DESPACHO DE PRONÚNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
Sumário

I - Estando em causa um crime de homicídio em circunstâncias muito específicas, sem testemunhas, em que o próprio Exº Juiz de Instrução considera suficientemente indiciados, no essencial, os factos da acusação, mas que faz uma leitura dos indícios existentes de uma forma pessoal/subjetiva, que não tem uma completa adesão aos indícios constantes dos autos, os quais, objetivamente, apontam em direção oposta, e, além disso, admitem decisão totalmente diversa (como resulta evidente das decisões já proferidas neste Tribunal da Relação relativamente à apreciação da medida de coação aplicada ao arguido), deve ser proferido “Despacho de Pronúncia” do arguido, porquanto os factos “exigem” ser objeto de julgamento por um “Tribunal Coletivo”, não podendo o processo ser arquivado, sem mais, em sede de instrução.
II - As considerações explanadas no despacho recorrido não têm aplicação no âmbito de um “Despacho de Pronúncia”, onde apenas se deve apurar da suficiência de indícios, o mesmo é dizer, longe ainda da prova fora de qualquer dúvida razoável exigida em sede de julgamento (os limites da justificação da morte da vítima pelo arguido ao abrigo de um “estado de necessidade desculpante” - invocando-se no despacho de não pronúncia o exemplo da “Tábua de Carnéades” -, e perante os indícios recolhidos, têm de ser aferidos em audiência de discussão e julgamento).
III - Em situações como a colocada nestes autos, a decisão de pronúncia ou de não pronúncia do arguido não pode ser transformada num “pré-julgamento” (funcionando o Exº Juiz de Instrução como julgador em “Tribunal Singular”), desde logo na medida em que na decisão de pronúncia a lei não exige a certeza da existência do crime, bastando-se com a mera existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, ainda que os mesmos devam ser suficientes, no sentido de, em julgamento (aí sim), eles se puderem transformar em prova fora de qualquer dúvida razoável, assim levando a uma condenação ou não.

Texto Integral



ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I. RELATÓRIO


A –
Nos presentes autos de Instrução, com o nº 273/23.0GCMMN, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo de Instrução Criminal de Évora, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido:

- P (…..).

Imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº 1 e nº 2, alínea d) do Código Penal e artigo 86º, nº3 da Lei nº 5/2006.

O arguido P requereu a abertura da instrução com vista à não pronúncia pelos factos integrantes da acusação e solicitando a sua reinquirição sobre factos, inquiridas testemunhas e juntos documentos.

Declarada aberta a instrução, foi ouvido o arguido P e realizou-se o debate instrutório com observância de todo o formalismo, conforme resulta da respectiva acta.

Foi então proferida decisão instrutória, na qual foi decidido:
- Não pronunciar o arguido P pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº 1 e nº 2, alínea d) do Código Penal e artigo 86º, nº3 da Lei nº 5/2006.
- Mais foi determinada a extinção das medidas de coacção aplicadas ao arguido P, nos termos do disposto no artigo 214º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, nomeadamente a prisão preventiva e determinada a sua libertação imediata.

Inconformado com o assim decidido, recorreu Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1. Nos autos, o Ministério público acusou P, imputando-lhe a prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal, e artigo 86º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.
2. Veio P requerer a abertura de instrução, alegando, em síntese, que não existiam indícios suficientes da prática do crime de homicídio qualificado, por não ter resultado suficientemente indiciado que deixou de agir com intenção de se defender, pois desconhecia que - quando saiu da casa de banho - F já não tinha a faca.
3. À semelhança do que fez nos recursos que interpôs durante o inquérito, P insistiu que, com um único golpe de sabre, provocou o decepamento da mão e os ferimentos que F apresentava na cabeça.
4. Negou ter pretendido gerar o resultado morte, por se ter limitado a defender-se, alegando que, no limite, tinha actuado de forma negligente.
5. Finda a instrução, o Tribunal o quo proferiu despacho de não pronúncia, entendendo que P "(...) actuou ao abrigo de uma causa de exclusão da culpa, em concreto, do abrigo de um estado de necessidade desculpante, previsto pelo artigo 35º, nº 1 do Código Penal”.
6. Considerou, o Tribunal a quo, que P se encontrava numa "(...) situação de perigo actual que não se apresentava (…) removível doutro modo (…), que ameaçava a sua vida”.
7. Mais considerou que "entre morrer e matar (sendo certo que não se apurou se o arguido tinha efectiva noção que F já não transportava a faca consigo)” P “optou pela salvaguarda da sua vida”.
8. O “error in judicando” é patente, pois uma análise dos vestígios, sinais e elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução efectuada de acordo com as mais elementares regras da experiência comum e do bom senso, persuade, com a certeza juridicamente necessária, da existência de crime de homicídio qualificado e da culpabilidade de P.
9. Como se passa a demonstrar.
10. Começa o Tribunal a quo por alterar os factos constantes da acusação, desconsiderando, quanto aos mesmos, os únicos vestígios, sinais e elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução (declarações de P e prova documental – fotografias do local, sem cumprir o disposto no artigo 303º, nº 1, do Código de Processo Penal.
10.1. Nos autos, P afirmou que se muniu do sabre e que saiu da residência, tendo-se mantido junto da porta de acesso, com as costas perto da cortina de fitas mosquiteiras, virado de frente para o alpendre - onde se encontrava F - enquanto mantinha o sabre com o punho nas mãos e a lâmina apontada para cima e para a frente.
10.2. Em conformidade, da acusação constava, "Após, empunhando o sobre, com o punho nos mãos e a lâmina apontada para cima e para a frente, P dirigiu-se para o exterior do residência, tendo permanecido junto da porta, com as costas perto da cortina de fitas mosquiteiras, lugar onde exibiu o sabre o F, a quem disse “vai-te embora, vai-te embora, tu vais-te aleijar”.
10.3. Já no despacho não pronúncia, o Tribunal o quo considerou suficientemente indiciado que “Após, empunhando o sabre, com o punho nas mãos e a lâmina apontado poro cima e para a porta, com as costas perto da cortina de fitas mosquiteiras, lugar de onde exibiu o sabre a F, a quem disse “vai-te embora, vai-te embora, tu vais-te aleijar”.
10.4. Uma vez que a porta da residência abria para o interior desta, para que P mantivesse o sabre apontado para a porta e as costas perto da cortina de rede mosquiteiras este teria de estar virado de costas para o alpendre, local de onde não poderia exibir o sabre a F – pois a lâmina estaria voltada para o interior da residência – e onde se estaria a expor ao risco de ser surpreendido por uma eventual investida deste.
11. Por outro lado, o Tribunal o quo considerou suficientemente indiciado, que, no quarto, P perguntou a F "quem és tu?", "o que estás aqui a fazer?" e que este perguntou àquele pela M, onde esta se encontrava e se era o P, tendo, de seguida, afirmado “Tu és o demónio e eu vou-te matar. Eu sou o anjo Gabriel, eu sou o anjo São João e estou aqui para te matar, tu és o diabo, um demónio”.
11.1. Não se pode afirmar, com a certeza juridicamente necessária, que concretas palavras foram trocadas entre P e F, face às diversas versões apresentadas pelo primeiro e à conjugação destas com os restantes meios de prova.
11.2. Por outro lado, inexiste justificação para o Tribunal o quo ter atribuído credibilidade apenas a uma de entre distintas versões apresentadas pelo arguido.
11.3. Acresce que o Tribunal a quo atribuiu credibilidade à versão que contradiz conclusões a que chegou.
11.4. Veja-se que o Tribunal a quo concluiu que P não aguardava a chegada de M, mas tão só a de E (sobretudo face ao depoimento desta que afirmou que aquela não ia estar na Quinta Alada).
11.5. É, assim, incompreensível - contrário às regras da experiência comum e do bom senso – que o Tribunal a quo tenha considerado que P não estava à espera de M, mas tão-só de E – que ajudava nas limpezas – e tenha dado como suficientemente indiciado que aquele, ao ver a porta a abrir e um vulto, tenha perguntado “Amor?”
11.6. Face aos vestígios, sinais e elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução, não se pode, também, afirmar - com a certeza juridicamente necessária - que F ao dizer "o F”, depois de P lhe ter perguntado "quem és tu?", estivesse a perguntar por este, podendo apenas estar a dizer o seu nome, face à pergunta que lhe foi feita.
12. O Ministério Público reconhece que existem dois lapsos na acusação, pelo que deveria o Tribunal a quo ter suprido o erro – por se tratarem de lapsos evidentes e inequívocos – ordenando a respectiva rectificação, nos seguintes termos:
12.1. Determinando que fossem eliminadas do rol das lesões resultantes do comportamento de P a ferida corto-perfurante com dez centímetros de profundidade na região epigastro esquerda e os ferimentos corto-perfurantes na região metacarpo falângica desde o segundo até ao quinto dedo da mão esquerda, lesões essas que constam do despacho de acusação como decorrentes do comportamento de F no alpendre frontal da residência;
12.2. Determinando que à frase "lesões que foram causa directa e necessária da morte (...)” fossem acrescentadas as palavras "traumáticas meningo-encefálicas”.
13. Em inequívoca e, até, arbitrária desconsideração dos vestígios, sinais e elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução, o Tribunal o quo não considerou suficientemente indiciados dois factos que constavam da acusação.
Assim,
13.1. O Tribunal o quo não considerou suficientemente indiciado que, enquanto F permaneceu na casa de banho, P efetuou, às 07H41 o telefonema para o 112, (em que, entre outras coisas disse “8…) tá um indivíduo a esvair-se em sangue. (…) Venham rápido por favor, se não toda a gente morre”).
13.1.1. Ora, no decurso do interrogatório complementar, P afirmou “acho que é aí que faço outra chamada para o 112”, referindo-se ao momento em que F se dirigiu e permaneceu na casa de banho exterior.
13.1.2. Acrescentou que não tinha "ideia de ter ouvido F" no decurso dessa chamada telefónica.
13.1.3. De seguida, referindo-se ao momento em que, depois de ter saído da casa de banho, F começou a caminhar na sua direcção, P afirmou "se calhar ainda estou a ligar para o 112, se calhar ainda estou na chamada”, “e eu aí guardo o telefone”.
13.1.4. Depois de lhe ter sido perguntado se o telefonema que efectuou para o 112, enquanto F se encontrava na casa de banho, foi o realizado às 07H24, respondeu que não, que este foi efectuado na parte de baixo do terreno.
13.1.5. Esclareceu que, depois do momento que descreveu como "final", se recordava de ter telefonado para a Guarda Nacional Republicana e de ter cancelado o telefonema por os ter visto e ouvido chegar.
13.1.6, Já em sede de instrução, referindo-se ao momento em que F caminhou na direcção e entrou na casa de banho exterior, P acrescentou que telefonou para o 112, que se recordava de ter dito que estava uma pessoa estava ferida e que se encontravam na Quinta Alada, pedindo-lhes que se apressassem.
13.1.7. Continuou P, afirmando que viu para onde F se encaminhou (casa de banho exterior), tendo feito telefonemas para o 112 – “pedir ajuda” – e para a Guarda Nacional Republicana.
13.1.8. Já dos elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução, nomeadamente da cronologia documentada nos autos, extrai-se que os telefonemas para o 112, das 07H22, 07H24 e 07H25, foram efectuados por P quando este e F se encontravam na parte de baixo do terreno, nas imediações de uns tanques.
13.1.9. Conclusão que se impõe, pois se foi na parte de baixo do terreno, nas imediações de uns tanques, que, das 07H19 às 07H21, P fotografou F quatro vezes, tendo ambos aí permanecido durante algum tempo - nas palavras daquele, às "voltas" - é forçoso concluir que os mencionados telefonemas (07H22, 07H24 e 07H25) foram efectuados nesse local e não junto da casa de banho exterior.
13.1.10. Para além dos mencionados telefonemas, só foi efectuado mais um para o 112, o das 07H41, não se ouvindo, à semelhança do que sucede com o das 07H25, a voz de F.
13.1.11. Assim, face à prova documental e às declarações prestadas, é indubitável que P telefonou para o 112, às 07H41, enquanto F caminhou, entrou e permaneceu na casa de banho exterior.
13.1.12. Depois, P efectuou um telefonema para a Guarda Nacional Republicana, (telefonema que durou 18 segundos, duração compatível com as declarações que prestou, afirmando que depois de F sair da casa de banho, este começou a caminhar na direcção da casa principal, tendo voltado para trás, "e eu aí guardo o telefone" no bolso).
13.1.13. Pelo que o que escapa às regras da experiência e normalidade e vai contra os vestígios, sinais e elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução é a conclusão a que chegou o Tribunal a quo.
13.1.14. Acresce que, atendendo ao que se passou no alpendre das traseiras da residência no momento imediatamente anterior, é compreensível a alteração do "tom" de voz de P, de que se extrai cansaço (ofegante), e do comportamento de P, que em vez de dizer que F estava ferido, afirmou que este se estava a esvair em sangue (por ter sido golpeado por aquele no alpendre das traseiras da residência).
13.1.15. Por último, se apesar das evidências, restavam dúvidas ao Tribunal a quo quanto ao momento/local em que foi efectuado o telefonema das 07H41, deveria, em sede de instrução, ter confrontado P com a cronologia e as declarações já prestadas, o que não fez.
13.2. O Tribunal o quo, divergindo dos elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução e desrespeitando as regras da experiência comum e do bom senso, considerou que não resultou suficientemente indiciado que, "após ter decepado a mão de F, o arguido tenho continuado com o sabre que empunhava, a desferir golpes no corpo e no cabeça de F", por não existir prova relativa à ordem/sequência das lesões, "não havendo qualquer indício que permita declarar, para além de qualquer dúvida, que as lesões subsequentes, na cabeça, tenham sido causadas posteriormente ao corte do mão pelo pulso, com o escopo de, aproveitando a maior fragilidade de F, determinar a sua morte”.
13.2.1. Em sede de interrogatório complementar, convidado a descrever os factos ocorridos depois de F ter saído da casa de banho, P disse que F se dirigiu a ele, com o braço direito no ar, procurando atingi-lo com a faca, pelo que começou a fazer movimentos com o sabre, brandindo-o de cima para baixo, (com posse de técnica de manejamento e de corte, bem como com aplicação de força significativa).
13.2.2. Mais disse P, mantendo as mãos juntas e fazendo movimentos ascendentes e descendentes, simulando que empunhava o sabre, referindo-se a F e ao momento que designa por final, "Senti que o estava a atingir, mas ele continuava a ter uma posição de ataque"; "eu num desses movimentos sinto que o corto assim na cara”; e noutro desses movimentos é quando a mão é decepada” “continua numa posição de ataque para cima de mim"; “recuo constantemente, tento afastar com a espada”, “e ele continua a vir sobre mim”; “esses movimentos para cima e para baixo é que acho causou os golpes mortais”;
13.2.3. Assim, P admitiu factos que lhe são desfavoráveis, nomeadamente que, ao brandir o sabre, sentiu que cortou a face de F e que lhe decepou a mão, tendo continuado a brandir o sabre para cima e para baixo, causando os golpes mortais, admissão que o Tribunal a quo não podia ignorar como fez.
13.2.4. Ainda em sede de declarações complementares, P afirmou que, depois dos "golpes mais mortais", F caiu para o chão, acrescentando que se recordava de ver a mão deste num lado e o corpo no outro.
13.2.5. Em sede de instrução, referindo-se ao momento que se seguiu aos "golpes mais mortais", P afirmou que F deu alguns passos, que se sentou e que, depois se deitou para o lado esquerdo.
13.2.6. Considerando a distância existente entre o corpo e a mão de F, vários/alguns metros, e não sendo credível que este continuasse a caminhar, durante vários/alguns metros, depois de ter sofrido de ferida corto perfurante na região frontotemporal esquerda – com corte da calote frontal e massa cefálica, destruição dos lóbulos frontotemporal esquerdo com esquirolas ósseas na extremidade superior, com hemorragia subdural frontotemporal esquerda extensa, na abóbada (ossos da cabeça); com perda da extremidade do lóbulo frontal esquerdo, com foco hemorrágico, congestão ao corte, no encéfalo – conclui-se que amputação traumática teve lugar antes e em local distinto do golpe de sabre que provocou a referida ferida, causa directa e necessária da morte.
13.2.7. Assim, o Tribunal o quo tinha de considerar suficientemente indiciado que P "com o sabre que empunhava, golpeou a face de F e decepou-lhe a mão esquerda".
13.2.8. "Não obstante, P continuou, com o sabre que empunhava, o desferir golpes no corpo e no cabeça de F até este cair inanimado e sem sinais aparentes de vida."
13.2.9. Está-se perante factos admitidos, em parte, por P, sendo-lhe desfavoráveis, concordantes com as provas documental e pericial, não existindo motivo legítimo ou válido do Tribunal a quo para deles divergir ou dúvida razoável invocada nesse sentido.
13.2.10. Corresponde à verdade que, no decurso do inquérito, se considerou, como possível, que a amputação traumática da mão esquerda tivesse ocorrido no momento em que foi desferido o golpe na região frontotemporal esquerda, atenta a similitude de ângulos dos cortes.
13.2.11. Tal não significou, porém, que se aceitasse a versão trazida por P - em sede de recurso, desconforme às declarações desfavoráveis que tinha prestado em declarações complementares - de acordo com a qual, tinha brandido o sabre "duas vezes", uma no último movimento descendente, obliquamente, da esquerda para a direita, golpe único que tinha provocado a decepação do pulso esquerdo, o ferimento na cabeça e no antebraço direito.
13.2.12. Tal versão não mereceu nem pode merecer credibilidade, face às múltiplas lesões que F apresentava e às distintas localizações e direções das mesmas.
13.2.13. Continuando, ainda que se admitisse que o ferimento frontotemporal e a amputação traumática da mão esquerda tivessem sido produzidas em simultâneo – o que não se aceita, atenta a distância existente entre a mão e o corpo e a indubitável impossibilidade de F ter continuado a andar depois de ter sofrido do mencionado ferimento (corte da calote frontal e massa cefálica) - jamais o Tribunal a quo poderia ter concluído que não existiam indícios que permitissem declarar, "para além de qualquer dúvida, que as lesões subsequentes, na cabeça, tenham sido causadas posteriormente ao corte da mão pelo pulso, com o escopo de, aproveitando a maior fragilidade de F, determinar a sua morte”.
13.2.14. Conclusão que implica uma desconsideração, arbitrária e inequívoca, vestígios, sinais e elementos de facto reunidos nos autos.
13.2.15. Pois de uma apreciação de tais elementos - efectuada de acordo com as regras da experiência comum e do bom senso - resulta, indubitavelmente, que, antes da produção do ferimento frontotemporal - sucedâneo ou simultâneo (o que não se afigura credível) à amputação traumática da mão esquerda – F já se encontrava numa posição de notória e evidente fragilidade, da qual P se aproveitou com a intenção de tirar a vida ao mesmo e de lhe provocar sofrimento enquanto o fazia.
13.2.16. Pois, às 07H16, F já tinha sofrido de ferida corto-perfurante com dez centímetros de profundidade na região epigastro esquerda e ferimentos corto-perfurantes na região metacarpo falângica desde o segundo até ao quinto dedo (mão esquerda), tendo, posteriormente, sofrido golpes de sabre no alpendre das traseiras, encontrando-se, às 07H41, a esvair-se em sangue.
13.2.17. Para além de tais ferimentos, antes da produção do ferimento frontotemporal – sucedâneo ou simultâneo (o que não se afigura credível) à amputação traumática da mão esquerda - em consequência dos golpes infligidos por P, F tinha sofrido de feridas corto perfurantes na base da asa esquerda nasal, no tórax (uma), no hemitórax (duas), na línea média axilar (uma), na omoplata direita (quatro), na face lateral externa do antebraço esquerdo, na face anterior da coxa direita (duas); de esfacelamento com várias feridas corto perfurantes no antebraço direito; de ferida corto perfurante lacerativa profunda (até ao osso) no antebraço direito; de ferida na mão direita (golpes de defesa) em todos os dedos na face palmar; de múltiplas feridas escoriativas nas pernas direita e esquerda, bem como no pé direito.
13.2.18. Feridas de distintas profundidade e gravidade e com diferentes direções.
13.2.19. Ainda antes da produção do ferimento frontotemporal - sucedâneo ou simultâneo (o que não se afigura credível) à amputação traumática da mão esquerda – P desferiu, com o sabre que empunhava, um golpe na face de F, provocando-lhe ferida corto-perfurante, com bordos de pele livre, angulada, com cerca de dezoito centímetros desde a supraciliar direita até ao início do pavilhão auricular direito, com quatro centímetros de profundidade, atingindo o osso zigomático direito, com fractura comunitiva, e o globo ocular direito, com afundamento deste e fractura comunitiva lateral externa da cavidade orbitária direita.
13.2.20. Assim, afigura-se ilógico e absurdo - contrário aos vestígios, sinais e elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução, bem como contrário às regras da experiência comum e do mais elementar bom senso - defender-se que F (com ou sem mão esquerda) não se encontrava numa posição de manifesta fragilidade e inferioridade, aquando da produção do ferimento frontotemporal, e que não houve aproveitamento dessa posição, com intenção de lhe provocar a morte (e de lhe provocar sofrimento).
13.2.21. Realça-se, ex officio, que a admitir-se a produção simultânea - com um único golpe de sabre - da amputação traumática da mão esquerda e do ferimento frontotemporal, a inevitabilidade de conclusão pela prática de um crime de homicídio qualificado - com aproveitamento de uma situação se fragilidade/inferioridade e intenção de provocar sofrimento - seria ainda mais evidente.
13.2.22. Pois da mera observação do ferimento frontotemporal extrai-se que P não estava de frente para F (ferimento feito obliquamente, da esquerda para a direita e de trás (zona da orelha) para a frente (zona da testa), que aquele estava num plano elevado em relação a este (ferimento feito de cima para baixo, com um movimento descendente do sabre), que a força utilizada foi intensa, mais intensa se se aceitar que houve amputação traumática simultânea da mão esquerda.
13.2.23. Assim, sempre se concluiria que – sem faca, com ferimentos corto-perfurantes, de profundidade e gravidade distinta, em quase todas as zonas do corpo e na face, a esvair-se em sangue, com dores – dobrado, agachado, de joelhos ou sentado, F pôs o braço/mão esquerda sobre a cabeça, tentando proteger-se. Momento em que P, aproveitando-se da situação de fragilidade/inferioridade e da posição de defesa em que F se encontrava, com o escopo de lhe retirar a vida, desferiu – exercendo força muscular, com o sabre que empunhava, num movimento descendente – um golpe na cabeça do mesmo, provocando-lhe a amputação traumática da mão esquerda e um ferimento corto perfurante na região frontotemporal.
13.3. Ao arrepio dos elementos de facto reunidos no inquérito e na instrução, o Tribunal o quo não considerou suficientemente indiciado que P tenha agido "fria, crua e persistentemente com o propósito de também provocar sofrimento físico e psíquico a F enquanto lhe provocava a morte", entendendo que se apurou a "geração do resultado morte num contexto ocasional”, pois concluiu que:
13.3.1. Inexistia prova que indiciasse que P tenha planeado e conduzido este até à sua morte “mediante recurso a uma morte particularmente dolorosa, prolongada no tempo e destinada a causar-lhe sofrimento físico e psíquico e medo”;
13.3.2. Não resultou demonstrado que P tenha empregado tortura ou um acto de especial crueldade para aumentar o sofrimento da vítima - pois “o acto de matar transporta inexoravelmente sofrimento” - concluindo pela inexistência de uma acção especialmente censurável;
13.3.3. Tais conclusões são aberrantes.
13.3.4. A intenção das pessoas enquanto facto interno afere-se pelo comportamento exterior das mesmas (factos externos), indiciador ou revelador da sua vontade, valorada - de acordo com as regras da experiência comum e do bom senso - por padrões sociais objectivos, tendo em conta a situação concreta.
13.3.5. Já a especial censurabilidade ou perversidade prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas.
13.3.6. Em casos de homicídio, a especial censurabilidade ou perversidade revela-se quando as circunstâncias em que a morte foi perpetrada são de tal modo graves que refletem uma atitude do agente do crime seriamente distanciada de uma determinação normal de acordo com os valores.
13.3.7. O desiderato (intenção de provocar sofrimento físico e psíquico - aproveitando-se de uma situação de fragilidade/inferioridade - enquanto provocava a morte) extrai-se das lesões provocadas (antes das 07H16, no alpendre das traseiras e no momento “final”), respectivos número e localização (nomeadamente nas costas, nas mãos, nos braços, no tórax, na face e na cabeça), do instrumento utilizado (sabre com 75 centímetros de lâmina) e bem assim de todo o circunstancialismo em que ocorreu o homicídio qualificado (durante cerca de quarenta minutos, revelando persistir na intenção de matar e frieza de ânimo, P seguiu F pela Quinta Alada, provocando-lhe golpes de sabre sempre que teve oportunidade), conjugados com as regras de experiência e com as leis científicas.
13.3.8. Antes de P provocar, como quis, com o sabre que empunhava, o ferimento frontotemporal (simultaneamente ou não com amputação traumática da mão esquerda), que foi causa directa e necessária da morte, quis provocar e provocou a F, com o sabre que empunhava, os já mencionados ferimentos (13.2.17.), adequados a provocar sofrimento físico e psíquico a este e a coloca-lo numa posição de fragilidade, com o escopo de lhe tirar a vida.
13.3.9. Pelo que se conclui, forçosamente, que P não pretendeu, apenas, tirar a vida a F: pretendeu, também, com crescente crueza, infligir-lhe “Summum et Crudelissimum Supplicium”, sendo a sua atitude especialmente desvaliosa, seriamente distanciada de uma determinação normal de acordo com os valores.
13.3.10. Assim concluiu, também, o Tribunal a quo - ainda que em manifesta contradição com a conclusão a que chegou quanto à especial censurabilidade – ao considerar suficientemente indiciado que P, “exercendo força muscular, quis desferir e desferiu com o sabre que empunhava, diversos golpes na cabeça, na face, abdómen e membros inferiores e superiores de F com o propósito concretizado de lhe retirar a vida”, provocando-lhe no decurso desse processo, “dores significativas”.
14. Para além do já exposto, a fundamentação da “excusatio” pelo Tribunal a quo carece de suporte factual e é intrinsecamente contraditória.
14.1. Inexistem quaisquer factos suficientemente indiciados que suportem a fundamentação da “excusatio”.
14.1.1. Refira-se, antes de mais, que inexiste qualquer facto de que se extraia que, com a faca que empunhava, no interior da residência, F atingiu P no braço (cotovelo direito), facto que suportaria uma das conclusões do Tribunal a quo (“não sabendo” P “o que lhe poderia acontecer após ter visto a sua integridade física colocada em perigo”, pela “pessoa que o houvera atingido no braço e com quem se houvera confrontado fisicamente”).
A) Nos autos, considerou-se suficientemente indiciado que, no decurso da contenda ocorrida no interior da residência entre P e F, aquele sofreu de “ferida incisa, com cerca de três centímetros, a nível do antebraço (cotovelo direito), superficial sem atingimento de estruturas musculotendinosas (…) com cinco centímetros, em forma de “C” invertido, na região do cotovelo direito”.
B) Inexistiam, porém, nos autos quaisquer vestígios, sinais ou elementos que permitissem concluir, com a certeza juridicamente necessária, que F tinha atingido P com a faca que empunhava ou de qualquer outro modo. Veja-se:
C) P não logrou indicar o concreto momento em que, alegadamente, sofreu o golpe ou como foi atingido por F, tendo afirmado - em sede de primeiro interrogatório de arguido detido - referindo-se a este, “atacou-me com uma faca (…) ou objecto contundente”.
D). Não foram detectados vestígios de ADN de P na faca (cabo e lâmina) que F empunhava, mas tão-só vestígios de ADN deste último.
E) No quarto, onde P se encontrava deitado, inexistiam vestígios de sangue projectado, existindo apenas vestígios de sangue gravitacional – com o ADN de P.
F) Da documentação clínica relativa aos cuidados de saúde prestados, no dia 28 de Agosto de 2023, a F resulta que este não se apresenta hostil, nem com a agressividade latente e que não tinha ideação auto ou hétero-agressiva.
G) V, Militar da Guarda Nacional Republicana, afirmou que, no decurso de um dos telefonemas efectuado por P ouviu outro indivíduo (F) dizer “estás a chamar a guarda porquê se não te vou fazer mal?”.
14.1.2. Inexiste, também, qualquer facto suficientemente indiciado de que se extraia, como concluiu o Tribunal a quo, que P agiu dominado por perturbação emocional, tendo sentido receio pela sua integridade física e vida.
A) Acredita-se que P se tenha assustado com o aparecimento súbito de F no quarto.
B) Sucede, porém, que o que se extrai dos vestígios, sinais e elementos de facto constantes dos autos, nomeadamente do afirmado e das acções de P (piloto de aviação, treinado para gerir situações de stress) é que, depois do ocorrido no interior da residência, este manteve controlo emocional e não receou F, pois tinha consciência de que o mesmo não representava qualquer perigo para a sua integridade física e vida.
C) Veja-se, nas declarações que prestou – em primeiro interrogatório judicial - perguntado se F constituía uma fonte de agressão, P respondeu “se eu estou a dez metros ou mais dele e ele não veio ter comigo, não”; perguntado se tinha equacionado trancar-se em casa, respondeu “não me ocorreu”; perguntado porque tinha seguido F quando este se afastou, respondeu “não consigo precisar”.
D) Mais se atente no comportamento de P após o ocorrido no interior da residência, pois foi “buscar o sabre”, foi buscar o telemóvel, vestiu os calções, optou por seguir F, para “ver para onde” este ia e o que ia fazer, fotografou F, pois “queria registar o sucedido para servir como meio de prova”, continuando a segui-lo, pois queria “ver o que se estava a passar, o que é que ele estava a fazer” e se ia “fugir”, que pensou “a GNR vai chegar, eu quero apoiar a GNR”, dizendo-lhes “cuidado ele está aqui”, “cuidado ele fugiu por ali ou está escondido”.
E) Como bem afirmou o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto (página 132 Parecer – Recurso 273/23.0GCMMN-B), “a tese de que o arguido teve medo e pânico é de rejeitar não só pelo desenrolar da acção como pelo singelo facto de violar as mais elementares regras de experiência e do senso comum.
F) Com efeito, quem tem medo e até pânico “tranca-se” em casa, não abandona o resguardo e a protecção que lhe é dada pela residência, em circunstância alguma a abandona e enceta perseguição à infeliz vítima.
G) Ora foi isso que aconteceu (…), o arguido revelando, de forma insofismável, audácia, destemor, determinação, espírito de vingança saiu da residência munido da espada/sabre e foi no encalce da vítima. A actuação do arguido estás nas antípodas do que pretende fazer crer ao lançar mão dos conceitos de medo e pânico.”
H) No mesmo sentido, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Évora (Acórdão de 9 de Janeiro de 2024 – página 216 Recurso 273/23.0GCMMN-B), “(…) mesmo na versão do arguido, os factos que conduziram ao falecimento de F decorreram em circunstâncias em que ao arguido P teria sido possível refugiar-se no interior da casa, ali se fechando para salvaguarda da sua integridade física e vida. F estava no exterior da habitação e ali permaneceu enquanto o arguido entrou em casa para se vestir e se munir da arma que veio a utilizar e do telemóvel. Como é evidente (…), o medo que o arguido disse estar a sentir, nos termos que decorrem dos dados da experiência comum, faria com que estese fechasse no interior daquele espaço para, dali, pedir socorro às autoridades, enquanto F era forçado a permanecer no exterior”.
14.1.3. Dos factos suficientemente indiciados não resulta que P aguardava a chegada de E, tendo temido pela integridade física e vida desta, como concluiu o Tribunal a quo na fundamentação da “excusatio”.
A) Em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, perguntado, P afirmou “estava só eu, estava sozinho, que eu saiba estava sozinho”.
B) Então, P não conseguiu explicar porque motivos tinha optado por seguir F, em vez de se resguardar, protegendo-se do perigo que disse existir para a sua vida.
C) Distintamente, em sede de interrogatório complementar e de instrução, P afirmou (versão trabalhada/estudada), que aguardava a chegada de M e de E, que estas se podiam encontrar no interior da Quinta Alada, feridas ou mortas, ou ser atacadas por F quando chegassem ao local, pelo que optou por seguir e controlar os movimentos deste.
D) Tal versão não colhe, por violar as mais elementares regras de experiência e do senso comum.
E) Aquando da sua inquirição, E afirmou que M não ia estar na Quinta Alada, no dia 30 de Agosto de 2023, o que - desmentindo-se – P confirmou ao afirmar, em sede de instrução, que não tinha a certeza se a mesma “ia chegar do voo ou se estaria em Almada”.
F) Por outro lado, em sede de instrução, P afirmou que aguardava por E e que esta costumava chegar à Quinta Alada às 08H30, 09H00 OU 10H00.
G) Pelo que não era credível, que às 07H00 (das 07H16 às 07H58), E já estivesse ferida ou morta no interior da Quinta Alada.
H) Ainda em sede de instrução, P afirmou que estava “preocupado com a M e a E, que sabia que iam chegar nessa manhã” e que o assolou a possibilidade de estas já terem sido mortas ou feridas por F e estarem a precisar de ajuda.
I) A ser verdade que P estivesse com receio que F já tivesse atacado/ferido/morto M e/ou E ou que o fizesse quando estas chegassem à Quinta Alada ter-lhes-ia telefonado ou tentado telefonar, tentando saber onde se encontravam, como estavam, nomeadamente se necessitavam de auxílio ou cuidados médicos, e alertando-as para a presença daquele, o que não fez em nenhum momento.
J) Mais teria alertado quem o atendeu nos diversos telefonemas, que efectuou para o 111 e para a Guarda Nacional Republicana, para a possibilidade de M e E se encontrarem feridas e necessitarem de auxílio médico ou para o desconhecimento do paradeiro destas, assegurando, desse modo, que as mesmas receberiam ajuda e seriam alertadas, o que também não fez.
K) Por outro lado, tais “receios” teriam sido dissipados assim que P saiu da residência, empunhando um sabre, pois teria verificado que não se encontrava no local nenhum veículo em que as mesmas se pudessem ter feito transportar até à Quinta Alada, sita em local isolado, longe de qualquer residência e/ou localidade.
14.1.4. Não existe, também, qualquer facto suficientemente indiciado de que se extraia que, face às investidas de F, que mantinha delírios místicos-espirituais, que já tinha anunciado que o ia matar e que o procurava atingir, levantando e baixando o braço direito e a mão direita, na qual empunhava uma faca, P - dominado por perturbação emocional, sentindo receio pela sua integridade física e vida, bem como pela integridade física e vida de E, por quem aguardava - com intenção de afastar aquele, com o sabre que empunhava, desferiu golpes no corpo, membros e cabeça do mesmo, que foram causa directa e necessária da sua morte, carecendo, portanto, em absoluto, a excusatio de suporte factual.
A) Reitera-se que P manteve o controlo emocional, não sentiu receio pela sua integridade física e vida e não aguardava a chegada de M nem de E, não tendo, portanto, temido pela integridade física e vida destas.
B) Por outro lado, da observação das fotografias tiradas por P a F - na parte de baixo do terreno - extrai-se que este passou por aquele, parecendo contorná-lo, com o braço para baixo e a faca na mão, com a lâmina voltada para baixo, o que revela falta de hostilidade, de agressividade latente e de ideação auto ou hétero-agressiva.
C) Acresce que não se pode extrair da frase “atacas-me com isso morres” - telefonema efectuado por P para o 112, às 07H22 - a verbalização de uma intenção (matar), pois encontrando-se F com delírios místicos-espirituais (telefonemas 07H22 e das 07H24) e acreditando deter poderes sobrenaturais (declarações de P em primeiro interrogatório judicial, complementares e em sede de instrução), a morte de P poderia, para aquele, representar uma consequência necessária (castigo divino ou angelical) dos ferimentos que este lhe estava a infligir.
D) Realça-se, a propósito, que V, Militar da Guarda Nacional Republicana, ouviu F dizer “estás a chamar a Guarda porquê se não te vou fazer mal?”.
E) Mais se realça que - em sede de primeiro interrogatório judicial - P afirmou que não sabia precisar se F “já tinha largado a faca”, no alpendre das traseiras da residência, aquando do arremesso do tronco.
F) O que, de acordo com as regras da experiência comum e do bom senso, se crê corresponder à verdade, pois tendo já a mão esquerda a sangrar - com ferimentos corto-perfurantes na região metacarpo falângica desde o segundo até ao quinto dedo – dificilmente F teria conseguido manter a faca numa das mãos, depois de agarrar num (ou dois) tronco de madeira – mais ou menos com 40 centímetros de comprimento e 10 a 12 centímetros de diâmetro, – e de o arremessar na direção de P e depois de despir e arremessar os calções.
G) Acresce que - depois de arremessar o tronco e de ter sido golpeado no alpendre das traseiras - F se refugiu na casa de banho exterior e disse a P “Não entres aqui, ouviste? Não entres aqui”.
H) O que se extrai de tais factos, bem como da existência de 4 (quatro) feridas superficiais na região da omoplata direita de F, da existência no corpo deste de inúmeras feridas defensivas e da inexistência no corpo de P de outras lesões para além do corte no cotovelo direito, é que, com domínio do espaço, este seguiu aquele – que não o atacou e que se afastou – desferindo-lhe golpes com o sabre, sempre que teve oportunidade de o fazer.
I) Certeza reforçada se se considerar que, depois de ter saído de casa de banho exterior, F já não tinha a faca (facto suficientemente indiciado 37), pelo que jamais poderia ter avançado na direcção de P empunhando a mesma, com intenção de o atingir.
J) E P sabia que, no momento “final”, F já não tinha a faca.
K) O que se extrai dos múltiplos ferimentos defensivos que F tinha nos braços, nas mãos e nos dedos, com os quais se procurou defender dos golpes infligidos por P (ferimentos corto perfurantes com esfacelamento na face lateral externa terço médio do antebraço direito; ferida corto perfurante lacerativa profunda até ao osso, com dezoito centímetros de comprimento, na face anterior do terço proximal do antebraço direito; de ferida corto perfurante lacerativa angulada com bordos irregulares, com um eixo de oito centímetros de comprimento e quatro centímetros de largura, na face anterior do terço médio do antebraço direito; de diversos golpes na face palmar da mão direita e nos dedos com esfacelamento da falange distal do indicador, de ferimentos corto-perfurantes na região metacarpo falângica desde o segundo até ao quinto dedo da mão esquerda), ferimentos que, pelas dores e localização (sobretudo as da região palmar de que se extrai que F procurou defender-se com a mão aberta e a palma voltada para P), o impediam de manter a faca na mão e de fazer movimentos de ataque.
L) Assim, por ter ferimentos desde as 07H16, por já não ter a faca, por ter sido golpeado no alpendre das traseiras e por se estar a esvair em sangue (telefonema das 07H41), F não representava nenhum perigo para P.
M) Incompreensivelmente face à “excusatio”, mas em conformidade com os sinais, vestígios e elementos de facto reunidos nos autos, o Tribunal a quo também entendeu que F não representava qualquer perigo, ao afirmar que não era credível que este “que fugiu no alpendre e que procurou que o arguido se mantivesse longe de si – designadamente quando entrou na casa de banho exterior – tenha continuado a caminhar desarmado na direção do arguido enquanto era atingido”.
N) Mais considerou que, “Vista a prova, mostram-se indiciariamente afastados os demais cenários atenta a proliferação de lesões no corpo de pedro fanico, a sua profundidade e localização no corpo, não se concebendo que aquele, mesmo naquela condição mental, continuasse a avançar sobre o arguido, desarmado, quando aquele lhe provocava com a espada lesões corporais que, pela natureza das coisas, lhe provocaram dores significativas.
14.1.5. Pelo que se conclui que - ao contrário do que afirma o Tribunal a quo (“inexistindo factualidade suficientemente indiciada apta ao preenchimento do crime imputado ao arguido (ou a qualquer outro) pela acusação pública”) - inexistem, sim, quaisquer factos alegados ou indiciados (insuficiente ou suficientemente) que permitam concluir pela verificação do estado necessidade desculpante, de legítima defesa ou de excesso de defesa.
14.2. Para além do exposto, a “excusatio” de P pelo Tribunal a quo é intrinsecamente contraditória.
14.2.1. Ao contrário do que seria expectável, face à não pronúncia por actuação ao abrigo de um (putativo) estado de necessidade desculpante (que não tem nem suporte factual nem suporte probatório, como demonstrado), o Tribunal a quo considerou suficientemente indiciado que:
A) “Entretanto, o arguido seguiu F até ao alpendre das traseiras da residência.
B) Já no alpendre, o arguido brandiu o sabre, fazendo golpes com o mesmo no corpo de F, que pegou num tronco e o arremessou na direcção daquele.
C) Após, F começou a caminhar na direcção de uma casa de banho de madeira existente na Quinta Alada, onde entrou, dizendo por duas vezes ao arguido “não venhas para aqui, não entres aqui”.
D) O arguido e F aproximaram-se, sendo que o último já não empunhava a faca e que já tinha saído da casa de banho.
E) De seguida, com o sabre que empunhava, por diversas vezes, o arguido brandiu o sabre, de cima para baixo, atingindo e golpeando o corpo de F, o qual pôs os braços à frente, procurando defender-se.
F) Então o arguido, com o sabre que empunhava, golpeou a face de F, desferiu-lhe golpes no corpo e cabeça e decepou-lhe a mão esquerda, tendo aquele caído inanimado e sem sinais aparentes de vida.
G) O arguido P quis agarrar, transportar e usar um sabre, com setenta e cinco centímetros de lâmina e trinta e três centímetros de punhos até à protecção da mão e, exercendo força muscular, quis desferir e desferiu com o sabre que empunhava diversos golpes na cabeça, face, abdómen e membros inferiores e superiores de F, o que fez com o propósito concretizado de lhe retirar a vida, o que logrou alcançar.
H) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente.”
I) Após, concluiu o Tribunal a quo que inexistia “(…) factualidade suficientemente indiciada apta ao preenchimento do crime imputado ao arguido (ou a qualquer outro) pela acusação pública”.
J) Conclusão absurda e ilógica, uma vez que o Tribunal a quo considerou suficientemente indiciados factos que integram todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio (agravado nos termos do artigo 86º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro).
14.2.2. Intrinsecamente contraditória a decisão do Tribunal a quo que - perante factos suficientemente indiciados que integram todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio agravado - exculpa P, recusando justiça a F, depois de ter considerado que a “modificação comportamental do arguido permite verificar, para além de qualquer dúvida, uma modificação de ânimo da abordagem (…), sendo certo que as lesões exibidas pelo corpo de F (…) não permitem identificar a existência de uma actuação puramente defensiva perante um homem desarmado, com o escopo de rechaçar as ditas investidas, especialmente tendo em consideração que durante o período em que o falecido F se encontrou armado, o arguido o houvera sido capaz de manter à distância, controlando-o”.
A) Ao admitir uma modificação do ânimo do arguido, o Tribunal a quo dissipou as dúvidas que tentou suscitar no despacho de não pronúncia (“imputando o Ministério Público que o arguido, a partir de determinado momento (que não se mostra expressamente assinalado), agiu com o propósito de matar F, (…), terá passado a perseguir F com o escopo de colocar termo à vida deste”, acrescentando posteriormente “porque razão o arguido, se o perseguia, se mantinha à distância de F – conforme demonstram as fotografias – se para consumar a putativa intenção teria de se aproximar do mesmo?”).
B) Dúvidas que, também, dissipou quando considerou suficientemente indiciado que:
a) P seguiu F pela Quinta Alada, inclusive quando este se refugiou na casa de banho exterior;
b) P, brandindo (com técnica) o sabre que empunhava, desferiu golpes nas costas de F, provocando-lhe quatro feridas corto-perfurantes na omoplata direita (explicando que tais cortes se “mostram consistentes com a aplicação da extremidade do sabre” e que é fantasioso “equacionar que aqueles cortes multidireccionais e compatíveis com lesões idênticas noutras partes do corpo tenham sido causados por F, designadamente ao transpor a rede ovelheira encimada por arame farpado);
c) P foi “capaz de manter F á distância de um metro (…) mediante exibição e manejamento do sabre” e, depois, no alpendre das traseiras – brandindo o sabre – fez golpes no corpo do mesmo;
d) Nas imediações da casa de banho, P, por diversas vezes, brandiu o sabre de cima para baixo, atingindo e golpeando o corpo de F, que não tinha a faca e que pôs os braços à frente, procurando defender-se;
e) P, com o sabre que empunhava, golpeou a face de F, desferiu-lhe golpes no corpo e na cabeça e decepou-lhe a mão esquerda;
C) Factos de que, indubitavelmente, se extrai que P perseguiu F pela Quinta Alada, com o escopo de colocar termo à vida deste e de lhe provocar sofrimento físico e psíquico enquanto o fazia.
D) A propósito, nos autos, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Évora, por Acórdão de 9 de Janeiro de 2024, nos seguintes termos “(…) os factos terão decorrido em duas fases sucessivas, uma no interior da residência, a outra no exterior. Se na primeira ainda se pode considerar que o indiciado comportamento do arguido terá sido de defesa, na segunda – a que ocorre no exterior da residência – todos os indícios apontam fortemente para uma situação que jamais poderia configurar legítima defesa”.
E) Igualmente em contradição com a “excusatio”, afirmou o Tribunal a quo “que o arguido quis e procurou gerar aquele resultado, o único que se coaduna com a elevada energia cinética colocada no manejo da espada (…) que determinou a amputação do membro e consequente corte no calote frontal com afectação da massa encefálica”.
F) Acrescentando que “não é crível que o mesmo F que fugiu no alpendre e que procurou que o arguido se mantivesse longe de si – designadamente quando entrou na casa de banho exterior – tenha continuado a caminhar desarmado na direcção do arguido enquanto era atingido”.
G) Deste modo, o Tribunal a quo dissipou dúvidas que suscitou - ao perguntar se, tendo intenção de matar, não seria razoável que P “tivesse emboscado” F “quando este se encontrava no interior da casa de banho?” - e teria, forçosamente - face aos vestígios, sinais e elementos que constam dos autos - de ter considerado suficientemente indiciado – como constava da acusação - que “Após, P aproximou-se de F, que já não empunhava a faca e tinha saído da casa de banho”, ao contrário do que fez.
H) Mais teria o Tribunal a quo de ter concluído pela existência de uma “emboscada”, pois P poderia ter-se limitado a fechar a porta da casa de banho, uma vez que a chave se encontrava na fechadura do lado de fora (garantindo a preservação da sua integridade física e vida, bem como da integridade física e vida de quaisquer outras pessoas que, putativamente, pudessem estar no local, e impedindo que F fugisse), tendo optado por permanecer no exterior, à espera que F saísse, momento após o qual, desferiu diversos golpes no corpo, membros face e cabeça do mesmo, provocando-lhe sofrimento físico e psíquico e a morte.
14.3. Prossegue o Tribunal a quo, “mostram-se indiciariamente afastados os demais cenários atenta a proliferação de lesões no corpo de F, a sua profundidade e localização no corpo, não se concebendo que aquele, mesmo naquela condição mental, continuasse a avançar sobre o arguido, desarmado, quando aquele lhe provocava com a espada lesões corporais que, pela natureza das coisas, lhe provocaram dores significativas.”
14.4. Nestes termos, uma vez que o Tribunal a quo afastou “qualquer actuação puramente defensiva”, qualquer outro cenário, ou seja, qualquer “animus defendendi ou animus salvandi, pelo que teria, necessariamente, de proferir despacho de pronúncia, imputando a P a prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal e 86º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, nos exactos termos que constavam da acusação, retificados os lapsos desta.
14.5. Indecifrável e incoerentemente, desrespeitando os sinais, vestígios e elementos reunidos nos autos, em relação aos quais não tinha motivos válidos ou legítimos para divergir, não o fez o Tribunal a quo.
14.6. Surpreendentemente, o Tribunal a quo afirmou que P se encontrava “numa situação de perigo actual e iminente”, movido a adrenalina, “tendo sido forçado a actuar sob pena de sucumbir ou, fugindo, entregar outrem” - E - “à sua sorte, numa situação idêntica à do exemplo de escola da tábua de Carneades”.
14.7. Desconsiderou o Tribunal a quo que o “naufrágio” ocorreu a vinte centímetros do areal, com maré baixa, existindo apenas dois náufragos, um (F) que tinha ferimentos corto-perfurantes - de profundidade e gravidade distinta, que provocaram hemorragia intensa (a esvair-se em sangue) – e outro (P) que sofreu de ferida superficial e que podia e devia - por lhe ser exigível e por ter água pelos joelhos - ter caminhado até ao areal e ter aguardado nesse local pela chegada das autoridades, tendo optado - numa atitude especialmente desvaliosa, seriamente distanciada de uma determinação normal de acordo com os valores - por retirar a tábua àquele, desferir-lhe diversos golpes em várias zonas do corpo e “submergir a cabeça do mesmo”, até que parasse de se debater e de apresentar sinais vitais.
14.8. Não podia o Tribunal a quo, porque irrazoável, ter concluído que P se encontrava numa “situação de perigo actual que não se apresentava (…) removível doutro modo (…), que ameaçava a sua vida, não lhe sendo exigível (…) a prática de qualquer outra conduta destinada a salvar a sua própria vida, o que logrou conseguir através do sacrifício do malogrado F. Entre morrer e matar (sendo certo que não se apurou se o arguido tinha efectiva noção que F já não transportava a faca consigo)”, conclusão “que aos olhos de um cidadão de normal sagacidade se” afigura “imediatamente inverosímil” (Recurso 273/23.0GCMMN-B, cfr. fls. 218 / fls. 23 do Acórdão).
14.9. Como resulta dos sinais, vestígios e elementos reunidos nos autos, inexistia qualquer agressão (acto ofensivo de interesses juridicamente tutelados) ou perigo (risco ou ameaça de lesão para bens jurídicos), actuais (contemporâneo / presente/ já em execução) ou iminentes (próximo / imediato / prestes a iniciar-se), para a integridade física ou vida de P e para a integridade física ou vida de E (que não se encontrava no local nem era expectável que aí viesse a estar).
14.10. Mesmo que resultasse inequivocamente dos autos que F tinha provocado, com a faca que empunhava, um golpe no braço de P – o que não resultou nem podia resultar suficientemente indiciado face aos elementos reunidos no inquérito e na instrução – sempre importaria considerar que tais factos teriam ocorrido, no interior da residência, antes das 07H16, tendo-se, então, este defendido daquele - fazendo uso apenas das mãos e da força muscular - agarrando nos pulsos do mesmo, empurrando-o para fora do quarto e mantendo-se afastado.
14.11. Mais se impunha considerar que, entre as 07H19 (fotografias) e as 07H25 (telefonemas) na parte de baixo do terreno, P conseguiu “manter F à distância de um metro (correspondendo à dimensão do gume e punho da pesada) mediante exibição e manejamento do sabre”, defendendo-se de putativas investidas deste.
14.12. No mais, depois de ter pegado no sabre e no telemóvel e de ter vestido os calções, P seguiu F pelo terreno da Quinta Alada - que conhecia - desferindo-lhe golpes com o sabre - designadamente nas costas - sempre que teve oportunidade de o fazer.
14.13. Por outro lado, revelando domínio de emoções e controlo de acções, P fotografou F e efectuou diversos telefonemas para a Guarda Nacional Republicana e para o 112 (a fim de “(…) registar o sucedido para servir como meio de prova”), revelando não ter receio do mesmo, o qual não constituía uma fonte de agressão e tinha afirmado que não lhe ia fazer mal.
14.14. No alpendre das traseiras, P desferiu, com o sabre que empunhava, golpes no corpo de F.
14.15, Então, F, arremessou um tronco de madeira na direcção de P, comportamento de que se extrai que aquele se encontrava e procurava manter-se à distância deste e que dificilmente teria conseguido manter a faca na mão aquando do arremesso dos troncos (e, posterior arremesso dos calções).
14.16. Depois, às 07H41 (antes do “momento final” e não depois como afirma o Tribunal a quo, inexplicavelmente, num esforço de justificar a injustificável a “excusatio”), P telefonou para o 112, dizendo que F se estava a esvair em sangue e “venham rápido por favor, se não toda a gente morre”.
14.17. Entretanto, F saiu da casa de banho, sem faca, ferido - com, pelo menos, uma ferida corto-perfurante com dez centímetros de profundidade na região epigastro esquerda e ferimentos corto-perfurantes na região metacarpo falângica desde o segundo até ao quinto dedo, desde antes de as 07H16 – cansado – atenta quer a distância percorrida entre o lugar onde deixou o carro e a Quinta Alada quer a percorrida no interior deste local, bem como o tempo decorrido, mais de quarenta minutos – e a esvair-se em sangue.
14.18. E P sabia que F já não empunhava uma faca, desde logo atentas as feridas que este tinha nas regiões palmares de que se extrai que se procurou defender com a mão aberta e a palma voltada para quem o agredia com um sabre.
14.19. Assim, F que se encontrava desarmado e numa posição de fragilidade/inferioridade, não constituía fonte de agressão/perigo (actual ou iminente) para P ou para qualquer outra pessoa que, imaginariamente, se pudesse deslocar ou estivesse na quinta alada (perigo utópico / irreal / inventado).
14.20. Reafirma-se - atento o exposto, bem como a localização, dimensão e número de feridas defensivas (a saber, ferimentos corto perfurantes com esfacelamento na face lateral externa terço médio do antebraço direito; ferida corto perfurante lacerativa profunda até ao osso, com dezoito centímetros de comprimento, na face anterior do terço proximal do antebraço direito; de ferida corto perfurante lacerativa angulada com bordos irregulares, com um eixo de oito centímetros de comprimento e quatro centímetros de largura, na face anterior do terço médio do antebraço direito; de diversos golpes na face palmar da mão direita e nos dedos com esfacelamento da falange distal do indicador, lesões que, pelas dores e localização, o impediam de manter uma faca na mão e de fazer movimentos de ataque) - que não é credível que, depois de sair da casa de banho na descrita situação de evidente fragilidade / inferioridade, F continuasse a avançar na direcção e a atacar P, que sabia que aquele estava desarmado - atentas as feridas que o mesmo apresentava nas regiões palmares das duas mãos, de que se extrai que tinha as mãos abertas com as palmas voltadas para quem o agredia – ferido e a esvair-se em sangue.
14.21. Pelo que qualquer “cidadão de normal sagacidade” teria, forçosamente, concluído pela inexistência de qualquer situação de agressão/perigo (actual ou iminente) para P ou para qualquer outra pessoa (imaginária), não representando F uma fonte de agressão/perigo, por se encontrar desarmado, cansado e a esvair-se em sangue e porque - como tribunal a quo deu por suficientemente indiciado - pôs os braços (e as mãos abertas como demonstram as feridas nas regiões palmares) – à frente do corpo, procurando defender-se dos golpes que aquele lhe infligia com a espada.
14.22. Não se alcançando - nem com esforço, porque irrazoável e incoerente - como o tribunal a quo concluiu que quem – desarmado, cansado e a esvair-se em sangue - se estava a defender – pondo os braços e as mãos abertas à frente do sabre - constituía uma fonte de agressão/perigo para quem estava a atacar ou para alguém que nem se encontrava no local.
14.23. Efabulando, depois de ter dito a P para não se aproximar (enquanto esteve na casa de banho), F - sem faca, ferido, cansado e a esvair-se em sangue - atacou aquele, procurando atingi-lo com as mãos.
14.24. O que se impunha a P era que, à semelhança do que fez no interior da residência, usasse das mãos e da força muscular, para agarrar os pulsos de pedro fanico, empurrando-o e mantendo-o afastado.
14.25. Não o fez.
14.26. P brandiu o sabre, de cima para baixo, atingindo e golpeando o corpo de F, o qual pôs os braços e mãos à frente, procurando defender-se.
14.27. Nesse momento, atentos os múltiplos ferimentos, de diferente profundidade e gravidade, que F tinha nas mãos (palmas e dedos) e nos braços, com os quais se procurava defender, P teria, forçosamente, de se ter apercebido de que o mesmo não empunhava qualquer faca (pelo que era impossível que representasse perigo para a sua integridade física ou vida ou para a vida e integridade física de qualquer outra pessoa que não se encontrava no local).
14.28. Assim, se não pretendesse matar e provocar sofrimento físico e psíquico enquanto o fazia, P teria parado de infligir, com o sabre que empunhava (com intensidade e técnica de manuseio e corte), golpes no corpo de F.
14.29. O que, também, não sucedeu.
14.30. Pois P continuou a infligir golpes no corpo de F, sentindo que o atingiu na face - provocando-lhe ferida corto-perfurante, com bordos de pele livre, angulada, com cerca de dezoito centímetros desde a supraciliar direita até ao início do pavilhão auricular direito, com quatro centímetros de profundidade, atingindo o osso zigomático direito, com fractura comunitiva, e o globo ocular direito, com afundamento deste e fractura comunitiva lateral externa da cavidade orbitária direita – e que lhe decepou a mão esquerda.
14.31. Não obstante, perante F desarmado, cansado, a esvair-se em sangue, gravemente ferido, sem mão, P continuou - com o sabre que empunhava (com intensidade e técnica de manuseio e corte) - a infligir golpes no corpo do mesmo, provocando-lhe, num momento em que este estava agachado, ajoelhado ou sentado, ferida corto perfurante na região frontotemporal esquerda.
14.32. Pelo exposto, defender-se que F constituía fonte de perigo, que o - putativo/imaginário - perigo que este representava só era removível mediante o seu “esquartejamento” até à morte e que esta não foi excessiva, como fez o Tribunal a quo é, “aos olhos de um cidadão de normal sagacidade”, irrazoável, aberrante e iníquo.
15. Por tudo quanto se expôs, conclui-se, forçosamente, pela inexistência de legítima defesa ou de excesso de defesa.
15.1. O artigo 32º do Código Penal define a legítima defesa como “o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”.
15.2. “(…) A agressão delimita o conceito de defesa; é circunstância extrínseca essencial à noção de defesa e por isso seu pressuposto.”
15.3. Por outro lado, para que se verifique legítima defesa não basta que haja uma agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, a lei exige que a agressão seja “actual” (agressão já em execução ou iminente, prestes a iniciar-se) e “ilícita” (contrária ao direito, que lese ou ponha em perigo de lesão interesses juridicamente tutelados do agente ou de terceiro).
15.4. Assim a actualidade e ilicitude da agressão constituem, também, pressupostos da legítima defesa.
15.5. Sucede, porém, que perante uma agressão actual e ilícita não se pode reagir de qualquer forma, por quaisquer meios e sem limites, para ser legítima a defesa tem de ser necessária (requisito da legítima defesa).
15.6. “A necessidade só se verificará se o facto idóneo para afastar a agressão for o menos prejudicial entre os meios de defesa possíveis na situação concreta”.
15.7. Assim, a necessidade do meio afere-se em razão dos danos causados, considerando-se o meio necessário se for o que causar dano menor, entre outros igualmente eficazes.
15.8. Para além da necessidade do meio empregue para repelir a agressão, constituem, também, requisitos da legítima defesa o animus de defesa (intenção de se defender ) e a proporcionalidade entre a agressão e a defesa (tem de existir uma certa proporcionalidade entre a agressão e a defesa, não sendo admissível que sejam sacrificados com a defesa bens manifestamente superiores aos que seriam sacrificados pela agressão.”).
15.9. Assim, sempre que se verificar uma agressão actual e ilícita e o meio empregue não for o necessário a defesa é excessiva, ilegítima, e o facto (típico e culposo) assim praticado constitui crime.
15.10. Sucede, porém, que a defesa excessiva - (por ultrapassar a medida da necessidade) - é ainda acto de defesa (não legítima), mas se a agressão não for actual, mas sim passada ou não iminente, não há sequer defesa (por falta de um dos pressupostos).
15.11. E, também, não há defesa quando inexiste “animus defendendi”.
15.12. Nos autos, não se pode sequer equacionar a hipótese de defesa.
15.13. Depois de F ter saído da residência, a vida de P já não estava em perigo, não havia qualquer agressão daquele a este, que empunhava um sabre, com setenta e cinco centímetros de lâmina e trinta e três centímetros de punho até à protecção da mão.
15.14. Fora da residência, não existiu defesa, por ausência de agressões (actuais e ilícitas) por parte de F e por inexistência de animus defendendi por parte de P, mas tão só cólera, furor e desejo de luta.
15.15. Ex officio, ainda que, em alguns momentos, tivessem existido agressões (actuais e ilícitas) por parte de F, não se verificava o requisito da necessidade nem animus defendendi.
15.16. Pois se, antes das 07H16, no interior da residência, fazendo uso apenas das mãos e da força muscular, P se conseguiu defender de F, que (alegadamente) empunhava uma faca, agarrando nos pulsos do mesmo e empurrando-o para fora do quarto e mantendo-se afastado, afirmar-se que, posteriormente, decorridos cerca de quarenta minutos, aquele agiu para se defender, sabendo que este se encontrava cansado, desarmado – sem faca, que dificilmente conseguiria ter depois de ter arremessado o tronco de madeira e os calções e atentos os ferimentos que tinha na mão - ferido e a esvair-se em sangue, atenta contra todas as regras do bom senso e da experiência comum.
15.17. Sobretudo porque P desferiu, com o sabre que empunhava, persistentemente, diversos golpes no corpo de F (desarmado), sentindo/sabendo que o estava a atingir, sentindo/sabendo que lhe cortou a cara e que lhe decepou a mão, e continuando a brandir o sabre, atingindo este.
15.18. Portanto, ainda que tivesse existido uma nova agressão por parte de F – o que se entende não se ter verificado - que já nem sequer empunhava a faca, os factos praticados por P foram os mais prejudiciais e desproporcionais de entre os possíveis a que podia ter recorrido naquela situação - bastava que P tivesse fechado a porta da casa de banho exterior à chave, enquanto F esteve lá, o que era possível, pois as chaves encontravam-se na fechadura do lado de fora (cfr. fls. 259 a 261).
15.19. Aliás, para fazer cessar qualquer alegada agressão, bastava que P tivesse agarrado os pulsos de F, como o fez no interior da residência, quando este não estava ferido e, alegadamente, empunhava uma faca.
15.20. Assim, a existir defesa, o que, reafirma-se, se entende não se ter verificado, por não ter existido agressão, sempre se estaria perante uma defesa injusta, desnecessária, completamente desproporcional, sendo de salientar a elevada censurabilidade do comportamento de P, que desferiu, com o sabre que empunhava, persistentemente, diversos golpes no corpo de F, sentindo/sabendo que o estava a atingir, sentindo/sabendo que lhe cortou a cara e que lhe decepou a mão, e continuando a brandir o sabre, atingindo este e provocando-lhe sofrimento até ao momento em que o mesmo caiu (dolo directo e intenso).
15.21. Nem colhe o argumento de que F continuou a avançar para P, apesar de estar a ser golpeado pelo sabre, que o fez e continuou a fazê-lo com uma qualquer “intenção” de se magoar ou de se “suicidar”, devido a quaisquer ideias e/ou finalidades místicas e/ou espirituais.
15.22. A prova recolhida afasta essa.
15.23. Se se tivesse querido magoar ou suicidar ou se tivesse “saltado” sobre P, como um “felino”, F ter-se-ia “espetado” no sabre, sendo, em consequência, mais profundos os golpes no tórax e abdómen.
15.24. Por outro lado, F não teria:
A) Fugido, enquanto P, brandindo o sabre de cima para baixo, desferia golpes nas suas costas;
B) Gritado para P não entrar na casa de banho;
C) Feridas defensivas, nomeadamente, ferimentos corto perfurantes com esfacelamento na face lateral externa terço médio do antebraço direito, ferida corto perfurante lacerativa profunda até ao osso, com dezoito centímetros de comprimento, na face anterior do terço proximal do antebraço direito, de ferida corto perfurante lacerativa angulada com bordos irregulares, com um eixo de oito centímetros de comprimento e quatro centímetros de largura, na face anterior do terço médio do antebraço direito, de diverso golpes na face palmar da mão direita e nos dedos com esfacelamento da falange distal do indicador, de amputação traumática da mão esquerda no início do terço discal;
15.25. Na verdade, a dimensão e quantidade de feridas defensivas existentes no corpo de F demonstram que este lutou pela sua vida.
15.26. Nos autos, no sentido de não existir legítima defesa nem excesso, pronunciou-se já o Tribunal da Relação de Évora, por:
A) Acórdão de 9 de janeiro de 2024 (273/23.0gcmmn-b)
“No caso dos autos o recorrente parece olvidar que, mesmo de acordo com as declarações que prestou em primeiro interrogatório judicial, os factos terão decorrido em duas fases sucessivas, uma no interior da residência, a outra no exterior. Se na primeira ainda se pode considerar que o indiciado comportamento do arguido terá sido de defesa, na segunda – a que ocorre no exterior da residência – todos os indícios apontam fortemente para uma situação que jamais poderia configurar legítima defesa.”
“Como é evidente (e bem assinalou o sr. procurador-geral adjunto), o medo que o arguido disse estar a sentir, nos termos que decorrem dos dados da experiência comum, faria com que este se fechasse no interior daquele espaço para, dali, pedir socorro às autoridades, enquanto F era forçado a permanecer no exterior.”
Essas acertadas considerações, que fazemos nossas, excluem que o arguido P tenha agido para se defender – essa conclusão, em face dos indícios recolhidos, é contrária a todas as regras do bom senso e da experiência comum.”
“Bem andou, pois, o tribunal recorrido, ao considerar verificados fortes indícios da comissão pelo recorrente de um crime doloso de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º, e 132º, nºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal, agravado pelo artigo 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro.”
B) Acórdão de 23 de abril de 2024 (273/23.0gcmmn-c)
“(…) Versão essa, que como considerou o Mm.º JIC Juiz a quo, se mostra inverosímil (porque desconforme às regras da experiência comum e da normalidade da vida – mesmo a admitir-se que a vítima estivesse a ser acometida de um surto psicótico, considerando a doença do foro psiquiátrico de que padeceria e a circunstância de não estar a tomar a medicação prescrita –, ao aventar ter sido a vítima, quem ao pretender “atacá-lo”, com a faca de que estava munido e nas investidas que teria feito na sua direção, com essa finalidade – ao mesmo tempo que dizia não ter medo da espada e que ele, o arguido, ia morrer – espetou o seu corpo, por mais do que uma vez, na espada/sabre, negando o recorrente que tivesse, em algum momento, “atacado”, “avançado” ou “se dirigido”, a F e que pretendesse tira-lhe a vida, sustentando ter-se limitado a tentar defender-se da agressão contra si, reiteradamente, perpetrada por F, versão esta que não pode ser acolhida, tendo em conta (…) a multiplicidade e a localização dos golpes que a vítima apresentava no corpo e a força necessariamente imprimida, nalguns deles, para serem causadas as lesões que foram causa direta e necessária da sua morte), estando afastado, no circunstancialismo indiciado, que a atuação do arguido/recorrente haja ocorrido, em situação de legítima defesa, em ordem a poder equacionar-se a possibilidade de estar excluída a ilicitude do facto e, nessa medida, a pôr em causa a indiciação do arguido/recorrente pela prática do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, n.ºs. 1 e 2, al. d), ambos do código penal, com a agravação prevista no artigo 86º, nº 3, da lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro”.
C) Acórdão de 7 de maio de 2024 (273/23.0gcmmn-d)
“Sem pretender ser exaustivo existem três tipos de lesões que pela sua ocorrência e localização permitem «iluminar» a cena do crime, desde logo e em primeira linha – as lesões (cortes) nas mãos, braços e antebraços.
Com efeito, os cortes nas mãos, braços e antebraços são, na esmagadora maioria dos casos, evidências de uma postura de defesa em relação a um agressor munido de uma arma branca, já que o instinto de sobrevivência da vítima faz com que ela, na ânsia de se defender face a um ataque procura proteger a cabeça ou a parte superior do seu corpo.
Um outro tipo de lesão que quando ocorre permite «clarificar» a cena do crime prende-se com as lesões do dorso.
Quando uma vítima as apresenta é seguro que se encontrava de costas para o agressor quando foi atingida. o que nos permite concluir, com elevado grau de certeza que a mesma se encontrava a fugir do local ou do agressor.
Finalmente, a pluralidades de lesões que a vítima apresenta sendo da mesma etiologia permite afastar, com segurança, a tese de legítima defesa. Com efeito, pode mesmo afirmar-se, com segurança, que quanto maior for o número de lesões infligidas à vítima mais longe estamos da legítima defesa.»
(…) Como também afirma o digníssimo procurador-geral adjunto, em parecer proferido nos autos, essa «pluralidade de lesões evidencia a energia criminosa usada bem como a determinação utilizada na concretização do desígnio criminoso pretendido (homicídio).
Neste último caso importa atender à profundidade das referidas lesões já que quanto mais incisivas / profundas se apresentem mais demonstram, de forma clara, a violência utilizada e a intenção de causar o dano morte.»”
16. No esforço de justificar a “excusatio”, o Tribunal a quo cita Germano Marques da Silva (Direito Penal Português – Teoria do Crime, 2.ª, UCP Editora, 279 seguintes), “no estado de necessidade desculpante, admite-se que o bem protegido seja de valor igual ou menor ao valor do bem jurídico sacrificado” e “a lei considera que embora a conduta do agente seja ilícita, não lhe é razoavelmente exigível outro comportamento em face das circunstâncias concretas, não merece censura”.
16.1. Afigura-se ser de relembrar que o “estado de necessidade” designa quer o pressuposto da causa de justificação - direito de necessidade – quer o da causa de exculpação - o estado de necessidade desculpante.
16.2. Pelo que se impõe, também, relembrar - como ensina Germano Marques da Silva - que quando a causa do perigo é uma actividade humana ela não pode consistir numa agressão ilícita do titular do interesse sacrificado pelo acto necessitado, pois neste caso verificar-se-ia o pressuposto da legítima defesa e não do direito de necessidade.” (“Direito Penal Português” – Parte Geral, II Teoria do Crime, Verbo, 1998, página 110).
16.3. A percepção de tão singelo e nítido ensinamento impunha que, nos autos, se excluísse o estado de necessidade desculpante, por falta de um dos seus pressupostos.
16.4. Pois, nos autos, a causa do (putativo) perigo consistia numa, alegada, agressão actual e ilícita – como afirmado por P no decurso do inquérito e da instrução (de modo inverosímil, porque contrário à restante prova recolhida, com alterações significativas de interrogatório para interrogatório, efectuadas no exercício legítimo do direito de defesa, evidenciando um esforço de alteração da configuração dos acontecimentos, foi F que o atacou sempre, que foi para “cima dele” procurando atingi-lo com a faca) - do titular do interesse sacrificado (F).
16.5. Acresce que inexistia qualquer situação de perigo actual, ou seja, inexistia qualquer probabilidade de F, desarmado, ferido e a esvair-se em sangue, lesar os bens jurídicos vida e/ou integridade física de P ou de E - que nem se encontrava no local nem era expectável que se viesse a encontrar – ou quaisquer outros bens jurídicos.
16.6. Por outro lado, ainda que se verificasse uma situação de perigo actual, o mesmo seria removível de outro ou outros modos, bastaria que P, à semelhança do que fez no interior da residência, agarrasse nos braços de F e o controlasse ou que aquele tivesse fechado este na casa de banho ou se mantivesse à distância do mesmo, exibindo-lhe o sabre e não golpeando-o, como fez, sempre que teve oportunidade.
16.7. É evidente que nos autos não há qualquer escolha entre matar ou morrer ou entre matar e deixar outrem à sua sorte (perigo putativo/inventado).
16.8. O que se extrai dos sinais, vestígios e elementos reunidos no inquérito e na instrução é que a escolha de P foi a de matar e de provocar sofrimento físico e psíquico enquanto o fazia.
16.9. Pois antes da produção do ferimento frontotemporal, causa directa e necessária da morte, F tinha já ferimentos que pela sua ocorrência e localização permitem concluir pela intenção de matar (e de causar sofrimento físico e psíquico) e não pela existência de qualquer animus defendendi ou animus salvandi.
16.10. Como referiu o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto (Parecer – Recurso 273/23.0GCMMN-B) “Com efeito, os cortes nas mãos, braços e antebraços são, na esmagadora maioria dos casos, evidências de uma postura de defesa em relação a um agressor munido de uma arma branca, já que o instinto de sobrevivência da vítima faz com que ela, na ânsia de se defender face a um ataque procura proteger a cabeça ou a parte superior do seu corpo.
16.11. Um outro tipo de lesão que quando ocorre permite «clarificar» a cena do crime prende-se com as lesões do dorso.
16.12. Quando uma vítima as apresenta é seguro que se encontrava de costas para o agressor quando foi atingida. o que nos permite concluir, com elevado grau de certeza que a mesma se encontrava a fugir do local ou do agressor. “
16.13. Ainda que inexistissem outros ferimentos, a intenção de matar extrai-se inequivocamente do ferimento frontotemporal, causa directa e necessária da morte de pedro fanico, pois foi provocado:
A) Na cabeça;
B) Com intensa força física (maior se se considerar, como fez o tribunal a quo, que a amputação traumática da mão esquerda foi simultânea), técnica de manejamento do sabre e corte, reveladora de energia criminosa;
C) Estando P num plano elevado em relação a F (ferimento feito de cima para baixo);
D) Estando P de lado/atrás e não de frente para F (ferimento feito obliquamente, da esquerda para a direita e de trás (zona da orelha) para a frente (zona da testa));
E) Estando F com a mão sobre a cabeça, para se defender (na versão que mereceu acolhimento do tribunal a quo).
16.14. O que se extrai dos sinais, vestígios e elementos reunidos nos autos é que P manteve domínio de emoções e controlo de acções - revelando frieza e crueza de ânimo - e persistiu na intenção de perseguir, de colocar em situação de fragilidade/inferioridade, de provocar sofrimento físico e psíquico e de matar F.
16.15. Como bem afirmou o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto (página 132 Parecer – Recurso 273/23.0GCMMN-B), “a tese de que o arguido teve medo e pânico é de rejeitar não só pelo desenrolar da acção como pelo singelo facto de violar as mais elementares regras de experiência e do senso comum. Com efeito, quem tem medo e até pânico “tranca-se” em casa, não abandona o resguardo e a protecção que lhe é dada pela residência, em circunstância alguma a abandona e enceta perseguição à infeliz vítima. Ora foi isso que aconteceu (…). O arguido revelando, de forma insofismável, audácia, destemor, determinação, espírito de vingança, saiu da residência munido da espada/sabre e foi no encalce da vítima. A actuação do arguido estás nas antípodas do que pretende fazer crer ao lançar mão dos conceitos de medo e pânico.”
16.16. Qualquer cidadão na posição de P, perante um ser humano, que padecia de doença do foro psiquiátrico, desorientado, cansado, desarmado, ferido e a esvair-se em sangue, teria adoptado outro comportamento.
16.17. Era exigível a P, no mínimo, que parasse de desferir - com o sabre que empunhava - golpes no corpo de F, o que não fez, revelando total ausência de solidariedade, compaixão e de misericórdia, sendo a sua atitude, persistente, determinada, fria e crua, especialmente desvaliosa e seriamente distanciada de uma determinação normal de acordo com os valores.
16.18. Ex officio, impõe-se salientar que P tinha conhecimento – como admitiu – de que F não representava fonte de agressão/ perigo, de que a Guarda Nacional Republicana, não obstante a demora, estava a caminho – “a GNR está quase a chegar, eu quero apoiar a GNR «cuidado ele está aqui, tem uma faca», «cuidado ele fugiu por ali ou está escondido», eu queria auxiliar a GNR” - de que no interior da residência tinha afastado e controlado F fazendo uso das mãos e da força muscular, de que F estava desarmado – pois desferiu golpes nas mãos (região palmar) do mesmo, que tinham de estar abertas e com as palmas voltadas para si, portanto sem faca – estava cansado, ferido e a esvair-se em sangue, pelo que não é possível sequer conceber-se que tenha agido em erro sobre a existência de qualquer um dos referidos elementos, o que a verificar-se – o que não sucede - excluiria o dolo ou a negligência.
16.19. Assim, apreciados todos os sinais, vestígios, indícios e elementos produzidos no inquérito e na instrução, segundo as regras da experiência comum e do mais elementar bom senso, bem como a sua integração e enquadramento jurídico, entende-se, num juízo de probabilidade, em prognose, que os mesmos - mantidos e confrontados em audiência de discussão e julgamento - apontam para uma probabilidade séria e razoável de condenação de P, pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal, e artigo 86º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro.
16.20. Perante a existência de indícios fortes, seguros, bastantes, suficientes, relevantes e inequívocos da prática, por P, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal, e artigo 86º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, como se entende, impõe-se a revogação do despacho de que se recorre e a sua substituição por despacho de pronúncia, nos exactos termos constantes da acusação (retificados os lapsos), que determine a sujeição daquele a julgamento, por se afigurar que, em tal sede, existe uma probabilidade séria e razoável de vir a ser condenado (“fortíssima ameaça de aplicação de uma longa pena de prisão” – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 9 de Janeiro de 2024, 273/23.0GCMMN-B.E1 – cfr. fls. 220).
17. Em consequência da revogação do despacho de que se recorre e da sua substituição por despacho de pronúncia deve ser dada sem efeito a ordenada revogação da medida de coacção de prisão preventiva.
17.1. Pois são actuais e encontram-se preenchidos os requisitos da forte indiciação de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal, e artigo 86º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, e a verificação, em concreto, dos perigos de fuga, de continuação da actividade criminosa, em função da personalidade de P evidenciada nos factos praticados, e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
17.2. Por outro lado, a prisão preventiva é a única medida “apta a salvaguardar de forma suficiente os perigos verificados, sendo, por isso, necessária, bem como, igualmente, proporcional e adequada, em conformidade com os ditames constitucionais”.
17.3. E a medida de coacção de prisão preventiva aplicada, por despacho judicial, a P foi sucessivamente revista e mantida, nomeadamente pelo Tribunal da Relação de Évora Acórdão de 9 de janeiro de 2024 (273/23.0gcmmn-b) / Acórdão de 23 de abril de 2024 (273/23.0gcmmn-c) / Acórdão de 7 de maio de 2024 (273/23.0gcmmn-d).

Termos em que deve ser revogado o despacho de que se recorre, que deve ser substituído por um despacho de pronúncia nos exactos termos constantes da acusação (retificados os lapsos) - que determine a sujeição de P a julgamento, pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal, e artigo 86º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, por se afigurar que, em tal sede, existe uma probabilidade séria e razoável de vir a ser condenado – devendo, igualmente, ser dada sem efeito a ordenada revogação da medida de coacção de prisão preventiva.
Vossas Excelências, porém, decidirão conforme for de Direito e Justiça.


Igualmente inconformado com o decidido, recorreu o assistente A, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1. O presente recurso tem como objeto i) a decisão instrutória proferida em 13 de junho, com a referência 34198365, que decidiu pela não pronúncia do arguido, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2 alínea d), ambos do Código Penal, conjugado com o nº 3 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro.
2. E, ainda, ii) o despacho de extinção do estatuto coativo do arguido, que foi determinado em consequência da prolação do despacho de não pronúncia, por se considerar que a decisão instrutória deveria ter sido de pronúncia e por se manterem os perigos que determinaram a aplicação das medidas de coação, concretamente a prisão preventiva, constantes dos artigos 202º e 204º ambos do CPP.
3. A decisão instrutória é recorrível, à luz do disposto no artigo 399º e do artigo 310º a contrario do Código de Processo Penal, o presente recurso tem efeito suspensivo da decisão, nos termos do nº 3 do artigo 408º in fine, ex vi alínea i) do nº 2 do artigo 407º, ambos do CPP.
4. A suspensão dos efeitos da decisão recorrida determina, consequentemente, a suspensão da extinção da medida de coação prisão preventiva, a que o arguido estava sujeito.
5. Entender-se o contrário seria admitir que o arguido saísse em liberdade, ainda na pendência do processo, sem que o que o Tribunal determinasse a substituição das medidas coativas aplicadas por outras que acautelassem i) o perigo de fuga e ii) o da perturbação grave da ordem e tranquilidades públicas.
6. A decisão recorrida não pronunciou o arguido por considerar aplicar-se ao caso concreto uma causa de exclusão da culpa, in casu, estado de necessidade desculpante.
7. O Assistente não concorda com o sentido da decisão por considerar não estarem, em absoluto, preenchidos os pressupostos da causa de exclusão da culpa, prevista no nº 1 do artigo 35º do Código Penal;
8. Ou, sequer, qualquer outra causa da exclusão da culpa ou da ilicitude, pelo que se impunha ao invés, a prolação de um despacho de pronúncia.
9. Existe uma crassa contradição entre alguns factos que o Tribunal considerou suficientemente indiciados e insuficientemente enunciados, quer quanto ao nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, quer quanto à verificação ou não do dolo do tipo e da culpa, bem como, estamos perante um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
10. Contrariamente à decisão recorrida, estão fortemente indiciados os elementos objetivos e subjetivos do crime de um homicídio qualificado, previsto e punível pela conjugação dos artigos 131º, 132º, alínea d) e) ou h), ambos do Código Penal ex vi nº 3 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro.
11. O Assistente já invocou no processo, através de requerimento autónomo, a existência de vícios processuais constantes do despacho de não pronúncia;
12. O quais, não tendo sido, ainda, objecto de decisão pelo M. Juiz de Instrução aqui se reiteram.
13. O Despacho de não pronúncia padece de diversos vícios processuais:
i. Excesso de pronúncia da decisão instrutória;
ii. Omissão de pronúncia de decisão;
iii. Preterição do exercício do contraditório.
14. Quanto ao vício de i) excesso de pronúncia da decisão instrutória, estamos perante uma nulidade insanável da decisão pelo facto de o M. Juiz de Instrução ter conhecido de factos não trazidos pelo arguido no requerimento de abertura de instrução;
15. O Tribunal a quo pronunciou-se sobre matéria que não era objeto da instrução, ultrapassando os seus poderes de cognição e excedeu a sua competência, violando, o princípio da vinculação temática constante do nº 4 do artigo 288º ex vi alínea f) do artigo 1º do CPP.
16. Ao extravasar a sua competência jurisdicional, violou, também, os artigos 17º, 288º e 290º todos do CPP, o que consubstancia uma incompetência material nos termos do nº 1 do artigo 32º do CPP;
17. Este excesso de pronúncia constitui uma nulidade insanável, nos termos da alínea e) do artigo 119º do CPP e que, uma vez declarada, torna inválido o acto em que se verificou, bem como todos os actos que dele dependerem (cfr. nº 1 do artigo 122º do CPP),
18. No caso concreto, torna inválida a decisão de extinção das medidas de coação.
19. A decisão instrutória é, ainda, nula por omissão de pronúncia porquanto, o arguido, a par da incriminação pela prática consumada do crime de homicídio qualificado está, também, acusado, da prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pela alínea d) do nº 1 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro;
20. A posse ilegal pelo arguido de várias armas brancas resulta, à saciedade, do relatório de inspeção judiciária - factualidade que o Tribunal a quo ignorou.
21. A não pronúncia do arguido, em concurso real e efetivo com o crime de homicídio qualificado, de um crime de detenção de arma proibida nos termos do nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, constitui uma omissão de pronúncia que se consubstancia numa nulidade da decisão instrutória, nos termos da alínea d) do artigo 120º do CPP.
22. Tratando-se, como aqui se invoca, de uma nulidade constante da alínea d) do artigo 120º do CPP deve a mesma ser declarada, com as devidas e legais consequências previstas no nº 1 do artigo 122º do CPP.
23. Caso se considere que o Tribunal a quo não pronunciou o arguido pelo crime de detenção de arma proibida por estar ao abrigo da causa da exclusão da culpa, o que se rejeita;
24. Estaremos uma vez mais perante uma nulidade insanável da decisão instrutória por absoluta falta de fundamentação do despacho de não pronúncia, à luz da alínea d) do artigo 119º do CPP primeira parte, ou;
25. Caso assim não se entenda estaremos, pelo menos, perante a nulidade constante da alínea c) do nº 1 do artigo 379º do CPP conjugado com o nº 5 do artigo 97º do referido diploma legal e o nº 1 do artigo 205º da CRP.
26. Em qualquer dos casos, a declaração de nulidade determina sempre a declaração do acto viciado como inválido, bem como, dos actos subsequentes, à luz do nº 1 do artigo 122º do CPP, o que aqui expressamente se requer.
27. O despacho de não pronúncia é, também, absolutamente omisso relativamente ao novo enquadramento jurídico que se impunha que fosse dado às 16 lesões provocadas no corpo da vítima Pedro Fanico;
28. Porquanto, as mesmas constituíram uma consequência direta e necessária da conduta do arguido, que se imprime por intensamente dolosa, em face da violência das lesões infligidas, e que o Tribunal escolheu ignorar.
29. A decisão instrutória é, ainda, omissa relativamente à garantia patrimonial de caução económica requerida pelo Assistente no pedido de indemnização cível, nos termos do nº 3 do artigo 227º do CPP.
30. Com efeito, o despacho de não pronúncia tem, necessariamente, de se pronunciar sobre as medidas de garantia patrimonial requeridas, sob pena de nulidade insanável da decisão instrutória.
31. Estamos, uma vez mais, perante a omissão de pronúncia por parte do Tribunal o que constitui, como aqui já se invocou, uma nulidade insanável da decisão instrutória, nos termos da alínea d) do artigo 119º do CPP;
32. Caso assim não se considere, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite estaremos, então, perante uma nulidade prevista na alínea d) do artigo 120º do CPP, cuja declaração aqui se requer, com as conhecidas consequências previstas no nº 1 do artigo 122º do referido diploma legal.
33. A decisão instrutória é, ainda, inválida, pelo facto de ter sido modificada a qualificação jurídica dos factos constante do despacho da acusação do MP e/ou do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, sem que o Tribunal, previamente à prolação da decisão instrutória, desse cumprimento ao disposto no nº 5 do artigo 303º do CPP.
34. Pelo que a decisão instrutória proferida constituiu, uma verdadeira decisão surpresa, tomada pelo Tribunal sem qualquer exercício do contraditório, consubstanciando-se numa nulidade prevista na alínea d) do artigo 120º ex vi nº 5 do artigo 303º, ambos do CPP;
35. E cuja declaração de nulidade aqui se requer, com as consequências legais previstas no nº 1 do artigo 122º do CPP.
36. O mesmo se dirá quanto à revogação da medida coativa de prisão preventiva aplicada ao arguido, nos termos da alínea b) do artigo 214º do CPP, porquanto,
37. Sempre o Tribunal deveria ter ordenado a substituição da medida coativa aplicada ao arguido - na eventualidade de não subsistirem os pressupostos que determinou a aplicação da prisão preventiva, o que se rejeita em face das duas decisões proferidas pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora-;
38. Que acautelasse: i) o perigo de fuga e o ii) perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
39. A revogação da medida de coação de prisão preventiva, em face do novo enquadramento jurídico da conduta dolosa do arguido que aqui se impunha, deveria ter sido precedido de audição do Ministério Público, do arguido e do Assistente, à luz do disposto no nº 4 do artigo 212º do CPP;
40. Não o tendo sido feito estamos, uma vez mais, perante uma nulidade constante da alínea d) do nº 2 do artigo 120º do CPP e cuja declaração de nulidade aqui se requer, com as consequências legais previstas no nº 1 do artigo 122º do CPP.
41. Como se refere, considera o Assistente não estarem preenchidos os pressupostos da causa de exclusão da culpa previstos no nº 1 do artigo 35º do Código Penal, ainda que o Tribunal a quo tenha considerado existirem indícios suficientes da prática pelo arguido de, pelo menos, um crime de homicídio simples, previsto e punível pelo artigo 131º do Código Penal.
42. Constituem pressupostos do estado de necessidade desculpante, previsto no nº 1 do artigo 35º do Código Penal:
a) A existência de uma situação de perigo actual, não removível de outro modo;
b) Ameaça da vida, integridade física, honra ou liberdade do agente ou terceiro;
c) Inexigibilidade de outra conduta;
d) Que o agente atue com o fim de salvação do bem ameaçado.
43. Quanto à alínea a) ensinam a doutrina e a jurisprudência que a situação de perigo terá de ser actual e não removível de outro modo, o que significa que a ação praticada pelo arguido há-de ser adequada e necessária para afastar o perigo.
44. O facto/ação praticad(o)a é adequad(o)a quando é idóneo para remover o perigo e o meio apto menos gravoso disponível pelo agente, isto é, o meio necessário a empreender no caso concreto.
45. Ao contrário do que refere a decisão instrutória ora em crise, não resultou provado nos autos que tenha existido uma agressão ao arguido por parte de F, nem sequer consta dos factos suficientemente indiciados, assim catalogados pelo Tribunal (cfr. Facto nº 37).
46. Andou mal o Tribunal quando considerou como factos indiciariamente provados que F tenha caminhado na direção do arguido, empunhando uma faca na mão, ou tentado atingi-lo com uma faca, ou sequer, o ameaçado de morte (cfr. factos considerados como indiciariamente provados pelo Tribunal nºs 6, 7, 9, 10, 11, 19 e 48);
47. Considerando que nada nos autos, absolutamente nada, para além das declarações do arguido, demonstra que: em primeiro lugar, F tivesse ameaçado o arguido e, em segundo lugar, que F tivesse, efetivamente, atacado o arguido com uma faca – bem pelo contrário! - (já que do exame pericial realizado à mesma não foram detetados vestígios de ADN de P)
48. O Tribunal a quo cometeu um erro notório na apreciação da prova, estando o mesmo incorretamente julgado, à luz da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, pelo que deverão os factos nº 6, 7, 9, 10, 11, 19, e 48 serem julgados como não indiciariamente provados pelo Tribunal ad quem, o que se requer.
49. Não ficou demonstrado nos autos – apenas na versão apresentada pelo arguido - que os estragos nos objetos da quinta tenham sido provocados em exclusivo ou pelo menos pela vítima F (mormente o facto indiciariamente dado como provado pelo Tribunal a quo nº 17).
50. Pelo contrário, resulta do relatório de inspeção ao local ter existido no alpendre exterior da habitação principal sinais evidentes de luta entre a vítima e o arguido; por conseguinte, o Facto nº 17 não poderia ter sido considerado pelo Tribunal a quo como indiciariamente provado.
51. E nem se diga, sequer, que a vítima se mostrara temerária pelo facto de se ter, alegadamente, espetado no sabre, como aludiu o arguido nas suas declarações (facto 19 considerado indiciariamente provado pelo tribunal).
52. Porquanto, analisando o relatório da autópsia médico legal, facilmente constatamos, de acordo com as regras comuns da experiência, que a lesão constante do abdómen, dada a sua profundidade não é, de todo, compatível com uma lesão autoinfligida sendo com maior probabilidade provada por um indivíduo terceiro (que não a vítima) - como de resto, se pode atestar por parecer médico-legal que aqui para o efeito se junta como Documento 1.
53. Com efeito, refere o mencionado parecer que: as lesões autoinfligidas apresentam-se de forma superficial e não representam perigo para a vida, não atingem áreas sensíveis, apresentando-se como lesões regulares – de profundidade similar na origem e no final - e habitualmente são múltiplas e paralelas entre si.
54. Como resulta do referido parecer, tendo em atenção a localização das lesões na zona esquerda do corpo e sendo a vítima esquerdina, conclui-se que as mesmas não poderiam ser autoinfligidas, porquanto, a sê-lo, teriam de estar localizadas na zona direita do corpo.
55. Portanto, não poderia o Tribunal a quo ter considerado como indiciariamente provado o facto constante do nº 19, como aqui se expôs.
56. Considerando o episódio de urgência que teve lugar no Hospital Garcia da Orta em 29-08-202352, conclui-se não existir da parte da vítima qualquer tipo de ideação lesiva ou suicida;
57. Como também não resulta do referido relatório que F tivesse qualquer tipo de ímpetos agressivos, ou identificado qualquer indício de perigosidade – o que determinou pela médica que o assistiu que não fosse internado compulsivamente.
58. Aliás, se F tivesse como objetivo magoar-se ou suicidar-se ou espetar-se no sabre, não teria:
i) Fugido, enquanto o arguido, brandindo o sabre de cima para baixo, lhe desferia golpes nas costas;
ii) Gritado para o arguido não entrar na casa de banho,
iii) Feridas defensivas.
59. De resto, o indício de perigosidade de F era de tal forma inexistente que a terapêutica administrada pela médica psiquiatra que atendeu F não indicia qualquer tratamento para um comportamento auto ou hétero-agressivo.
60. De resto, tanto a mãe da vítima C como os seus amigos, L e M, inquiridos nos autos, foram unânimes em referir que F nunca foi agressivo, não era pessoa para adotar ou ter reações tempestuosas ou violentas e que não se metia com ninguém.
61. O Tribunal mal andou quando julgou indiciariamente provado [cfr. factos nºs 6, 7, 9, 10, 11, 17, 19 da decisão instrutória] ter existido agressividade da vítima ou qualquer ameaça de morte ao arguido P, quando não existe qualquer prova que fundamente essa conclusão (apenas das declarações do arguido);
62. Subsistindo os indícios que a reação da vítima - claramente em desvantagem de armas - terá sido exclusivamente motivada por uma discussão com o arguido e para se defender.
63. Quanto à atualidade e a iminência do perigo recordamos que, para que os pressupostos do nº 1 do artigo 35º do Código Penal estejam preenchidos, é necessário estarmos perante um perigo atual e não removível de outro modo.
64. Se o perigo for passado ou não eminente, não podem considerar-se o perigo por atual, caindo, desta forma, um dos pressupostos da causa de exclusão da culpa.
65. Quanto ao pressuposto constante da alínea b) - o perigo deve ameaçar a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro – pressuposto que não nos oferece quaisquer dúvidas no caso concreto, atento ao bem jurídico protegido pela norma in casu; recordando que resulta dos autos que o arguido bem sabia que a sua namorada M não estaria presente naquele dia.
66. Quanto ao pressuposto constante da alínea c) não exigibilidade de outra conduta, a lei exige que, no caso concreto, não seja razoável exigir ao agente, segundo as circunstâncias do caso, um comportamento diferente, do que seria exigível de um homem normal i.e, do homem médio, colocado nas mesmas circunstâncias.
67. Com efeito, depois de F ter saído da residência, a vida do arguido já não estava em perigo – se é que alguma vez esteve - pois, não existia qualquer agressão daquele a este que se muniu, entretanto, de um sabre com 75 cm de lâmina e 33 cm punho até à proteção da mão, alegadamente para se defender.
68. A atitude que qualquer homem médio teria se tivesse, verdadeiramente, temido pela sua vida e/ou por de terceiros, seria trancar-se em casa, aguardando a chegada da Guarda Nacional Republicana.
69. Logo, ainda que tivesse existido uma nova agressão por parte da vítima – o que, considerando a prova constante dos autos, é improvável – que já nem sequer empunhava a faca quando os dois golpes finais foram desferidos pelo arguido;
70. Os factos praticados por este foram os mais prejudiciais e desproporcionais de entre os possíveis que poderiam ter ocorrido naquela situação.
71. Na verdade, os indícios de tentativa de fuga por parte da vítima, a dimensão e a quantidade de feridas defensivas existentes no corpo de F demonstram que este foi perseguido e que lutou pela vida!!!!
72. O arguido podia e devia ter atuado de outro modo:
i. podia ter fugido;
ii. ter agarrado os pulsos de F ou imobilizá-lo com outro objeto menos lesivo;
iii. trancado a vítima na casa de banho (já que as chaves estavam na porta) ou;
iv. ter-se trancado em casa.
73. Ora, nada disto o arguido fez, pelo que, deverá considerar-se este pressuposto da alínea c) não exigibilidade de outra conduta, constante do nº 1 do artigo 35º do Código Penal por não preenchido.
74. Quanto ao pressuposto constante da alínea d) o elemento subjetivo animus alvani, para que o mesmo se considere preenchido é indispensável que o agente pratique a ação para determinar com a ela a preservação do bem jurídico ameaçado.
75. Ora, resulta dos autos que, pelo menos 4 vezes, a vítima se encontrou de costas para o arguido, para além de ter tentado fugir, e refugiar-se dentro da autocaravana.
76. As declarações do arguido em sede de instrução demonstram ter existido por parte daquele um total e absoluto controlo sobre a situação (quer fotografando a vítima – quiçá para justificar uma alegada legítima defesa;
77. Quer perseguindo-a pela quinta, quer aguardando pacientemente 10/15 minutos para que este saísse da casa de banho onde se refugiara), sem qualquer indício de medo ou temor, contrariamente ao que alega.
78. Entende-se, assim, que fora da residência, fora da habitação principal da Quinta da Alada, não existiu animus salvani por parte do arguido, por inexistência de perigo atual e/ou eminente, penhorando, necessariamente, o elemento subjetivo do tipo.
79. Exigia-se outra conduta do arguido que não aquela que optou por tomar, isto é, ir ao encontro da vítima, ir ao encontro do alegado “perigo”, movido por cólera, furor e desejo de luta, ou por um motivo fútil como de mero controlo…não hesitando atacar, matar quem se apresentava ferido e em clara desigualdade de armas.
80. Sobretudo, porque o arguido desferiu, com o sabre que empunhava, persistentemente e de forma violenta diversos golpes (pelo menos dezasseis) no corpo de F, sentindo/sabendo que o estava a atingir, sentindo/sabendo que lhe cortou a cara e que lhe decepou a mão e, ainda assim;
81. Continuando a brandir o sabre, atingindo este pelo menos por duas vezes – e não apenas uma - na cabeça provocando-lhe a morte58, o que demonstra, também, a intensidade dolosa da sua conduta.
82. Como se constata de parecer médico-legal aqui junto como Documento 1, o qual esclarece que as lesões descritas na alínea i) do facto 41 - e que o Tribunal a quo considerou não resultarem suficientemente indiciados - são, na verdade, suscetíveis de provocar a morte imediata, ou seja, também causa directa e necessária da morte da vítima.
83. Por sua vez, também as lesões descritas nas alíneas xiv), xix) e xxiv) do facto 41 e que o Tribunal a quo considerou não resultarem suficientemente indiciados são, na verdade, suscetíveis de provocar a morte imediata, ou seja, também causa direta, e necessária da morte da vítima, como resulta do Documento 1 aqui junto.
84. Existiu por parte do arguido, pelo menos, quatro resoluções criminosas de atingir mortalmente o corpo de F, pois as lesões - no abdómen e no tórax e os dois golpes na cabeça, um da esquerda para a direita e o outro da direita para a esquerda - demonstram, à saciedade, que o arguido quis, desejou, a morte da vítima.
85. Desta forma, não podia o Tribunal a quo considerar como não suficientemente indiciado o Facto E) que as lesões referidas no Facto 41, alíneas i) xiv), xix) e xxiv) tenham sido causa direta e necessária da morte de F - pelo que se requer a sua inserção no Facto 42 dos factos que resultaram suficientemente indiciados.
86. Por tudo o que aqui foi dito, não resulta dos autos que a conduta do arguido tenha sido motivada pelo animus salvani, uma vez que nem a sua vida ou integridade física (nem de qualquer pessoa), ou a sua propriedade estariam em perigo, sendo a conduta do arguido desnecessária, desproporcional e excessiva em face do invocado perigo que era na verdade inexistente.
87. Em síntese, para que se considere que a conduta do agente tenha sido motivada por estado de necessidade desculpante (cfr. nº 1 do artigo 35º do Código Penal) era necessário que a ação do arguido fosse adequada e necessária para afastar o perigo, impondo-se que o facto praticado fosse o meio mais adequado e idóneo para o remover - o que não se compadece com a desproporção de meios utilizados pelo arguido face à vítima, à data, exausta, extremamente ferida e desarmada – o que não aconteceu.
88. Salienta-se a elevada censurabilidade do comportamento do arguido que desferiu, persistentemente, com o sabre que empunhava, diversos e violentos golpes no corpo da vítima, dois quais na sua cabeça, cortando-lhe a cara e que lhe decepou a mão, atingindo este e provocando-lhe sofrimento até ao momento em que mesmo caiu (dolo directo e intenso), bem sabendo e sentindo que o estava a atingir mortalmente.
89. Pelo que não podem considerar-se preenchidos os pressupostos do estado de necessidade desculpante, constante do nº 1 do artigo 35º do Código Penal, nem de qualquer outra causa de exclusão da ilicitude, mormente, legítima defesa;
90. Porquanto, sempre os pressupostos não estariam, de igual forma, preenchidos, pelo facto de não existir uma agressão actual e a defesa empregue ser absolutamente desnecessária e desproporcional, sem qualquer presença por parte do arguido do animus defendendi.
91. Destarte, o Tribunal recorrido não realizou uma correta apreciação crítica da prova recolhida nos autos, verificando-se um erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, que inequivocamente demonstra - mormente atenta as lesões sofridas e constantes da autópsia médico-legal– as circunstâncias em que a vida foi violentamente retirada à vítima e a conduta intensamente dolosa do arguido.
92. A Acusação considerou terem sido recolhidos indícios suficientes de que o arguido tinha incorrido na prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea d) do Código Penal, conjugado com o nº 3 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro.
93. É consabido que o crime de homicídio qualificado é punido mais severamente do que o homicídio simples exatamente porque a sua prática revela, por banda do seu autor, uma especial censurabilidade ou perversidade68, que concretiza a culpa através de exemplos-padrão, constituídos por conceitos indeterminados.
94. Contudo, o preenchimento do tipo qualificado não se basta com o preenchimento dos factos-tipo a que alude o nº 2 do artigo 132º do Código Penal, exigindo-se a produção de um juízo normativo assente na factualidade demonstrada no processo.
95. A especial censurabilidade revela-se quando as circunstâncias em que a morte foi perpetrada são de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.
96. Dois dos casos-padrão constantes do nº 2 do artigo 132º do Código Penal que determinam a sua qualificação são os seguintes:
i) ter o arguido empregado tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima (cfr. alínea d) do nº 2 do Código Penal) ou, ainda ii) o homicídio seja determinado por avidez (…) ou por qualquer motivo torpe ou fútil (cfr. alínea e) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.
97. Quanto ao exemplo-padrão de qualificação constante da alínea d) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal e perfilhando o entendimento da doutrina, que define tortura ou acto de crueldade, como aquele em que o agente se serve de uma forma de actuação causadora da morte em que o sofrimento físico ou psíquico infligido, pelo acto de matar ou pelos actos que o antecedem ultrapasse, sensivelmente, pela sua intensidade ou duração, a medida necessária para causar a morte (…);
98. Salientamos, o facto de o arguido ter esperado pacientemente que a vítima saísse da casa-de-banho, onde permaneceu durante 10/15 minutos para, posteriormente, sabendo-a exausta, muito ferida e desarmada, continuar a atingi-la continuamente com o sabre, causando-lhe intenso sofrimento, decepando-lhe a mão e atingindo-a, por duas vezes e de forma fatal, na cabeça –;
99. O que se traduz numa conduta contrária ao animus salvani (estado de necessidade desculpante) ou animus defendendi (legítima defesa), para além da sua conduta ser absolutamente desnecessária e desproporcional.
100. O Arguido agiu com o propósito de satisfazer o seu desejo de causar sofrimento, tendo infligido a F um tratamento desumano e degradante, excedendo o que é comum no homicídio simples e espelhando uma imagem global do facto agravada, que se traduzida numa especial censurabilidade e perversidade, mostrando-se preenchido, também, o exemplo-padrão constante da alínea d) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.
101. Caso assim não se entenda e apenas por mera cautela de patrocínio, não podemos deixar de considerar que a conduta do arguido encontrará, também, enquadramento na alínea e) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, ou seja, a circunstância do agente ser determinado por qualquer motivo torpe ou fútil.
102. A jurisprudência tem entendido constituir motivo fútil, o motivo de importância mínima, a ninharia que leva o agente à prática do grave crime de homicídio, existindo inteira desproporção entre o motivo e a reação homicida.
103. Na situação dos autos ficou demonstrado que, o arguido, passados cerca de 40 minutos e quando a vítima - que se refugiara na casa de banho - se encontrava bastante ferida, exausta e desarmada desferiu-lhe, a final, dois golpes na cabeça, decepando-lhe a mão esquerda.
104. Para o efeito, o arguido esperou – como já aqui se referiu - pacientemente, que a vítima saísse da casa de banho (quando poderia ter aproveitado nos 10/15 minutos que durou o momento para fugir dali) para a confrontar e matar.
105. Refere, ainda, o arguido que estava preocupado com a M e com a E, mas já aqui demonstramos pelas suas declarações em sede de instrução, que tal tese não colhe nem está demonstrada nos autos.
106. De resto, sendo a conduta do arguido motivada pela mera proteção da sua propriedade – i.e. que temeria que a vítima deitasse fogo à quinta, como resulta das suas declarações em sede de instrução infra transcritas - a sua conduta, levada a cabo por um motivo fútil ou torpe e atenta a desproporção do conflito entre os bens jurídicos em questão (a propriedade e a vida humana) enquadra-se, sim, na alínea e) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.
107. Quanto ao meio particularmente perigoso, expressamente referido como um dos exemplos-padrão constante da alínea d) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, é notório que um sabre japonês assim o é, resultando na vasta jurisprudência dos nossos Tribunais que as armas brancas são meios particularmente perigosos, em particular, tendo em atenção a extensão de 75 cm da lâmina.
108. Salienta-se que o mero emprego pelo arguido do sabre japonês, bem sabendo este tratar-se de uma arma, cuja posse para além de ilegal, à luz da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, era altamente letal (considerando, principalmente, a extensão da sua lâmina) – quando poderia ter escolhido outros meios menos lesivos -, revela uma especial censurabilidade e perversidade da sua conduta, ou seja, um especial grau de culpa - que excede manifestamente o que está pressuposto na moldura penal do crime de homicídio previsto no artigo 131º do Código Penal.
109. Andou mal o Tribunal quando considerou como não indiciariamente provados os factos A, C, D, F e D da decisão instrutória, concluindo que a conduta do arguido não se qualificaria à luz dos nºs 1 e 2 do artigo 132º do Código Penal, por rejeitar o Tribunal a quo qualquer enquadramento da sua ação naquela norma;
110. Pelo que se impõe a revogação do despacho recorrido, atendendo, também, aos vícios processuais de que o mesmo padece com a sua substituição por outro que considere os referidos factos como indiciariamente provados e pronuncie o arguido por homicídio qualificado nos termos do artigo 131º e dos nºs 1 e 2, alínea d) do artigo 132º do Código Penal ou, em alternativa, pela alínea e) ou h) da mencionada norma legal.
111. Entende o Assistente que arguido deve ser submetido a julgamento por se revelar estar suficientemente indiciado o preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação àquele de uma pena de prisão pela prática de:
i) um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º, 132º, nº 1 e alíneas d) ou e) ou h) do nº 2 do Código Penal, conjugado com o nº 3 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, e ainda, em concurso real e efetivo,
ii) de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, atenta a posse ilegal pelo arguido de várias armas brancas.
112. A decisão instrutória de que se recorre revogou, também, a condição coativa aplicada ao arguido, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 214º do CPP.
113. Existindo, como se refere, fortes indícios da prática pelo arguido de i) um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º, 132º, nº 1 e alíneas d) ou e) ou h) do nº 2 do Código Penal, conjugado com o nº 3 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, e ainda, em concurso real e efetivo, por ii) um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;
114. Considera-se que se mantêm as condições gerais e especiais constantes nos artigos 202º e 204º do CPP, pelo que deverá ser aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva, mormente,
115. Por ser patente o i) perigo de fuga, ii) perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidades públicas e existirem iii) fortes indícios da prática de um crime doloso.
116. Conclui-se, peticionando a revogação da decisão recorrida que determinou a revogação do estatuto coativo ao arguido e a sua substituição por outra que sujeite o arguido à medida de prisão preventiva, nos termos do disposto no artigo 204º do CPP e, em concreto, dos requisitos especiais constantes do artigo 202º, do referido diploma legal.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:
i. Ser revogada a decisão instrutória ora em crise, substituindo-a por outra que pronuncie o Arguido pelo crime de homicídio qualificado, previsto e punido nos artigos 131º, 132º, alínea d), e) e/ou h) do Código Penal, conjugado com o nº 3 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, e ainda, em concurso real ou efetivo, pelo crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, e ainda;
ii. Revogada a decisão do estatuto coativo do arguido e substituição por outra que o sujeite à medida de prisão preventiva por se encontrarem preenchidas as condições gerais de aplicação da referida medida de coação privativa de liberdade, nos termos do disposto no artigo 204º do CPP e, em concreto, as condições especiais constantes do artigo 202º do referido diploma legal,
Fazendo-se, dessa forma, inteira e sã Justiça.


Na resposta ao recurso interposto pelo Assistente, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da procedência do recurso interposto, concluindo por seu turno (transcrição):
1. O Ministério Público entende que deve ser dado provimento ao recurso apresentado pelo A, que acompanha;
Vossas Excelências, porém, decidirão conforme for de Direito e Justiça.

Na resposta aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente A, o arguido P, pronunciou-se no sentido da improcedência, concluindo por seu turno (transcrição):
1 – Devem ser rejeitados os recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo Assistente, por violação das disposições legais relativas à formulação de conclusões;
Sempre sem conceder:
2 – Deve ser considerada improcedente toda a motivação do recurso do Ministério Público no que diz respeito ao pedido de alteração da matéria de facto, por violação do disposto na al. b) do nº 3 e do nº 4 do artigo 412º do CPP, ou, em alternativa, ser determinada a reforma das conclusões formuladas, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 417º do CPP, com as legais consequências.
3 – Deve ser rejeitada a junção do documento nº 1 junto com a motivação de recurso do Assistente.
4 – Devem ser desconsideradas as nulidades arguidas à decisão recorrida, dado que, tendo sido suscitadas perante o Tribunal recorrido, as mesmas já se encontram decididas mediante despacho com trânsito em julgado.
5 – Aos recursos deverá ser mantido o efeito devolutivo determinado pelo Juiz a quo, mantendo-se, igualmente, a cessação determinada da medida de coação que vigorava, a prisão preventiva, por efeito ope legis, que resulta da al. b), do nº 1, do artigo 214º do CPP. Em qualquer caso e também aqui sem conceder:
6 – Não poderia o Tribunal de recurso determinar medidas de coação, em virtude de isso corresponder à amputação do grau de recurso legalmente previsto, pelo que, uma interpretação das normas constantes da al. b) do nº do artigo 408º e da al. b) do nº 1 do artigo 214º do CPP, no sentido de entender que o recurso de uma decisão de não pronúncia tem efeito suspensivo e que, nessa sequência, deve manter a prisão preventiva pré-existente à não pronúncia, ou permitir ao tribunal de recurso aplicar outra medida de coação, além de absurda e ilegal, geraria também a inconstitucionalidade das referidas normas, o que aqui se argui expressamente.
7 – Não existe erro notório na apreciação da prova, ao contrário da alegação do Assistente, ocorrendo, tão só, uma divergência quanto à opção tomadas pelo Mmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal.
8 – Deve ser desconsiderada abordagem efetuada à matéria da legítima defesa, dado que não é suscitada nem na acusação, nem no requerimento de abertura de instrução, nem na decisão recorrida.
9 – Deve julgar-se que o Recorrido agiu sempre sem dolo, isto é, sem, em momento algum, ter tido a intenção de matar o malogrado F, em conformidade com as declarações que, de forma consistente, foi prestando nos autos.
Mas uma vez mais sem conceder:
10 – Caso assim não se entendesse, então sempre deveria proceder a opção constante da Decisão Instrutória recorrida, de acordo com a qual o Recorrido teria agido a coberto do chamado estado de necessidade desculpante.
11 - Sendo que o convencimento do Recorrido, era o de que estava, na derradeira agressão, em vias de ser alvo de esfaqueamento, estando seguro de que o malogrado F tinha uma faca, com que se preparava para o atingir.
Nestes termos:
Devem improceder totalmente os Recursos interpostos pelo Recorrentes, mantendo-se, integralmente, a decisão recorrida.


Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente A, conforme melhor resulta do seu parecer.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
A decisão recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos (transcrição):

I. RELATÓRIO:
1. I. RELATÓRIO E SANEAMENTO
O Ministério Público deduziu acusação pública (fls. 1223 ss., VI), contra P, imputando-lhe a prática de factos susceptíveis de configurar a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº 1 e 2, al. d) do Código Penal e 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, cujo teor se dá por reproduzido.

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O arguido P requereu a abertura da fase facultativa de instrução pelas razões apresentadas a fls. 1348 ss, (VII), requerimento que aqui se dá por reproduzido, arguindo, em síntese, i) a nulidade da acusação com fundamento na falta de audição do arguido prévia ao despacho de acusação porquanto foi produzida indiciação inovatória e aditados aos autos meios de prova sobre os quais não teve oportunidade de se pronunciar (artigos 120º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal e 32º, nº 1 e 5 da Constituição), ii) a nulidade do despacho de acusação com fundamento na imputação de factos genéricos e vagos, mormente no que respeita à atribuição ao arguido das lesões identificadas no corpo de F.
No demais, arguiu o arguido, em síntese, que inexistem indícios suficientes da prática do crime pelo qual foi acusado ancorando-se, para o efeito, nas alegadas insuficiências do relatório de autópsia (contraposto em função da opinião médico-legal oferecida) e na circunstância de se mostrar impossível a produção de segunda autópsia, de se omitir, no despacho de acusação, o estado psicológico de Pedro Fanico, mormente tendo por base o diagnóstico efectuado em 29-08-2023, o facto de inexistir qualquer reserva efectuada no alojamento (repudiando a demonstração da dita intenção), de se omitir, no despacho de acusação, o teor da interacção do arguido com o decidido F e, ainda, da inexistência de qualquer indício suficiente da modificação, pelo arguido, do intuito defensivo, alegando, para o efeito, que o arguido não actuou sabendo que F já não transportava consigo a faca após ter saído da casa-de-banho, tendo procurado permanentemente o auxílio das autoridades. Alega ainda o arguido que procurou, em exclusivo, defender-se de F, tendo desferido apenas um golpe que determinou, em simultâneo, o decepamento da mão e os danos evidenciados na cabeça daquele. Por fim, alega o arguido que nunca pretendeu gerar o resultado morte, limitando-se a pretender defender-se do falecido F, invocando que, no limite, terá actuado de forma negligente, nos termos previstos no artigo 137º do Código Penal.
Requereu produção de prova, designadamente a tomada de declarações do arguido, a inquirição de D, S e de A, a reconstituição do golpe alegadamente causador do resultado morte e, ainda, a junção de documentação.
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Declarada aberta a instrução e relegando-se para a decisão instrutória o conhecimento das nulidades invocadas, foi admitida nos autos a prova por documentos bem como o interrogatório do arguido, tendo sido indeferida a demais prova requerida pelo arguido.
O assistente A, por requerimento apresentado nos autos, promoveu à apresentação de parecer médico-legal destinada a contraditar idêntico documento apresentado pelo arguido, pugnando ainda pela produção de diligências adicionais.
O arguido P em sede de contraditório, proveu, ainda, à apresentação de nova opinião médico-legal, tendo sido admitida a prova documental e julgada desnecessária a demais prova requerida, a qual foi indeferida.
Em sede de debate instrutório, requereu, ainda, o arguido, a realização de segunda autópsia ao falecido F, atenta a superveniente informação prestada nos autos pela Il. Mandatária do assistente quanto à existência do corpo daquele, não obstante ter sido autorizada a cremação que não se chegou a efectivar, diligência cuja realização, após ponderação, foi indeferida.
*
O Tribunal é competente.
Não existem ilegitimidades ou excepções que cumpra conhecer.
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II. DAS NULIDADES INVOCADAS NO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
II.1. NULIDADE DO DESPACHO DE ACUSAÇÃO COM FUNDAMENTO NA OMISSÃO DA AUDIÇÃO DO ARGUIDO QUANTO À INDICIAÇÃO E MEIOS DE PROVA PREVIAMENTE AO DESPACHO DE ACUSAÇÃO
Em síntese apertada, invoca o arguido a nulidade insanável do despacho de acusação, ao abrigo dos artigos 272º, nº 1, 120º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal e 32º, nº 1 e 5 da Constituição, porquanto proferido sem que o arguido tenha sido ouvido a respeito de meios de prova e, ainda, sem que tenha tido a oportunidade de se pronunciar quanto a uma nova e mais completa indiciação, concluindo, em suma, que o Ministério Público não o confrontou com o resultado da investigação como deveria ter feito.
O Ministério Público, em sede de contraditório, pugnou pela improcedência do vício invocado.
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Apreciando e decidindo, estabelece o artigo 272º, nº 1 do Código de Processo Penal que “o correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la”.
Dúvidas inexistem que, sendo possível a prática de tal acto, o Ministério Público se encontra vinculado a interrogar o arguido dentro dos estritos limites do seu estatuto processual, mormente, devendo ser esse interrogatório antecedido da prestação de informação acerca dos factos que lhe são imputados (artigo 61º, nº1, al. c) do Código de Processo Penal).
As aludidas normas cumprem, em simultâneo, funções, de participação e de defesa do cidadão visado pelo inquérito.
Por um lado, possibilita-se a efectiva participação do arguido no procedimento sancionatório, caso assim o entenda, facultando-lhe a possibilidade de prestar declarações, esclarecer factos e requerer a produção de meios de prova no decurso dessa fase, tutelada pelo Ministério Público no estrito cumprimento do princípio da legalidade e da defesa da legalidade democrática que passa, sempre, pelo respeito do quadro normativo legalmente fixado – artigo 219º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Por outro lado, a comunicação dos factos imputados mostra-se instrumental, entre o mais, à percepção pelo arguido do objecto do inquérito (o qual se revela necessariamente fluído até à dedução do despacho de acusação) e, ainda, à garantia de não concorrer para a sua própria incriminação, prevista no artigo 61º, nº 1, al. d) do Código de Processo Penal. Por fim, conforme salienta Paulo Dá Mesquita em AAVV, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, III, Almedina, 978 ss, tal obrigatoriedade destina-se a proscrever a ocorrência de acusações-surpresa em sede de inquérito.
Descendo ao caso e apreciado o processado dos autos, não se vislumbra a pretensa nulidade invocada.
Vejamos.
O arguido foi constituído nessa qualidade pelas 8h15m do dia 30-08-2023 (a fls. 7).
Foi submetido a primeiro interrogatório judicial no dia seguinte (a fls. 163 ss) onde, após lhe terem sido comunicados os direitos e deveres emergentes do seu estatuto processual, lhe foi transmitida a factualidade julgada indiciada pelo Ministério Público e respectivos meios de prova que a sustentaria, a saber e em síntese, a existência de uma discussão no dia 30-08-2023, pelas 7h30m, no interior de uma habitação na Quinta Alada, Cortiçadas de Lavre, entre o arguido e F, no decurso do qual este empunhou uma faca de cozinha e o arguido um sabre, tendo o arguido saído da habitação com intenção de esfaquear e tirar a vida a F, tendo desferido vários golpes na região peri orbitária direita e frontal esquerda, bem como nos braços e abdómen, causando feridas profundas, e, ainda, tendo decepado o antebraço direito que este levantou em sua defesa, tendo morrido em consequência directa e necessária das lesões sofridas e perpetradas pelo arguido.
O arguido optou por prestar declarações perante o Exmo. Senhor Juiz de Instrução Criminal nos termos que constam dos autos.
Resulta ainda demonstrado que o arguido voltou a ser interrogado em 13-09-2023 (a fls. 371), desta feita perante magistrada do Ministério Público, mostrando-se acompanhado pelo Il. Mandatário que então assegurava o respectivo patrocínio, tendo, em síntese, procedido à descrição da dinâmica do que entende ter-se verificado.
Dos autos resulta, ainda, que foi proferido despacho pelo Ministério Público em 21-09-2023 (refª 33301481), do qual consta, extensa e contextualizadamente, a análise crítica das dinâmicas declaradas pelo arguido nas duas ocasiões em que foi interrogado, vertendo o despacho, em suma, o confronto das versões com os meios de prova, afastando a existência de uma situação de legítima defesa. O aludido despacho foi notificado ao arguido, pessoalmente e ao Il. Mandatário, consubstanciando, materialmente, uma comunicação acerca do teor do objecto do inquérito e dos factos imputados.
É certo que, conforme alegado pelo arguido, foram produzidos meios de prova aptos a influir na apreciação da causa em momento posterior à prestação de declarações pelo arguido.
Todavia, esses meios de prova inovadores não consubstanciam a introdução, no inquérito, de uma narrativa nova, de um friso da vida diverso daquele relativamente ao qual o arguido houvera tido a oportunidade se pronunciar.
Dito isto, é com mediana clareza que, compulsados os autos, se constata que a acusação deduzida contra o arguido não poderia ser entendida ou recebida como uma decisão surpreendente ou, no mínimo, como uma modificação inesperada do sentido do inquérito a respeito do friso da vida que lhe é imputado e sobre o qual, após comunicação dos factos, prestou declarações.
Se é certo que é o despacho de acusação que delimita o objecto a submeter a julgamento, a verdade é que, paradoxalmente, as declarações do arguido se mostraram relevantes para a sua definição pelo Ministério Público, conjugadamente com os demais elementos probatórios, em especial, no segmento em que divergem, não se manifestando, por isso, uma qualquer exclusão da participação do mesmo no apuramento da verdade dos factos.
Recorde-se que, em fase de inquérito, a lei processual penal não consagra a existência de um contraditório pleno ou tendencialmente pleno, prévio à prolação do despacho de acusação, conforme o arguido parece querer sustentar, em especial, a respeito dos meios de prova supervenientes à prestação de declarações – quanto à natureza inquisitiva do inquérito por contraponto às fases jurisdicionais, vd. Rui Soares Pereira/João Gouveia Caires, Processo Penal, Almedina, 250 ss.
Tal imposição – legal, constitucional e emergente do direito internacional convencional – é respondida e respeitada nas fases jurisdicionais subsequentes, manifestando-se uma efectiva igualdade de armas entre a entidade que exerce a acção penal e o cidadão a quem é imputada a prática de factos aptos a consubstanciar a sua responsabilidade criminal.
Pelo que, sendo claros, o Ministério Público cumpriu, nestes autos, mais do que se encontrava obrigado fazer: confrontou o arguido, em duas ocasiões, com a factualidade imputada e, ainda, o informou quanto à interpretação havida a respeito de uma putativa legitima defesa naquela dinâmica.
De igual modo, é pacífico que havendo a obrigatoriedade de tomar declarações ao arguido (sendo possível) previamente à dedução do despacho de acusação, o Ministério Público não se encontra vinculado a quanto o momento em que tal acto deve ser praticado. Veja-se, neste particular, o decidido pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-11-2014, proc. 248/13.8JACBR-B, rel. Luís Teixeira, cujo sentido interpretativo se acompanha no qual se decidiu “o interrogatório obrigatório do arguido, durante o inquérito, ao abrigo do artigo 272º, nº 1, do CPP, não tem que ocorrer necessária ou obrigatoriamente apenas e quando findar o inquérito e antes de ser proferida a acusação, antes pode ter lugar quando o Ministério Público o entender, por uma questão táctica – poder discricionário -, desde que, quando o fizer, ao arguido seja dado conhecimento dos fatos que lhe são imputados e sobre eles se possa pronunciar ou defender, querendo”.
A necessidade de (re)interrogar o arguido nascerá caso, após ter prestado declarações, o inquérito tenha gerado um novo objecto ou tenha desfigurado de modo relevante a factualidade comunicada ao arguido previamente à sua participação processual – neste mesmo sentido, Rui Soares Pereira/João Gouveia Caires, Processo Penal, Almedina, 250; por seu turno, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, II, 5.ª, UCP ed., 141 ss., manifesta-se quanto à obrigatoriedade do interrogatório do arguido “no âmbito de novos factos ou uma alteração da imputação fáctico-jurídica inicial para que o arguido possa exercer os seus direitos, como oferecer provas e requerer diligências que se lhe afigurem necessárias”.
No fundo, impõe-se, “apenas”, a salvaguarda do prévio exercício do direito de defesa material do arguido contra a factualidade objecto de inquérito e não quanto aos concretos meios de prova.
Tal sentido hermenêutico consubstancia a interpretação teleologicamente útil daquela que vem sendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional português a esse propósito. A título meramente exemplificativo, veja-se o decidido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 72/2012, rel. Cunha Barbosa: “não é constitucionalmente imposto que o arguido seja ouvido sempre que um novo facto ou elemento probatório seja incorporado no inquérito ou que tenha de existir um interrogatório no encerramento do inquérito que, a título de “audiência pré-final” […], dê previamente a conhecer ao arguido todo o conteúdo fáctico da acusação. Obviamente que, no âmbito de uma estrutura acusatória e numa fase em que o arguido detém alguns direitos de intervenção/participação processual (cf. artigo 61º, nº 1 do CPP), quanto mais alargado for o conhecimento que este detiver dos factos e meios de prova já existentes, melhor poderá defender-se, exercer os seus direitos processuais e, inclusivamente, contribuir para a descoberta da verdade material, fazendo uso do direito de intervir no inquérito através quer do oferecimento de provas quer do requerimento de diligências que se lhe afigurem necessárias (cf. artigo 61º, nº 1, alínea g) do CPP). Todavia, se é certo que da Constituição não resulta a exigibilidade do conhecimento preciso de todos os factos que venham a ser inseridos na acusação e em momento anterior à formulação desta, não é menos certo que, no pleno respeito das garantias de defesa constitucionalmente consagradas, tal conhecimento não poderá nunca ficar aquém dos factos essenciais a verter ou vertidos em tal peça processual (acusação), sob pena de violação das enunciadas garantias”.
Voltando aos autos, a sucessão de actos processuais não colocou em crise, de modo substancial, o direito de defesa do arguido porquanto foi oportunamente confrontado com a factualidade em investigação, tendo tido a possibilidade (que exerceu) de prestar declarações a propósito do núcleo factual do inquérito, assim como requerer a produção de meios de prova (o que fez), inexistindo qualquer modificação substancial ocorrida entre esses momentos e a prolação do despacho de acusação. Tal estabilidade do objecto do inquérito determina que não se mostre beliscado o carácter equitativo e leal do processo sancionatório porquanto o arguido sabia o que lhe era imputado e lhe foi concedida a possibilidade de organizar a sua defesa.
Donde, mostrando-se cumprido o formalismo legal (na medida em que o arguido foi interrogado a respeito do friso da vida relativamente ao qual foi deduzida acusação) e não resultado do processado a afectação de qualquer direito de participação processual, improcede, por conseguinte, a nulidade invocada.
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II.2. NULIDADE DO DESPACHO DE ACUSAÇÃO COM FUNDAMENTO NA IMPUTAÇÃO, AO ARGUIDO, DE FACTOS GENÉRICOS E VAGOS
Por fim, neste segmento, invoca o arguido a nulidade do despacho de acusação com fundamento na imputação de factos genéricos e vagos, mormente no que respeita à imputação causal ao arguido das lesões identificadas no corpo de F, arguindo, para o efeito, que a acusação não permite aferir que lesão ou conjunto de leões causalmente imputados ao agir do arguido terão determinado o resultado morte, assim se violando o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
Em contraditório, o Ministério Público pronunciou-se pela improcedência da nulidade invocada, arguindo que o despacho de acusação circunscreve adequadamente as condutas do arguido, o seu enquadramento espácio-temporal e a respectiva dinâmica, bem como as lesões que foram causadas em consequência das mesmas.
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Apreciando e decidindo, estatui o artigo 283º, nº3 do Código de Processo Penal os elementos que a acusação deve conter sob pena, caso não o faça, se mostrar ferida de nulidade, onde se inscreve, entre o mais “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (al. b) e “a indicação das disposições legais aplicáveis” (al. d).
Visto o despacho de acusação, mostra-se improcedente a nulidade invocada porquanto, do seu teor, é passível de extrair a imputação, ao arguido, de um núcleo factual suficientemente individualizado, apto à identificação de alegados frisos da vida que, na perspectiva do Ministério Público, se mostraram suficientemente indiciados em inquérito e que, na sua perspectiva, permitem preencher o tipo de ilícito imputado.
Vejamos.
Na acusação imputa-se ao arguido a prática dos seguintes factos:
i. No alpendre, de ter brandido o sabre fazendo golpes com o mesmo no corpo de F;
ii. Após a saída de F da casa de banho, de se ter aproximado daquele, que já não empunharia a faca, de ter brandido, por diversas vezes, o sabre de cima para baixo, atingindo e golpeando do primeiro, o qual terá posto os braços à frente, procurando-se defender.
iii. De ter golpeado com o sabre na face de P e de lhe ter decepado a mão esquerda, tendo continuado a desferir golpes no corpo e na cabeça de F até este cair inanimado e sem sinais aparentes de vida.
iv. De, em razão das acções descritas, ter causado em F i) uma ferida corto-perfurante, na hemiface direita, com bordos de pele livre, angulada desde a região supraciliar direita até ao início do pavilhão auricular direito, com dezoito centímetros, com quatro de profundidade, atingindo o osso zigomático e o globo ocular direito, ii) uma ferida corto perfurante, com profundidade variável, na região fronto temporal esquerda, distando seis centímetros da região supraciliar esquerda, com bordos de pele livre, angular, de cima para baixo, com quinze centímetros, com corte da calote frontal e massa cefálica, iii) uma ferida corto perfurante linear com bordos de pele livre, medindo três centímetros na base da asa esquerda nasal, iv) uma ferida corto perfurante no tórax, linear, de cima para baixo, na região external, medindo cinco centímetros, v) uma ferida corto perfurante angulada da esquerda para a direita na línea mamilar do hemitórax esquerdo, na projecção da sétima costela, com bordos de pele livres, medindo três centímetros com um centímetro de profundidade, vi) uma ferida superficial linear no hemitórax direito, na línea axilar anterior projectada à oitava costela, medindo um centímetro e meio de bordos livres de pele, vii) uma de ferida corto-perfurante na línea média axilar, a dez centímetros da axila, de cima para baixo, com bordos livre de pele, medindo três centímetros por dois centímetros, com cinco centímetros de profundidade, viii) uma ferida corto perfurante linear, de cima para baixo, com bordos livres de pele, com três centímetros de cumprimento e dois centímetros de profundidade, na região epigastro lado esquerdo, ix) quatro feridas corto-perfurantes na omoplata direita, lineares, com diversas orientações, de cima para baixo, perpendiculares e obliquas, medindo catorze centímetros, onze centímetros, dez centímetros e sete centímetros, x) esfacelamento com várias feridas corto perfurantes na face lateral externa em todo o terço médio do antebraço direito, com destruição de tecidos; xi) uma ferida corto perfurante lacerativa profunda (até ao osso), angulada, com dezoito centímetros de comprimento, na face anterior do terço proximal do antebraço direito, xii) na mão direita, de golpes de defesa em todos os dedos na face palmar, com ferida corto perfurante em toda a área metacarpo falângica, desde o primeiro dedo até ao quinto dedo, com esfacelo da falange distal do indicador, xiii) uma ferida corto perfurante linear, com quatro centímetros, com bordos de pele livres, no terço médio da face lateral externa do antebraço esquerdo, xiv) a amputação traumática da mão esquerda, pelo terço distal do antebraço esquerdo, coto traumático com bordos lacerativos com topos ossos irregulares, xv) a dissecação da mão esquerda pelo terço distal, com cortes profundos de defesa, com ferimento corto perfurante da palma da mão, em toda a área metacarpo falângica, desde o segundo ao quinto dedo e de ferida corto perfurante na interfalange distal do segundo dedo, xvi) uma ferida corto-perfurante linear, de cima para baixo, na face anterior da coxa direita, distando vinte centímetros da crista ilíaca direita, com bordos livres de pele, medindo quatro centímetros por dois centímetros, com três centímetros e meio de profundidade, xvii) uma ferida corto perfurante linear, de cima para baixo, com bordos livres de pele, medindo sete centímetros por três centímetros e meio, no terço distal da face anterior da coxa direita, terço distal, xviii) de múltiplas feridas escoriativas na face anterior da perna e pé direitos, xix) múltiplas feridas escoriativas na perna esquerda, xx) nas partes moles da cabeça, infiltrações hemorrágicas, destruição da região fronto temporal esquerda, xxi) na abóbada (ossos da cabeça), de destruição dos lóbulos frontotemporal esquerdo com esquirolas ósseas na extremidade superior, de hemorragia subdural fronto temporal esquerda extensa, xxii) no encéfalo, de perda da extremidade do lóbulo frontal esquerdo, com foco hemorrágico, congestão ao corte, xxiii) nos ossos da face, uma fractura comunitiva do osso zigomático direito, uma fractura comunitiva lateral externa da cavidade orbitária direita com afundamento do globo ocular, xxiv) de sufusões sanguíneas nas paredes do tórax, com equimoses nos locais das feridas corto perfurantes, xxv) no esterno, de sufusão sanguínea com equimose infiltrativa, no local da ferida.
v. Que as lesões ante referidas consubstanciaram causa directa e necessária da morte de F.

Extractado o que agora releva do despacho de acusação, resulta com mediana clareza que o Ministério Público imputa ao arguido ter atingido o corpo de F com o sabre, mormente na face, de ter decepado a mão esquerda e, ainda, que lhe ter continuado a desferir golpes no corpo e cabeça e, ainda, de tal actuação ter determinado a geração das lesões descritas, bem assim como a morte directa e necessária daquele.
A narrativa é clara: imputa ao arguido ter causado em F as ditas lesões através do emprego do sabre, as quais determinaram a morte daquele.
Insurge-se o arguido, no fundo, da putativa imprecisão do teor do despacho de acusação ao não estabelecer qualquer conexão entre um concreto facto cuja autoria se reconduz ao mesmo e uma lesão e, por outro lado, ao não identificar, com precisão, a lesão que terá determinado o resultado morte de Pedro Fanico.
Contudo, dúvidas inexistem que a acusação procede a essa imputação qual tale.
Entendeu o Ministério Público que a vida ocorreu nos termos descritos e que, na sua perspectiva, se revelam aptos ao preenchimento da qualificação jurídica invocada. A imputação factual efectuada permite, de forma clara e perceptível, que o arguido logre inteligir com precisão os factos de que se encontra acusado e, ainda, ciente de tal imputação, que exerça o direito de defesa face aos mesmos.
De acordo com o parâmetro legal e atendendo à respectiva qualificação jurídica, a acusação verte, de forma sintética, os factos que, abstractamente, permitem a imputação ao arguido de uma pena, expressando o grau de participação do arguido, as circunstâncias de lugar e tempo, bem como aquelas que se entenderam relevantes para a determinação da sanção que o Ministério Público entende ser de aplicar, sendo que, do seu teor, não se identifica a imputação do tipo ilícito ao arguido baseada em afirmações meramente conclusivas ou factos genéricos, vagos ou implícitos, encontrando-se devidamente concretizada em face do tipo de ilícito que se entendeu aplicável.
Na verdade, o arguido insurge-se contra o teor do despacho de acusação porquanto entende que o mesmo se apresenta insuficiente (omitindo factualidade relevante para a concreta apreciação da dinâmica) ou inadequado face à prova indiciária que o enforma.
Contudo, tais circunstâncias não se mostram aptas a integrarem a aludida nulidade, sabendo a sua apreciação em sede da análise da (des)adequação do juízo do despacho de acusação com os elementos probatórios existentes nos autos.
Sendo claros: não há dúvidas que o Ministério Público entendeu que o arguido causou, no corpo de F, todas as lesões descritas e que as mesmas, todas, foram causa directa e necessária da morte daquele, sendo esse um resultado concebido, querido e executado pelo mesmo, tese essa que verteu na acusação. Se tal se logra demonstrar consubstancia questão diversa, a qual deverá ser oportunamente equacionada, logo que se mostre examinada a prova e não perante uma análise essencialmente formal do teor do despacho de acusação.
Assim, pelas razões expostas, julga-se improcedente por não provada a arguida nulidade da acusação.
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Não existem nulidades ou outras questões prévias que obstem à prolação da decisão instrutória.
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Cumpre apreciar e decidir as seguintes questões:
a) Saber se nos autos existem indícios suficientes da prática, pelo arguido P, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº 1 e 2, al. d) do Código Penal e 86º, nº3 da Lei nº 5/2006 ou, eventualmente, se a factualidade suficientemente indiciária se mostra subsumível noutro tipo de ilícito ou em causa de exclusão de culpa ou de ilicitude.
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III. OBJECTO DA INSTRUÇÃO
A fase de instrução, enquanto fase facultativa da tramitação do procedimento criminal, destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigos 286º a 289º do Código de Processo Penal).
Conforme salienta Germano Marques da Silva, “a instrução destina-se precisamente a obter o reconhecimento jurisdicional da legalidade ou ilegalidade processual da acusação, a confirmar ou não a acusação deduzida, para o que o juiz tem o poder-dever de a esclarecer, investigando-a autonomamente. Esta fase processual é essencialmente uma garantia para o arguido, mas serve também para fiscalizar a legalidade da actuação do Ministério Público, findo o inquérito.” (Do processo penal preliminar, Minerva, 259-260), sendo finalizada então pela prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia do arguido pelos factos de que vinha acusado e, consequentemente, sendo o arguido conduzido a julgamento ou findando o processo mediante arquivamento.
É exclusivamente às mencionadas finalidades que se deve dirigir esta fase processual, à verificação judicial da decisão produzida em sede de inquérito, face aos elementos constantes dos autos ou que dos mesmos deveriam constar.
Abandonou assim o Código de Processo Penal a anterior concepção da instrução enquanto fase contraditória, na qual o arguido participaria fazendo contraprova daquilo que se encontrava acusado, em face dos actuais direitos de participação do arguido na fase de inquérito.
Conforme bem sumariza o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-05-2023, proc. 6/22.9GDCTX-C, rel. Bráulio Martins, “a letra da lei inculca que a instrução tem por finalidade a verificação judicial do acerto da decisão final do inquérito, atentos os elementos disponíveis nos autos e/ou mediante o concurso de outros, entretanto fornecidos por quem pediu a abertura desta fase processual. Portanto, o pedido que é dirigido ao juiz de instrução é o de apreciar o que existe nos autos e/ou a estes é aportado e pronunciar-se sobre o seu acerto”.
Assim, em suma, a decisão instrutória destina-se exclusivamente a verificar se existem ou não indícios suficientes de se terem verificados os factos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, bem como da adequação da qualificação jurídica plasmada no despacho de acusação aos factos indiciariamente apurados – artigos 286º, nº1 e 308º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Haverão indícios suficientes quando se constate a existência de um conjunto de elementos convincentes que o arguido praticou os factos que lhe são imputados, isto é, que existem vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que existe crime e é o arguido responsável pelo mesmo.
Para a decisão de pronúncia não se mostra necessário fundar a certeza da existência da infracção, bastando a probabilidade razoável de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação que de absolvição em sede de julgamento. A este propósito, a doutrina e a jurisprudência têm-se debruçado sobre o que se deve entender por “indícios suficientes” aquando da decisão de pronúncia, manifestando-se diferentes sensibilidades e exigências na conclusão da existência de indícios.
Quanto a nós, e conforme decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07-12-2016, proc. 866/14.7PDVNG.P1, rel. Manuel Soares, entendemos que “o juiz de instrução deverá proferir despacho de pronúncia quando considerar que os indícios disponíveis, avaliados em função do seu valor probatório no momento e de uma previsão prudente sobre a sua evolução dinâmica em julgamento, conduzem a uma conclusão racionalmente fundada em elementos objectiváveis de que é mais provável que o arguido venha a ser condenado do que absolvido e de que se justifica, no plano da proporcionalidade, comprimir o direito à presunção de inocência em nome da protecção do direito à realização da justiça e da protecção dos valores com tutela penal”.
Deve assim o Tribunal analisar os autos e ponderar toda a prova produzida, fazendo um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento, tendo em consideração os elementos probatórios existentes e a acusação deduzida.
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Cabe assim apreciar se a prova existente nos autos é suficiente para a decisão de acusação e consequente emissão de despacho de pronúncia.
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III. FACTOS SUFICIENTEMENTE INDICIADOS
Resultaram suficientemente indicados os seguintes factos, a partir da acusação:
1. Desde data concretamente não apurada mas até Agosto de 2023, o arguido P e a sua companheira AM exploraram um “eco retreta center”, na Quinta Alada, (…..).
2. No dia 30-08-2023, depois da 1h00m, F, fazendo-se transportar no veículo ligeiro de passageiros de marca Volkswagen, de matrícula (…..), dirigiu-se à Quinta Alada, em (…..), com a intenção de aí se hospedar.
3. Já em (…..), F imobilizou o veículo que conduzia a, aproximadamente, um quilómetro da Quinta Alada e começou a caminhar em direcção a esse local.
4. Decorridos alguns metros, F descalçou-se, tendo tirado os ténis e as peúgas, e percorreu o resto do caminho até à Quinta Alada, a pé e descalço.
5. Entre as 06h30m e as 7h00m, no interior da Quinta Alada, o arguido encontrava-se deitado no quarto quando F abriu a porta.
6. Após uma breve troca de palavras, o arguido viu F caminhar na direcção dele, com o braço direito no ar, empunhando uma faca na mão.
7. Junto do arguido, F baixou o braço procurando atingir o aquele com a faca que empunhava.
8. Então o arguido levantou-se, agarrou os braços ou pulsos de F e exerceu força, fazendo-o rodar para o lado direito, fincando ambos perto dos pés da cama.
9. Decorridos breves instantes, depois de F ter levantado novamente o braço direito, procurando atingir o arguido com a faca que empunhava, este exerceu força, rondando para o lado direito, tendo aquele caído de joelhos no chão.
10. Após, o arguido recuou até à porta de acesso ao quarto enquanto olhava para F, que se levantou do chão, levantou o braço direito e caminhou na direcção daquele, procurando atingi-lo com a faca.
11. Então o arguido recuou até à sala, tendo F continuado a caminhar direcção do mesmo, de braço direito no ar e empunhando uma faca, com a qual procurava atingir aquele.
12. Na já sala, o arguido ficou de costas para a porta de acesso ao alpendre das traseiras da residência e de frente para F, o qual ficou de costas para a porta de acesso ao alpendre da frente da residência.
13. De repente, F saiu para o exterior da residência.
14. No decurso dessa contenda, o arguido sofreu de ferida incisa, com cerca de três centímetros ao nível do antebraço (cotovelo direito), superficial, sem o atingimento de estruturas musculo tendinosas, a qual gerou cicatriz avermelhada com vestígios de sutura, com cinco centímetros, em forma de “C” invertido, na região interna do cotovelo direito.
15. Então, o arguido dirigiu-se ao quarto das visitas, de onde retirou um sabre (catana samurai, com setenta e cinco centímetros de lâmina e trinta e três centímetros de punho, até à protecção da mão), deixando no local um sabre mais pequeno.
16. Após, empunhando o sabre, com o punho nas mãos e a lâmina apontada para e cima e para a porta, com as costas perto da cortina de fitas mosquiteiras, lugar de onde exibiu o sabre a Pedro Fanico, a quem disse “vai-te embora, vai-te embora, tu vais-te aleijar”.
17. Então, F encontrava-se junto de uma coluna de som, a gritar, tendo arremessado a coluna ao chão e desferiu pontapés nuns pratos que se encontravam no chão, partindo-os.
18. Após, F olhou para o sabre que o arguido empunhava e disse-lhe “achas que eu tenho medo da tua espadinha?”.
19. Acto contínuo, F começou a correr na direcção do arguido com o braço levantado e faca na mão direito, tendo-se espetado no sabre.
20. De seguida, F agarrou no sabre com a mão esquerda e retirou-o do abdómen.
21. Em consequência dos factos ocorridos no alpendre da frente da residência, F sofreu de ferida corto-perfurante com dez centímetros de profundidade na região epigastro esquerda e de ferimentos corto-perfurantes na região metacarpo falângica desde o segundo até ao quinto dedo da mão esquerda.
22. Depois, F caminhou na direcção de uma autocaravana que se encontrava imobilizada no exterior da residência, momento em que o arguido foi buscar o telemóvel de que era utilizador, o qual se encontrava numa das mesas de cabeceira, e vestiu os calções que estavam no chão do quarto.
23. De seguida, o arguido saiu da residência e viu que F se encontrava a bater com as mãos na autocaravana.
24. Entretanto o arguido permaneceu no alpendre, para onde regressou F.
25. Já no alpendre, às 7h16m, F, o qual ostentava o olhar fixo e arregalado, pegou num banco/mesa com três pés e manteve a faca na mão direita, exibindo-a ao arguido, que o fotografou.
26. Então, o arguido recuou, mantendo-se entre a parede do alpendre e uma mesa que aí se encontrava, mantendo o sabre empunhado com a lâmina de baixo para cima.
27. De imediato, F arremessou o banco/mesa na direcção do arguido e começou a caminhar para a parte de baixo do terreno da Quinta Alada, tendo passado por baixo do alpendre lateral da residência onde se encontrava imobilizado um veículo ligeiro de passageiros de marca Audi.
28. Então, o arguido seguiu F, mantendo sempre uma distância de dez ou quinze metros do mesmo, que continuou a caminhar na parte de baixo do terreno, para as imediações de uns tanques aí existentes.
29. Às 7h17m, na parte de baixo do terreno, o arguido telefonou para a Guarda Nacional Republicana, tendo sido aconselhado a telefonar para o 112.
30. Entre as 7h19m e as 7h21m, na parte de baixo do terreno, o arguido fotografou quatro vezes F, que permanecia com o olhar fixo e arregalado e sangrava do abdómen e da mão esquerda.
31. Às 7h22m, o arguido telefonou para o 112, tendo, no decurso do telefonema, F dito “este paneleirão, paneleirão, atacas-me com isso morres” e “energia de cura nessa espada pá, a energia de cura na espada, energia de cura na espada”.
32. Às 7h24m, o arguido telefonou para o 112 tendo, no decurso do telefonema, F dito, em voz alta “Aiiiiiii, aiiii, aiiiii, foda-se, caralho. Caralhoooooooo”, “ahhhhhhhh, ahhhhhhhh, ahhhhhhhh”, “eles que não venham que eles vão ficar do meu lado, esquece, as pessoas de bem estão do meu lado, não há ninguém do mal já aqui. Só merda”.
33. Depois, o arguido caminhou na direcção de F, o qual se dirigiu para uma cozinha comunitária existente no interior da Quinta Alada, momento em que aquele o deixou de ver.
34. Entretanto, o arguido seguiu F até ao alpendre das traseiras da residência.
35. Já no alpendre, o arguido brandiu o sabre, fazendo golpes com o mesmo no corpo de F, que pegou num tronco e o arremessou na direcção daquele.
36. Após, F começou a caminhar na direcção de uma casa de banho de madeira existente na Quinta Alada, onde entrou, dizendo por duas vezes ao arguido “não venhas para aqui, não entres aqui”.
37. O arguido e F aproximaram-se, sendo que o último já não empunhava a faca e que já tinha saído da casa de banho.
38. De seguida, com o sabre que empunhava, por diversas vezes, o arguido brandiu o sabre, de cima para baixo, atingindo e golpeando o corpo de F, o qual pôs os braços à frente, procurando defender-se.
39. Então o arguido, com o sabre que empunhava, golpeou a face de F, desferiu-lhe golpes no corpo e cabeça e decepou-lhe a mão esquerda, tendo aquele caído inanimado e sem sinais aparentes de vida.
40. Às 7h41m, o arguido telefonou para o 112 e, entre outras coisas, disse “Pá, venham depressa. Quinta Alada, tá um individuo a esvair-se em sangue. Atacaram-me, ah, atacou-me com uma faca. Venham rápido por favor, se não toda a gente morre. Quinta Alada (…) O que é que se passou?
Tá um indivíduo a atacar-me com uma faca e está a esvair-se em sangue, venham já”.
41. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, F sofreu:
i. uma ferida corto-perfurante, na hemiface direita, com bordos de pele livre, angulada desde a região supraciliar direita até ao início do pavilhão auricular direito, com dezoito centímetros, com quatro de profundidade, atingindo o osso zigomático e o globo ocular direito;
ii. uma ferida corto perfurante, com profundidade variável, na região fronto temporal esquerda, distando seis centímetros da região supraciliar esquerda, com bordos de pele livre, angular, de cima para baixo, com quinze centímetros, com corte da calote frontal e massa cefálica;
iii. uma ferida corto perfurante linear com bordos de pele livre, medindo três centímetros na base da asa esquerda nasal,
iv. uma ferida corto perfurante no tórax, linear, de cima para baixo, na região external, medindo cinco centímetros;
v. uma ferida corto perfurante angulada da esquerda para a direita na línea mamilar do hemitórax esquerdo, na projecção da sétima costela, com bordos de pele livres, medindo três centímetros com um centímetro de profundidade;
vi. uma ferida superficial linear no hemitórax direito, na línea axilar anterior projectada à oitava costela, medindo um centímetro e meio de bordos livres de pele;
vii. uma de ferida corto-perfurante na línea média axilar, a dez centímetros da axila, de cima para baixo, com bordos livre de pele, medindo três centímetros por dois centímetros, com cinco centímetros de profundidade;
viii. uma ferida corto perfurante linear, de cima para baixo, com bordos livres de pele, com três centímetros de cumprimento e dois centímetros de profundidade, na região epigastro lado esquerdo;
ix. quatro feridas corto-perfurantes na omoplata direita, lineares, com diversas orientações, de cima para baixo, perpendiculares e obliquas, medindo catorze centímetros, onze centímetros, dez centímetros e sete centímetros;
x. esfacelamento com várias feridas corto perfurantes na face lateral externa em todo o terço médio do antebraço direito, com destruição de tecidos;
xi. uma ferida corto perfurante lacerativa profunda (até ao osso), angulada, com dezoito centímetros de comprimento, na face anterior do terço proximal do antebraço direito;
xii. na mão direita, de golpes de defesa em todos os dedos na face palmar, com ferida corto perfurante em toda a área metacarpo falângica, desde o primeiro dedo até ao quinto dedo, com esfacelo da falange distal do indicador;
xiii. uma ferida corto perfurante linear, com quatro centímetros, com bordos de pele livres, no terço médio da face lateral externa do antebraço esquerdo;
xiv. amputação traumática da mão esquerda, pelo terço distal do antebraço esquerdo, coto traumático com bordos lacerativos com topos ossos irregulares, com dissecação da mão esquerda pelo terço distal;
xv. uma ferida corto-perfurante linear, de cima para baixo, na face anterior da coxa direita, distando vinte centímetros da crista ilíaca direita, com bordos livres de pele, medindo quatro centímetros por dois centímetros, com três centímetros e meio de profundidade;
xvi. uma ferida corto perfurante linear, de cima para baixo, com bordos livres de pele, medindo sete centímetros por três centímetros e meio, no terço distal da face anterior da coxa direita, terço distal;
xvii. múltiplas feridas escoriativas na face anterior da perna e pé direitos;
xviii. múltiplas feridas escoriativas na perna esquerda;
xix. infiltrações hemorrágicas nas partes moles da cabeça, destruição da região fronto temporal esquerda;
xx. destruição dos lóbulos frontotemporal esquerdo com esquirolas ósseas na extremidade superior, de hemorragia subdural fronto temporal esquerda extensa, na abóbada (ossos da cabeça);
xxi. perda da extremidade do lóbulo frontal esquerdo, com foco hemorrágico, congestão ao corte, no encéfalo;
xxii. uma fractura comunitiva do osso zigomático direito, uma fractura comunitiva lateral externa da cavidade orbitária direita com afundamento do globo ocular, quanto aos ossos da face,
xxiii. sufusões sanguíneas nas paredes do tórax, com equimoses nos locais das feridas corto perfurantes;
xxiv. sufusão sanguínea com equimose infiltrativa, no local da ferida, no esterno.
42. As lesões referidas em 41. ii), xx) e xxi) consubstanciam causa directa e necessária da morte de F.
43. O arguido P quis agarrar, transportar e usar um sabre, com setenta e cinco centímetros de lâmina e trinta e três centímetros de punhos até à protecção da mão e, exercendo força muscular, quis desferir e desferiu com o sabre que empunhava diversos golpes na cabeça, face, abdómen e membros inferiores e superiores de F, o que fez com o propósito concretizado de lhe retirar a vida, o que logrou alcançar.
44. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente.
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Resultaram suficientemente indiciados os seguintes factos, emergentes do requerimento de abertura de instrução:
45. Pese embora o referido em 2), F não houvera efectuado qualquer reserva no alojamento explorado pelo arguido.
46. Em 28-08-2023 F foi conduzido à urgência hospitalar do Hospital Garcia de Orta, em Almada, por apresentar um discurso confuso, com comportamentos disruptivos e verbalizações relacionadas com delírios místicos, onde permaneceu até às 18h29m do dia 29/08/2023, tendo sido diagnosticado como portador de psicose sem origem especificada.
47. F não efectuou a toma da medicação que lhe fora prescrita em 46).
48. Em 6), o arguido perguntou a F “quem és e o que estás aqui a fazer?” perguntou ao arguido pela M, onde esta se encontrava e se era o P, tendo, de seguida, dito “Tu és o demónio e eu vou-te matar. Eu sou o anjo Gabriel, eu sou o anjo São João e estou aqui para te mantar, tu és o diabo, um demónio”.
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IV. FACTOS INSUFICIENTEMENTE INDICIADOS
Não resultaram suficientemente indiciados os seguintes factos, vertidos no despacho de acusação:
A. Que em 37), tenha sido o arguido a aproximar-se de F.
B. Que em 37) a 39) tenha ocorrido após a realização da chamada referida em 40.
C. Que em 39), após ter decepado a mão de F, o arguido tenha continuado, com o sabre que empunhava, a desferir golpes no corpo e na cabeça de F até este cair inanimado e sem sinais aparentes de vida.
D. Que em 41, xiv), a conduta do arguido tenha gerado na mão esquerda de F, cortes profundos de defesa, com ferimento corto perfurante da palma da mão, em toda a área metacarpo falângica, desde o segundo ao quinto dedo e de ferida corto perfurante na interfalange distal do segundo dedo.
E. Que as lesões referidas em 41), i), iii) a xix) e xxii) a xxiv) tenham sido causa directa e necessária da morte de F.
F. Que em 43) o arguido tenha agido fria, crua e persistentemente, com o propósito de também provocar sofrimento físico e psíquico enquanto lhe provocava a morte.
G. Que o arguido tenha agido sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.
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Não resultaram suficientemente indiciados os seguintes factos, vertidos no requerimento de abertura de instrução:
H. Que F tenha planeado os factos descritos em 6) a 12).
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Com interesse para a decisão instrutória, não ficou por demonstrar indiciariamente qualquer facto que, considerado o teor da acusação deduzida e do requerimento de abertura de instrução se considerasse pertinente para o prosseguimento das finalidades da instrução, sendo certo que o Tribunal promoveu, ainda, ao expurgo dos elementos meramente conclusivos, repetidos ou sem substrato fático relevante para a boa instrução da causa, bem como aqueles que por imperativo legal, não se pode prevalecer.
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V. MOTIVAÇÃO
A convicção do Tribunal em relação à factualidade acima descrita e considerada como suficientemente indiciada e não indiciada provada resulta da análise conjugada e crítica do conjunto dos meios probatórios constantes dos autos, ponderada à luz das regras da experiência comum e valorada de acordo com a livre convicção do julgador, nos termos previstos do artigo 127º do Código de Processo Penal, salvo quando a lei atribui força probatória diversa a outro meio de prova.
Deste modo, considerando que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de factos e de direito da decisão para que, deste modo, seja possível verificar as razões que conduziram à formulação do juízo – art. 97º, nº5 do Código de Processo Penal e art. 205º, nº1 da Constituição -, consigna-se que o Tribunal fundou a convicção expressada na presente decisão instrutória na análise critica e conjugada das declarações prestadas pelo arguido P (em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, de 31-08-2023 [a fls. 163 ss, com suporte a fls. 176], em interrogatório complementar perante magistrado do Ministério Público [a fls. 371-372, com suporte a fls. 373 ss] e em interrogatório prestado na fase de instrução [a fls. 1688 ss e respectivo suporte digital]), o que se conjugou com a toda a prova constantes dos autos, nomeadamente com as declarações prestadas pelas testemunhas V (a fls. 1116 ss), L (a fls. 1199 ss), C (a fls. 1204 ss), AM (a fls. 1208 ss) e E (a fls. 1214 ss), conjugados com, nomeadamente, os seguintes elementos documentais:
a) Auto de notícia da GNR, de 30-08-2023, a fls 4-6v (= 62-64 e 338 ss);
b) Declaração de verificação de óbito (INEM), a fls. 12 (=353);
c) Consultas da base de dados de registo automóvel, data não apurada, a fls. 15-16;
d) Relatório fotográfico da GNR, de 30-08-2023, a fls. 18-20 (=341 ss);
e) Consulta da base de dados de identificação civil (F), a fls. 26, 67 e 291;
f) Auto de apreensão de 30-08-2023 (Polícia Judiciária), a fls. 36 ss e 71 ss;
g) Informação preliminar (Polícia Judiciária), de 31-08-2023, a fls. 48-61;
h) Consulta da base de dados de identificação civil (arguido), a fls. 65 e 290;
i) Termo de consentimento e auto de leitura de telemóvel (fotografias e histórico de chamadas), de 31-08-2023, a fls. 73 ss:
j) Fotografias, a fls. 81 ss;
k) Relatório de inspecção judiciária (Polícia Judiciária), de 08-09-2023, a fls. 214-285;
l) Comunicação da notícia do crime (Polícia Judiciária), de 30-08-2023, a fls. 287 a 289;
m) Folha de suporte (Talão BP A2 – Seixal), a fls. 295;
n) Auto de visionamento de registo de imagens, de 04-09-2023, a fls. 297 ss;
o) Informação do Centro Operacional 112.PT Sul, de 04-09-2023, a fls. 305-308;
p) Guia de entrega de vestígios (Polícia Judiciária), a fls. 309-310 (=502-503);
q) Auto de leitura de telemóvel (fotografias e histórico de chamadas, detalhado), de 10-09-2023, a fls. 315-329;
r) Chamadas telefónicas 112 e registo de ocorrências em suporte digital a fls. 330;
s) Guia de condução de cadáver, a fls. 354;
t) Auto de apreensão de 13-09-2023 (t-shirt), a fls. 368 (=521);
u) Informação clínica de P, a fls. 357-358;
v) Informação clínica (Hospital Garcia de Orta), a fls. 376-387;
w) Auto de notícia da GNR, de 31-08-2023, (AM), a fls 395 ss;
x) Impressão de registo de chamadas, a fls. 401;
y) Relatório de inspecção judiciária (Polícia Judiciária), de 14-09-2023, a fls. 404-501;
z) Auto de transcrição, de 15-09-2023, a fls. 515 ss;
aa) Folhas de suporte com reportagem fotográfica, a fls. 527 ss;
bb) Auto de visionamento de registo de imagens, de 22-09-2023, a fls. 628 ss, e suporte digital a fls. 635;
cc) Auto de denúncia de 02-09-2023 (Polícia Judiciária; António Godinho), a fls. 646 ss;
dd) Cópia de assento de óbito, a fls. 655 (=664);
ee) Informação Google, de 05-01-2024, a fls. 1002 ss
ff) Auto de análise de conteúdo digital, de 10/01/2024, a fls. 1119 ss;
gg) Parecer médico-legal, de D, de 22-03-2024 e anexos (curriculum e normas procedimentais, a fls. 1382-v ss;
hh) Parecer médico-legal, de G, a fls. 1593 ss;
ii) Opinião médico-legal, de D, de 21-05-2024 e anexos (normas procedimentais e informação INMLCF, de 19-05-2024), a fls. 1631 ss;
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Foram ainda considerados os seguintes elementos de natureza pericial:
a) Relatório de exame pericial nº 202307627-BBG (vestígios biológicos), a fls. 591 ss (=623ss);
b) Relatório de toxicologia nº 23.003442.2, do INMLCF, I.P., de 02-10-2023, a fls. 676 (=805);
c) Relatório de autópsia médico-legal nº 2023/000169/EV-P-1, de 31-10-2023, a fls. 801 ss;
d) Relatório de exame pericial (informática), nº EP.3779790.2023, a fls. 848 ss;
e) Relatório de perícia de avaliação de dano corporal nº 2023/000666/BJ-C, de 28-11-2023, a fls. 919-922;
f) Relatório de perícia médico-legal de psicologia nº 2024/002394, de 07-02-2024, a fls. 1163 ss;
g) Relatório pericial de criminalística biológica, do INMLCF, I.P., de 12-03-2024, a fls. 1332 ss.
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Vistos e analisados os elementos probatórios que enformam os autos, ainda que invertendo o plano cronológico dos eventos, dúvidas inexistem que foi o arguido, pela sua acção, que determinou causalmente o falecimento de F.
Inexistem dúvidas nesse particular porquanto resulta da apreciação conjunta dos meios de prova anteriormente enunciados, tendo particular relevo, nesse particular, as declarações prestadas pelo arguido (em interrogatório complementar e em interrogatório na fase de instrução) que assumiu que a dinâmica havida entre o arguido e F cessou em razão do óbito deste último, após lhe ter decepado a mão esquerda e acertado na cabeça com o sabre, tendo aquele caído ao chão.
De igual modo, visto o teor do relatório de perícia médico-legal efectuado na decorrência da autópsia a que foi submetido o corpo de F, dúvidas não podem restar – até porque resulta especificamente do seu teor, enquanto conclusão médico-legal que se mostra validada pelas regras de experiência comum e de normalidade, dado que se apresenta como muito provável o óbito na decorrência de lesões traumáticas meningecefálicas mediante recurso a objecto contundente, designadamente com corte do calote frontal e da massa cefálica – que o golpe infligido pelo arguido, na cabeça, consubstancia causa directa e necessária do óbito do mesmo, ainda que outras lesões pudessem concorrer, conclusão essa partilhada, também, no próprio parecer médico-legal oferecido nos autos pelo arguido.
Neste particular, ainda que sejam merecedoras de ponderação as críticas vertidas no parecer médico-legal e opinião médico-legal apresentada nos autos pelo arguido (que se entendem num contexto de implementação das melhores práticas possíveis e de forma a permitir a extracção, no momento da autópsia, do maior número de factos passíveis de apreciação subsequente), a verdade é que, se conjugado o exame pericial com a demais prova produzida, as críticas tecidas e as desconformidades invocadas se mostram, no âmago, irrelevantes para a efectiva apreciação da factualidade que no caso se apresenta.
Sendo claros e a título meramente exemplificativo: ainda que não tenha sido descrita a indumentária que o cadáver trajava, esta mostra-se integralmente fotografada, registos que se encontram nos autos e que, conjugados com os registos fotográficos do cadáver, permitem a sua conjugação.
De igual modo, as lesões de maior monta (e que na opinião da senhora perita subscritora do relatório, determinaram a causa da morte) mostram-se produzidas numa zona descoberta do corpo do defunto, circunstância que mitiga a inexistência de uma descrição exaustiva da correlação entre danos de no vestuário e lesões corporais. Igualmente irrelevante se apresenta a falta de apuramento do peso do cadáver, na medida em que os autos documentam de modo suficiente a altura do cadáver (183 centímetros, a mesma do arguido conforme resulta das respectivas informações civis, a fls. 26 e 65), sendo certo que a compleição física de ambos se mostra passível de ser comparada através da reportagem fotográfica do cadáver e do arguido, produzida nessa mesma data, bem como a partir das imagens de videovigilância quanto a F, concluindo-se que ambos apresentavam uma compleição corporal semelhante.
Ainda que se aceda quanto à inexistência de escala métrica aquando da produção de fotografias das lesões, a verdade é que tal omissão se mostra, ainda, colmatada pela existência de reportagem fotográfica efectuada pelo respectivo órgão de polícia criminal (ainda que não verse sobre a totalidade das lesões) e, ainda, pelo teor do próprio relatório pericial, o qual atesta as medições efectuadas a respeito das dimensões das lesões, mormente a sua profundidade. Quanto à aludida omissão da dissecação da fase por planos, ainda que se compreenda, novamente, o juízo no plano das melhores práticas, julga-se irrelevante para a finalidade do meio de prova a sua produção porquanto se apreciava, em concreto, a afectação do principal órgão do sistema nervoso e a relevância da putativa afectação para a vida do decesso, juízo que se estende, igualmente à descrição do ponto de recolha de sangue para produção de exame toxicológico, cogitando-se a insuficiência da narração no teor do relatório mas não se invocando a existência de qualquer erro técnico quanto à recolha que inviabilize o resultado analiticamente obtido.
Donde, os aspectos aludidos poder-se-iam considerar, em tese, problemáticos na falta de outros elementos probatórios, o que não é o caso não sucede na medida em que os elementos periciais, documentais e, também, as declarações produzidas permitem a apreciação crítica e conjugada do juízo vertido no relatório médico-legal de autópsia, colmatando-o, razão pelo qual inexistem motivos – científicas ou de desadequação ao normal acontecer - que suscitem dúvidas a respeito da adequação do juízo técnico nele plasmado.
Ultrapassado tal ponto, impõe-se salientar – tal como o arguido o faz no requerimento de abertura de instrução – que o teor do despacho de acusação se apresenta, quanto à lesão que determinaram o resultado morte, insuficientemente rigoroso e, até, divergente do relatório de autópsia, amalgamando no mesmo plano, enquanto causa directa e necessária do resultado morte, lesões superficiais nas pernas com a destruição dos lóbulos frontotemporal esquerdo após corte do calote frontal e massa cefálica, sendo certo que, no caso, consubstanciam realidades insusceptíveis de produzir um juízo homogéneo.
Já tivemos a oportunidade de nos pronunciar acerca da nulidade invocada, julgando-a improcedente, uma vez que no plano formal a imputação mostra-se produzida, não enfermando a nulidade de vício formal nesse particular. No entanto, no plano substancial – da prova -, suscitaram-se sérias dúvidas quanto à demonstração indiciária da relação imputada, a qual não assenta em qualquer elemento probatório.
A fazer vencimento a tese vertida na acusação, a morte de F teria tido origem numa putativa causalidade cumulativa, em que todas as lesões teriam determinado o resultado morte, tese essa que cede perante o relatório de autópsia. É certo que, em abstracto, se poderia cogitar se as lesões verificadas no corpo de F poderiam ter determinado a sua morte, designadamente, através de choque hipovolémico, dado o significativo sangramento que foi possível apurar no terreno da Quinta Alada. Todavia, a análise médico-legal mostra-se peremptória na identificação da causa da morte, donde se extrai que, a existir tal processo causal (o que apenas se equaciona abstractamente), o mesmo terá sido definitivamente interrompido com a lesão meningencefálica gerada pela lâmina do sabre empunhado pelo arguido.
Dito isto, em face dos elementos periciais constantes dos autos e tendo por base as regras de normal acontecer e da experiência comum, impõe-se julgar insuficientemente demonstrada, nesse particular, a imputação vertida na acusação porquanto não assenta em qualquer meio de prova examinado nos autos ou, ainda, em qualquer raciocínio lógico-dedutível susceptível de controlo pelos destinatários da decisão, resultando, por isso, o imputado nesse particular como insuficientemente indiciado.
De igual modo, mostra-se insuficientemente indicado que o arguido, com a sua conduta, tenha criado cortes profundos de defesa na mão esquerda de F porquanto a imputação causal dessas lesões ao arguido se encontram em manifesta, frontal e expressa contradição com a circunstância de resultar imputado na acusação e, também, suficientemente indicado – tendo por base as declarações do arguido (sendo consistente nesse particular nas três vezes em que prestou declarações a respeito a essa concreta dinâmica e esse concreto evento), conjugadas com a colocação no tempo das fotografias existentes nos autos, as quais demonstram a existência de lesões sangrantes na mão esquerda do arguido previamente à dinâmica em crise – que F, após se ter espetado no sabre no alpendre, utilizou a sua mão esquerda na lâmina daquele objecto cortante, tendo gerado, em si mesmo, ferimentos corto-perfurantes na região metacarpo falângica desde o segundo até ao quinto dedo da mão esquerda.
Dito isto, não sendo ambos os factos passíveis de verificação simultânea, visto que se tratam das mesmas lesões, impõe-se julgar não suficientemente indiciada a concorrência do arguido na produção daquele resultado (dado que a dinâmica decorre do agir de F, ao espetar-se no sabre e ao extraí-lo do próprio corpo através da colocação da mão esquerda no gume) e, ainda, pelas razões anteriormente enunciadas, concluir que inexiste demonstração suficiente da relevância da lesão aludida na geração do resultado morte.
Retornado à cronologia vertida nos factos que resultaram suficientemente indiciados, dúvidas não restam, também, que F, naquele dia 30-08-2023, se dirigiu para o alojamento explorado pelo arguido e pela companheira na Quinta Alada, com a intenção de aí se hospedar.
Ainda que o arguido se insurja veementemente com a imputação de tal facto subjectivo, o mesmo encontra eco nos meios probatórios existentes nos autos, mormente no teor das declarações prestadas por C (mãe do arguido (ofendido), a quem houvera revelado tal ideia no dia 28-08, tendo planeado com aquele um encontro subsequente) e A (que conversou com o arguido (ofendido) acerca de tal vontade em 28-08 e em 29-08, e que se conjuga com o teor das pesquisas e capturas de ecrã do dia 29-08-2023 que o mesmo houvera armazenado no seu telemóvel).
Donde, face à expressão inequívoca de tal intenção a, pelo menos duas pessoas, mostra-se suficientemente indiciado que o arguido a tinha ainda que, saliente-se, também ficou o Tribunal convencido em razão da prova indiciária que, efectivamente, inexistia qualquer reserva junto do arguido ou da sua companheira (conforme informação plasmada no telemóvel de F, sendo omisso qualquer contacto recente com a companheira do arguido a esse propósito), que aquele não se fazia acompanhar de objectos elementares à sua hospedagem por período mais ou menos prolongado e, ainda, que o período horário em que foi efectuada tal deslocação para a Quinta Alada (madrugada dentro, havendo registo da presença do arguido, pelas 4h20m, na área de serviço de Palmela da auto-estrada A2, sendo certo que, de acordo com as declarações de AM, esta se encontrou com o mesmo até à 1h00m desse mesmo dia 30-08-2023) e o presumível momento a que terá chegado às imediações da Quinta Alada e imobilizado o veículo empregado, passando a caminhar a pé, permitem inferir que tal intenção não revelava qualquer manifestação no plano dos factos materiais, correspondendo a uma verbalização por concretizar de acordo com aquilo que seria expectável em situações idênticas (referimo-nos à existência de uma reserva na unidade de alojamento, à existência de roupa e objectos pessoais para a estadia e, ainda, à inexistência de qualquer contacto prévio com AM, que conhecia há longos anos e com quem mantinha uma relação distante, pese embora tenha sido aconselhado por AM), comportamento que, ainda, se impõe relacionar com o estado mental de F.
Conjugados os elementos probatórios constantes dos autos – a informação clínica do Hospital Garcia de Orta a fls. 357 ss, as declarações prestadas por C (a fls. 1204 ss), por AM (a fls. 1208 ss) e, ainda, as declarações do arguido (nas três vezes em que prestou declarações, na medida em que logrou descrever o modo de actuação e verbalizações do arguido em termos dignos de credibilidade e que encontram, também, respaldo directo no teor das chamadas gravadas nos contactos estabelecidos com o 112 e com as fotografias produzidas pelo arguido) -, ficou o Tribunal convencido que F, aquando da dinâmica em apreciação, padecia de anomalia psíquica grave que, de algum modo, lhe limitava a capacidade de interpretar a realidade de acordo com o modo como a mesma se desenvolve e, ainda, de se determinar de acordo com uma sã interpretação.
Vejamos.
F foi diagnosticado como portador de psicose sem outra especificação no dia 29-08-2023, tendo sido conduzido ao serviço de urgência no dia anterior (a fls. 377 ss).
De acordo com o histórico recolhido – e que aparenta ter colhido junto do pai, que o acompanhou -, F houvera surgido na casa dos pais em tronco nu e descalço, com discurso acelerado sobre ter descoberto a verdade (mencionando que os pais estavam possuídos pelo diabo, afirmando assumir as figuras de Moisés, Jesus Cristo e Einstein), aludindo o mesmo ter obtido uma revelação e descoberto a verdade de tudo (verbalizando a certeza que existiam espíritos a interferir com o seu pensamento) e, ainda, a ideias de índole sexual que o repugnam e agressividade dirigida a objectos (tendo partido um monitor e uma ventoinha).
Ainda que se salientem algumas inconsistências quanto ao evento que deu origem à condução ao Hospital Garcia de Orta (veja-se que C refere que F compareceu na sua casa com o cabelo solto, de calções, tronco nu e chinelos, versão que se mostra parcialmente transporta para o histórico clínico – havendo divergência quando à (in)existência de calçado e, ainda, da roupa trajada, na medida em que F terá aludido que a deslocação foi efectuada envergando apenas roupa interior), a verdade é que o relato encontra manifestas similitudes na descrição comportamental efectuada pelo arguido (em primeiro interrogatório e em interrogatório complementar) durante a dinâmica havida na Quinta Alada com o prévio agir daquele, nomeadamente quanto à desnudação efectuada por F (sendo similar a retirada das meias e sapatos antes da chegada à Quinta Alada) e no que respeita às alusões místicas quanto à existência de seres demoníacos - inexistindo qualquer elemento probatório que permita concluir de modo diverso ao declarado pelo arguido nesse particular, atenta a consistência das declarações a esse propósito, os registos fotográficos produzidos pelo arguido, os quais permitem colocar no tempo um momento em que o arguido se encontrava descalço e utilizava calções e, ainda, a distância entre o lugar do falecimento -, sendo certo que, nos autos, inexistam elementos que documentassem tal facto aquando do primeiro interrogatório (ainda que estes já documentassem a ocorrência do surto psicótico, desconhecendo-se as concretas manifestações) e em interrogatório complementar (tendo esses elementos surgido no decurso da diligência, conforme se constata da visualização da videogravação daquela), circunstâncias que afastam que se equacione que o arguido, com o seu discurso, tenha procurado aderir a uma realidade de que houvera tomado conhecimento.
Se se conjugarem tais elementos com o comportamento havido por F (ao deslocar-se, de madrugada, para local ermo, com a intenção de se hospedar em alojamento no qual não era esperado porque não houvera efectuado qualquer reserva) e, ainda, com o teor da conversa havida entre aquele e AM (na qual F se revelou energético e com uma adrenalina elevada, tendo desconsiderado o aconselhamento efectuado por aquela para contactar M previamente à deslocação para a Quinta Alada), é mister concluir que aquele se encontrava a agir de modo divergente da norma e, muito provavelmente, em condições análogas às verificadas no Hospital Garcia de Orta, na medida em que não efectuou qualquer medicação prescrita, conforme atestam as embalagens de medicamentos que foram encontradas intactas na sua habitação.
Donde, o relato do arguido a propósito do teor da interacção havida com F, nos termos alegados pelo requerimento de abertura de instrução, permite demonstrar, no plano indiciado, os concretos termos em que se verificou a breve troca de palavras descrita na acusação e que permite aferir que F, após perguntar pelos proprietários, qualificou o arguido como demónio e declarou que o pretendia matar, arrogando-se a qualidade de entidade mística.
Dito isto, o relato do arguido quanto à interacção havida com F no edifício residencial da Quinta Alada, porquanto se mostra consistentemente narrado ao longo do tempo e se apresenta, ainda, corroborado pelos restantes elementos probatórios (a saber, os registos fotográficos da habitação, a identificação de sangue gravitacional pertencente ao arguido em ambos os quartos o que permite, corroborando a sua versão, demonstrar que o mesmo já se encontrava ferido e, por outro lado, se deslocou efectivamente para se munir do sabre após ter sido atingido no corpo, a identificação pericial da pertença do sangue existente nesses quartos apenas ao arguido), mereceu credibilidade por parte do Tribunal quanto à sua demonstração indiciária, sendo confirmada, também, pelos registos telefónicos e fotográficos, atestando, por um lado, que o arguido procurou que as autoridades se deslocassem ao local e, por outro lado, que F se mostrava efectivamente munido com uma faca na sua mão direita.
De igual modo, com assento nas declarações do arguido (nas três ocasiões em que prestou declarações), no registo de chamadas constantes do respectivo telefone (colhido para os autos), no registo e gravação das chamadas efectuadas para a linha de emergência médica 112, bem assim como atendendo às declarações prestadas pela testemunha V (o qual atestou ter efectivamente recebido, enquanto militar responsável pelo atendimento telefónico no posto territorial da GNR de Vendas Novas, uma chamada com teor idêntico ao narrado pelo arguido, na referida data e hora), mostra-se demonstrado que o arguido procurou e estabeleceu contacto com a Guarda Nacional Republicana e com a linha 112, resultando ainda gravada a produção das frases captadas aquando das chamadas telefónicas com esta última, quer pelo arguido, quer por F.
Dito isto, a narração da factualidade tal como constante no despacho de acusação (salvo quanto a aspectos de detalhe a que se aludirão adiante) mostra-se suficientemente indiciada tendo presentes as declarações prestadas pelo arguido, os registos de chamadas, as gravações de chamadas efectuadas junto do serviço 112 e, ainda, a inspecção judiciária ao local e respectiva recolha fotográfica, a qual, a partir dos vestígios de sangue vertido ao longo da propriedade, permite aferir por onde caminhou o arguido e F, sendo certo que este último, fruto das lesões que, à data, apresentava na mão e na zona do abdómen (fruto da penetração do sabre neste), propiciavam a libertação de um volume de sangue superior, sendo certo que pese embora as declarações prestadas pelo arguido (no interrogatório complementar e, ainda, na fase de instrução) se revelem algo lacunares quanto à dinâmica havida no alpendre das traseiras (que corresponde ao alpendre voltado a norte, atendendo à orientação cartográfica dos espaços), a verdade é que o arguido, em interrogatório complementar, assumiu ter atingido F no corpo nesse contexto, contexto em que o mesmo arremessou um tronco de madeira na sua direcção.
Resta, por fim, a apreciação do trecho final da dinâmica, imputando o Ministério Público que o arguido, a partir de determinado momento (que não se mostra expressamente assinalado), agiu com o propósito de matar F, o que concretizou, depreendendo-se do posicionamento havido nos autos (em sede de alegações de recurso e, também, em alegações), que o arguido, a partir de determinado momento, terá passado a perseguir F com o escopo de colocar termo à vida deste, tese que o arguido refuta.
Ao Tribunal cabe apreciar a factualidade indiciária à luz dos meios de prova existentes nos autos, procurando, a partir dos dados objectivamente demonstrados em juízo, reconstituir a verdade histórica, sempre com a consciência que a verdade processual é, por definição, imperfeita, e que o arguido beneficia da presunção de inocência em caso de dúvida quanto à incapacidade de demonstração cabal de um facto.
Dito isto, assentemos os parâmetros que permitem a análise da factualidade objectiva.
É incontrovertido face à prova que o arguido e F não se conheciam.
A recolha de dados nos respectivos telemóveis não determinou a existência de qualquer contacto ou registo entre ambos, sendo que tal inexistência é, ainda, corroborada pelas pessoas inquiridas, mormente por L e AM, para além das próprias declarações do arguido, resultando ainda indiciariamente demonstrado que o decesso F houvera sido amigo da companheira do arguido, com quem não mantinha contacto regular, próximo ou intenso
Donde, impõe-se concluir que a natureza da interacção havida entre o arguido e F decorreu e teve origem no contexto em que contactaram, inexistindo dúvidas que tal ocorreu ao crepúsculo tendo em consideração, por um lado, a colocação de F no local (documentada que se encontra a sua presença na área de serviço de Palmela da auto-estrada A2 pelas 4h20m e o momento da produção do primeiro registo fotográfico, pelas 7h16m), sendo que as declarações do arguido mereceram, nesse particular, credibilidade porquanto estáveis ao longo do tempo.
Salienta-se que as fotografias tiradas pelo arguido pelas 7h16m (em concreto, a primeira, a fls. 317), voltada a sudeste (na medida em que o alpendre frontal da Quinta Alada se encontra voltado a sul, permite constatar a existência de luminosidade e a inexistência de sombra, o que indicia a sua produção no princípio do dia solar).
De igual modo, merece credibilidade o relato do arguido relativamente à motivação para seguir os lugares por onde foi circulando F.
Ainda que se constate a existência de alguma divergência entre o relato do arguido e de E (na medida em que o arguido declarou que se encontrava a aguardar a chegada de M e de E no período da manhã, o que apenas é parcialmente corroborado por esta última, a qual declarou que M a informou que não iria estar no local, o que confirma e infirma parcialmente a versão do arguido), a verdade é que se apresenta racional, naquele contexto, que o arguido tenha optado por controlar, à distância, os locais por onde F se deslocava. Em primeiro lugar porque, inequivocamente, aguardava a chegada de E nessa manhã.
Em segundo lugar, porque a pessoa que o houvera atingido no braço e com quem se houvera confrontado fisicamente continuava no interior da sua propriedade, munido de uma faca, continuando por isso a consubstanciar uma fonte de perigo.
Dito isto, não é estranho que o arguido tenha procurado controlar, à distância, os movimentos de F, evitando que o mesmo, eventualmente, o interceptasse de surpresa, de uma forma que o mesmo não pudesse antever, sendo certo que, até esse momento e durante um período certamente superior a 10 minutos (desde a interacção havida no alpendre, em momento anterior às 7h16m, e as 7h24m), o arguido houvera sido capaz de manter F à distância de um metro (correspondendo à dimensão do gume e punho da espada) mediante exibição e manejamento do sabre.
Donde, extrair de tal contexto uma inequívoca vontade do arguido de perseguir e matar claudica perante as regras de experiência comum.
Caso a perseguição do ofendido pelo arguido tivesse por base essa intenção ofensiva após os ditos encontros nos alpendres, não seria razoável, à luz de uma racionalidade elementar, que o arguido, conhecedor da conformação da sua propriedade, tivesse emboscado o ofendido quando este se encontrava no interior da casa de banho exterior, sem possibilidade de fugir? Por que razão o arguido, se o perseguia, se mantinha à distância de F – conforme demonstram as fotografias -, se para consumar a putativa intenção teria de se aproximar do mesmo? Por que razão o arguido houvera telefonado incessantemente para a Guarda Nacional Republicana e para a linha 112 a requerer que acorressem ao local, se pretendia perseguir e matar o arguido? Por que razão optou o arguido por fotografar F, sabendo que houvera convocado as autoridades?
A acusação e a prova existente nos autos não respondem ao antedito, limitando-se a concluir nos termos expostos.
Parece a acusação assentar no seguinte raciocínio: se o arguido se conseguiu defender no interior da habitação mediante recurso às suas mãos, também seria capaz de se fechar nesse local e aguardar, em segurança a chegada das autoridades, donde, se o arguido seguiu os passos de F é porque o pretendia lesar.
A versão do arguido, nesse detalhe, merece credibilidade.
Como se disse, o arguido aguardava a chegada de E à propriedade, sendo que F circulava livremente, no estado mental descrito, encontrando-se na posse da aludida faca, sendo susceptível de gerar no espírito do arguido a ideia que o mesmo atacaria qualquer pessoa com quem se cruzasse, tal como houvera feito consigo. Ademais, a exigir-se que a actuação do arguido se reconduzisse necessariamente a uma fuga ou ao refúgio, exigir-se-ia igualmente que o arguido deixasse necessariamente de controlar a fonte de perigo emergente da deslocação de F no espaço e, enfim, se encurralasse no local onde originariamente foi atacado por aquele. Veja-se que se mostrou indiciariamente demonstrado que o arguido, após ter seguido F, telefonou para a GNR, o que não se compadece com o comportamento típico de quem houvera decidido matar outra pessoa.
Ademais, podem ser colocadas análogas interrogações quanto ao agir de F.
Ainda que se saliente o estado mental descrito, porque não fugiu do arguido, caso se encontrasse a ser perseguido pelo arguido? Porque permaneceu na mesma área daquele quanto já houvera sido atingido no corpo, sendo prudente inferir que o mesmo sentia dores, atentos os gritos que são audíveis na chamada telefónica efectuada pelo arguido para a linha 112 pelas 7h24m?
Donde, tudo ponderado, a versão do arguido merece, esse particular, credibilidade.
Todavia, em sentido contrário, a descrição efectuada pelo arguido da parte final da contenda que determinou o falecimento de f já não logra, por si, convencer do Tribunal da adequação do declarado ao ocorrido, na medida em que diverge sensivelmente das inúmeras e documentadas lesões que F apresentava no corpo.
Em primeiro lugar, impõe-se salientar que ressalta que o arguido, ao longo das suas declarações, logrou sempre descrever com detalhe, a fase inicial da interacção havida com o arguido, detalhe esse que vai desaparecendo das declarações logo que se aproximava da fase final do contacto. É certo e sabido que o arguido não está obrigado a prestar declarações ou, sequer, a prestá-las com verdade. No entanto, tendo-se predisposto a oferecer tal meio de prova, não se apresenta desonerado de tal apreciação crítica.
Em segundo lugar, as declarações do arguido apresentam-se como uma débil explicação para as lesões que F apresentava no corpo no momento da sua morte. Veja-se que, pelas 7h21m, da conjugação das fotografias produzidas pelo arguido (em concreto, visto o suporte digital, pela sua especial resolução) permite-se perceber que F apresentava, em exclusivo, uma lesão na zona do tórax/abdómen, lesões na mão esquerda e, ainda, marcas sanguinolentas nas pernas.
Ora, logrando-se precisar que os últimos momentos ocorreram entre as 7h24m e as 7h41m – sendo que na última chamada efectuada para o 112, é notório, tal como nota o senhor inspector que lavrou a transcrição, a fls. 515 ss, e resulta da audição do respectivo suporte, que o ânimo do arguido houvera mudado, o que se reflecte na respiração, apresentando-se ofegante e, dir-se-ia, superiormente transtornado, identificando-se uma alteração no timbre da voz – existe uma clara evolução no corpo do arguido e, até, na sua roupa, deixando de se encontrar meramente ensanguentada para rasgada e cortada.
Não se pode dizer que, nas primeiras chamadas, o arguido se encontrasse descansado na medida em que F aludia à morte do arguido caso o atacasse com a espada, era apodado de paneleirão, lhe pedia para se afastar, identificando o arguido, em F, a intenção de o matar.
Também os vocábulos empregados pelo arguido sugerem uma significativa modificação do estado de coisas, na medida em que deixou de descrever F como uma pessoa tresloucada, ferida e que o tentava matar para alguém que se encontrava a esvair-se em sangue, descrição que se mostra adequada, designadamente, à consequência da amputação pela zona do pulso com consequente corte da artéria radial ou, ainda, ao impacto do sabre na cabeça daquele.
Noutra mão, não convence a explicação do arguido a respeito da posse, por F, da faca no momento em que acabou por o matar dado que, à luz das regras de experiência comum, não se crê que a espada tenha sido projectada aquando dos impactos ou, ainda, arremessada por F. Nesse propósito, o arguido relata que não pegou na faca inexistindo prova científica que demonstre facto diverso. Contudo, face à distância física entre ambos os locais, apresenta-se razoável assumir que, após a saída da casa de banho (momento em que o arguido declara ter perdido de vista F, explicando que desconhece qual o lado pelo qual o mesmo saiu), tenha sido o falecido a deixar tal objecto naquele local.
Tal determina assim, necessária e racionalmente, que F não se encontrava munido de qualquer objecto contundente quando lhe foram desferidas as últimas catanadas e quando o arguido e F se aproximaram (inexistindo prova indiciária cabal para concluir, como se mostra vertido na acusação, que foi o arguido que avançou para o decesso F). De igual modo, impõe-se reconhecer que os golpes que determinaram, por um lado, a amputação da mão esquerda pelo pulso e a lesão da massa cefálica não correspondem a consequências que decorram, à luz das regras de normalidade, da mera oscilação da espada de cima para baixo e de baixo para cima, na medida em que a produção daquele efeito implica, por um lado, a posse de técnica de corte e, por outro, a aplicação de força significativa (sendo certo que, contrariamente às razões declaradas pelo arguido para ter aquela espada consigo, a verdade é que foram localizadas na Quinta Alada quatro espadas, duas com gume metálico e duas de treino, devidamente fotografadas nos autos).
Acresce ao dito a existência de lesões no corpo de F que não são, de modo algum explicadas.
Salientam-se os cortes existentes na omoplata (que se mostram consistentes com a aplicação da extremidade do sabre, sendo certo que o arguido declara nunca ter observado ou atacado o arguido nas costas), sendo manifestamente fantasioso equacionar que aqueles cortes multidirecionais e compatíveis com lesões idênticas noutras partes do corpo tenham sido causadas por F, designadamente, ao transpor a rede ovelheira acimada por arame farpado que delimita o perímetro da Quinta Alada. Tal versão mostra-se desmentida pelo estado da roupa de F aquando das primeiras fotografias tiradas pelo arguido, mantendo-se a roupa idêntica à que envergava nas imagens obtidas junto dos postos de combustível pelas 4h00m, salvo quanto às escorrências de sangue.
Donde, a conjugação das declarações do arguido (com especial enfoque nas suas hesitações e lacunas), do teor do relatório pericial da autópsia e, ainda, com a modificação comportamental do arguido permite verificar, para além de qualquer dúvida, uma modificação do ânimo da abordagem realizada pelo arguido até às 7h24m, sendo certo que as lesões exibidas pelo corpo de F – e que o arguido assume ter produzido com a espada, ainda que divirja quanto à motivação – não permitem identificar a existência de uma actuação puramente defensiva perante um homem desarmado, com o escopo de rechaçar as ditas investidas, especialmente tendo em consideração que durante o período em que o falecido F se encontrou armado, o arguido o houvera sido capaz de manter à distância, controlando-o.
Vista a prova existente e da sua conjugação, impõe-se concluir, inequivocamente, que o arguido quis e procurou gerar aquele resultado, o único que se coaduna com a elevada energia cinética colocada no manejo da espada (o que resulta, também, nas marcas existentes no solo em local próximo aquele onde faleceu F e que permitem inferir que, nesse local, se encontraram e se procuraram evitar um ao outro, rodando os respectivos pés) e que determinou a amputação do membro e consequente corte no calote frontal com afectação da massa encefálica, a qual determinou aquele resultado.
Não é crível que o mesmo F que fugiu no alpendre e que procurou que o arguido se mantivesse longe de si – designadamente, quando entrou na casa de banho exterior -, tenha continuado a caminhar desarmado na direcção do arguido enquanto era atingido.
Vista a prova, mostram-se indiciariamente afastados os demais cenários atenta a proliferação de lesões no corpo de F, a sua profundidade e localização no corpo, não se concebendo que aquele, mesmo naquela condição mental, continuasse a avançar sobre o arguido, desarmado, quando aquele lhe provocada com a espada lesões corporais que, pela natureza das coisas, lhe provocaram dores significativas.
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Concretizando o juízo de suficiência:
O facto 1) resulta suficientemente indiciado a partir da conjugação das declarações uniformes do arguido (em todas as ocasiões onde foi ouvido) com o teor do relato de E.
O facto 2) resulta suficientemente indiciado a partir da conjugação das declarações de C e de AM quanto à intenção do arguido se alojar naquele espaço com o escopo de se reencontrar. No plano horário, atendeu-se ao relato de AM (a qual atesta ter estado com o arguido até à 1h00m desse mesmo dia, sendo certo que os autos de visionamento de imagens (a fls. 297 ss e 628 ss, conjugados com o talão recolhido no interior do veículo) nos permitem aferir que entre as 4h e as 4h20, nas áreas de serviço do Seixal e de Palmela da auto-estrada A2. O veículo foi igualmente identificado nas aludidas imagens de videovigilância, sendo certo que foi localizado junto da Quinta Alada pela Polícia Judiciária junto aos ténis utilizados pelo arguido (realidade confirmada por L), atestando C que o veículo era utilizado pelo seu filho.
Os factos 3) a 4) resultam demonstrados a partir da conjugação do relatório de inspecção judiciária, reportagens fotográficas e fotografias (que atestam que o arguido se encontra descalço na Quinta Alada), atestando L que os ténis em crise pertenciam a F e se encontravam próximos do veículo que tripulou para chegar ao local.
Os factos 5) a 36) resultam demonstrados a partir da conjugação das declarações do arguido, consistentes ao longo do tempo nesse particular, mostrando-se ainda de acordo com os vestígios hemáticos existentes nos quartos, os quais foram pericialmente atribuídos ao arguido e que corroboram a sua versão, de ter regressado aos quartos para colher o telemóvel e pegar no sabre, merecendo, por isso, credibilidade. Foi ainda valorado o teor do relatório de perícia médico-legal a que foi submetido o arguido, atestando a lesão corporal que se mostra susceptível de ter sido causada nos termos descritos pelo arguido. Quanto ao agir de F, para além das declarações prestadas pelo arguido, foram valoradas as chamadas telefónicas subsequentes, efectuadas para o INEM e que atestam, nesta fase, a vontade de repelir F. Foi, ainda, valorado o teor do relatório médico-legal de autópsia quanto à natureza da lesão existente no corpo e, ainda, as inspeções judiciárias e respectivas reportagens fotográficas as quais atestam um resultado final que se coaduna com o descrito pelo arguido e, ainda, a existência de um rasto hemático ao longo da Quinta Alada, no aludido percurso. Foram igualmente valoradas as fotografias efectuadas pelo arguido mediante recurso a respectivo telefone, tendo passíveis de colocação no tempo atendendo aos dados constantes da informação digital da fotografia, constante dos autos. O Tribunal valorou, ainda, o teor dos registos de chamadas plasmados no telefone do arguido e a informação fornecida pelos serviços de emergência médica, mormente os registos e gravações de chamadas, os quais atestam a prolação daquelas frases naquele momento temporal. O mesmo se refira quanto ao facto 40, atestado a partir da conjugação de tais elementos.
O facto 37) resulta demonstrado tendo em consideração a dinâmica narrada pelo arguido e o local onde foi encontrada a faca, sendo manifestamente inverosímil que a aludida faca tenha sido projectada quando das interações havidas entre o arguido e F, dada a manifesta distância física entre o local onde se encontrava o corpo, onde foram desferidos os últimos golpes e as traseiras da casa-de-banho, sendo as declarações do arguido evasivas nesse particular.
Os factos 38 e 39) e 41) resultaram indiciariamente a partir da conjugação das declarações do arguido – que assumiu ter empregado a espada em F, acertando-lhe em várias partes do corpo -, sendo certo que a conjugação das fotografias produzidas pelo arguido com a reportagem fotográfica das lesões existentes no corpo e, ainda, com o teor do relatório de autópsia médico-legal (que mereceu credibilidade enquanto meio probatório, apreciada à luz das regras de experiência comum e tendo presentes as opiniões e pareceres médico-legais existentes nos autos, as quais não retiram a valia probatória). Foi ainda levada em consideração a adequação do objecto empregado pelo arguido com as lesões apresentadas no corpo, mostrando-se a sua produção de acordo com as regras de normalidade em condições idênticas de produção.
O facto 42) resultou indiciariamente demonstrado atento o teor do relatório médico-legal da autópsia, cujo teor não foi colocado em crise pela prova produzida, mormente pelas opiniões e pareceres médico-legais, não infirmando, no essencial, os dados obtidos naquele meio de prova a respeito do tipo de lesões e do modo como foram produzidos, mostrando-se de acordo com as regras de normalidade e experiência na medida em que as lesões em causa determinam, forçosamente, a morte da pessoa atingida pelas mesmas, através da conjugação do local, do objecto empregado e do dano causado no órgão destinado à regulação nervosa do corpo (aí se incluindo o controlo da respiração e batimento cardíaco), atenta a profundidade da lesão.
Os factos 43) e 44) resulta indiciariamente demonstrado pelas razões avançadas, extraídas à luz das regras de experiência comum e de normalidade. Vistas as declarações do arguido, o contexto da interacção, o estado mental de F e, ainda, a documentação das lesões causadas no corpo daquele, devida e detalhadamente descritas no relatório de autópsia, não é passível extrair da factualidade objectiva, ainda que no plano indiciário, qualquer outra conclusão que não a intenção de causar a morte de F, atenta a energia, força e perícia colocada na aplicação de golpes no corpo daquele, encontrando-se munido do sabre e após ter logrado mantê-lo à distância através da mera ameaça emergente da sua exibição. A conjugação da prova produzida afasta, em tal segmento, a credibilidade das declarações do arguido, atento que F não se encontrava, em tal momento, munido de qualquer objecto contundente (o que já houvera ocorrido anteriormente).
O facto 45) resulta demonstrado atentas as declarações prestadas pelo arguido, dignas de credibilidade nesse detalhe.
Os factos 46) e 47) resultaram indiciariamente demonstrados atendendo à conjugação das declarações de C e de AM, conjugadas com o teor de inspecção judiciária à residência daquele e, ainda, da documentação clínica constante dos autos, a qual atesta a narração, em data próxima, de crenças místicas, as quais permaneceram vigentes até ao dia da sua morte, atentas as declarações desta última. Foi, ainda, constatado que F mantinha intacta a medicação na sua residência, o que permite que se conclua que não se encontrava a realizar a medicação prescrita na sequência da alta.
O facto 48) resulta demonstrado a partir das declarações do arguido, dignas de credibilidade nesse segmento, e que se mostram de acordo com o teor da informação clínica de F e das declarações de C quando à existência de crenças no decesso a respeito de forças malévolas e demónios, considerando F que houvera atingido uma revelação sobrenatural.
Inexiste prova indiciária de A) na medida em que não se logra extrair, para além de qualquer dúvida, que tenha sido o arguido a aproximar-se de F, sendo igualmente possível que tenha ocorrido a realidade diversa. Donde, ainda que se apure que se aproximaram, não se considera indiciariamente demonstrado de quem partiu tal iniciativa.
Não resultou indiciariamente demonstrado o facto B) na medida em que escapa às regras de experiência e de normalidade, bem assim como à modificação comportamental plasmada na gravação da chamada efectuada para o 112 a essa hora, que o arguido tenha telefonado para a assistência médica e, após decidido investir sobre o arguido (ofendido) para o matar. Dessa chamada não resulta, contrariamente às anteriores, a captação da voz daquele e, ainda, o arguido apresentava ânimo diverso, ânimo expressado no tom de voz utilizado e na circunstância de aludir à existência de uma pessoa a esvair-se em sangue.
De igual modo, não existe prova indiciária da ordem ou sequência das lesões causadas pelo arguido com o sabre em F, não havendo qualquer indício que permita declarar, para além de qualquer dúvida, que as lesões subsequentes, na cabeça, tenham sido causadas posteriormente ao corte da mão pelo pulso, com o escopo de, aproveitando a maior fragilidade de F, determinar a sua morte.
O facto D) resultou não provado porquanto resultou demonstrada realidade diversa, a saber, que o corte na mão esquerda de F foi determinada pela circunstância do mesmo ter retirado o sabre que espetou no seu corpo, segurando-o no gume. Donde, tendo sido F a gerar esse dano na sua pessoa, não se pode concluir que foi igualmente o arguido a causar-lhe tais danos.
Assim, julga-se indiciariamente não demonstrada tal factualidade.
Inexiste a demonstração cabal, nos autos, da relação das lesões referidas no facto E) e a morte directa e necessária de F. Reiterando o que se escreveu, o relatório de autópsia é peremptório na atribuição da causa do óbito, não havendo qualquer meio de prova que possibilite a imputação de todas as lesões como causa de morte de F na medida em que esta ocorreu em função do golpe aplicado na cabeça e que o feriu na massa cefálica.
O facto F) resultou não provado na falta de prova objectiva quanto ao modo como o arguido se determinou na prática da factualidade, mormente que tenha planeado e conduzido F até à sua morte mediante recurso a uma morte particularmente dolorosa, prolongada no tempo e destinada a causar-lhe especial sofrimento físico, psíquico e medo. O que se apurou indiciariamente passa pela geração do resultado morte num contexto ocasional, com uma agressão prévia ao desfecho alcançado. Donde, assumindo carácter conclusivo sem que exista a demonstração de factos objectivos em que se possam ancorar, julga-se insuficientemente indiciado o facto F).
O facto G) resultou não provado tendo em consideração o contexto da prática dos factos objectivos apurados, conforme transversalmente discutido ao longo da presente decisão, tendo em consideração, desde logo, a prévia agressão de que foi alvo o arguido, a incapacidade demonstrada pelo sabre para travar o arguido e, ainda, a demora das autoridades acorrerem ao local, numa manifestação de inexigibilidade de comportamento diverso.
Igualmente insuficiente indicado resulta o facto H). Ancorava o arguido tal plano de F na circunstância da faca em crise não ser conhecida na Quinta Alada, de acordo com as declarações do próprio e de E. Contudo, igualmente C declarou não reconhecer F como proprietário da faca. Sobejam dúvidas quanto à origem do objecto cortante (ainda que o arguido não seja particularmente peremptório a excluir a possibilidade de existir faca idêntica aquela na Quinta Alada. Donde, visa a prova, não ficou o Tribunal convencido de qualquer planeamento prévio por parte de F.
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VI. DO DIREITO
O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº1 e 2, al. d) do Código Penal e 86º, nº3 da Lei nº 5/2006, cujo teor se dá por reproduzido.
Estabelece o artigo 131º do Código Penal que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.
Com tal incriminação, enquanto crime de dano e resultado, tutela-se a vida humana.
A morte corresponde, em termos normativos, à cessação total e irreversível das funções do tronco cerebral (artigo 2º da Lei nº 141/99), momento a partir do qual se convencionou finda a existência de uma determinada pessoa.
Assim, pratica o crime de homicídio o agente que determine, através de um acto ou conjunto de actos, a morte de outra pessoa, havendo de se estabelecer uma relação causal entre o acto o conjunto de actos e, ainda, o resultado morte que se produziu. Conforme iluminam Miguez Garcia/Castela Rio, Código Penal parte geral e especial com notas e comentários, 3ª, Almedina, 567 ss. “com a expressão ‘matar’ deve entender-se que ao agente é objectivamente imputável a produção de um resultado mortal. A conduta consiste objectivamente em “matar”. Incluem-se quaisquer acções ou omissões que sejam causais da morte de outra pessoa”, concluindo pelo carácter livre da conduta que poderá determinar o preenchimento do tipo objectivo de ilícito.
No que tange ao tipo subjectivo de ilícito, o seu preenchimento exige a demonstração do carácter doloso da conduta, em qualquer uma das suas formas (dolo directo, necessário ou eventual).
Por seu turno, estabelece o artigo 132º, nº1 do Código Penal que caso o resultado morte seja produzido em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos, sendo susceptível de demonstrar tal característica o emprego de “tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima”.
Nos termos do artigo 243º, nº3 do Código Penal, “considera-se tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano, o acto que consista em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave ou no emprego de produtos químicos, drogas ou outros meios, naturais ou artificiais, com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima”, normativo que permite a extracção das coordenadas normativas. No fundo, exige-se que a morte seja causada em condições particularmente aviltantes ou dolorosas para a vítima (não perdendo em vista que o sofrimento se inscreve também no tipo objectivo do homicídio simples) que demandem um juízo de censura especialmente acentuado pelas condições em que a pessoa objecto de homicídio sucumbiu.
Todavia, é certo e sabido que o preenchimento do tipo qualificado não se basta com o preenchimento dos factos-tipo a que alude o nº2 do artigo 132º do Código Penal, exigindo-se a produção de um juízo normativo assente na factualidade demonstrada.
Como bem se decidiu no Tribunal da Relação de Coimbra por acórdão de 10-12-2008, proc. 220/07.7GCACB, rel. Vasques Osório, em interpretação que se partilha, “a verificação, no caso concreto, de um ou mais exemplos-padrão não significa, necessariamente, a realização do especial tipo de culpa e consequente qualificação do homicídio ou qualificação da ofensa à integridade física, da mesma forma que, a não verificação de um qualquer exemplo-padrão não impede a qualificação, desde logo porque o uso, no nº 2 do art. 132º, da expressão “entre outras” indica que não estamos perante um elenco taxativo. Mas o que se exige é a verificação no caso concreto, de elementos substancialmente análogos aos tipicamente descritos ou seja, que embora não expressamente previstos na lei, correspondam ao sentido, desvalor e gravidade de um exemplo-padrão”, impondo-se, por isso, que no caso em concreto a conduta se apresente como especialmente desvaliosa e, por isso, susceptível de uma censura jurídico-penal de grau qualificado, tornando-se o facto ilícito especialmente gravoso naquela situação em concreto.
Neste particular, veja-se ainda a interpretação plasmada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão proferido no processo nº 242/08.0GHSTC, de 03/03/2010, rel. Armindo Monteiro, a qual se partilha, no qual se consignou que “a especial censurabilidade, documenta no facto, referentemente ao agente, uma forma da respectiva realização especialmente desvaliosa. A especial perversidade evidencia que o agente na materialização do facto é portador de qualidades altamente desvaliosas ao nível da personalidade, merecedor de um juízo de culpa agravado. (…) a perigosidade de certos instrumentos não releva em muitos casos a se, mas em função conjugada das circunstâncias concomitantes, envolventes, ao seu uso; noutros casos a perigosidade avulta sem mais, autónoma e isoladamente, como por exemplo, uma granada, um engenho explosivo e outros. Um automóvel, usado na prática da agressão, agrega objectivamente a si uma perigosidade muito superior aos demais meios de agressão letal, normalmente usados, pela indefesa que causa a um peão, indefesa maior quando olhada a aceleração previamente imprimida ao automóvel de forma a embater violentamente na vítima por forma a que o processo letal em curso não falhasse, colocando em inevitável, iminente e previsível risco a vida humana”, interpretação que tem feito caminho na jurisprudência nacional – vd., por todos e mais recentemente, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-05-2018, proc. 318/12.0GEBNV, rel. Alberto Borges.
Sendo claros: não se bastará o preenchimento do tipo qualificado com a demonstração do preenchimento do evento-tipo, impondo-se ainda a formulação de um juízo de especial censurabilidade do facto, atendendo ao seu contexto.
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Prevê ainda o artigo 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006 que “as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”.
Os sabres consubstanciam, nos termos do artigo 3º, nº 8, al. a) da citada lei, armas de classe F.
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A respeito da putativa imputação, ao arguido, de qualificação jurídica diversa conforme pugnado pelo mesmo, estabelece o artigo 137º, nº1 e 2 do Código Penal que “quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa” sendo que caso a negligência seja qualificada como grosseira, “o agente é punido com pena de prisão até 5 anos. […]”.
O tipo de homicídio, na forma negligente, consubstancia um crime de resultado, o qual apenas poderá ser cometido por um agente vinculado por um dever jurídico de cuidado, verificando-se a comissão do crime quando se manifeste um nexo causal entre a imputação objectiva da morte enquanto resultado da conduta realizada pelo agente e, ainda, essa conduta seja susceptível de qualificação como culposa numa das formas de negligência, tal como definidas no artigo 15º do Código Penal.
Dada a sua natureza de crime material, constitui elemento constitutivo do crime a manifestação de um nexo causal entre a conduta do agente e o resultado morte.
Saliente-se que, nos termos do artigo 10º, nº1 a 3 do Código Penal, prevendo o tipo a verificação de um certo resultado, “o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei”, apenas sendo punível a comissão de um resultado, a título omissivo, quando recaia sobre aquele que omite o acto devido “um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado”, caso em que a pena poderá ser especialmente atenuada.
Destinando-se o tipo a tutelar a vida humana enquanto bem jurídico com dignidade penal, o preenchimento da norma depende da demonstração que o agente, através da sua conduta, tenha criado, potenciado ou assumido um perigo típico e juridicamente relevante para o bem jurídico tutelado. Para isso, é preciso que o resultado atingido (morte) tenha sido criado, assumido ou potenciado pela actuação do agente, funcionando o seu agir como efectivo catalisador daquele fim.
Deste modo, mostra-se irrelevante para o preenchimento do tipo (mas não para a determinação da pena e da sua medida) o modo ou os meios empregues pelo agente que determinaram a produção do resultado típico desvalioso, seja este atingido, como se assinalou, por acção ou omissão, sendo que neste último caso depende ainda da sujeição do agente por dever jurídico que o vincule a evitar esse resultado.
Conforme consignam Alexandre Lafayette/ Victor de Sá Pereira, Código Penal anotado e comentado, 2ª, Quid Juris, 392 ss., “o homicídio por negligência reporta-se à violação de um dever objectivo de cuidado, ao qual o agente se encontra sujeito ou obrigado, que se analisa em função da capacidade individual do agente para o observar”.
Diferentemente dos tipos dolosos, nos tipos negligentes não se apresenta tão vincada a distinção entre os elementos subjectivos e objectivos da conduta do arguido na medida em que a acção que foi concebida e a que veio a ser consumada não coincidem, pois o agente produz com a sua acção um resultado que não pretendia obter dado que não a representa como possível ou, caso a represente, entende que não se precipitará.
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Não obstante, o alegado tipo pode ser praticado em legítima defesa, o que exclui o carácter ilícito típico da acção.
A legitima defesa, enquanto causa de exclusão da ilicitude, encontra-se prevista no artigo 32º do Código Penal, consagrando-se como lícito o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.
Conforme ensinava Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, I e II, Almedina, 2010, 174, “o acto ou facto de defesa é o acto ou facto de repelir ou prevenir uma agressão. A defesa é reacção a uma agressão”.
Tal comando nasce da garantia constitucionalmente prevista no artigo 21º da Constituição da República, ao garantir a todos os membros da comunidade o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e, ainda, de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.
Atenta a conformação legal adoptada pelo sistema nacional, afigura-se discutível se a legítima defesa assumia a feição de direito do cidadão ou, por outro lado, correspondia o mero exercício do dever estatal de protecção de bens jurídicos que, atenta a urgência da situação, se mostrava circunstancialmente acometida a particulares.
Todavia, actualmente mostra-se pacífica a questão, considerando-se que a legítima defesa consistiu um verdadeiro direito do cidadão, dentro do circunstancialismo legal, para actuar em protecção de bens jurídicos próprios ou alheios, pese embora o exercício da legítima defesa como meio de autotutela seja subsidiário da actuação pública, apenas sendo legítima a actuação quando não seja possível recorrer aos meios estatais – assim, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-06-2001, proc. 02P854, rel. Simas Santos, e Miguez Garcia/Castela Rio, Código Penal … cit., 287.
No que respeita aos requisitos legais e como bem sintetiza a Relação do Porto em aresto de 11-12-2013, proc. 154/05.0GARSD, rel. Eduarda Lobo, consubstanciam pressupostos da exclusão da ilicitude mediante exercício do direito de legítima defesa a existência de “(i) a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, (ii) a atualidade da agressão, (iii) a ilicitude da agressão, (iv) a necessidade da defesa, (v) a necessidade do meio e (vi) o conhecimento da situação de legítima defesa – os três primeiros requisitos objetivos referem-se à situação em que o agente atua e os dois últimos à ação de defesa”.
Em lugar paralelo, sublinhando a necessidade da existência de uma intenção puramente defensiva, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em 18-06-2009, proc. 1248/07.2PAALM, rel. Fernando Fróis, são identificados como “pressupostos da legítima defesa: a actuação em defesa de uma agressão e o elemento subjectivo a que a doutrina dá o nome de animus defendendi (a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima). São requisitos da agressão: a ilegalidade (no sentido de o seu autor não ter o direito de a praticar, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou de se tratar de um inimputável), a actualidade (no sentido de se estar a realizar, em desenvolvimento ou iminente; a agressão inicia-se – já é actual – quando, colocando-nos numa perspectiva jurídico-penal, a pudermos considerar como acto de execução de uma determinada tentativa) e a falta de provocação; e requisitos da defesa: a impossibilidade de recurso à força pública, a necessidade e a racionalidade do meio”, sendo certo que a necessidade de defesa deverá ser apurada objectivamente e ex ante, na perspectiva de um terceiro prudente colocado na situação do arguido.
Densificando os conceitos associados, entende-se existir uma agressão quando um determinado acto consubstancie uma ofensa a um bem jurídico, seja através da violação do mesmo ou da geração de um dano. A existência de uma agressão pressupõe, necessariamente, a ameaça directa e imediata de interesses juridicamente protegidos - Miguez Garcia/Castela Rio, Código Penal … cit., 289.
Não obstante, não implica a lei que o acto lesivo esteja em curso, tanto actual é a agressão em curso como aquela que se mostre iminente, devendo o juízo de proximidade da agressão ser apreciado de acordo com as circunstâncias oferecidas pelo caso - Vítor Sá Pereira/Alexandre Lafayette, Código …cit., 162.
No que respeita ao objecto da defesa, ou seja, aos bens e interesses juridicamente protegidos, refere Cavaleiro Ferreira, Direito … cit., 178, que “o objecto da legítima defesa são quaisquer interesses juridicamente protegidos, sem diferenciação entre bens jurídicos mais importantes e menos importantes, protegidos por tutela penal, isto é, crimes, ou pela ordem jurídica em geral.”
A defesa deve ser ainda dirigida a um acto contrário ao Direito, ou seja, que se encontre maculado pela ilicitude porquanto o acto relativamente ao qual o agente se defende deve revelar-se ofensivo do ordenamento jurídico se apreciado no seu todo, não sendo legítimo ao agente reagir contra um acto que tenha sido praticado de acordo com o ordenamento jurídico vigente e que não apresente um carácter antijurídico.
Noutra via, a actuação deve também mostrar-se duplamente necessária, ou seja, deve mostrar-se necessária a repelir a agressão perpetrada bem como deve o meio empregue revelar-se necessário à prossecução da defesa desse bem jurídico.
Conforme referem Vítor Sá Pereira/Alexandre Lafayette, Código …cit., 162, “a necessidade analisa-se objectivamente e por via de juízo ex ante. À luz de noção normal do como da conduta que adoptaria, in casu, um homem prudente, médio ou comum, colocado na posição do agredido”, devendo a acção ser idónea para a defesa do agente bem como constituir o meio menos prejudicial para a pessoa do agressor, atenta a intensidade da agressão bem como dos meios disponíveis para se defender.
O agente, ao actuar em legítima defesa, encontra-se autorizado pelo ordenamento jurídico a empregar exclusivamente os meios necessários mas que se mostrem eficazes a fazer cessar a ameaça, sem que lhe seja permitido provocar danos superiores aos necessários nem que renuncie ao direito de se defender.
Por fim, deve o agente actuar consciente que o faz ao abrigo do referido comando jurídico.
Recorde-se ainda que caso se constate pelo carácter excessivo dos meios empregados – desde que se verifiquem os demais pressupostos, o facto será considerado ilícito, tornando-se a pena susceptível de atenuação especial, salvo se se demonstrar que o agente actuou em resultado de perturbação, medo ou susto que não seja censurável – artigo 33º, nº1 e 2 do Código Penal.
Neste particular, conforme se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-12-2016, proc. 496/13.0GDPTM, rel. Martinho Cardoso, “há excesso de legítima defesa asténico quando o defendente se excede na acção de defesa devido a perturbação, susto ou medo não censuráveis causado pela agressão. Há excesso de legítima esténico, quando o defendente se excede devido a ira, rancor, retaliação ou vingança, em função das quais o defendente ultrapassa a medida da necessidade do meio de defesa, levando-o a um excesso de meios de defesa”, sendo que tais modos de actuação distintos determinam tratamentos jurídicos diversos, sendo que o primeiro elimina a culpa do agente e o segundo se mostra susceptível, em exclusivo, de diminuir o juízo de censurabilidade da conduta.
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Por fim, porquanto relevante, estabelece o artigo 35º do Código Penal que “age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente”.
Conforme ensina Germano Marques da Silva, Direito Penal Português – Teoria do Crime, 2ª, UCP Ed., 279 ss, “no estado de necessidade desculpante, admite-se que o bem protegido seja de valor igual ou menor ao valor do bem jurídico sacrificado pelo comportamento do agente, não se tratando, por isso, de ponderação dos bens em confronto, mas a lei considera que embora a conduta do agente seja ilícita, não lhe é razoavelmente exigível outro comportamento em face das circunstâncias concretas, não merece censura”.
Conforme se mostra sedimentado na jurisprudência portuguesa, “no estado de necessidade desculpante, previsto no art. 35º, § 1º do Código Penal, a culpa é excluída porque o agente pratica um facto ilícito, facto que, todavia, é considerado indispensável para afastar um perigo atual e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro e não for razoável exigir-lhe, no caso concreto, outro comportamento. O afastamento da punibilidade fica, assim, a dever-se a considerações retiradas das circunstâncias concretas do facto e do seu agente, que fazem que no caso não seja razoável exigir dele outro comportamento. O estado de necessidade desculpante pode reconduzir-se, assim, ao princípio da inexigibilidade de um comportamento ajustado à norma” - acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 08-02-2022, proc. 10/19.3GBMMN, rel. Laura Goulart Maurício.
Consubstanciam pressupostos do estado de necessidade desculpante (seguindo-se de perto Germano Marques da Silva, Direito penal português, ob. cit):
a) A existência de uma situação de perigo actual não removível doutro modo;
b) Ameaça da vida, integridade física, honra ou liberdade do agente ou terceiro;
c) Inexigibilidade de outra conduta;
d) Que o agente actue com o fim de salvação do bem ameaçado.
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Revertendo à situação em concreto, inexistem dúvidas que o arguido, com a sua conduta, agiu finalística e naturalisticamente destinado a retirar a vida a F, o que logrou conseguir através da geração de lesões meningencefálicas através do sabre, na cabeça do mesmo, as quais se mostraram causa directa e necessária da morte daquele, morte essa gerada causalmente pelo agir do arguido.
Donde, dúvidas inexistem acerca do preenchimento do tipo objectivo de homicídio, na fórmula simples, na medida em que a morte de F foi desejada pelo arguido, expressada nos factos que praticou.
Diverge o Tribunal do preenchimento do tipo de ilícito na forma qualificada porquanto não resultou demonstrado, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido tenha empregado tortura ou um acto de especial crueldade para aumentar o sofrimento da vítima. O acto de matar transporta, inexoravelmente, sofrimento, nem que seja pela circunstância do destinatário ser confrontado com a iminente cessação da sua vida, com o termo da sua existência enquanto ser único e irrepetível. Tirar a vida a uma pessoa implica, tendencialmente, a geração de dor, a qual se apresentará nos casos em que o visado se mostre num estado de consciência que permita percepcioná-lo porquanto a dor consiste, no fundo, num sinal de alerta do corpo humano destinado a avisá-lo da ocorrência de um determinado acto que o está a lesar.
Ora, ainda que as imagens do cadáver sejam visualmente impressivas pelo esfacelamento gerado no hábito externo, naquele contexto de actuação não se poderá concluir que o arguido agiu de modo especialmente censurável.
O arguido empregou um sabre para matar F.
O meio empregue, pela sua conformação, mostra-se apto a determinar lesões cortantes, profundas e potencialmente letais naquele que seja visado pelo mesmo. Contudo, a utilização daquele meio – que foi o meio, recorde-se, adequado a repelir F depois da lesão do corpo do arguido -, não se mostra especialmente censurável, num tipo de culpa acrescido, na medida em que consubstancia consequência necessária do objecto contundente selecionado, cuja selecção não assentou na ideia de procurar causar especial sofrimento em F (na medida em que a escolha do sabre de maiores dimensões se apresenta perfeitamente racional na medida em que quanto maior fosse o sabre, maior seria a distância entre o arguido e F).
Tudo visto e ponderado, sempre seria de não pronunciar o arguido pelo ilícito de que se encontra acusado, na forma qualificada, permanecendo o preenchimento do tipo objectivo de ilícito de homicídio, na forma simples.
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Todavia, vistas as circunstâncias do caso, não se mostra possível a formulação de um juízo de censura ao arguido, entendendo este Tribunal que o mesmo actuou ao abrigo de uma causa de exclusão da culpa, no caso, em estado de necessidade desculpante.
Da factualidade indiciariamente demonstrada resulta patenteado que o arguido foi lesado no seu corpo por F, o qual ingressou na sua propriedade de madrugada, de modo inesperado e encontrando-se acometido por um estado de perturbação da capacidade de percepcionar a realidade, acreditando na existência de entidades místicas e demoníacas, entendendo que lhe cabia a si colocar termo à maldade que as mesmas transportavam.
O contexto em que o arguido e F se conheceram – na madrugada do dia 30-08-2023 -, consubstancia um circunstancialismo apto a gerar, no arguido, uma perturbação emocional significativa, não sabendo o que lhe poderia acontecer após ter visto a sua integridade física colocada em perigo.
Paralelamente, F mostrou-se temerário na preservação da sua integridade física, perante a exibição do sabre, ao dizer “achas que eu tenho medo da tua espadinha”, aludindo frequentemente à morte do arguido pese embora este o tenha convidado a ir-se embora, o que nunca fez.
F, com o seu comportamento, mostrou-se igualmente violento contra objectos, tal como houvera sucedido aquando do internamento hospitalar, facto a que o arguido foi, também, exposto.
Donde, é patente que o arguido se encontrava numa situação de perigo actual e iminente, não sendo possível pulverizar a dinâmica apurada em microcosmos desgarrados entre si.
Resultou igualmente demonstrado que o arguido se encontrava numa situação de conflito interior, na medida em que a pessoa que o agredira, inesperadamente e no interior da sua propriedade, se encontrava visivelmente transtornado, na posse de uma faca, sendo certo que o arguido aguardava a chegada de E.
Poder-se-á concluir que, na verdade, o arguido se encontrava perante uma situação de conflito interior, na medida em que tinha perfeita noção que a sua fuga implicaria, muito provavelmente, a colocação da vida ou integridade física daquela em perigo.
Ainda que sejam louváveis os raciocínios alternativos (em tese, o arguido poder-se-ia ter trancado em casa em telefonado a E para que não viesse até à Quinta Alada), a verdade é que resulta das regras de experiência comum que a adrenalina e a percepção de perigo não se apresentam como boas conselheiras no momento de decisão, impondo-se ponderar o agir do arguido naquele concreto contexto, procurando-se, num juízo de prognose póstuma, perceber o que faria uma pessoa comum colocada exactamente no mesmo contexto.
O arguido não previu aquele cenário, foi colocado perante o mesmo e foi forçado a actuar sob pena de sucumbir ou, fugindo, entregar outrem à sua sorte, numa situação idêntica à do exemplo de escola da tábua de Carnéades.
Donde, a decisão de controlar F à distância, enquanto fonte de perigo, apresenta-se como um raciocínio razoável, especialmente se se levar em consideração o sucesso inicialmente havido no controlo daquele através de meios menos lesivos.
Acresce ao que anteriormente ficou dito que o arguido procurou, incessantemente, o auxílio das autoridades, estabelecendo contacto com a Guarda Nacional Republicana e com a linha 112, sendo certo que as respostas que foi obtendo não se apresentam também como um elemento pacificador ou indutor de segurança de espírito, especialmente tendo em consideração a passagem do tempo e o agudizar da refrega.
Por fim, saliente-se que a imagem de F com que o arguido foi confrontado – desgrenhado, com olhar arregalado, apresentando um discurso desconexo, de teor místico – também consubstancia um elemento indutor de medo e receio pela sua vida e integridade física na medida em que apresenta prudente inferir que o arguido se foi capacitando que se encontrava a lidar com uma pessoa que se encontrava a funcionar de modo divergente da norma, sendo, por isso, imprevisível.
Nem se diga que a morte de F foi excessiva, podendo o arguido utilizar meios menos lesivos. Como, se F já houvera sido confrontado com a dor provada pelo sabre e, ainda assim, prosseguiu nos termos descritos? O arguido tentou preservar a vida daquele, instando-o a afastar-se, colocando-o à distância do sabre, mas tal agir não se mostrou adequado a demover aquele.
Dito isto, impõe-se concluir que ao arguido, naquele contexto vivencial e tendo por base os pressupostos acima expostos, que se encontrava numa situação de perigo actual que não se apresentava, em concreto, removível doutro modo (o que foi tentado), que a ameaçava a sua vida, não lhe sendo exigível, naquele concreto contexto, a prática de qualquer outra conduta destinada a salvar a sua própria vida, o que logrou conseguir através do sacrifício do malogrado F.
Entre morrer e matar (sendo certo que não se apurou se o arguido tinha efectiva noção que F já não transportava a faca consigo), o arguido optou pela salvaguarda da sua vida em termos que excluem a culpa dos factos que dolosamente praticou, considerando, por isso, este Tribunal que o mesmo actuou ao abrigo de uma causa de exclusão da culpa, em concreto, ao abrigo de um estado de necessidade desculpante, previsto pelo artigo 35º, nº 1 do Código Penal.
Consubstanciando a culpa um pressuposto elementar do sancionamento criminal e não sendo possível, no caso, formular ao arguido um juízo de censura em face da conduta havida, inexistindo factualidade suficientemente indiciada apta ao preenchimento do crime imputado ao arguido (ou a qualquer outro) pela acusação pública, consequentemente, não se mostrando recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e, por isso, não sendo provável a condenação do arguido caso viesse a ser submetido a julgamento, impõe-se, sem mais, proferir despacho de não pronúncia do arguido P pelos factos e prática do crime imputado – artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal.
*
Extinguindo-se a instância penal mediante proferimento de despacho de não pronúncia impõe-se declarar, igualmente, a extinção da instância civil quanto aos pedidos de indemnização civil deduzidos pelo assistente A, por C e AT, por impossibilidade superveniente da lide enxertada na acção penal – artigo 277º, al. e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal.
*
Em face da prolação do despacho de não pronúncia, declaram-se imediatamente extintas todas as medidas de coacção, mormente a prisão preventiva – artigo 214º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal -, determinando, de imediato, a emissão de mandados de libertação.
Comunique ao TEP e ao EP, para libertação imediata.
*
Não há lugar ao pagamento de custas processuais – artigo 522º do Código de Processo Penal, impondo-se, no caso, a interpretação restritiva do artigo 515º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, dada a dependência da acusação perante a acusação pública.
***
VII. DECISÃO
Face ao exposto e ao abrigo do disposto no artigo 308º, nº 1, primeira parte, do Código de Processo Penal, decide o Tribunal:
a. Não pronunciar o arguido P pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº1 e 2, al. d) do Código Penal e 86º, nº3 da Lei n.º 5/2006.
b. Declarar extinta a instância civil por impossibilidade superveniente da lide, com fundamento na extinção da instância penal;
c. Declarar imediatamente extintas as medidas de coacção aplicadas ao arguido P – artigo 214º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal -, mormente a prisão preventiva, mais se determinando a sua libertação imediata.
(…)


II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.

Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que as questões suscitadas se resumem:

Recursos do Ministério Público e do Assistente:
- Deficiente apreciação dos indícios constantes dos autos, considerados como não suficientemente indiciados e, que deverão ser integrados nos suficientemente indiciados e pronunciar o arguido P pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº 1 e nº 2, alínea d) do Código Penal e artigo 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006 e mantida da medida de coacção a que o mesmo estava sujeito.

Recurso do Assistente:
- Nulidade da decisão instrutória, por omissão de pronúncia sobre a prestação de caução económica pelo arguido nos termos do disposto no artigo 227º, nº 3, do Código de Processo Penal.
- Nulidade da decisão instrutória por ter modificado a qualificação jurídica dos factos constante do despacho da acusação e do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, sem que o Tribunal, previamente à prolação da decisão instrutória, desse cumprimento ao disposto no nº 5 do artigo 303º do Código de Processo Penal.
- Da pronúncia do arguido pela prática em concurso efectivo, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, relativo à posse ilegal de armas brancas.

Apreciando e decidindo:

Para facilidade de compreensão e de utilização cumpre afirmar a discordância de ambos recorrentes é relativamente à qualificação jurídica dos factos indiciados e da eventual indiciação de uma causa de desculpa nos termos do disposto no artigo 35º do Código Penal e da manutenção da medida de coacção. (recurso do Ministério Público e do assistente A)
“Revertendo à situação em concreto, inexistem dúvidas que o arguido, com a sua conduta, agiu finalística e naturalisticamente destinado a retirar a vida a F, o que logrou conseguir através da geração de lesões meningencefálicas através do sabre, na cabeça do mesmo, as quais se mostraram causa directa e necessária da morte daquele, morte essa gerada causalmente pelo agir do arguido.
Donde, dúvidas inexistem acerca do preenchimento do tipo objectivo de homicídio, na fórmula simples, na medida em que a morte de F foi desejada pelo arguido, expressada nos factos que praticou.
Diverge o Tribunal do preenchimento do tipo de ilícito na forma qualificada porquanto não resultou demonstrado, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido tenha empregado tortura ou um acto de especial crueldade para aumentar o sofrimento da vítima. O acto de matar transporta, inexoravelmente, sofrimento, nem que seja pela circunstância do destinatário ser confrontado com a iminente cessação da sua vida, com o termo da sua existência enquanto ser único e irrepetível. Tirar a vida a uma pessoa implica, tendencialmente, a geração de dor, a qual se apresentará nos casos em que o visado se mostre num estado de consciência que permita percepcioná-lo porquanto a dor consiste, no fundo, num sinal de alerta do corpo humano destinado a avisá-lo da ocorrência de um determinado acto que o está a lesar.
Ora, ainda que as imagens do cadáver sejam visualmente impressivas pelo esfacelamento gerado no hábito externo, naquele contexto de actuação não se poderá concluir que o arguido agiu de modo especialmente censurável.
O arguido empregou um sabre para matar F.
O meio empregue, pela sua conformação, mostra-se apto a determinar lesões cortantes, profundas e potencialmente letais naquele que seja visado pelo mesmo. Contudo, a utilização daquele meio – que foi o meio, recorde-se, adequado a repelir F depois da lesão do corpo do arguido -, não se mostra especialmente censurável, num tipo de culpa acrescido, na medida em que consubstancia consequência necessária do objecto contundente selecionado, cuja selecção não assentou na ideia de procurar causar especial sofrimento em F (na medida em que a escolha do sabre de maiores dimensões se apresenta perfeitamente racional na medida em que quanto maior fosse o sabre, maior seria a distância entre o arguido e F).
Tudo visto e ponderado, sempre seria de não pronunciar o arguido pelo ilícito de que se encontra acusado, na forma qualificada, permanecendo o preenchimento do tipo objectivo de ilícito de homicídio, na forma simples.
*
Todavia, vistas as circunstâncias do caso, não se mostra possível a formulação de um juízo de censura ao arguido, entendendo este Tribunal que o mesmo actuou ao abrigo de uma causa de exclusão da culpa, no caso, em estado de necessidade desculpante.
Da factualidade indiciariamente demonstrada resulta patenteado que o arguido foi lesado no seu corpo por F, o qual ingressou na sua propriedade de madrugada, de modo inesperado e encontrando-se acometido por um estado de perturbação da capacidade de percepcionar a realidade, acreditando na existência de entidades místicas e demoníacas, entendendo que lhe cabia a si colocar termo à maldade que as mesmas transportavam.
O contexto em que o arguido e F se conheceram – na madrugada do dia 30-08-2023 -, consubstancia um circunstancialismo apto a gerar, no arguido, uma perturbação emocional significativa, não sabendo o que lhe poderia acontecer após ter visto a sua integridade física colocada em perigo.
Paralelamente, F mostrou-se temerário na preservação da sua integridade física, perante a exibição do sabre, ao dizer “achas que eu tenho medo da tua espadinha”, aludindo frequentemente à morte do arguido pese embora este o tenha convidado a ir-se embora, o que nunca fez.
F, com o seu comportamento, mostrou-se igualmente violento contra objectos, tal como houvera sucedido aquando do internamento hospitalar, facto a que o arguido foi, também, exposto.
Donde, é patente que o arguido se encontrava numa situação de perigo actual e iminente, não sendo possível pulverizar a dinâmica apurada em microcosmos desgarrados entre si.
Resultou igualmente demonstrado que o arguido se encontrava numa situação de conflito interior, na medida em que a pessoa que o agredira, inesperadamente e no interior da sua propriedade, se encontrava visivelmente transtornado, na posse de uma faca, sendo certo que o arguido aguardava a chegada de E.
Poder-se-á concluir que, na verdade, o arguido se encontrava perante uma situação de conflito interior, na medida em que tinha perfeita noção que a sua fuga implicaria, muito provavelmente, a colocação da vida ou integridade física daquela em perigo.
Ainda que sejam louváveis os raciocínios alternativos (em tese, o arguido poder-se-ia ter trancado em casa em telefonado a E para que não viesse até à Quinta Alada), a verdade é que resulta das regras de experiência comum que a adrenalina e a percepção de perigo não se apresentam como boas conselheiras no momento de decisão, impondo-se ponderar o agir do arguido naquele concreto contexto, procurando-se, num juízo de prognose póstuma, perceber o que faria uma pessoa comum colocada exactamente no mesmo contexto.
O arguido não previu aquele cenário, foi colocado perante o mesmo e foi forçado a actuar sob pena de sucumbir ou, fugindo, entregar outrem à sua sorte, numa situação idêntica à do exemplo de escola da tábua de Carnéades.
Donde, a decisão de controlar F à distância, enquanto fonte de perigo, apresenta-se como um raciocínio razoável, especialmente se se levar em consideração o sucesso inicialmente havido no controlo daquele através de meios menos lesivos.
Acresce ao que anteriormente ficou dito que o arguido procurou, incessantemente, o auxílio das autoridades, estabelecendo contacto com a Guarda Nacional Republicana e com a linha 112, sendo certo que as respostas que foi obtendo não se apresentam também como um elemento pacificador ou indutor de segurança de espírito, especialmente tendo em consideração a passagem do tempo e o agudizar da refrega.
Por fim, saliente-se que a imagem de F com que o arguido foi confrontado – desgrenhado, com olhar arregalado, apresentando um discurso desconexo, de teor místico – também consubstancia um elemento indutor de medo e receio pela sua vida e integridade física na medida em que apresenta prudente inferir que o arguido se foi capacitando que se encontrava a lidar com uma pessoa que se encontrava a funcionar de modo divergente da norma, sendo, por isso, imprevisível.
Nem se diga que a morte de F foi excessiva, podendo o arguido utilizar meios menos lesivos. Como, se F já houvera sido confrontado com a dor provada pelo sabre e, ainda assim, prosseguiu nos termos descritos? O arguido tentou preservar a vida daquele, instando-o a afastar-se, colocando-o à distância do sabre, mas tal agir não se mostrou adequado a demover aquele.
Dito isto, impõe-se concluir que ao arguido, naquele contexto vivencial e tendo por base os pressupostos acima expostos, que se encontrava numa situação de perigo actual que não se apresentava, em concreto, removível doutro modo (o que foi tentado), que a ameaçava a sua vida, não lhe sendo exigível, naquele concreto contexto, a prática de qualquer outra conduta destinada a salvar a sua própria vida, o que logrou conseguir através do sacrifício do malogrado F.
Entre morrer e matar (sendo certo que não se apurou se o arguido tinha efectiva noção que F já não transportava a faca consigo), o arguido optou pela salvaguarda da sua vida em termos que excluem a culpa dos factos que dolosamente praticou, considerando, por isso, este Tribunal que o mesmo actuou ao abrigo de uma causa de exclusão da culpa, em concreto, ao abrigo de um estado de necessidade desculpante, previsto pelo artigo 35º, nº 1 do Código Penal.
Consubstanciando a culpa um pressuposto elementar do sancionamento criminal e não sendo possível, no caso, formular ao arguido um juízo de censura em face da conduta havida, inexistindo factualidade suficientemente indiciada apta ao preenchimento do crime imputado ao arguido (ou a qualquer outro) pela acusação pública, consequentemente, não se mostrando recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e, por isso, não sendo provável a condenação do arguido caso viesse a ser submetido a julgamento, impõe-se, sem mais, proferir despacho de não pronúncia do arguido P pelos factos e prática do crime imputado – artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal.

É este conjunto de factos constantes da acusação, que no despacho de não pronúncia foram considerados como não suficientemente indiciados e, que os recorrentes consideram estarem fortemente indiciados e determinarem a pronúncia do arguido P pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº 1 e nº 2, alínea d) do Código Penal e artigo 86º, nº3 da Lei nº 5/2006 e a manutenção da medida de coacção a que o mesmo se encontrava sujeito.
Com efeito, nas fases de Inquérito e Instrução não existe, propriamente, prova, mas sim indícios probatórios (ou prova indiciária) e, esta, embora permitindo a sujeição a julgamento do agente ou agentes, não constitui prova, no sentido rigoroso do conceito.
Ora, no presente recurso da decisão instrutória de não pronúncia do que se trata é precisamente de sindicar o juízo sobre os indícios constantes dos autos efectuado pelo juiz de instrução, ou seja, de julgar o texto em confronto com/ou em conjunto com todos os indícios recolhidos na fase instrutória do processo (em sentido amplo de inquérito e instrução). Nomeadamente relativamente aos factos considerados como não indiciados:
A. Que em 37), tenha sido o arguido a aproximar-se de F.
B. Que em 37) a 39) tenha ocorrido após a realização da chamada referida em 40.
C. Que em 39), após ter decepado a mão de F, o arguido tenha continuado, com o sabre que empunhava, a desferir golpes no corpo e na cabeça de F até este cair inanimado e sem sinais aparentes de vida.
D. Que em 41, xiv), a conduta do arguido tenha gerado na mão esquerda de F, cortes profundos de defesa, com ferimento corto perfurante da palma da mão, em toda a área metacarpo falângica, desde o segundo ao quinto dedo e de ferida corto perfurante na interfalange distal do segundo dedo.
E. Que as lesões referidas em 41), i), iii) a xix) e xxii) a xxiv) tenham sido causa directa e necessária da morte de F.
F. Que em 43) o arguido tenha agido fria, crua e persistentemente, com o propósito de também provocar sofrimento físico e psíquico enquanto lhe provocava a morte.
G. Que o arguido tenha agido sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.
*
Inexiste prova indiciária de A) na medida em que não se logra extrair, para além de qualquer dúvida, que tenha sido o arguido a aproximar-se de F, sendo igualmente possível que tenha ocorrido a realidade diversa. Donde, ainda que se apure que se aproximaram, não se considera indiciariamente demonstrado de quem partiu tal iniciativa.
Não resultou indiciariamente demonstrado o facto B) na medida em que escapa às regras de experiência e de normalidade, bem assim como à modificação comportamental plasmada na gravação da chamada efectuada para o 112 a essa hora, que o arguido tenha telefonado para a assistência médica e, após decidido investir sobre o arguido (ofendido) para o matar. Dessa chamada não resulta, contrariamente às anteriores, a captação da voz daquele e, ainda, o arguido apresentava ânimo diverso, ânimo expressado no tom de voz utilizado e na circunstância de aludir à existência de uma pessoa a esvair-se em sangue.
De igual modo, não existe prova indiciária da ordem ou sequência das lesões causadas pelo arguido com o sabre em F, não havendo qualquer indício que permita declarar, para além de qualquer dúvida, que as lesões subsequentes, na cabeça, tenham sido causadas posteriormente ao corte da mão pelo pulso, com o escopo de, aproveitando a maior fragilidade de F, determinar a sua morte.
O facto D) resultou não provado porquanto resultou demonstrada realidade diversa, a saber, que o corte na mão esquerda de F foi determinada pela circunstância do mesmo ter retirado o sabre que espetou no seu corpo, segurando-o no gume. Donde, tendo sido F a gerar esse dano na sua pessoa, não se pode concluir que foi igualmente o arguido a causar-lhe tais danos.
Assim, julga-se indiciariamente não demonstrada tal factualidade.
Inexiste a demonstração cabal, nos autos, da relação das lesões referidas no facto E) e a morte directa e necessária de F. Reiterando o que se escreveu, o relatório de autópsia é peremptório na atribuição da causa do óbito, não havendo qualquer meio de prova que possibilite a imputação de todas as lesões como causa de morte de F na medida em que esta ocorreu em função do golpe aplicado na cabeça e que o feriu na massa cefálica.
O facto F) resultou não provado na falta de prova objectiva quanto ao modo como o arguido se determinou na prática da factualidade, mormente que tenha planeado e conduzido F até à sua morte mediante recurso a uma morte particularmente dolorosa, prolongada no tempo e destinada a causar-lhe especial sofrimento físico, psíquico e medo. O que se apurou indiciariamente passa pela geração do resultado morte num contexto ocasional, com uma agressão prévia ao desfecho alcançado. Donde, assumindo carácter conclusivo sem que exista a demonstração de factos objectivos em que se possam ancorar, julga-se insuficientemente indiciado o facto F).
O facto G) resultou não provado tendo em consideração o contexto da prática dos factos objectivos apurados, conforme transversalmente discutido ao longo da presente decisão, tendo em consideração, desde logo, a prévia agressão de que foi alvo o arguido, a incapacidade demonstrada pelo sabre para travar o arguido e, ainda, a demora das autoridades acorrerem ao local, numa manifestação de inexigibilidade de comportamento diverso.

Quem leia a decisão recorrida poderá assacar-lhe alguma subjetividade na apreciação dos indícios comprovadamente existentes, o que poderá conduzir à existência de uma desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a dos recorrentes e que estes reclamam.
Os indícios analisados na decisão recorrida revelam claramente um sentido subjectivo da interpretação dos indícios inequivocamente existentes e não um juízo objectivo sobre os mesmos indícios.
Cumpre salientar que as provas existentes nos autos são essencialmente as declarações do arguido, que nos diversos interrogatórios a que foi sujeito, sempre foi dando versões complementares, susceptíveis de terem de ser analisadas com algum cuidado, relativamente à sua credibilidade.
Nomeadamente, as circunstâncias relativas ao estado pessoal do arguido, se estava numa situação de conflito interior efectivo (medo), o que foi analisada e ponderado neste Tribunal da Relação (por seis Juízes Desembargadores) que de forma inequívoca, concluíram que tal não era configurável com os comportamentos objectivos do arguido, nomeadamente, não se ter resguardado no interior da habitação, como naturalmente faria se a vítima estivesse armada com uma arma de fogo e não com uma faca com 12 centímetros de lâmina, circunstância muito importante para aferir do eventual estado do arguido, piloto de aviação civil, com capacidades pessoais especiais, para gerir estados de stress no transporte aéreo de centenas de pessoas, que perante uma (poder-se-á dizer) faquita com 12 cm de lâmina (4 dedos travessos) fique todo transtornado e amedrontado, que de imediato se vai munir de um sabre com uma lâmina com 72 cm, que tem no interior da sua residência, em circunstâncias e condições não apuradas, mas certamente sem fins decorativos, visto o fio cortante do mesmo expresso no cadáver da vítima.
E, posteriormente, vem-se colocar na porta da sua residência numa atitude não defensiva, mas de provocação de uma pessoa manifestamente transtornada, que o arguido já tinha conhecimento perante a interação havida entre os dois.
As declarações sobre a eventual presença da companheira e da funcionária E, não são compreensíveis pois o arguido estava munido de um telemóvel para contactar as mesmas e tinha um veículo automóvel, que poderia utilizar para interceptar as mesmas caso se dirigissem para a herdade.
Resulta inequívoco que o arguido decidiu permanecer na propriedade, na perseguição do ofendido, mesmo quando este estava visivelmente desarmado, pois tinha abandonado a faca de 12 cm de lâmina na casa-de-banho onde havia estado, impossibilitando por tal que o arguido se tenha de alguma forma sentido ameaçado com a mesma, pois visivelmente o ofendido já não possuía qualquer faca.
Igualmente, dos telefonemas efectuados pelo arguido, onde se ouve o ofendido a falar não se detecta uma atitude ofensiva do mesmo para com o arguido, pelo contrário apesar do seu estado mental, o mesmo apenas refere que não tem medo do arguido, que a espada não lhe faz mal e, que a guarda quando chegar o vai defender, não expressa uma atitude ofensiva para com o arguido.
Por outro lado, a atitude do arguido é sempre ofensiva, persegue o arguido pela propriedade, sempre armado, não se compadecendo com o manifesto estado mental do mesmo, não o deixando em paz e sossego, para ver se as coisas se acalmavam e não se agravavam, sabendo sempre o tempo médio que a GNR demoraria a chegar à propriedade e consequentemente, o tempo necessário para a situação se resolver, sendo certo que desde a referida interação entre ambos no quarto, nunca mais o ofendido tentou manifestamente agredir o arguido com a faca de 12 cm de lâmina, apenas com um tronco mais no intuito de afastar o arguido que para o ofender fisicamente.
Sendo certo que todo o entretanto ocorrido, desde o ofendido se ter espetado no sabre que o arguido empunhava, segundo as declarações do mesmo e, posteriormente se ter cortado na mão para se afastar do mesmo sabre, resultam apenas das declarações do arguido, não existindo qualquer outra prova.
Contudo, com todas estas lesões entretanto ocorridas no corpo da vítima, que sempre fariam com que o mesmo se encontrasse enfraquecido, sem possibilidades de ser objectivamente ofensivo para o arguido, de se encontrar objectivamente desarmado da faca com 12 cm de lâmina e com um estado mental carente de humanidade, pudesse de alguma forma ser encarado como uma ameaça à vida do arguido, que o mesmo não pudesse afastar de uma outra forma.
Como é amplamente ensinado pela Doutrina e Jurisprudência e decorre explicitamente do disposto no artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal, a instrução, como fase facultativa e preliminar do processo penal, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, comprovando-se judicialmente a decisão do M.P. no fecho do inquérito, seja de acusação ou de arquivamento.
Ao juiz de instrução incumbe realizar todas as diligências de prova tendentes a carrear para os autos os elementos necessários à formação de uma convicção séria e firme sobre a existência, ou não, em termos indiciários, de um qualquer crime.
Isto mesmo resulta do artigo 308º nº 1, do Código de Processo Penal, que refere “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
A noção de indícios suficientes está plasmada no artigo 283º, nº 2, do Código de Processo Penal - aplicável à decisão instrutória pela remissão do nº 2, do artigo 308º, do mesmo diploma legal - pelo qual se consideram aqueles que daí resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
Após a realização do debate instrutório, a instrução termina com a prolação de um despacho de pronúncia ou de não pronúncia, consoante o juiz entenda que existem, ou não, nos autos, indícios de facto e elementos de direito suficientes, que justifiquem a submissão do arguido a julgamento ou seja, quando os mesmos permitem concluir por uma maior probabilidade da sua condenação do que da sua absolvição.
Com efeito, nos termos do artigo 283º, nº 2, do Código de Processo Penal, a suficiência de indícios é cristalinamente definida como “… sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Nessa medida, se o juiz de instrução concluir que é maior a probabilidade da absolvição do arguido, então é porque os aludidos indícios não devem ser considerados suficientes, havendo lugar a despacho de não pronúncia.
Pelo contrário, se entender que a probabilidade maior é a da condenação do arguido, então tem o dever de o levar a julgamento, pronunciando-o pelos factos que entender estarem indiciados.
Suficientes serão os indícios, que apreciados na altura da instrução, permitem concluir que é mais provável a condenação que a absolvição, caso em que se justifica que o processo avance para julgamento, havendo assim lugar a uma decisão de pronúncia.
A lei apela, por isso, no juízo da suficiência dos indícios, a uma avaliação de probabilidade da condenação e absolvição, tendo presente os incómodos, pessoais, éticos e morais, que resultam, para qualquer indivíduo, de um julgamento, mesmo que dele venha a ser absolvido.
Neste sentido, veja-se Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal, págs. 38 e 39, onde aquele professor perfilha a tese segundo a qual na suficiência de indícios está contida “a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final” apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados “os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.
Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., pp. 179, diz que “para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido. Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa (...)”.
Também Figueiredo Dias, a este propósito, diz que existem indícios suficientes quando “a futura condenação do arguido, uma vez submetido a julgamento, seja mais provável do que a sua absolvição” - in Direito Processual Penal, 1974, pp. 133.
Neste caso concreto, para além da extrema gravidade de todo o ocorrido, dos indícios não resultam minimamente indiciadas as reais condições pessoais do arguido, na prática dos factos, (actuar com medo), apontando todos os indícios dos autos, no sentido totalmente oposto, de um aproveitamento das circunstâncias pelo próprio arguido, para provocar uma morte particularmente dolorosa, prolongada no tempo e destinada a causar especial sofrimento físico, psíquico e medo, bem sabendo do tempo que as autoridades demorariam a chegar e da inexistência de qualquer outra pessoa no local para além da própria vítima.
Entendeu o Mm. Juiz “a quo”, numa decisão complexa para expressar a sua leitura subjectiva dos indícios existentes, que os mesmos não eram suficientes da prática, pelo arguido, dos factos que lhe eram imputados.
Com o devido respeito, mal se entende tal decisão, tendo em conta a prova constante dos autos.
Na verdade, os factos em causa reportam-se a um crime de homicídio em circunstâncias muito específicas, sem testemunhas, em que o próprio juiz “a quo” considera suficientemente indiciados a essencialidade dos factos, mas que faz uma leitura dos indícios existentes de uma forma pessoal-subjectiva, que não tem uma completa adesão aos indícios constantes dos autos que objectivamente apontam em direcção oposta e, admitem decisão totalmente diversa, como resulta evidente das decisões já proferidas neste Tribunal da Relação relativamente, à apreciação da medida de coacção, e sem qualquer dúvida exigem ser objecto de julgamento por um Tribunal Colectivo e, não poderão ser arquivados sem mais.
No mais, todas as considerações explanadas no despacho recorrido, salvo melhor opinião, não têm aplicação no âmbito de um despacho de pronúncia, onde apenas se deve apurar da referenciada suficiência de indícios, o mesmo é dizer, longe ainda, da prova fora de qualquer dúvida razoável exigida em sede de julgamento.
Para uma decisão de pronúncia, a lei não exige a certeza da existência do crime, bastando-se com a mera existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, ainda que os mesmos devam ser suficientes, no sentido de, em julgamento – momento maior do processo penal – eles se puderem transformar em prova fora de qualquer dúvida razoável, assim levando a uma condenação ou não.
Ora, na situação “sub judice”, assentando a prova nas declarações do arguido e este ir ajeitando as suas declarações, traduzindo pouca credibilidade às mesmas, para se puder fundamentar uma convicção segura, não se vê razão para não pronunciar o arguido.
Assim, sem necessidade de complementares considerandos que a simplicidade da questão não demanda, a procedência dos recursos do Ministério Público e do assistente A, com a pronúncia do arguido P, pelos factos e crime que lhe são imputados na acusação deduzida pelo Ministério Público, sem prejuízo de, em sede de julgamento, se apurar, em concreto, se a sua conduta revela, ou não, a especial censurabilidade exigida pelo tipo agravado.

- Da nulidade da decisão instrutória, por omissão de pronúncia sobre a prestação de caução económica pelo arguido nos termos do disposto no artigo 227º, nº 3, do Código de Processo Penal. (recurso do assistente A)
Efectivamente, o despacho de não pronúncia não se pronunciou concretamente, pela fixação ou não, de caução económica ao arguido, porque considerou extinta a responsabilidade criminal do arguido e, consequentemente, prejudicado o requerido.
Os requisitos necessários para que seja determinada a prestação de caução económica por parte do arguido, nos termos do artigo 227º, nº 3 do Código de Processo Penal, são:
- A probabilidade de vir a existir um crédito sobre o arguido proveniente da actuação criminosa que lhe é imputada;
- E a existência de um fundado receio de que venham a faltar ou que sejam diminuídas as garantias patrimoniais do arguido aptas a assegurar a satisfação do respectivo crédito.
No presente caso, embora a pronúncia do arguido pela prática dos factos constantes da acusação, indiciarem a probabilidade de o mesmo ser condenado no pedido civil deduzido pelo assistente, contudo dos autos não resulta qualquer indício da verificação de um concreto fundado receio que sejam diminuídas ou venham a faltar as garantias patrimoniais do arguido.
Ou seja, dos autos não resulta qualquer facto concreto, que indicie que o arguido tenha praticado ou se prepare para praticar qualquer acto com vista à dissipação ou diminuição do seu património, para incumprir as responsabilidades económicas que para si resultem dos presentes autos
Por não se verificar concretamente tal receio, não se verificam os requisitos necessários para a fixação uma caução económica, nos termos do artigo 227º, nº 3, do Código de Processo Penal, improcedendo o recurso do assistente A.

- Da nulidade da decisão instrutória por ter modificado a qualificação jurídica dos factos constante do despacho da acusação e do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, sem que o Tribunal, previamente à prolação da decisão instrutória, desse cumprimento ao disposto no nº 5 do artigo 303º do Código de Processo Penal. (recurso do assistente Adelino Fanico)
Face ao referido supra sobre a manutenção da acusação pública proferida nos autos, apenas com a correcção dos lapsos indicados pelo Ministério Público, resulta que o conhecimento desta nulidade arguida pelo assistente A se encontra prejudicado.

- Da pronúncia do arguido pela prática em concurso efectivo, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, relativo à posse ilegal de armas brancas. (recurso do assistente Adelino Fanico)
Como é amplamente ensinado pela Doutrina e Jurisprudência e decorre explicitamente do disposto no artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal, a instrução, como fase facultativa e preliminar do processo penal, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, comprovando-se judicialmente a decisão do Ministério Público no fecho do inquérito, seja de acusação ou de arquivamento.
Face à estrutura acusatória do processo penal português, estipula o nº 4, do artigo 288º, do Código de Processo Penal, que o juiz não pode investigar autonomamente o caso submetido a instrução, estando vinculado factualmente aos elementos que lhe são trazidos no requerimento de abertura de instrução de forma a poder decidir sobre a justeza ou acerto da decisão de acusação ou arquivamento.
O requerimento de abertura da instrução constitui, assim, um elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução, a qual, sendo autónoma, como se disse, se terá de conter dentro do tema factual que lhe é proposto através daquele, podendo por isso dizer-se, garantidamente, que o requerimento de abertura de instrução delimita o “thema decidendum” dos autos, quer em relação à actividade jurisdicional, quer quanto ao pleno exercício do contraditório por parte do arguido, cuja tutela de defesa apenas se garante se ali estiverem concretizados, de forma clara, os factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime que lhe é imputado.
Nos termos do disposto no artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e, c), do nº 3, do artigo 283º”.
Como refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, págs. 140/141, na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (artigos 308º e, 309º).
Não há lugar a uma nova acusação, o requerimento do assistente actua como acusação e, assim, se respeita formal e materialmente a acusatoriedade do processo.
O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, que é a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo Ministério Público.
No mesmo sentido aliás, de forma quase esmagadora, vão inúmeras decisões judiciais dos tribunais de segunda instância.
O requerimento do assistente terá assim de se configurar, materialmente, como uma acusação alternativa, funcionalmente semelhante à que seria formulada pelo Ministério Público se tivesse decidido acusar, de onde constem os factos que considera indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório.
Caso porventura, o vício do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, seja a insuficiência de inquérito por não realização de diligências tidas como essenciais à descoberta da verdade, dever-se-á arguir a nulidade do inquérito, nos termos do disposto no artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal ou, requerer a intervenção hierárquica, nos termos do disposto no artigo 278º, do mesmo diploma legal.
Mas nunca poderá ser suprida a eventual insuficiência de inquérito, pela abertura da instrução, já que visa apenas os factos já constantes do inquérito pelos quais o Ministério Público, não deduziu acusação, artigo 287º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, ou seja, a instrução não constitui na sua essência uma fase investigatória, de recolha de prova, mas sim uma fase de comprovação da prova constante dos autos, no sentido da confirmação ou não, do despacho de acusação ou de arquivamento proferido pelo Ministério Público.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente A, relativamente à eventual prática de um crime de detenção de armas brancas proibidas previsto e punido pelo artigo 86º, nº3 da Lei nº 5/2006, de 23-02, não reúne as características exigidas pela conjugação dos artigos 283º, nº 1, alíneas b) e, c) e, 287º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, particularmente ao nível dos elementos objectivos e subjectivos do crime que pretende imputar ao arguido P.
Ora, a omissão de tais exigências deve conduzir à rejeição de tal requerimento, actuando-se assim similarmente com uma acusação deficiente, nos termos do artigo 311º, nº 2, alínea a) e, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
Por tudo se conclui que o requerimento do assistente A de abertura de instrução, não cumpre cabalmente as exigências legais dos artigos 283º, nº 3, alíneas b) e, c) e, 287º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, não permitindo a definição do objecto da instrução, o que consubstancia a inadmissibilidade legal desta fase processual e fundamenta a sua rejeição, nos termos do artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Tal não ofende, qualquer dos princípios essenciais de acesso à Justiça e da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20º, da Constituição da República Portuguesa.
Assim, pelo exposto decide-se julgar totalmente improcedente, nesta parte, o recurso interposto pelo assistente A, não se pronunciando o arguido P, pela prática de um crime de detenção de armas brancas proibidas previsto e punido pelo artigo 86º, nº3 da Lei nº 5/2006, de 23-02.
Todas as demais questões suscitadas pelos recursos interpostos, encontra-se o seu conhecimento prejudicado pelo despacho de pronúncia agora proferido ou, são relativas à concreta matéria de facto e não aos indícios existentes, razão pelo que os vícios da sentença constantes do artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, não são susceptíveis de apreciação, porque relativos a factos provados e não a factos indiciados.

Por outro lado, em consequência da revogação do despacho de não pronúncia e da sua substituição por despacho de pronúncia terá de ser dada sem efeito a revogação da medida de coacção de prisão preventiva.
Entretanto desde essa revogação até à presente data, nada de relevante consta dos autos que consubstancie uma alteração das circunstâncias – de facto ou de direto – que levaram a concluir/decidir desde o 1ª interrogatório judicial de arguido detido, que a prisão preventiva é a única medida de coação que se mostra idónea a prevenir os perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, em que se alicerçam as anteriores decisões de aplicação e manutenção de tal medida de coacção ao arguido e que levou ao afastamento da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, por não se revelar adequada e suficiente a satisfazer as exigências cautelares do caso e a prevenir os apontados perigos, que subsistem tal como foram definidos naquelas decisões, mantendo-se inalterados os pressupostos que justificaram a sua necessidade, adequação e proporcionalidade, decide-se pela manutenção da medida coativa de prisão preventiva anteriormente aplicada ao arguido.
Por se manterem inalterados todos os pressupostos anteriores ao despacho de não pronúncia, e, por tal, encontrarem-se verificados os indícios da prática pelo arguido de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal, e artigo 86º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, e a verificação, em concreto, nomeadamente o perigo evidenciado nos factos indiciados de fuga em razão da personalidade revelada pelo arguido e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas em razão da natureza e das circunstâncias do crime e, apenas a medida de coacção de prisão preventiva se mostrar como a única medida “apta a salvaguardar de forma suficiente os perigos verificados, sendo, por isso, necessária, bem como, igualmente, proporcional e adequada, em conformidade com os ditames constitucionais”, como resulta dos Acórdãos proferidos neste mesmo Tribunal da Relação sobre esta mesma situação concreta.
Esta decisão não viola os princípios ou quaisquer das normas constitucionais e legais, nomeadamente não viola o princípio da inocência, com consagração no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, pois que a presunção da inocência não colide com a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, desde que, se mostrem verificados os requisitos legais para a sua aplicação, previstos no artigo 204º e que sejam respeitados os princípios gerais da necessidade, adequação, proporcionalidade e da subsidiariedade ou excecionalidade da prisão preventiva, consagrados nos artigos 18º, 27º e 28º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, o que se verifica, no caso dos autos.
Pelo exposto determina-se que o arguido P aguarde os subsequentes termos processuais, em prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos, 191º, nº 1, 193º, 195º, 202º, 204º, nº 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal. (recurso do Ministério Público e do assistente A)


III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar procedente, o recurso interposto pelo Ministério Público e parcialmente procedente o recurso interposto pelo assistente A e, consequentemente, revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que pronuncie o arguido P pelos factos e crime constantes da acusação do Ministério Público, com a correcção dos lapsos óbvios constantes do ponto 12 do recurso do Ministério Público “eliminando das lesões resultantes do comportamento de P a [ferida corto-perfurante com dez centímetros de profundidade na região epigastro esquerda e os ferimentos corto-perfurantes na região metacarpo falângica desde o segundo até ao quinto dedo da mão esquerda]” e, acrescentando que “lesões traumáticas [meningo-encefálicas] que foram causa directa e necessária da morte (…)”.
- Determinar que o arguido P aguarde os subsequentes termos processuais, sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos 191º, nº 1, 193º, 195º, 202º, 204º, nº 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, emitindo-se, oportunamente, os competentes mandados de prisão.
Sem custas.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 11-03-2025
Fernando Pina
Beatriz Marques Borges
Maria José Cortes