrenunciável e indisponível, leva a considerar que, em caso de incumprimento, a sua exigibilidade só em casos muito extremos constituirá um abuso de direito. II - O crédito a alimentos é irrenunciável, incedível, não suscetível de compensação e impenhorável, pelo que não se crê como legítima, em tese, a expectativa do progenitor obrigado, ciente da sua obrigação de prestar alimentos, de não mais proceder ao pagamento, pelo simples facto de não ter sido exigido o cumprimento durante um lapso de tempo. III - Apresenta-se como intolerável em face da importância que a ordem jurídica atribui à prestação de alimentos que, mesmo em caso de convivência em comum, o progenitor obrigado pudesse livremente substituir a prestação de alimentos por outras despesas, eventualmente mais do seu interesse em manter regularizadas. IV – A regulação das responsabilidades parentais não cessa os seus efeitos simplesmente pelo facto de os progenitores manterem ou retomarem a convivência em comum. V - A única via de alterar a regulação das responsabilidades parentais fixada, em caso de retoma da convivência em comum, é por meio de comunicação ao processo da regulação pedindo a declaração de cessação da regulação das responsabilidades parentais em relação aos seus filhos menores, uma vez que o pressuposto básico que a sustentou deixou de existir.” 12.ª Ou ainda o Acórdão da Relação do Porto de 13.06.2019, sob o processo n.º 1411/18.0T8GDM.P1, in www.dgsi.pt cujo sumário se transcreve: “I - Recai sobre o progenitor devedor da prestação de alimentos o ónus de fazer cessar os efeitos da regulação realizada em 2005, de modo a que se desvinculasse da prestação de alimentos tal como fora fixada em sentença. II - Os direitos e as obrigações constituídas pela sentença de regulação das responsabilidades parentais não são exigíveis durante o período em que o casal se encontre reconciliado e conviva em comum. III - O abuso do direito - art. 334.º do CC -, na modalidade da supressio, verifica-se com o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido. IV - No âmbito dos alimentos devidos a menores, pela sua própria natureza, isto é, por se encontrar intimamente relacionado com a dignidade da vida humana dos filhos, radicando numa ideia de justiça social e de imprescindibilidade para o sustento dos menores, não se compadece com a admissão da aplicação da supressio no caso como o dos autos.”. 13.ª No mesmo sentido veja ainda o Acórdão da Relação de Coimbra de 08.03.2022, sob o processo n.º 610/17.7T8CVL-B.C1, também in www.dgsi.pt 14.ª Pelo que a decisão não de pode manter, devendo ser substituída por outra que condene o Requerido ao pagamento das pensões peticionais, face à sua confissão. 15.ª A decisão recorrida violou ou fez errada interpretação dos artigos 2003.º, 2004.º, 2008.º, do Código Civil e 41º do RGPTC, e das demais deposições legais que V. Exas suprirão.”
Terminam pedindo que seja revogada a sentença e seja decretado o incumprimento da pensão de alimentos pelo requerido.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.
OBJETO DO RECURSO
Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Neste enquadramento, a questão a decidir consiste em saber se o direito dos requerentes pode ser exercitado por não ocorrer renúncia, abuso de direito ou facto impeditivo/extintivo.
FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTOS DE FACTO
Embora a decisão proferida na 1ª instância não contenha um elenco autonomizado de factos provados, da sua fundamentação é possível extrair a seguinte factualidade:
“Tendo em conta que, segundo o esclarecimento prestado pelo requerimento com referencia ...69, o requerido pagou voluntariamente quantias no valor total de 1 350,00 euros, que foram descontadas pela segurança social quantias no valor de 2 356, 71 Euros, que receberam no âmbito da Execução constante do apenso C, quantia de 1 204,00 Euros e que nos autos de insolvência a Requerente recebeu a quantia de 1 306,00 Euros e, posteriormente, em sede de novo rateio, recebeu a quantia de 1 302,04 Euros, impõe-se concluir que receberam a quantia total de 7 258,75 Euros, estando em dívida a quantia de 20 186,06 Euros. Ou seja, até o Requerente ter atingido a maioridade são devidos 9 691,07 Euros e desde a sua maioridade até ter atingido os 25 anos, são devidos 10 494,66 Euros, perfazendo a quantia global de 20 186,06 Euros.”
FUNDAMENTOS DE DIREITO
Como resulta do excerto da decisão que se acabou de transcrever, a mesma considerou que, a título de alimentos, se encontra em dívida a quantia global de € 20 186,06 por parte do requerido. O que significa que o incumprimento por parte do requerido se encontra verificado, sendo que, neste segmento, a decisão não foi objeto de recurso, pelo que esta parte da decisão se encontra estabilizada de forma definitiva.
Não obstante ter concluído que o requerido se encontra em incumprimento quanto ao pagamento da quantia global de € 20 186,06, a título de alimentos, a decisão recorrida julgou improcedente a pretensão dos requerentes de obterem o pagamento desse montante. Para o efeito baseou-se em três fundamentos que, em apertada síntese, se traduzem na existência de abuso de direito por parte dos requerentes; na renúncia ao direito, por o mesmo não ter sido exercido durante um largo período temporal; e na existência de facto impeditivo/extintivo do direito, por o seu não exercício fazer presumir que os alimentos eram desnecessários e o credor não carecia dos mesmos.
Os recorrentes discordam deste entendimento com a argumentação expendida nas conclusões supra transcritas.
Por uma questão de precedência lógico-jurídica, comecemos por analisar se ocorreu renúncia aos alimentos fixados e devidos pelo progenitor no âmbito do regime de regulação das responsabilidades parentais.
Conforme estabelecido no art. 36º, nº 5, da CRP, os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.
Em consonância com o princípio constitucional referido, estabelece o art. 1878.º do CC que compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.
Integra o núcleo de deveres das responsabilidades parentais o dever dos pais de prover ao sustento dos filhos e de assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação. Este dever só termina quando os filhos estejam em condições de suportar pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos os mencionados encargos e não termina com a maioridade dos filhos (arts. 1879º e 1880º do CC), mantendo-se a obrigação na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que a formação profissional dos filhos se complete (cf. Helena Melo e Outros in Poder Paternal e Responsabilidades Parentais, pág. 91).
Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário, abrangendo também a instrução e educação do alimentado no caso de este ser menor (art. 2003º, do CC).
Os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los (art. 2004º, do CC).
O direito a alimentos reveste-se das características de indisponibilidade e impenhorabilidade, pois não pode ser renunciado ou cedido, não é penhorável e o obrigado não pode livrar-se por meio de compensação, neste último caso ainda que se trate de prestações já vencidas. Todavia, os alimentos podem deixar de ser pedidos e pode haver renúncia quanto a prestações vencidas (art. 2008º, do CC).
A renúncia é uma forma de extinção do direito que ocorre por mera declaração unilateral de vontade emitida pelo respetivo titular.
Como se explica no acórdão do STJ de 24.2.202 (P 01B4190 in www.dgsi.pt) “ [r]enúncia, em sentido técnico-jurídico, significa (...) o renunciante declarar que, voluntariamente, abdica ou desiste definitivamente do direito (...), o que também corresponde, no essencial, ao sentido do termo, em linguagem comum, em que "renúncia" significa "desistência espontânea ou convencional, que alguém faz de um direito adquirido". Trata-se de uma declaração de vontade unilateral, para a qual a lei não exige qualquer formalidade especial, em obediência ao princípio da liberdade de forma ou da consensualidade consagrado no art. 219º do Cód. Civil, podendo essa declaração ser expressa ou tácita (art. 217º do mesmo Código). Costuma, no entanto, exigir-se que a renúncia seja feita de maneira clara e inequívoca” (sublinhado nosso).
Conforme disposto no art. 217º, do CC:
1. A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
2. O carácter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz.
O art. 217º do CC consagra o princípio da liberdade declarativa, podendo o declarante, salvos os casos especialmente ressalvados na lei, optar livremente pela emissão de uma declaração expressa ou tácita, tendo ambas igual valor declarativo.
Nas declarações expressas, importa que seja usado um meio direto de manifestação da vontade: palavras, escrita, linguagem gestual ou movimentos com relevância declarativa típica (por exemplo acenar com a cabeça para aceitar ou um aperto de mão para concluir um negócio), obrigando as mesmas, pelo menos, à utilização de um meio de comunicação típico, seja este universal, ou usado apenas por um determinado grupo social (cf. Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Vol. I, Universidade Católica Editora, pág. 491).
Nas declarações tácitas “a vontade negocial é manifestada indiretamente, através de comportamentos realizados com outra finalidade mas que, com toda a probabilidade, segundo as regras da experiência, contêm implícita uma determinada vontade negocial (...); estes comportamentos, de onde a vontade negocial se deduz, são os factos concludentes” (Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord), Vol. I, pág. 303).
“Na declaração tácita, entre os factos concludentes e a declaração há um nexo de presunção, juridicamente lógico-dedutivo. A declaração não é formada pelos factos concludentes, deduz-se deles” (Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, página 60), cabendo ao juiz apurar se, de certo comportamento, se pode deduzir, de modo indireto, mas com toda a probabilidade, certa vontade negocial.
Os factos concludentes podem revestir as mais variadas formas, podendo mesmo resultar de palavras, de forma escrita ou até estar incluídos em outras declarações negociais expressas, importando apenas a probabilidade plena de revelarem uma declaração (cf. Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Vol. I, Universidade Católica Editora, pág. 491).
Como se afirma no Acórdão da Relação de Lisboa, de 5.2.2019, (P 6889/17.7T8ALM.L1-7 in www.dgsi.pt)“[o] que distingue, portanto, as duas formas de declaração é a forma direta ou indireta pela qual se manifestam. Uma declaração tácita pode ser escrita, desde que ela não resulte de forma imediata do que está escrito. O n.º 2 do artigo evidencia o que acabamos de dizer («o caráter formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente…»). Como escreve Carlos Ferreira de Almeida, «as palavras não são nem o único meio adequado às declarações expressas nem são meio exclusivo destas. As declarações tácitas podem também ser deduzidas a partir da linguagem, como resulta do n.º 2 do preceito, no qual se prevê a emissão tácita de declarações cuja base significante consta de documento escrito.» (Contratos I, 4.ª ed., Almedina, 2008, p. 97).”
Em suma e em conclusão, podemos afirmar, recorrendo às palavras usadas no Acórdão do STJ, de 24.5.2007 (P 07A988 in www. dgsi.pt), que“[n]a determinação da concludência do comportamento em ordem a apurar o respectivo sentido, nomeadamente enquanto declaração negocial que dele deva deduzir-se com toda a probabilidade, é entendimento geralmente aceite que “a inequivocidade dos factos concludentes não exige que a dedução, no sentido do auto-regulamento tacitamente expresso seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade”, devendo ser “aferida por um critério prático”, «baseada numa “conduta suficientemente significativa” e que não deixe “nenhum fundamento razoável para duvidar” do significado que dos factos se depreende» (AA. ob. e loc. cits.; RUI DE ALARCÃO, (“A Confirmação dos Negócios Anuláveis”, I, 192); Ac. STJ de 16/01/07 – Proc. n.º 4386/06-1 e de 04/11/04, Proc. 05A1247-ITIJ).”
A sentença recorrida considerou que existe renúncia ao direito por parte dos requerentes recorrendo à seguinte fundamentação:
“Por outro lado, esta inércia dos requerentes, ao longo de 23 anos, que pouco ou nada fizeram para obter o cumprimento coercivo do diferencial em causa, não é axiologicamente neutra. Como bem nota J.P. Remédio Marques, Algumas Notas Sobre Alimentos (devidos a menores), “versus” O Dever de Assistência dos Pais Para Com Os Filhos (em especial filhos menores), pág. 171, nota 225, “ a inércia do credor habilita a prova, por parte do devedor, da existência da renúncia”. Ainda segundo alguma doutrina e Jurisprudência francesas, que o autor cita, a inércia do credor habilita a prova, por parte do devedor, “ ... de um facto impeditivo do direito do credor – o de que o credor não carecia dos alimentos, por isso mesmo não os cobrou, a despeito de já se encontrarem judicialmente fixados” - sublinhado nosso. Ora, ao aceitarem o cumprimento parcial das prestações devidas ao filho menor e depois maior e ao optarem por não exercer qualquer direito com vista à cobrança coerciva do diferencial entre essas prestações e aquelas em que se traduzia o cumprimento parcial do requerido, ao longo de 23 anos, os requerentes assumiram um comportamento que a ordem jurídica valora como renúncia, enquanto causa de extinção de direitos. Por outro lado, se ao longo desses 23 anos de prestações alimentícias vencidas, os requerentes pouco ou nada fizeram para obter o cumprimento coercivo desse diferencial, foi porque não careciam da quantia correspondente, de tal forma que não sentiram necessidade de a cobrar, a despeito de tal prestação, na sua integralidade, se encontrar judicialmente fixada. Note-se que, também o nosso legislador terá consagrado este entendimento, quando prescreveu, no art. 2.006º do C.C., que “ os alimentos são devidos desde a propositura da ação ”. Na verdade, presume o nosso legislador – e bem – que se o credor não intentou antes a ação de regulação do poder paternal, para obter a fixação da pensão de alimentos, apesar da situação de incumprimento remontar a um período anterior, é porque deles não precisou. Do mesmo jeito, se depois de judicialmente fixada a pensão de alimentos, o credor não acionou os mecanismos com vista a obter o cumprimento coercivo da prestação fixada, na sua integralidade, é porque se conforma com o cumprimento parcial, o que faz presumir a desnecessidade relativamente à quantia correspondente ao diferencial.”
Em primeiro lugar, importa referir que a muito exígua factualidade que se consegue extrair da decisão recorrida - posto que a mesma não procedeu, como devia, ao elenco autónomo dos factos provados e não provados - não suporta a conclusão alcançada de que os requerentes pouco ou nada fizeram durante 23 anos com vista à cobrança de alimentos, conclusão essa que serve de pressuposto para considerar que integra um comportamento concludente da existência de renúncia tácita ao direito de alimentos.
Ao invés, dessa escassa factualidade resulta que os requerentes tentaram cobrar as prestações alimentícias e até conseguiram obter pagamento parcial, pois, como se escreveu na decisão recorrida, “o requerido pagou voluntariamente quantias no valor total de 1 350,00 euros, que foram descontadas pela segurança social quantias no valor de 2 356, 71 Euros, que receberam no âmbito da Execução constante do apenso C, quantia de 1 204,00 Euros e que nos autos de insolvência a Requerente recebeu a quantia de 1 306,00 Euros e, posteriormente, em sede de novo rateio, recebeu a quantia de 1 302,04 Euros”.
Portanto, não resultando da factualidade constante dos autos que os requerentes pouco ou nada fizeram durante 23 anos para cobrar os alimentos, fica desde logo afastada a premissa em que se baseia a decisão recorrida para considerar que existe renuncia tácita o que, só por si, basta para concluir que não ocorreu qualquer renúncia.
Não obstante, sempre se dirá, em acréscimo, que, mesmo que a factualidade atinente à inércia de cobrança estivesse provada, ainda assim não seria possível concluir pela existência de renúncia tácita ao direito.
E falamos apenas de renúncia tácita porque é incontroverso que não houve qualquer renúncia expressa, uma vez os requerentes nunca emitiram qualquer declaração direta a abdicar do direito.
Já acima delineámos os termos em que pode ocorrer uma declaração tácita e concluímos que a renúncia a um direito pode ocorrer de forma tácita. Por outro lado, embora o direito a alimentos seja irrenunciável, é possível renunciar às prestações já vencidas.
Essa renúncia tem que decorrer de forma segura, clara e inequívoca do facto concludente de forma a que, a partir deste, se possa presumir que houve uma real e verdadeira intenção voluntária do credor de renunciar às prestações de alimentos vencidas.
Ora, percorrendo a escassa e exígua factualidade que se consegue extrair da decisão recorrida, a mesma não suporta a existência de qualquer tipo de intenção dos requerentes de renunciarem às prestações de alimentos já vencidas.
E essa intenção não se pode extrair do mero decurso de um período temporal alargado entre o vencimento de cada uma das prestações e a instauração do incidente de cumprimento.
Desacompanhado de outros elementos e considerado por si só, o mero decurso do tempo nada permite presumir quanto à (in)existência de qualquer renúncia ao exercício do direito pois dele não se infere nenhuma vontade, sendo absolutamente inócuo para tal efeito. Dito de outro modo, o decurso do tempo, por si só, significa apenas que, até àquele concreto momento, o direito não foi exercido; mas já não significa que, mercê da inação ocorrida, não será exercido no futuro pois, de acordo com a lei e as regras da experiência comum, enquanto não decorrer o prazo de prescrição, o credor, pode sempre legitimamente vir a exercer o direito que possui, tanto mais que o direito a alimentos é irrenunciável quanto às prestações vincendas.
Por conseguinte, no concreto caso sub judice, não se considera correto o entendimento perfilhado na decisão recorrida de que houve renúncia por parte dos requerentes às prestações de alimentos.
Por outro lado, embora em tese seja possível defender que “ a inércia do credor habilita a prova, por parte do devedor, da existência da renúncia”, habilitando “a prova, por parte do devedor, ‘ ... de um facto impeditivo do direito do credor – o de que o credor não carecia dos alimentos, por isso mesmo não os cobrou, a despeito de já se encontrarem judicialmente fixados”, como o faz a decisão recorrida, citando Remédio Marques, no caso concreto em análise tal prova não se mostra efetuada visto que nada resulta sobre essa matéria da factualidade considerada na decisão.
E não é legítima a presunção a que chega a decisão recorrida dizendo que, se “o credor não acionou os mecanismos com vista a obter o cumprimento coercivo da prestação fixada, na sua integralidade, é porque se conforma com o cumprimento parcial, o que faz presumir a desnecessidade relativamente à quantia correspondente ao diferencial.”
Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 349º do CC).
Assim, ao conhecimento de um determinado facto – facto-base – associa-se um outro que, apesar de desconhecido, se dá como assente como consequência da prova do primeiro – facto presumido. À presunção encontram-se subjacentes regras de probabilidade e de experiência comum que fazem associar o facto desconhecido ao facto conhecido, existindo entre o facto-base e o facto presumido um nexo lógico (cf. Rita Lynce de Faria in Comentário ao Código Civil, Parte Geral pág. 823).
Ora, em nosso entender, se o credor não aciona os mecanismos para obter o cumprimento coercivo (o que, como já acima referimos, no caso, nem sequer aconteceu), isso nada significa quanto a ter, ou não, necessidade de alimentos, tratando-se de realidades distintas que, segundo as regras da lógica e a da experiência comum, não se encontram interrelacionados por um nexo lógico. De referir que o credor pode não ter acionado esses meios por um variado conjunto de motivos ou causas, tanto mais que, no caso de créditos de alimentos, existem relações familiares e pessoais próximas entre credor e devedor que podem explicar e justificar o não acionamento de meios coercivos, apesar de se manter a necessidade de alimentos. Assim, e à semelhança do que, conforme já supra explanámos, ocorre com o mero decurso do tempo, o não acionamento dos meios coercivos, por si só, nada permite presumir quanto à desnecessidade de alimentos.
Por conseguinte, no concreto caso sub judice, não se considera correto o entendimento perfilhado na decisão recorrida de que não existe necessidade de alimentos, o que integra um facto impeditivo/extintivo do direito.
A sentença recorrida considerou que existe abuso de direito por parte dos requerentes recorrendo à seguinte fundamentação: “Mas, não é menos certo que o princípio do cumprimento pontal dos contratos, previsto no art. 406º do C.C., não afasta o regime geral da figura do abuso de direito, prevista pelo art. 334º do C.C.. De resto, um dos princípios gerais que rege em matéria de cumprimento das obrigações em geral, e desta em particular, é o princípio da correspondência ou equivalência das atribuições patrimoniais, isto é, no caso concreto, ao sacrifício do requerido deve corresponder uma atribuição patrimonial para o menor e para o maior não emancipado (pois que é só deste que agora se trata), que torne aquele sacrifício justificável, à luz do princípio da justiça cumutativa. Jacinto Bastos, em Notas ao Código Civil, Volume II, 1988, pág. 103, avança com uma noção doutrinária de abuso de direito, como o “ exercício de qualquer direito de forma anormal à sua intensidade, ou à sua execução, de modo a comprometer o gozo de direitos de terceiros e a criar uma desproporção objetiva entre a titularidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências que os outros têm de suportar”. Ora, no caso dos autos, segundo se crê, o reconhecimento pelo Tribunal da pretensão dos requerentes em obterem, o direito ao diferencial entre as prestações devidas ao filho, durante a menoridade e depois, durante a maioridade enquanto ainda estudava e as prestações pagas pelo requerido, a título de cumprimento parcial, redundaria numa desproporção entre a situação social típica pré-figurada pela norma, que prevê e regula o dever de assistência do requerido para com o filho, e o resultado prático desse exercício, por banda dos requerentes, tanto mais que nesta altura, o jovem já tem 28 anos, há muito concluiu seus estudos. Ora, neste quadro, a exigibilidade da quantia correspondente ao diferencial entre as prestações devidas ao filho e as prestações pagas pelo requerido, a título de cumprimento parcial, redundaria num esforço económico grotesco para o requerido, pois que não dispõe de rendimentos ou sequer de economias que lhe permitam fazer face a esse pagamento, esforço esse a que não corresponde qualquer contrapartida económica de relevo para o filho em causa, perspetivada esta à luz do fim económico e social que está subjacente à norma legal que consagra o dever de assistência dos pais aos filhos (menores e maiores), pois que nesta altura o jovem de 28 anos, já deles não carece, visando a progenitora e o jovem por esta via, constituir uma espécie de poupança e não satisfazer qualquer obrigação alimentar. É, pois, evidente que, o exercício de um tal direito, nas circunstâncias em que o foi, ultrapassa a bitola que dita a desproporção tolerável a partir da qual há abuso. Nessa medida, o exercício desse direito é ilegítimo, por abusivo, porquanto contraria o fim económico e social que esteve subjacente à norma legal que o concebeu.”
Mais uma vez não se afigura possível acolher ou sufragar este entendimento, pelas razões que passaremos a explicar.
Sob a epígrafe “abuso do direito”, prescreve o art. 334º do Código Civil que éilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A justificação do instituto do abuso do direito assenta em razões de justiça e de equidade e prende-se com o facto das normas jurídicas serem gerais e abstratas.
O instituto do abuso de direito é uma verdadeira “válvula de segurança” para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, é uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de todo o ato ilícito (Ac. do STJ, de 23.1.2014, in www.dgsi.pt).
Poder-se-á dizer que ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante (Ac. da Relação de Coimbra, de 9.1.2017, in www.dgsi.pt).
Há abuso de direito quando o direito, em princípio legítimo e razoável, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante.
Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório e ofensivo daqueles valores.
Para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que lançar mão dos valores éticos predominantes na sociedade e para os impostos pelo fim social ou económico do direito deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei (Ac. do STJ, de 23.1.2014, in www.dgsi.pt).
A nossa lei adota a conceção objetiva do abuso do direito pois não exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo. Não é por isso necessário que o titular do direito tenha a consciência de que, ao exercê-lo, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico; basta que objetivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente para que se considere preenchida a atuação com abuso de direito.
Nas palavras de Antunes Varela (in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128º, pág. 241), o abuso de direito é um instituto que rege para as situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo.
O abuso de direito pode revestir inúmeras modalidades, nomeadamente as de suppressio e de desequilíbrio, que são aquelas que se mostram pertinentes à situação em apreço.
A suppressio designa a posição do direito subjetivo ou, mais latamente, a de qualquer situação jurídica, que, não tendo sido exercida em determinadas circunstâncias e por um certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé.
A boa fé significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.
Os sujeitos de determinada relação jurídica devem atuar como pessoas de bem, com correção e probidade, de modo a contribuir, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica (Ac. da Relação de Lisboa, de 24.4.2008, in www.dgsi.pt).
A verificação do abuso de direito, na modalidade de suppressio, exige, além do não exercício do direito por um certo lapso de tempo, que o titular do direito se comporte como se o não tivesse ou como se não mais o quisesse exercer, que a contraparte haja confiado em que o direito não mais seria feito valer, que o exercício superveniente do direito acarrete para a contraparte uma desvantagem iníqua.
O abuso de direito na modalidade do desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados abrange subtipos diversificados, sendo de destacar, por serem os que ao caso interessam, o exercício de direito sem qualquer benefício para o exercente e com dano considerável a outrem e o da desproporção entre a vantagem obtida pelo titular do direito exercido e o sacrifício por ele imposto a outrem.
De todo o modo, para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, do Código Civil, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de direito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a extensas congeminações.
Haverá abuso de direito, segundo o critério proposto por Coutinho de Abreu "quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumental e na negação de interesses sensíveis de outrem" (in Abuso de Direito, p. 43).
Configura-se, assim, um comportamento antijurídico que se caracteriza pelo exercício anormal do direito próprio, que não pela violação de um direito de outrem ou pela ofensa de uma norma tuteladora de um interesse alheio.
E para que o abuso de direito exista, não basta que o exercício do direito pelo seu titular cause prejuízo a alguém - a atribuição de um direito traduz deliberadamente a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com aqueles confluentes, sendo necessário, sim, que o titular dele manifestamente exceda os limites que lhe cumpre observar, impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do próprio direito exercido (cf. Acórdãos da Relação de Guimarães de 2.7.2009, do STJ de 1.7.2004, da Relação de Coimbra, de 2.12.2003 in www. dgsi.pt; do STJ de 19.10.2000, in CJ, Ano VIII, Tomo III-2000, pág. 83 a 84).
Revertendo agora ao caso em apreço e analisando a questão à luz da factualidade que se consegue extrair da decisão recorrida, não é de todo possível concluir que os requerentes atuam em abuso de direito.
Como já acima referimos e aqui repetimos, os requerentes não estiveram 23 anos sem exercer o direito, pois tentaram cobrá-lo durante esse período temporal, o que se conclui do facto terem sido descontadas quantias pela segurança social e de terem sido recebidas quantias no âmbito da Execução constante do apenso C e no âmbito do processo de insolvência.
Acresce que, da factualidade provada, nada se consegue extrair que permita concluir que os titulares do direito se tenham comportado como se não o tivessem ou como se não mais o quisessem exercer, de modo a permitir que a contraparte haja legitimamente confiado que o direito não mais seria feito valer.
Assim, não ocorre abuso de direito na modalidade de supressio.
Por outro lado, não se vislumbra como se consegue concluir da escassíssima matéria de facto provada as considerações feitas na decisão recorrida de que o pagamento das pensões de alimentos em falta “redundaria num esforço económico grotesco para o requerido, pois que não dispõe de rendimentos ou sequer de economias que lhe permitam fazer face a esse pagamento, esforço esse a que não corresponde qualquer contrapartida económica de relevo para o filho em causa, perspetivada esta à luz do fim económico e social que está subjacente à norma legal que consagra o dever de assistência dos pais aos filhos (menores e maiores), pois que nesta altura o jovem de 28 anos, já deles não carece, visando a progenitora e o jovem por esta via, constituir uma espécie de poupança e não satisfazer qualquer obrigação alimentar.”
Para além da concreta matéria de facto provada não dar aporte a estas conclusões, mesmo em geral elas não são sustentáveis.
Com efeito, a falta de meios económicos do requerido para efetuar o pagamento da pensão de alimentos não pode singelamente constituir fundamento jurídico válido para que o mesmo fique automaticamente desonerado das suas obrigações. Quando o requerido ficou numa situação económica que o impedia de satisfazer a pensão de alimentos tinha a obrigação de ter pedido a alteração ou cessação dessa pensão para validamente se desonerar do seu cumprimento, o que não ocorreu.
Acresce que não há nenhum esforço económico grotesco para o requerido quanto ao pagamento porque, ainda que o incumprimento seja declarado, o pagamento coercivo e efetivo só terá lugar na medida em que o mesmo possua bens, direitos ou rendimentos que lhe permitam efetuar esse pagamento. E há que relembrar que, no caso de penhora de bens, direitos e rendimentos, está sempre salvaguardado o núcleo daqueles que por lei são considerados imprescindíveis para assegurar a subsistência do devedor e que, nessa medida, são considerados impenhoráveis (cf. por exemplo, os arts. 737º, nºs 2 e 3, 738º, nºs 4 e 5, 739º, do CPC)
E não se vê que se possa afirmar que não existe qualquer contrapartida económica de relevo para o filho, nem se encontra qualquer aporte factual para dizer que os requerentes pretendem constituir uma poupança.
O requerente, durante o período em que tinha direito a alimentos, não os recebeu, pelo que teve de encontrar meios alternativos para satisfazer as suas necessidades, desconhecendo-se como o fez. Poderá inclusivamente ter recorrido a empréstimos de amigos e/ou familiares, como vulgarmente acontece em situações desta natureza, os quais tenha agora de reembolsar.
Independentemente de nada se saber em concreto sobre o modo como o requerente supriu as suas necessidades no período em que os alimentos devidos não foram pagos, o que resulta dos autos é que houve um efetivo incumprimento, o qual se cifra na quantia de € 20 186,06.
Ora, não é juridicamente lícito confrontar a situação económica do requerido e a sua incapacidade económica para efetuar o pagamento com a capacidade/necessidade do credor para efeitos de concluir que há abuso de direito.
Este tipo de raciocínio seguido na decisão recorrida, se aplicado como princípio geral noutras situações, implicaria, por exemplo, que credores com grande capacidade económica, como sejam os bancos, não poderiam acionar os seus devedores por créditos à habitação, pois o sacrifício do devedor não corresponderia a uma atribuição patrimonial para o banco que tornasse aquele sacrifício justificável, à luz do princípio da justiça cumulativa, visto que para o devedor está em causa o direito à habitação e para o banco o direito ao lucro.
Ora, tal não pode suceder, e a necessidade/capacidade económica do credor em contraponto com as do devedor não podem servir de bitola para aferir da existência de excesso manifesto dos limites impostos pelo fim social ou económico do direito.
Não se vislumbra, assim, à luz da factualidade provada, que o exercício do direito não tenha qualquer benefício para os requerentes e provoque dano considerável ao requerido, nem que haja desproporção entre a vantagem obtida pelos requerentes e o sacrifício imposto ao requerido.
Nessa medida, não se pode considerar que o exercício do direito pelos requerentes seja ilegítimo, por abusivo, e que contrarie o fim económico e social que esteve subjacente à norma legal que o concebeu, pelo que se discorda da decisão recorrida e se considera que não existe abuso de direito por parte dos requerentes.
Nestes termos, procede o recurso e a decisão recorrida tem que ser revogada, devendo ser declarado verificado o incumprimento do requerido quanto ao pagamento das pensões de alimentos, estando em dívida a quantia de € 20 186,06.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue a ação, algum dos seus incidentes ou o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Assim, as custas do incidente de incumprimento ficam a cargo do recorrido por ser parte vencida.
Já quanto ao recurso, embora este tenha sido julgado procedente, os recorrentes são responsáveis pelo pagamento das custas, atento o critério do proveito, em conformidade com a disposição legal citada, porquanto o requerido não sustentou nos autos a posição que foi sufragada na decisão recorrida e que obrigou à interposição do recurso, tratando-se de matéria que foi suscitada e conhecida oficiosamente, não podendo, por isso, o recorrido ser considerado parte vencida.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida e consideram verificado o incumprimento do requerido quanto ao pagamento das pensões de alimentos, estando em dívida a quantia de € 20 186,06.
As custas do incidente de incumprimento são suportadas pelo recorrido, por nele ter ficado vencido.
As custas do recurso são suportadas pelos recorrentes, atento o critério do proveito.
Notifique.
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Guimarães, 6 de março de 2025
(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Susana Raquel Sousa Pereira
(2º/ª Adjunto/a) Alexandra Maria Viana Parente Lopes