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MAIOR ACOMPANHADO
REVISÃO DA MEDIDA
CONTRADITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário
(i) As medidas de acompanhamento de maiores, estando relacionadas com o exercício da capacidade judiciária, estão sujeitas a controlo periódico pelo tribunal, a realizar por via do incidente de revisão, o qual importa a reabertura do processo onde foram decretadas. (ii) Esse controlo tem de ser efetivo e realizado com respeito pelo princípio do contraditório, pelo que, antes de decidir a revisão da medida, deve ser facultada ao beneficiário, quando não seja ele próprio o requerente, a possibilidade de se pronunciar, não apenas sobre a proposta, mas também sobre as diligências instrutórias a realizar. (iii) A decisão de revisão que seja proferida sem a observância desse contraditório prévio, vista enquanto trâmite processual, constitui um ato cuja prática não é permitida pela lei, sendo assim subsumível à previsão do n.º 1 do art. 195, pelo que pode ser impugnada, nessa estrita dimensão, por via de reclamação, ut art. 196. (iv) Mas, no seu conteúdo, porque assente num equívoco do juiz quanto à realidade processual ou à interpretação da lei adjetiva (decisão pressuponente), enferma de um error iudicando, podendo ser, com este fundamento, impugnada por via recursória. (v) A impugnação por via recursória, mais garantística, preclude a possibilidade de impugnação por via reclamatória.
Texto Integral
I.
1).1. No dia 5 de setembro de 2019, o Ministério Público intentou ação especial de acompanhamento de maior relativamente à Requerida AA, alegando, em síntese, que esta, em consequência de um acidente vascular isquémico da artéria cerebral média esquerda, sofrido no dia 16 de novembro de 2017, passou a apresentar um quadro clínico irreversível caraterizado por diminuição da capacidade cognitiva, afasia motora e hemiparesia direita, o qual a impede de governar a sua pessoa e de administrar o seu património.
Pediu que, na procedência da ação, fosse decretado o acompanhamento da Requerida, por razões de saúde, com a adoção das medidas de atribuição ao acompanhante de poderes gerais de representação e de limitação do exercício dos direitos pessoais de casar, perfilhar, adotar, escolher profissão, deslocar-se no país ou no estrangeiro, fixar domicílio e residência e testar, com efeitos reportados a 16 de novembro de 2017.
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1).2. Determinado o prosseguimento da ação, por despacho de 12 de setembro de 2019, tentou-se a citação da requerida por contacto pessoal para apresentar resposta, a qual resultou frustrada por a secretaria ter constatado a incapacidade da citanda compreender o conteúdo do ato.
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1).3. Na sequência, foi nomeado defensor ofícioso à Requerida, ut art. 21/2 do CPC, o qual, citado, não apresentou resposta.
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1).4. Realizou-se o exame psiquiátrico médico-legal e, após a apresentação do respetivo relatório, o Tribunal procedeu à audição da Requerida, no dia 10 de fevereiro de 2020, deslocando-se, para esse efeito, à respetiva residência, podendo ler-se no auto desta diligência que a Requerida “[q]uando perguntada[,] manifesta alguma compreensão[,] mas responde com sons e não é capaz de articular discurso percetível.”
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1).5. Foi proferida sentença, datada de 17 de fevereiro de 2020, a julgar a ação procedente e a determinar o acompanhamento da Requerida, com a adoção das medidas propostas pelo Ministério Público e a nomeação de BB como acompanhante.
Consignou-se então que a medida seria revista decorridos que fossem cinco anos.
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1).6. Entretanto, por despacho de 2 de outubro de 2023, foi deferido o pedido de escusa do acompanhante nomeado e, em sua substituição, foi nomeado CC.
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1).7. Em requerimento autuado por apenso, no dia 30 de dezembro de 2024, o Ministério Público requereu a revisão da medida, promovendo que a mesma se mantenha nos seus exatos termos, com dispensa da audição da Requerida, o que justificou por esta não ser “capaz de andar nem de comunicar de forma percetível.”
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1).8. De seguida, conclusos os autos, foi proferida, com data de 8 de janeiro de 2025, a seguinte sentença (transcrição):
“Verificado que está o quadro clínico mediante a junção dos respetivos elementos médicos persiste a necessidade de acompanhamento porquanto a beneficiária a 16-11-2017 sofreu acidente vascular cerebral isquémico da artéria cerebral média esquerda, apresentando, desde então, diminuição da capacidade cognitiva, afasia motora e hemiparesia direta. Fala com dificuldade e não sendo capaz de andar pelos próprios meios o que a impossibilita de governar a sua pessoa e bens.
Como se decidiu no recente acórdão do TRC de 10/07/2024, num processo de acompanhamento de maior só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias, pelo exposto dispensa-se a audição da beneficiária.
Nesta conformidade determina-se:
A. Que a beneficiária AA manterá a medida de acompanhamento;
B. Mantém-se como acompanhante da beneficiária, DD, a quem incumbe no exercício da sua função, privilegiar o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada;
C. Comete-se à acompanhante o regime da representação geral do beneficiário;
D. Mantém-se a constituição do Conselho de Família tal como definido na sentença proferida no processo principal.
E. Determina-se a revisão da medida acima decretada no prazo de 5 anos, a contar da presente data.”
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2). Inconformada, a Requerida (daqui em diante, Recorrente), interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
1. A preterição da notificação da Acompanhada (do seu defensor) para os termos do incidente de revisão da medida de acompanhamento, a fim de tomar posição quanto à promoção do Ministério Público, é em tudo equiparável à falta de citação, o que determina a anulação de todo o processado após a douta promoção do Ministério Público de 06/01/2025.
2. Em sede de revisão da medida de acompanhamento de maior, a audição do beneficiário é obrigatória para o juiz do processo, entendida tal diligência como o contacto pessoal e directo com o acompanhado, porventura expoente máximo do princípio da imediação, independentemente da conclusão que depois se venha a retirar, nomeadamente da impossibilidade real de diálogo com o beneficiário.
3. A douta sentença recorrida viola os art.os 896.º, n.º 1, 897.º, n.º 2 e 898.º do CPC aplicáveis ex vi art.º 904.º, n.º 3, do mesmo código.”
Pediu que, na procedência do recurso, seja proferido “acórdão que: a-) Julgando verificada a nulidade supra arguida, anule todo o processado após a douta promoção do Ministério Público de 06/01/2025 e ordene a notificação da Acompanhada (do seu defensor) para, querendo, responder nos termos do art.º 896.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 904º, n.º 3, do mesmo código; ou quando assim não se entenda: b-) Revogue a douta sentença recorrida e ordene a realização da diligência de audição da Beneficiária, seguindo-se os demais termos do incidente de revisão da medida de acompanhamento, com as legais consequências.”
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3). O Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
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4). O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
No despacho de admissão do recurso, o Exmo. Sr. Juiz de Direito escreveu que “a nulidade em causa não se verifica atento o art. 6º do CPC, não demonstrando ainda a recorrente qualquer interesse processual no requerido porquanto não pugna por decisão diferente da tomada.” (sic)
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5). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final,ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo recorrente ou pelo recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
Tendo isto presente, as questões que se colocam no presente recurso podem ser enunciadas nos seguintes termos:
1.ª: saber se a falta de notificação da Recorrente para se pronunciar sobre o requerimento de revisão do acompanhamento adrede decretado é equiparável à falta de citação e implica a anulação de todo o processado subsequente;
2.ª em caso de resposta afirmativa, saber qual o meio processual próprio para arguir a omissão de tal notificação;
3.ª não sendo caso de anulação do processado subsequente à apresentação do requerimento de revisão do acompanhamento, saber se a decisão de dispensar a audição da Recorrente é ilegal, por erro de interpretação da norma do art. 897/2, ex vi do art. 904/3, ambos do CPC.
Na resposta a estas questões há que considerar os factos relativos ao iter processual descritos no ponto 1) do Relatório que constitui a Parte I deste Acórdão.
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III.
1).1. Vejamos a resposta à 1.ª questão, começando por lembrar que estamos no âmbito de um incidente destinado à revisão da medida de acompanhamento decretada em benefício da Recorrente, cujo suporte substantivo encontramos no art. 155 do Código Civil, nos termos do qual “[o] tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco anos.”
A imposição deste procedimento de revisão periódica tem uma razão de ser. É a forma de aferir se continua a haver necessidade da medida de acompanhamento e se esta continua a ser a adequada e proporcional à situação do beneficiário (cf. art. 145 do Código Civil). Assim, Mafalda Miranda Barbosa (Maiores Acompanhados. A Disciplina da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto”, 3.ª ed., Coimbra: Geslegal, pp. 55-56). Recorde-se que o art. 12/4 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30.07, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30.07) impõe aos Estados-Partes a previsão de garantias que assegurem que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade judiciária se aplicam “no período de tempo mais curto possível” e que “estão sujeitas a um controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente ou tribunal.”
Compreende-se, assim, que a revisão não seja – não possa ser – tratada como um pró-forma, algo que o tribunal decide de forma burocrática e escudado em fórmulas tabulares, numa espécie de simulacro de justiça. Como em todas as suas atuações jurisdicionais, o tribunal deve atuar de forma ponderada e atenta às particularidades do caso concreto, o que mais se impõe numa matéria tão sensível como esta – em que estão em causa restrições ao exercício de direitos e até a supressão do gozo de direitos e também a forma de as suprir –, focada no interesse do acompanhado. É isto que explica, por exemplo, que não suscite quaisquer dúvidas à jurisprudência dos tribunais superiores que haja sempre lugar à audição do beneficiário da medida, enquanto diligência instrutória, nos mesmo termos que estão previstos, no art. 897/2 do CPC, para o seu decretamento. A propósito, vide, entre tantos outros, o recente RG 17.10.2024 (62/14.3TBMLG-A.G1), relatado por Fernando Barroso Cabanelas.
A consagração da revisão conjuga-se, de resto, com a natureza de jurisdição voluntária do processo de acompanhamento de maiores: as decisões proferidas são, em rigor, resoluções, que podem ser modificadas, de acordo com o princípio rebus sic standibus (art. 988/1 do CPC).
Quer isto dizer que o caso julgado, apesar de se formar aqui nos mesmos termos em que se forma nos processos de jurisdição contenciosa, não possui o dom da irrevogabilidade. Qualquer resolução pode ser livrementemodificada, ainda que tenha transitado em julgado.
Como ensina José Alberto dos Reis (Processos Especiais,II, Coimbra: Coimbra Editora, reimpressão, 1982, p. 403), o uso do verbo modificar não é inocente. Com ele visa-se exprimir que não se trata de corrigir, mas simplesmente de regular de modo diverso, mais adequado às circunstâncias presentes. Com o advérbio livremente não se pretende significar que a modificação pode ocorrer “arbitrariamente ou caprichosamente”: “o tribunal tem que fundamentar a sua decisão e esta instabilidade do caso julgado não vai até ao ponto de prejudicar os efeitos que tenha produzido a resolução anterior: esses efeitos subsistem. A nova resolução só exerce a sua eficácia em relação ao futuro.”
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1).2. Como se constata, a revisão das medidas de acompanhamento sempre se imporia, ainda que não existisse a previsão legal do art. 155 do Código Civil, pelo que podemos afirmar que esta, de útil, contém apenas a imposição da oficiosidade decorrido que seja um determinado período de tempo.
E não é pouco: como escrevem António Agostinho Guedes / Marta Monterroso Rosas (“Art. 155.º, AAVV, Comentário ao Código Civil. Parte Geral. 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, pp. 396-397), “[a] revisão periódica oficiosa minimiza as hipóteses de subsistência de uma medida já não necessária. Por outro lado, também permite a modificação da mesma, sempre que se agrave a necessidade de apoio.” Trata-se, na verdade, de “reconhecer a natureza casuística e reversível do acompanhamento”, conforme se escreve em RC 5.04.2022 (389/20.5T8CDN.C1), Fonte Ramos.
Por outro lado, como também escrevem António Agostinho Guedes / Marta Monterroso Rosas (idem), “[o] princípio da subsidiariedade da medida implica, ainda que o tribunal aquilate não só da cessação / manutenção / agravamento das circunstâncias que determinaram o acompanhamento (art. 138 do Código Civil), como, também, da possível ocorrência de alterações relevantes no entorno social e familiar do beneficiário (art. 140/2 do Código Civil).”
Miguel Teixeira de Sousa (“O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais”, AAVV, O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Lisboa: CEJ, 2019, p. 43) acrescenta que a revisão periódica oficiosa “é justificada pela necessidade de verificar não só se a medida de acompanhamento se mantém adequada, mas também se o acompanhante desempenhou corretamente as suas funções.”
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1).3. As considerações que antecedem permitem-nos afirmar que no incidente de revisão, à semelhança do que sucede na ação que o precedeu e que culminou com o decretamento da medida, se impõe um efetivo respeito por um dos mais basilares princípios do processo civil – o do contraditório.
O juiz tem, na verdade, de garantir que a voz do beneficiário é ouvida, ainda que através de quem o representa, assim contribuindo para o processo de formação da decisão de que é ele o principal interessado. Não nos referimos à audição pessoal e direta, prevista no art. 897/2 do CPC, medida instrutória que “visa proporcionar ao juiz uma perceção direta da situação do beneficiário, independente de todas as outras eventuais fontes desse conhecimento que lhe sejam apresentadas” (Pedro Callapez, “Do acompanhamento de maiores”, AAVV, Rui Pinto (coord.), Processos Especiais, I, 2.ª ed., Lisboa: AAFDL, pp. 105-125), mas à simples possibilidade de o beneficiário expor o seu ponto de vista sobre a revisão e, bem assim, sobre as diligências instrutórias que, nesse âmbito, devem ser realizadas.
A forma de o fazer é determinar a notificação do beneficiário para esse efeito, a qual será feita na pessoa de quem o represente, designadamente do defensor que lhe tenha sido nomeado nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 21/1 e 2 e 895 do CPC.
Isto resulta da remissão que a norma do art. 904/3 faz para a do art. 985 do CPC. E, ainda que aquela não existisse, sempre resultaria da norma geral do art. 3.º/2 e 3, 1.ª parte, do mesmo diploma.
Repara-se que não se trata de uma nova citação. De facto, importando o incidente de revisão uma mera renovação da instância (Ana Luísa Santos Pinto, “O regime processual do acompanhamento de maior”, Julgar, n.º 41, 2020, pp. 145- 172), não há que repetir o ato a citação que, por definição, é o ato pelo qual se chama o réu ao processo pela primeira vez (cf. arts. 219/1 e 2 do CPC). Não se afigura, assim, correto que comparar a situação à falta de citação.
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1).4. Como escrevemos, o contraditório é um dos princípios estruturantes do processo civil, estando consagrado no art. 3.º do CPC. Mais não é que uma emanação do princípio da equidade previsto no art. 20 da Constituição da República, próprio do carácter democrático do processo.
O CPC de 1961, na sua versão anterior à reforma de 95/96, levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, e pelo DL n.º 180/96, de 25.09, apenas previa o sentido clássico do princípio do contraditório, situando-o num plano estritamente horizontal, assim explicado por Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 379): “[o] processo reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars), muito embora se admita que as deficiências e os transvios ou abusos da atividade dos pleiteantes sejam supridos ou corrigidos pela iniciativa e autoridade do juiz. Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras.” É com este sentido – o de defesa, oposição, resistência aos factos, às provas e aos fundamentos jurídicos do processo invocados pela contraparte e a respetiva exceção – que o princípio do contraditório está enunciado nos números 1, 2 e 3, 1.ª parte, do art. 3.º do atual CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, redundando assim numa proibição de indefesa (Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 16).
Com a referida Reforma, a previsão do princípio do contraditório na lei ordinária foi ampliada a uma dimensão vertical, através da introdução da seguinte fórmula legal da qual resulta que o juiz, ademais do dever de observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não pode, “salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” Esta redação foi mantida, ipsis verbis, no art. 3.º/3, 2.ª parte, do atual CPC.
Impõe-se, assim, ao juiz a audição das partes quando pretenda tomar uma decisão inesperada sobre qualquer questão de direito ou de facto. Dito de outra forma, o juiz não pode tomar uma decisão que não seja previsível pelas partes sem antes lhes dar oportunidade de se pronunciarem, com isso participando no processo decisório.[1] Nas palavras de Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil: Conceito e Princípios Gerais à luz do Novo Código, 4.ª ed., Coimbra: Gestlegal, 2021, pp. 126-127), “[s]ubstitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehor germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.” Daqui decorre que, nesta dimensão, o contraditório é, também, influência na decisão, como se reconhece em RG 5.12.2019 (858/15.9T8VNF-A.G1) e 22.06.2023 (3731/21.8T8BRG-A.G1), ambos relatados por José Alberto Moreira Dias.[2]
A consagração legal do princípio impõe a sua observância, tanto no que concerne à matéria de facto, como à matéria de direito. No que tange à primeira, implica que, nas situações em que é lícito ao juiz introduzir oficiosamente factos no processo (art. 5.º/2 do CPC[3]), deve ser permitido que ambas as partes se pronunciem sobre os seus pressupostos e a sua existência. Pressupõe também que as partes possam pronunciar-se, designadamente nos debates orais, sobre os termos em que a prova deve ser apreciada (art. 604/3, e), e 5 do CPC). No que tange à segunda, implica que, “antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie” (Lebre de Freitas, Introdução cit., p. 126), de tal modo que se o juiz encontrar uma solução jurídica do litígio que não tenha sido vislumbrada pelas partes ao longo do processo – isto é, uma decisão para a qual as “exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração” (RC 13.11.2012, 572/11.4TBCND.C1, José Avelino Gonçalves) – deve, antes de proferir a sentença, informá-las e permitir-lhes a emissão de pronúncia.
O que antecede permite-nos afirmar, sem qualquer tergiversação, que a Recorrente tinha direito a pronunciar-se sobre o requerimento de revisão e, bem assim, sobre as diligências a realizar no procedimento com ele iniciado, incluindo a sua própria audição pessoal e direta.
Operava aqui o princípio do contraditório naquela sua dimensão horizontal, cuja observância cabia ao tribunal observar.
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2).1. Está dado o mote para a resposta à 2.ª questão.
Como se constata, foi omitida a notificação destinada a facultar à Recorrente o exercício do direito ao contraditório e foi nesta realidade processual que o Tribunal de 1.ª instância proferiu a decisão recorrida, renovando a medida de acompanhamento nos precisos termos em que estava a ser executada.
Isto evidencia-nos que o despacho recorrido foi proferido de forma prematura, num momento em que a realidade processual não caucionava a sua prática.
Nesta perspetiva, o despacho, enquanto trâmite processual prematuro, surge-nos como um ato cuja prática, naquelas circunstâncias, estava proibida.
Não estando prevista na lei uma específica consequência, dir-se-á, numa primeira abordagem, que a situação deve ser enquadrada no disposto no art. 195 do CPC, onde se diz que “[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.” Trata-se, na verdade, de uma situação semelhante àquela em que o juiz decide da reconvenção apresentada pelo réu antes do autor ter apresentado a sua réplica. Como escreve Miguel Teixeira de Sousa (“As outras nulidades da sentença – resposta a uma crítica”, Blog do IPPC, poste de 24.09.2024), “essa sentença é efetivamente nula nos termos do art. 195/1, dado que é proferida num momento da tramitação processual em que tal não é permitido.” No mesmo sentido, na jurisprudência, RP 17.05.2022 (1320/14.2TMPRT.P1), João Ramos Lopes, num caso em que o tribunal de 1.ª instância decidiu requerimento de um dos habilitados sucessores do falecido autor quando ainda se encontrava a decorrer o prazo que a ré se pronunciasse sobre tal requerimento.
Mas dizer isto, assim dando a entender que a via adequada à impugnação é a incidental, através de reclamação para o próprio juiz (art. 196, parte final), não é suficiente. Como é bom de ver, a decisão contida no despacho foi antecedida de uma outra – a de decidir naquele momento –, a qual tem, ela própria, natureza jurisdicional, podendo, assim, padecer, como qualquer outra decisão do juiz, de error in iudicando, o qual tanto pode recair sobre realidade processual existente (por exemplo, parte-se do pressuposto de que já decorreu o prazo da oposição), como ser fruto de uma incorreta subsunção dessa realidade ao regime jurídico adjetivo que regula a prática do ato (por exemplo, considera-se que não há lugar a oposição ou que o prazo para esse efeito previsto na lei é inferior).
É neste enquadramento que Paulo Ramos de Faria / Nuno de Lemos Jorge (“As outras nulidades da sentença cível”, Julgar Online, setembro de 2024, p. 14) escrevem que “a prática pelo juiz de um ato que a lei não admite leva sempre consigo um julgamento pressuponente (…) no sentido de ser tal prática caucionada pela lei do processo.” Este ato decisório “encerra, imediatamente, duas falhas. Independentemente do sentido da decisão sobre o seu objeto, ofende a lei do processo e assenta num erro de julgamento pressuponente sobre a sua admissibilidade.”
Nesta perspetiva, a via adequada à impugnação é já a recursiva.
A explicação para isto é dada em RG 18.01.2024 (1731/23.2T8GMR-J.G1), do presente Relator, onde se escreve que há, na verdade, que considerar duas situações completamente distintas: (i) aquela em que o tribunal simplesmente pratica um ato não admitido ou omite um ato devido; (ii) aquela em que o tribunal decide que um ato deve ou não deve ser praticado. Só no primeiro caso é cometida uma nulidade processual. É o que sucede, por exemplo, com a falta de citação do réu (art. 187, a), e 188 CPC)) ou a nulidade desta citação pela falta da junção da petição inicial (art. 191/1 CPC). No segundo, o que há é uma decisão ilegal.
No caso em que o tribunal decide incorretamente que o ato deve ser omitido ou praticado, ainda podem ser consideradas duas situações: (i) a decisão incide apenas sobre a omissão do ato legalmente devido; (ii) a decisão incide sobre a omissão do ato legalmente devido e sobre outras questões (como, por exemplo, o conhecimento do mérito da ação).
A resposta é a mesma para ambas as situações: em qualquer delas há uma decisão ilegal sobre a omissão do ato devido e em nenhuma delas tem sentido falar de nulidade processual. O tribunal comete uma nulidade processual quando omite um ato devido ou pratica um ato indevido, não quando entende incorretamente que o ato deve ser omitido ou praticado.
A este propósito convém recordar uma das mais conhecidas passagens de Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, II, Coimbra: Coimbra Editora, 1945, p. 507): "A arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou da formalidade, o meio processual para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou a reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente. Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados; dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se."
Repare-se que Alberto dos Reis fala de “reagir contra a ilegalidade” (não contra a nulidade) quando “há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou da formalidade” e nunca relaciona a nulidade processual com uma decisão.
Miguel Teixeira de Sousa (“Dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se", disponível no Blog do IPCC), ilustra a distinção da seguinte forma: “basta verificar que não se pode dizer que, se o tribunal decidir dispensar o juramento da testemunha, isso é a mesma coisa que o tribunal, pura e simplesmente, omitir esse juramento. A decisão errada sobre a dispensa do juramento e a omissão pura e simples desse juramento são coisas distintas: no primeiro caso, há uma decisão ilegal; no segundo, há um nullum e, por isso, uma nulidade processual. Generalizando: a decisão ilegal sobre a omissão de um ato não pode ser confundida com a omissão ilegal do ato.”
Assim, como sintetiza Alberto dos Reis, "[d]esde que um despacho tenha mandado praticar determinado ato, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática desse ato[,] é fora de dúvida que a infração cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei de processo. Portanto, a reação contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respetivo recurso.”
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2).2. O que antecede habilita-nos a afirmar, a um tempo, que o ato decisório não permitido por lei, designadamente por não ter sido precedido da audição da parte requerida, porque, enquanto trâmite processual, subsumível à previsão do n.º 1 do art. 195, pode ser impugnado por via de reclamação, ut art. 196, e, a outro, que tal ato, porque assente numa decisão pressuponente – a dita “decisão de decidir” – que enferma de um erro, pode também ser impugnado por via recursória.
Daqui não resulta a possibilidade de a parte cumular os dois meios, solução de todo indesejável, pela complicação que com ela se introduziria no processo, e que representaria um verdadeiro contrassenso, como facilmente se compreende se ponderarmos que, ao reclamar, a parte está a afirmar que o ato, enquanto trâmite processual, é inválido e, ao recorrer, a parte está a afirmar a validade do ato enquanto trâmite processual, o que é pressuposto da pretensão de revogação ou de anulação da decisão nele contida.
Deste modo, deve entender-se que, de entre os dois meios impugnatórios possíveis – a reclamação, por estar em causa a prática de ato não consentido pela lei adjetiva, e o recurso, por estar em causa um ato decisório afetado por um erro de julgamento –, deve prevalecer o segundo, numa espécie de relação de “consunção impura” (Paulo Ramos de Faria / Nuno Lemos Jorge, loc. cit., p. 16), visto ser ele o meio mais completo e garantístico – por um lado, o prazo de que a parte dispõe para o recurso é superior; por outro, a amplitude da alegação é maior, sendo possível a invocação de outras patologias, como nulidades da decisão propriamente dita, de entre as elencadas nas alíneas do art. 615/1, ou outros erros de julgamento; por outro ainda, a questão será apreciado por um tribunal superior.
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2).3. A conclusão a que chegámos (sobre a possibilidade de a parte prejudicada com um ato do juiz que a lei não permite reclamar dele nos termos previstos nos arts. 195 e 196, parte final) em nada contende com a regra do esgotamento do poder jurisdicional, consagrada no art. 613/1.
Como sabemos, proferida a sentença – ou o despacho – fica “imediatamente esgotado o poder do juiz quanto à matéria da causa” (art. 613/1 e 3 do CPC). Trata-se de uma estabilidade interna, restrita ao órgão que a proferiu (Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 174), que se explica pela proibição do livre arbítrio e discricionariedade, fundada nos princípios da segurança jurídica e da imparcialidade do juiz. Como explica Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 127, “[q]ue o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.” As únicas ressalvas que esta regra comporta, a que já fizemos referência, são as previstas no n.º 2 do art. 613, onde se diz que “[é] lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.” Estão em causa, portanto, as situações em que o juiz pode retificar erros materiais (art. 614), suprir nulidades (art. 615) e reformar a sentença (art. 616).
O que sucede é que, ao reconhecer a prematuridade da sua decisão, o juiz não está a pronunciar-se de novo sobre a matéria da causa, mas a reconhecer uma invalidade da sequência processual, cuja declaração importará que fique sem efeito o ato decisório.
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2).4. Aqui chegados, podemos então concluir que assiste razão à Recorrente: a “decisão de decidir” a revisão, tomada perante uma realidade processual que não a permitia, enferma, na verdade, de um erro, devendo, assim, ser revogada, o que abrangerá a decisão que, tomando-a como pressuposto, procedeu à renovação da medida de acompanhamento. Considerando que a preterição do contraditório do beneficiário, no que tange à pretendida revisão/alteração da medida de acompanhamento, consubstancia uma nulidade nos termos do art. 195/1, mas que essa nulidade processual é absorvida pela nulidade decisória a que se reporta o art. 615/1, d), do Código de Processo Civil, chegando, assim, ao mesmo resultado prático (a possibilidade d de impugnação por recurso), vide RL 22.11.2022 (1354/20.8T8VFX-A.L1-7), Luís Pires de Sousa.
Aqui deparamo-nos com uma dificuldade: a Recorrente pediu a anulação do despacho recorrido como trâmite processual.
Afigura-se-nos, porém, que isto em nada obsta à procedência do recurso, pelas razões que, ainda que a propósito de situação diversa, foram enunciadas em RL 23.02.2021 (72269-19.0YIPRT.L1-7), Luís Pires de Sousa, que aqui respigamos:
“Há que atentar que o pedido deve ser interpretado e convolado em função do efeito prático-jurídico pretendido. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.4.2016, Lopes do Rego, 842-10: “Na praxis judiciária, encontramos posições antagónicas sobre a possibilidade de convolação jurídica quanto ao pedido formulado – opondo-se um entendimento mais rígido e formal, que dá prevalência quase absoluta à regra do dispositivo, limitando-se o juiz a conceder ou rejeitar o efeito jurídico e a específica forma de tutela pretendida pelas partes, sem em nada poder sair do respetivo âmbito; e um entendimento mais flexível que – com base, desde logo, em relevantes considerações de ordem prática – consente, dentro de determinados parâmetros, o suprimento ou correção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, admitindo-se a convolação para o decretamento do efeito jurídico ou forma de tutela jurisdicional efetivamente adequado à situação litigiosa (vejam-se, em clara ilustração desta dicotomia de entendimentos, a tese vencedora e as declarações de voto apendiculadas ao acórdão uniformizador 3-2001).
Note-se que (como salientamos no estudo O Princípio Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Lebre de Freitas, págs. 781 e segs.) a prevalência de uma visão que tende a sacralizar a regra do dispositivo, dando-lhe nesta sede uma supremacia tendencialmente absoluta, conduz a resultado profundamente lesivo dos princípios – também fundamentais em processo civil – da economia e da celeridade processuais: na verdade, a improcedência da ação inicialmente intentada e em que se formulou pretensão material juridicamente inadequada não obsta a que o autor proponha seguidamente a ação correta, em que formule o – diferente – pedido juridicamente certo e adequado, por tal ação ser objetivamente diversa da inicialmente proposta (e que naufragou em consequência da errada e insuprível perspetivação e enquadramento jurídico da pretensão);
Ora, sendo atualmente o principal problema da justiça cível o da morosidade na tutela efetiva dos direitos dos cidadãos, não poderá deixar de causar alguma perplexidade esta inelutável necessidade de repetir em juízo uma ação reportada a um mesmo litígio substancial, fundada exatamente nos mesmos factos e meios de prova, só para corrigir uma deficiente formulação jurídica da pretensão, através da qual se visa alcançar um resultado cujo conteúdo prático e económico era inteiramente coincidente ou equiparável ao pretendido na primeira causa…
(…)
Considera-se, deste modo, que o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica,convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado.”
O efeito prático-jurídico que o apelante pretende é que sejam apreciados e decididos os contracréditos que invoca contra a requerente, sendo indiferente que tal apreciação ocorra sob a égide da figura processual da exceção ou da reconvenção, sendo esta atualmente obrigatória para estas situações (cf. Art. 266º, nº2, al. c), ex vi Art. 547º do Código de Processo Civil).”
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3). Com isto, o conhecimento da terceira questão fica prejudicado. Espera-se apenas que o Tribunal de 1.ª instância atente na jurisprudência sobre ela, de modo a evitar que o processo passe por um ping-pong entre instâncias, que nada contribui para a sua decisão célere. Esta não passa tanto por decidir apressadamente, mas por fazê-lo de forma eficaz e com respeito pelos mais elementares direitos processuais das partes.
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4). Finalmente, a alteração introduzida pela Lei n.º 2/2020, de 31.03, ao art. 4.º/2, h), do RCP, isentando de custas os processos de acompanhamento de maiores, abrange todos os incidentes que neles venham a ser suscitados, conforme foi entendido em RG 2.02.2023 (989/19.6T8VVD-D.G1), Maria João Pinto de Matos.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
Julgar o presente recurso procedente e, em consequência,
Revogam a decisão recorrida, substituindo-a por outra a determinar a notificação da Recorrente para se pronunciar, em dez dias, sobre o pedido, formulado pelo Ministério Público, de revisão da medida de acompanhamento de que é beneficiária, prosseguindo depois o incidente com a realização das diligências de instruções a que houver lugar por imposição da lei ou determinação do juiz e proferindo-se, a final, a respetiva decisão.
Sem custas.
Notifique.
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Guimarães, 6 de março de 2025
Os Juízes Desembargadores, Gonçalo Oliveira Magalhães João Peres Coelho José Alberto Martins Moreira Dias
[1] Para João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 97-98 e 102), o princípio da proibição das decisões-surpresa não surge como uma derivação do princípio do contraditório, mas como uma das vertentes do princípio da cooperação, mais concretamente enquanto dever de consulta do tribunal para com as partes. Segundo o autor, o “direito ao contraditório (…) possui um conteúdo multifacetado: ele atribui à parte não só o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma ação ou requerida uma providência e, portanto, um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta.” Assim, o autor entende que o princípio do contraditório inclui o direito à audiência prévia e o direito de resposta, sendo que o tribunal apenas deve observar e fazer cumprir tal princípio (art. 3.º/3, 1.ª parte). Só muito impropriamente se pode afirmar que entre o tribunal e as partes existe um direito ao contraditório. Neste sentido, o dever de o juiz informar e consultar as partes sobre os aspetos de direito ou de facto que por elas não foram considerados, seja por enquadrar juridicamente a situação de forma diferente daquela que é a perspetiva das partes ou por conhecer oficiosamente determinada questão relevante para a decisão, não determina que tenha de ser exercido o contraditório, pois o responsável pela mutação não foi qualquer das partes, mas o tribunal e, portanto, a audiência prévia não terá como objetivo o exercício do direito de resposta de uma parte face às alegações da outra, mas a audiência das duas partes para estas tomarem posição quanto ao que o tribunal apresentou. Tendo isto presente, o autor conclui que a proibição das decisões-surpresa deve deixar de estar prevista no âmbito do contraditório, passando para a parte ode é tratado o princípio da cooperação. [2] Disponível, como os demais indicados sem menção expressa do local de publicação, em www.dgsi.pt. [3] De acordo com o princípio do dispositivo, cabe às partes “alegar factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas” (art. 5.º/1 do CPC). O encontra, porém, exceções, logo admitidas pelo n.º 2 do art. 5.º, de acordo com o qual, para além dos factos alegados pelas partes, o juiz considera ainda: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa; c) os factos notórios; e, d) os factos que o juiz tenha conhecimento por virtude das suas funções. Sendo que para a matéria que ora nos ocupa aqueles que relevam são os dois últimos, os factos notórios e aqueles que o juiz tome conhecimento por virtude do exercício das suas funções, na medida em que são introduzidos no processo oficiosamente.