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TRÁFICO DE PESSOAS
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CO-AUTORIA
Sumário
I - A competência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal é a definida nos artigos 4º a 6º do Código Penal, tendo na sua génese e justificação os princípios/critérios da nacionalidade, territorialidade, defesa dos interesses nacionais, universalidade, administração supletiva da lei e da aplicação convencional. II - Para determinação do local da prática do crime, e, por conseguinte, para determinação do tribunal competente e lei aplicável, é necessário apurar o modo de atuação do agente, a prática dos atos de execução e, quando a verificação do crime dependa da sua consumação, o local onde este veio a concretizar-se. III - Nos termos do disposto no artigo 7º do Código Penal, o facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente atuou, ou, no caso de omissão, devia ter atuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido. IV - Na acusação o Ministério Público descreve a prática de factos por parte de um grupo de pessoas com vista à colocação em território nacional de trabalhadores, em circunstâncias que consubstanciam, entre outros, a prática de crimes de tráfico de pessoas. V - De acordo com a acusação, esse grupo de pessoas agia de forma concertada, cada um dos agentes com tarefas delimitadas, cabendo à arguida (de nacionalidade espanhola) angariar pessoas (para trabalharem na agricultura em Portugal), o que fazia em Espanha. VI - Embora a angariação dos trabalhadores imigrantes tenha sido efetuada em Espanha (e a arguida seja de nacionalidade espanhola), tendo a arguida agido em coautoria e tendo o resultado típico sido produzido em Portugal, os Tribunais portugueses são competentes para julgar a arguida pela prática dos crimes que lhe são imputados na acusação.
Texto Integral
I – RELATÓRIO
Por decisão proferida no p.p. dia 29 de novembro de 2024 julgou-se incompetente o tribunal português para julgar a arguida G, de nacionalidade espanhola.
Inconformado a com a decisão veio o MP interpor recurso, no qual formulou as seguintes conclusões: l. Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra G imputando-lhe a prática de 15 (quinze) crimes de tráfico de pessoas, cm coautoria, p. e p. pelo art. 160.º, n.º 1, alíneas b), c) e d) do Código Penal; - 2 (dois) crimes de tráfico de pessoas coautoria, p. e p. pelo art. 160.º, n.º 1, alíneas a), b), c) c d) do Código Penal; 1 (um) crime de auxílio à imigração ilegal em coautoria, p. e p. pelos n.ºs 2 e 3 do art. 183.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 182.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho; 1 (um) crime de associação de auxílio à imigração ilegal, em coautoria material, p. e p, pelo art.º 184º, ns. 1 e 2, por referência aos arts. 181º e 183º, n.º 2, todos da Lei n.º 23/2007, de 04 de julho e 1 (um) crime de angariação de mão de Obra ilegal artigo 185.º n.º 1 e 2 da Lei n.º 23/2007 2. E requereu ao Mmo Juiz de Instrução Criminal a emissão de Mandados de Detenção Europeu com vista à aplicação à arguida da medida de coação de prisão preventiva. 3. Por despacho datado de 29.11.2024, o Mm.º Juiz de Instrução Criminal indeferiu emissão dos referidos mandados justificando que a factualidade imputada à arguida ocorreu na totalidade em Espanha nos termos do art. 7º do Código Penal, como tal os tribunais portugueses não são competentes para aplicar medidas de coação, sem violação das regras de competência internacional, 4. Entendemos que a interpretação aí exarada viola as regras de competência internacional constantes dos art.s 19.º 22.º do Código de Processo Penal bem como o disposto nos art.so 5.º, 26.º e 160.º do Código Penal, Vejamos, 5. Conforme resulta da acusação, pelo menos desde 2019, o arguido E, concebeu e implementou um plano que consistia em aliciar pessoas residentes na Roménia, Moldávia, Colômbia, Marrocos, Perú, e outros países, para virem trabalhar para Portugal nas explorações agrícolas, dependendo das culturas sazonais, em várias zonas do Alentejo, Lisboa e Espanha. 6. Tudo com o intuito de alcançar o máximo lucro independentemente das condições de trabalho e de pagamento a esses cidadãos estrangeiros. 7. Nesta organização liderada pelo arguido E, destaca-se o papel assumido pela arguida G no aliciamento e na angariação de trabalhadores estrangeiros que se encontravam em Espanha à procura de trabalho. 8. É por demais evidente que, pelo menos desde 2022, a arguida G aderiu ao plano gizado por E e atuou cm combinação e concertação de esforços com este. 9. Assim, em execução desse plano a arguida publicitava a oferta de trabalho na agricultura em Portugal, através das redes sociais do Facebook e WhatsApp, oferecendo boas condições de alojamento, trabalho e remuneração. 10. Em execução deste desígnio e plano criminoso a arguida angariou dezenas de vítimas, de várias partes do mundo, nomeadamente (……………….). 11. A arguida G assumia um papel decisivo nesta organização em toda esta atividade de aliciamento e exploração de mão-de-obra estrangeira em trabalhos agrícolas desenvolvidas fundamentalmente na zona do Alentejo e também na zona de Lisboa, ainda que fisicamente a mesma se encontrasse a residir em Espanha, onde recebia algumas destas pessoas e tratava de encaminhar para Portugal, articuladamente com E e os demais arguidos. 12.Assim, estamos perante um crime de tráfico de pessoas de cartel internacional, organizado em torno da captação, orientação e deslocações transfronteiriças de pessoas/ trabalhadores. 13. Nesse grupo cada um dos elementos assumia um conjunto de tarefas parcelares do todo, atuavam fora de Portugal, integrados de forma articulada em atuação visando o mesmo objetivo delituoso, ou seja, a exploração dessa mão-de-obra em território Nacional. 14. Sendo certo, que é em Portugal que estes trabalhadores estrangeiros são sujeitos a condições de trabalho e de alojamento degradantes e alvo de violência física e psíquica. 15. Não se pode autonomizar os factos integrantes do delito que tenham ocorrido em Espanha quando os mesmos fazem parte de uma conduta global, composta por atos sucessivos interligados em que cada um dos arguidos tem a sua quota-parte de intervenção / contributo com vista ao mesmo fim comum. 16. Ou seja, todos aqueles arguidos que faziam parte do grupo, incluindo a arguida G, participaram, assumiram atos e integraram a conduta delituosa no seu todo, estando por isso envolvidos no mesmo esquema que visa a exploração de mão-de-obra dos trabalhadores estrangeiros cm Território Nacional. 17. A especificidade do crime de tráfico de pessoas passa por ter subjacente a prática reiterada e sucessiva de um conjunto de atos que constituem o iter criminoso e que, por isso se consumam com a prática do último ato de execução, pese embora cada ato da cadeia de acuação integre o corpo do delito. 18. Ou seja, vários atos constitutivos da ação que enformam o todo que foi a atuação visando o resultado final (que assim aparece a cortado"), são em si relevantes individualmente. mas arrastam-se numa continuidade temporal, renovando-se sucessivamente até ao último ato. 19, Sendo que o local onde terminou a execução dos mesmos, foi o território português. 20. Acresce que o crime de tráfico de pessoas de cariz Internacional pode ser enquadrado como sendo um caso de crime de "trânsito", ou seja, aquele cujo agente ou cujo objeto atravessa vários locais (incluindo países) na sua execução, e cuja consumação se considera ter ocorrido em qualquer dos locais de trânsito da ação delituosa- no caso do tráfico de pessoas tende a finalizar no local onde a conduta se encerra tipicamente indicada no n.º 1 do art.º 160.º do Código Penal. 21. Conforme se refere no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.01.2020. in dgsi, “Em termos sucintos, pode afirmar-se que o bem jurídico aí protegido é a liberdade pessoal, de decisão e ação de outra pessoa, consumando-se ilícito quando a prática de qualquer uma das condutas típicas atinge de forma radical e direta a vítima na sua dignidade como pessoa", pelo que, não restam quaisquer dúvidas que as condutas tipificadas no art.º 160.º atingiram a sua consumação em Portugal. 22. Conforme resulta do disposto no art. 7º do Código Penal, o local da prática dos factos é aquele em que o agente atuou ou aquele em que o resultado típico foi produzido. 23. Face ao exposto, entende-se, ao invés do M.º Juiz de Instrução, que os tribunais portugueses são competentes para o conhecimento integral de todos os atos componentes da atuação criminosa concertada internacionalmente e finalizada em Portugal, incluindo aqueles que foram praticados no estrangeiro pela arguida G, sendo errada interpretação e aplicação da Iei seccionar a atuação desta última do todo, desanexando-a, numa posição desarticulada e isolada, que assim perderia sentido no edifício construtivo do tipo objetivo do ilícito. 24. Não menos importante é o facto de a arguida atuar em coautoria com os arguidos (………….) e outros, na atividade delituosa desenvolvida pelos mesmos consubstanciada na exploração de mão-de-obra estrangeira. 25, Conforme resulta da prova carreada para os autos, cm particular das declarações das vítimas (…………….), a arguida atuava em conjugação de esforços e vontades com os arguidos, em particular com o arguido E, fazendo a intermediação direta, através de reuniões com o grupo angariado onde lhes anunciavam as condições de trabalho e de alojamento, promessas que sabiam serem falsas, aproveitando-se da vulnerabilidade dessas pessoas c da necessidade que as mesmas tinham de arranjar trabalho 26. Como se refere no Acórdão da relação de Évora de 20/01, «Tendo presente o disposto no artigo 260 do Código Penal, que manda punir como autor quem tomar parte direta na execução do facto, por acordo ou juntamente com outro/ s, para verificação de tal execução conjunta não se exige que todos os agentes intervenham em todos os actos delitivos, mais ou menos complexos, organizados ou planeados, destinados a produzir o resultado típico pretendido, bastando que a atividade de cada um dos agentes seja parcela do conjunto da ação, desde que indispensável à produção do fim e do resultado a que o acordo se destina, valendo o princípio da imputação objetiva recíproca, no sentido da imputação da totalidade do facto típico a cada um dos comparticipantes, independentemente da concreta fração do iter delitivo que cada um haja realizado.» 27. No Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Evora, datado de 09.04.2024, refere-se, a propósito do envolvimento dos arguidos, em concreto do arguido M, o seguinte: " . .) resultando, exuberantemente, evidenciado, em face da atuação desenvolvida, a articulação entre o ora acorrente g outros coarguidos, mormente, com o arguido F, seu irmão, a existência de um acordo para a realização conjunta dos factos/crimes em questão, desempenhando o ora recorrente uma função essencial e indispensável à produção do fim a que esse acordo se destinou e possuindo um domínio decisivo da arão, dentro dos limites das suas incumbências, sendo o coarguido F, seu irmão, a figura central e o reconhecido 'líder", pelo que, se mostra, sem margem para quaisquer dúvidas, fortemente indiciada a coautoria, no que ao ora recorrente diz respeito". 28, Ora, não há como dissociar a atuação de G dos restantes arguidos e considerar que relativamente à arguida o crime de tráfico de pessoas se consumou em Espanha e relativamente aos restantes arguidos em Portugal! 29. Mais ainda, todos tinham o domínio do facto, mesmo que repartido por diferentes tarefas e que ficcionar que cada um dos arguidos é apenas responsável pela parte localizada no local onde espacialmente se encontrava constitui um artificialismo cerceador que não corresponde à integralidade jurídica do tipo e da ação concreta. 30. Pelo que não podemos concordar que a responsabilidade criminal da arguida G, pelos factos investigados e acusados nos presentes autos, seja dissociada da que resulta para os restantes arguidos, e se considere que os tribunais portugueses não são competentes para conhecer dos mesmos. 31. Assim, a propósito de uma situação em tudo idêntica à que está aqui em causa relativamente à competência dos tribunais portugueses para conhecerem da responsabilidade criminal da arguida G pela prática dos crimes de tráficos de pessoas que lhe são imputados na acusação deduzida, refere-se no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 19.02.2019, que “O mesmo é dizer que os factos ocorridos em países estrangeiros integram a prática dos mesmos crimes de tráfico de pessoas, nines que se consumaram em território português, Assim, local onde os factos foram cometidos (onde terminou a execução dos mesmos) foi o território português, sendo aqui aplicável o disposto no artigo 7º do Código Penal (preceito que nos diz que o local da prática de um facto é aquele onde o agente atuou ou aquele em que o resultado típico foi produzido). Ora, se os crimes de tráfico de pessoas em discussão nos presentes autos acabaram a respetiva execução em Portugal, é evidente que os tribunais portugueses são competentes para conhecer dos mesmos, porquanto tais tribunais são competentes para apreciar e decidir sobre crimes que forem praticados em território nacional". 32. Face a tudo o exposto, é nosso entendimento que os tribunais portugueses SÃO os competentes para julgar todos os factos, mesmo aqueles que foram perpetrados pela arguida G, não colhendo o entendimento sufragado pelo Mmo Juiz de Instrução Criminal, de se considerar incompetente para aplicação de medidas de coação, por força das regras de competência Internacional, e com base nessa justificação indeferir a emissão do Mandado de Detenção Europeu. 33. Ao declarar que não dispõe de competência para aplicar medidas de coação à arguida G, sob pena de daí resultar a violação das regras de competência internacional, o Mmo Juiz de Instrução Criminal fez uma interpretação desconforme e em violação do que resulta da aplicação dos art.so 5º, 7º, 160º, 26º do Código Penal e dos art.s 19º e 22º do Código de Processo Penal. Termos em que deve tal despacho ser revogado e substituído por outro que reconheça a competência dos Tribunais Portugueses, nomeadamente do Mmo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Instrução Criminal de Évora para aplicar medidas de coação à arguida G e determine a emissão dos Mandados de Detenção Europeu, nos exatos termos requeridos. Vossas Excelências, com muito mais e melhor saber, superiormente apreciarão e decidirão como for de Justiça.
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Colhidos os vistos legais foi o processo à conferência, onde se deliberou nos termos vertidos neste Acórdão.
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II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
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Questões a decidir:
(i) Competência do Tribunal Português (local da prática do facto; actos de execução/consumação do crime).
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III. A decisão recorrida é a seguinte: B. O Ministério Público promove que seja aplicada a prisão preventiva à arguida G devendo para esse efeito serem emitidos mandados de detenção, nacionais e europeus, tendo em vista a apresentação e audição da arguida. Foram imputados 15 (quinze) crimes de tráfico de pessoas, em coautoria, p. e p. pelo art. 160.º, n.º 1, alíneas b), c) e d) do Código Penal; - 2 (dois) crimes de tráfico de pessoas ,em coautoria, p. e p. pelo art. 160.º, n.º 1, alíneas a), b), c) e d) do Código Penal; 1 (um) crime de auxílio à imigração ilegal em coautoria, p. e p. pelos n.ºs 2 e 3 do art. 183.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 182.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho; 1 (um) crime de associação de auxílio à imigração ilegal, em coautoria material, p. e p. pelo art.º 184º, ns.º 1 e 2 , por referência aos arts.º 181º e 183º, n.º 2, todos da Lei n.º 23/2007, de 04 de julho e 1 (um) crime de angariação de mão de obra ilegal artigo 185.º n.º 1 e 2 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho. Previamente à verificação dos pressupostos gerais e específicos para a emissão de mandados de detenção europeu, importa ver da competência dos tribunais portugueses e da aplicabilidade da lei penal portuguesa aos factos vertidos na acusação do Ministério Público. Os critérios de atribuição de competência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal encontram-se plasmados nos termos conjugados dos arts. 4.º a 6.º do Cód. Penal. «Artigo 4º Aplicação no espaço: princípio geral Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados: a) Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou b) A bordo de navios ou aeronaves portugueses. Artigo 5º Factos praticados fora do território português 1 - Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional: a) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 221º, 262º a 271º, 308º a 321º, 325º a 345º; b) Contra portugueses, por portugueses que viverem habitualmente em Portugal ao tempo da sua prática e aqui forem encontrados. c) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 144.º-A, 154.º-B e 154.ºC, 159.º a 161.º, 171.º, 172.º, 175.º, 176.º e 278.º a 280.º, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português; d) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 144.º, 163.º e 164.º, sendo a vítima menor, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português; e) Por Portugueses, ou por estrangeiros contra Portugueses, sempre que: i) Os agentes forem encontrados em Portugal; ii) Forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo; e iii) Constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português; f) Por estrangeiros que forem encontrados em Portugal e cuja extradição haja sido requerida, quando constituírem crimes que admitam a extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português; g) Por pessoa coletiva ou contra pessoa coletiva que tenha sede em território português. 2 - A lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional que o Estado Português se tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional. Artigo 6º Restrições à aplicação da lei portuguesa 1 - A aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação. 2 - Embora seja aplicável a lei portuguesa, nos termos do número anterior, o facto é julgado segundo a lei do país em que tiver sido praticado sempre que esta seja concretamente mais favorável ao agente. A pena aplicável é convertida naquela que lhe corresponder no sistema português, ou, não havendo correspondência direta, naquela que a lei portuguesa previr para o facto. 3 - O regime do número anterior não se aplica aos crimes previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior.». De acordo com o art. 5.º, n.º1, al. c) , do Código Penal, a lei portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional por portugueses ou por estrangeiros contra portugueses sempre que os agentes forem encontrados em Portugal, forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo; e constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português. Voltando ao caso concreto, o crime de tráfico de seres humanos encontra-se previsto no art. 160.º, do Código Penal. De acordo com o art.º 7.º, n.º1, do Cód. Penal, “O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente atuou, ou, no caso de omissão, devia ter atuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido”. A Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, não confere ao Estado Português competência para exercer no território de outro Estado a jurisdição ou funções que o direito interno desse Estado reserve exclusivamente às suas autoridades (cfr. Art. 1.º, 2.º, 3.º, n.º1 e 2, 5.º, 6.º, 8.º, 23.º da mencionada convenção, por referência ao art. 4.º do mesmo instrumento). A Convenção do Conselho da Europa relativa à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos apenas estabelece a obrigação de adotação de medidas legislativas para definição da competência dos Estados Membros em determinadas circunstâncias, nomeadamente se a infração for cometida por nacionais, for criminalmente punível no local onde foi cometida ou se não for da competência territorial de qualquer Estado, ou contra um dos seus nacionais (cfr. Arts. 2.º, e 31.º da mencionada convenção). Consequentemente, destes instrumentos não decorre a obrigação do Estado Português julgar factos cometidos fora do seu território nacional. No âmbito do nosso direito interno, mormente tendo em conta o disposto no art. 5.º do Cód. Penal, ainda que os crimes imputados na acusação sejam subsumíveis no art. 160.º, do Cód. Penal e na referência da alínea c) do n.º1 do art. 5.º do Cód. Penal, o agente dos factos imputados (G não se encontra em Portugal e não existe qualquer pedido de extradição ou mandado de detenção europeu contra si pendente, que seja do nosso conhecimento, pelo que entendemos não ser aplicável o disposto no art. 5.º, nº1, al. c), do Cód. Penal. Acresce que os factos não foram praticados por portugueses ou por quem resida habitualmente em Portugal, nem contra menor que resida habitualmente em Portugal. Muito menos foram imputados factos praticados por portugueses, ou por estrangeiros contra portugueses, e o agente desses factos foi encontrado em Portugal e igualmente puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, e crime que admita extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português. O agente não foi encontrado em Portugal e não foi requerida a extradição, quando os factos constituírem crimes que admitam a extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português. Consequentemente, não são aplicáveis as restantes disposições do art. 5.º do Cód. Penal. Em suma, a acusação estrutura-se, quanto à arguida, em factos por si praticados em Espanha, contra estrangeiros de nacionalidade não portuguesa. Inexistem dúvidas sobre o local onde se consumou o comportamento ativo da acusada. Existindo actos praticados no estrangeiro, por estrangeiros e contra estrangeiros, não é conferida jurisdição ao Estado Português. A factualidade objeto da acusação e referente a G ocorre na totalidade em Espanha, o que constitui facto relevante para dizer que a responsabilidade criminal deverá ser aferida e apurada de acordo com direito interno desse país, e não do direito interno de Portugal. Os factos imputados consideram-se cometidos fora do território nacional, por aplicação do disposto no art.º 7.º do Cód. Penal, e em consequência, não é aplicável a lei penal portuguesa. Considerando que qualquer medida de coação para além de depender de pressupostos prévios como a constituição como arguido, nos termos do artigo 58.º do Cód. Processo Penal, não deverá ser aplicada quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal, nos termos do art. 192.º do Cód. Processo Penal, e que o agente dos factos é cidadão estrangeiro e residente e localizado fora de Portugal, sendo-lhe imputado responsabilidade criminal por factos ocorridos em Espanha, entendemos não dispor de competência para aplicar medidas de coação, sem violação das regras de competência internacional. Deve ser evitada a emissão de mandados de detenção europeu no caso em que se mostre previsível a imposição da medida de coação termo de identidade e residência (TIR). Esta asserção está de acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu de Justiça na medida em que a emissão de um mandado de detenção europeu por afetar o direito à liberdade da pessoa em causa, consagrado no artigo 6.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, pressupõe - e impõe - a fiscalização do cumprimento das condições necessárias a esta emissão e a análise da questão submetida a jurisdição, à luz das especificidades do caso, na perspetiva de saber se tal emissão reveste o caráter proporcionado (v., neste sentido, Acórdão de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas, C-477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.º 47 e o Acórdão do Tribunal De Justiça de 27 de maio de 2019, C-508/18 e C-82/19 PPU, ECLI:EU:C:2019:456). Pelo fundamentos expostos, e ao abrigo dos arts.º 5.º do Cód. Penal e 192.º, n.º 6, do Cód. Processo Penal, considero legalmente inadmissível e desproporcional a detenção da arguida G e indefiro a sua audição e as demais diligências requeridas quanto à mesma. Notifique o Ministério Público.
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Analisando e decidindo:
Para conhecimento e decisão do recurso impõe-se que se analisem os actos cuja prática o MP imputa à arguida, a fim de avaliar se, sendo a arguida, como é, de nacionalidade espanhola e por isso afastado o critério da nacionalidade fundamentador de competência aos tribunais portugueses, existem elementos de conexão ou factos que determinem a (in)competência dos tribunais portugueses.
Na acusação pública o MP descreve a prática de factos por parte de um grupo de pessoas com vista à colocação em território nacional de trabalhadores, em circunstâncias que consubstanciam, entre outros, a prática de crimes de tráfico de pessoas.
De acordo com a acusação, este grupo de pessoas agia de forma concertada, cada um com tarefas delimitadas, cabendo à arguida G angariar pessoas, o que fazia nos termos descritos na acusação e que a seguir se transcrevem, o que fazia em Espanha.
Assim, os factos imputados à arguida G são os seguintes: 4. Posteriormente, desde data não concretamente apurada, mas pelo menos durante o ano de 2022, a arguida G, aderiu ao grupo liderado por E, tendo como incumbência recrutar pessoas, em Espanha, que quisessem trabalhar na agricultura, em Portugal. (…) 11. E, era o líder da organização, assumia preponderância nesta organização, repartindo tarefas com os arguidos (…………..) e G, sempre sob o seu controlo efetivo. (…) 34. Igualmente acompanhava o arguido E nas idas a Espanha para tratar da contratação de trabalhadores, nomeadamente com a arguida G, entre outras angariadoras não identificadas, bem como assegurava o transporte dos mesmos para Portugal-Beja. (…) 71. G, adiante designada apenas por G, assumia um papel fundamental no aliciamento e na angariação de trabalhadores estrangeiros que se encontravam em Espanha à procura de trabalho. 72. Em combinação e concertação de esforços com o arguido E e os outros arguidos, pelo menos desde 2022 prometia a esses trabalhadores estrangeiros, nomeadamente colombianos, peruanos, marroquinos, venezuelanos e espanhóis trabalho em Portugal na agricultura com boas condições de trabalho e de pagamento. 73. Em execução desse plano, G procedia ao anúncio do trabalho através da página do facebook, no Whatsapp e outras formas não apuradas, através das quais dava conhecimento da existência de trabalho em Portugal, na agricultura, a troco de um ordenado que que variava entre 1200,00€ e 2000,00€, sem que fosse preciso “papéis”. 74. Além do aliciamento dos trabalhadores, G tratava dos contactos e agendamento de reuniões com o arguido E e C, para em conjunto agilizavam a vinda dos mesmos para Portugal. 75. G angariou, em Espanha, dezenas de vítimas, naturais, na sua maioria, da Colômbia e também da Venezuela, Peru, Marrocos, para trabalharem para E, na agricultura em Portugal-Beja, sem que estes tivessem um visto de trabalho, ou qualquer documentação que lhes permitisse permanecer em território europeu, à exceção de B e H naturais da Espanha. 76. As vítimas (……………..) contactaram a arguida G na sequência de um anúncio que a mesma colocou numa rede social e de um grupo de Whatsapp, a prometer um trabalho em Portugal, na agricultura, a troco de um ordenado que variava entre 1200,00€ e 2000,00€, sem que fosse preciso “papeis”.
Tendo em conta os factos que se transcreveram, e os demais constantes da acusação pública, este grupo de pessoas atuava de forma concertada com vista a um determinado fim comum - o de conseguir mão de obra para trabalhar nas condições descritas -, aproveitando-se da fragilidade de quem procurava por melhores condições de vida. Os factos praticados pela arguida G, não obstante o tenham sido fora de território nacional, produziram o seu resultado em território nacional, já que as pessoas que angariava destinavam-se a ser trazidas para Portugal, como foram, para aqui serem exploradas na sua boa fé, trabalho e despojados da dignidade.
Os factos alegados na acusação pública consubstanciam uma atuação em coautoria, já que a arguida pratica factos com vista a um fim comum, sendo a sua atuação altamente relevante, ou antes essencial na consumação do crime respeitante às pessoas que angariou e que foram efetivamente exploradas em território nacional. Isto porque a coautoria pressupõe uma decisão conjunta e uma execução conjunta, mas não se exige a participação de todos na elaboração do plano comum, nem na execução de todos os factos. Do mesmo modo, como é pacífico na jurisprudência e na doutrina tal acordo não tem que ser expresso, podendo manifestar-se através de qualquer comportamento concludente, com a existência da consciência e vontade de colaboração (aferidas à luz das regras da experiência comum).
Exige-se na coautoria, o domínio funcional do facto, no sentido de o agente “deter e exercer o domínio positivo do facto típico”, ou seja, o domínio da sua função, do seu contributo, na realização do tipo, de tal forma que, numa perspetiva “ex ante”, a omissão desse contributo impediria a realização do facto típico na forma planeada (Ac. STJ de 15-04-2009, Proc. 09P0583, in www.dgsi.pt). O que se verifica sem dúvida na atuação da arguida G no que respeita à consumação do crime relativamente às pessoas que angariou.
“É ainda ponto assente, relativamente à execução propriamente dita, que não é exigível que cada agente intervenha em todos os actos necessários à produção do resultado, bastando que a atuação de cada um seja indispensável à produção do resultado global ou a participação de todos no ato” Ac. STJ de 06-10-2004 Proc. 04P1875, in www.dgsi.pt, embora alguns não primam o gatilho.
“Deste modo, ao elemento objetivo - a prática, por cada um dos agentes de, pelo menos, uma parte dos actos típicos -, acresce o elemento subjetivo: à soma dos actos dos vários agentes preside um desígnio comum, qual fio condutor a uniformizar as condutas de cada um dos agentes, permitindo a imputação a todos do resultado típico, na sua globalidade.
Tal desígnio uniformizador poderá ser expresso ou tácito, podendo inferir-se dos actos materiais praticados, como atrás se referiu” Ac. TRE de 24-01-2023, Proc. 247/17.0PALGS.E1, in www.dgsi.pt..
Tanto é suficiente para que não se possa deixar de ter em conta a participação da arguida e como tal não é exato concluir-se como no despacho recorrido que os factos típicos praticados pela arguida o foram apenas e tão só em Espanha e fora do território nacional. Esta conclusão não se coaduna nem com a participação da mesma na ação típica e culposa, nem com o modo de execução do crime em si mesma. No que respeita ao grau de participação já vimos que atuou como coautora. No que respeita à execução do ilícito típico se é certo que a mesma praticou os atos em Espanha estes não produziram o seu resultado típico aí, atenta a natureza dos atos que praticou - atos de execução -, mas antes em Portugal pois aqui se verificou a consumação do crime.
Por força do disposto no art.º 4.º do CP, que consagra a regra geral de aplicação no espaço da lei nacional, salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados:
a) Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou
b) A bordo de navios ou aeronaves portugueses.
É sabido que a competência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal é a definida nos artºs 4º a 6º do Código Penal, tendo na sua génese e justificação os princípios/critérios da nacionalidade, territorialidade, defesa dos interesses nacionais, universalidade, administração supletiva da lei e da aplicação convencional.
Para além do disposto nos art.ºs 4.º a 6.º, para determinação do local da prática do crime, e, por conseguinte, para determinação do tribunal competente e lei aplicável, é necessário apurar o modo de atuação do agente, prática dos actos de execução e quando a verificação do crime dependa da sua consumação, o local onde este veio a concretizar-se. Ora, nos termos do disposto no art.º 7.º do CP o facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente atuou, ou, no caso de omissão, devia ter atuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido.
Ora, como se viu, tendo a arguida agido em coautoria e o facto típico produzido em Portugal, considera-se que praticou o facto, em coautoria, repita-se em território nacional, sendo certo que igualmente assim se tem que considerar a sua atuação – praticada em território nacional, embora a angariação tenha sido efetuada em Espanha, já que o facto típico veio a consumar-se no nosso território nacional.
Assim, nada mais nos resta que concluir pelo provimento do recurso devendo o tribunal a quo, substituir o despacho recorrido por outro onde aprecie a requerida aplicação da medida de coação e emissão de mandados de detenção europeu.
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Decisão:
Julgar provido o recurso apresentado pelo Ministério Público e em consequência revoga-se o despacho recorrido, apreciar e decidir aplicação da medida de coação e emissão de mandado de detenção europeu, requeridas pelo MP.
Sem custas.
Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP).
Évora, 11 de março de 2025
Maria Perquilhas
Maria José Cortes
Renato Barroso
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[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363.