INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DE ANOMALIA PSÍQUICA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS SUBJETIVOS DO CRIME
ABSOLVIÇÃO
Sumário

I - Na acusação deduzida contra inimputável por crimes de violência doméstica e de ofensa à integridade física simples, com vista à aplicação, por perigosidade, de uma medida de segurança, têm que ser descritos os factos integradores dos elementos intelectual e volitivo do dolo.
II - Os factos praticados pelo inimputável, para serem penalmente relevantes e poderem fundamentar a aplicação de uma medida de segurança de internamento, têm de ser típicos, englobando, pois, também o dolo (ou a negligência), na parte em que constituem elementos do tipo subjetivo de ilícito, ou seja, o dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo (ou então a negligência, enquanto violação do dever objetivo de cuidado).
III - O que o inimputável não pode, mas é coisa diferente, é ser sujeito a um juízo de censura pessoal pela prática do ilícito, uma vez que tal juízo tem por base a culpa do agente e a sua comprovação depende, aí sim, da capacidade de o mesmo valorar e/ou de se determinar (artigo 20º, nº 1, do Código Penal).
IV - Admitindo que existam situações em que a gravidade e a extensão da anomalia psíquica possam comprometer a capacidade de representação e a vontade da prática de um facto ilícito, mesmo em tais casos deverá o agente ser absolvido, precisamente por não estarem verificados os requisitos que fundamentam a aplicação de uma medida de segurança, nos termos do disposto no artigo 91º, nº 1, do Código Penal, nomeadamente os elementos subjetivos do tipo de ilícito (sendo certo que o legislador não deixou de prever e acautelar essas situações, por via de outros institutos, como o tratamento involuntário em internamento, no âmbito da Lei de Saúde Mental).

Texto Integral



Acordam, em conferência, na Secção Criminal (2.ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Juízo de Competência Genérica do Redondo, o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido R, com os demais sinais dos autos, imputando-lhe factos suscetíveis de configurar a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelos artigos 152.º, n.os 1, alínea d), 2, alínea a), 4, 5 e 6 do Código Penal, e de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, factos esses com base nos quais requereu que o arguido seja declarado inimputável, nos termos do artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal, e que lhe seja aplicada medida de segurança de internamento, ao abrigo do disposto no artigo 91.º, n.º 1 do mesmo Código.
O Ministério Público requereu ainda o arbitramento de compensação aos ofendidos C e J, ao que estes não se opuseram.
Realizada a audiência, procedeu-se à comunicação de alteração não substancial dos factos, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, nada tendo sido requerido pela defesa.
Após, a 1.ª instância proferiu sentença em que julgou a acusação improcedente por não provada e, em consequência, decidiu:
A) Absolver o arguido R da prática de factos qualificados como dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152.º, n.os 1, alínea d), 2, alínea a), 4, 5 e 6 do Código Penal;
B) Absolver o arguido R da prática de factos qualificados como um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.

2. Inconformado, o Ministério Público veio interpor recurso da sentença no qual formula, no termo da respetiva motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
“1. Nos presentes foi o arguido R acusado, como inimputável perigoso, de factos suscetíveis de configurar em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, dois crimes de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, alíneas d), n.º 2, alínea a) e n.ºs 4 a 6 do Código Penal e um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1 do Código Penal, requerendo-se a final, a aplicação ao arguido de uma medida de segurança.
2. Realizada a respetiva audiência veio o arguido a ser absolvido da prática da prática de factos qualificados como crime que lhe vinham imputados, porquanto o Tribunal a quo entendeu que a acusação pública foi omissa quanto aos factos respeitantes à atuação dolosa do arguido.
3. Entendeu igualmente que não podia o Tribunal a quo aditar os factos atinentes ao elemento subjetivo, em conformidade com jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 1/2015.
4. Com efeito, entendeu a sentença recorrida que, pese embora tenha resultado provado que o arguido não apresentava capacidade para avaliar a ilicitude dos factos que lhe foram imputados, à data da sua prática, e para se determinar de acordo com essa avaliação em virtude da anomalia psíquica de que padecia, tal não dispensava, a alegação e demonstração dos factos atinentes ao elemento subjetivo do tipo de ilícito.
5. Não perfilhamos, contudo, tal entendimento.
6. Com efeito, e salvo o devido respeito, entendemos que o Tribunal a quo procedeu a uma incorreta interpretação do artigo 283.º n.º 3 al. b) do CPP, ao exigir, de forma abstrata, a articulação do elemento subjetivo.
7. Tal preceito legal estabelece que a acusação contém sob pena de nulidade, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível o lugar, o tempo e a motivação da sua prática.
8. Na verdade, na acusação deduzida contra R foram devidamente descritos os elementos objetivos integradores dos crimes de violência doméstica agravada e ofensa à integridade física simples que lhe foram imputados.
9. Foi ainda descrito que o arguido sofre de Psicose Esquizofrénica, tendo a perícia psiquiátrica a que foi sujeito concluído pela sua perigosidade, atendendo ao quadro clínico em questão e na ausência de adesão a um tratamento psicofarmacológico eficaz aliada ao consumo diário de bebidas alcoólicas, encontrando-se, à data da prática dos factos ilícitos que lhe são imputados, incapaz avaliar a ilicitude dos mesmos e de se determinar de acordo com essa avaliação.
10. No final da acusação, foi, então, imputado ao arguido, conforme se referiu supra, a prática de factos qualificados como um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 al. d), n.º 2 al. a) e n.º 4 a 6 do Código Penal e um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.
11. Dispõe o artigo 20.º n.º 1 do Código Penal que “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz de, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.”
12. Segundo o disposto no artigo 91.º do Código Penal, quem for considerado inimputável nos termos do artigo 20.º do mesmo diploma, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.
13. Com efeito, os inimputáveis, quando perigosos, também podem ser agentes ativos de um ilícito criminoso, só que, em vez de lhes ser aplicada uma pena, ficam sujeitos a uma medida de segurança, cuja aplicação pressupõe a prévia dedução de acusação.
14. Pese embora essa acusação tenha que conter os elementos mencionados no artigo 283.º, nº 3, do Código de Processo Penal, não necessita, contudo, de abarcar a declaração expressa do elemento subjetivo do tipo, constituída pelo dolo, que compreende o elemento intelectual ou cognitivo, traduzido na consciência e entendimento da possibilidade de lesão do bem jurídico e o elemento volitivo, traduzido no querer para que se impunha ao arguido uma medida de segurança.
15. Desde logo, porquanto os artigos 20.º e 91.º do Código Penal a tal não obrigam.
16. Com efeito, em caso de inimputabilidade, existe uma perturbação que afeta a capacidade do agente de entender e de querer, impedindo-o de avaliar a ilicitude dos atos praticados no momento em que atua e se determinar de acordo com essa avaliação.
17. Esta incapacidade para avaliar a ilegalidade dos seus atos e entender o caráter ilícito do fato, retira-lhes o juízo de culpa, ou seja, o elemento intelectual do dolo.
18. O arguido não podia, assim, querer praticar um ato ilícito típico, porque não estava capaz de avaliar essa ilicitude e se determinar de acordo com tal avaliação.
19. E porque, na estrutura do dolo, o elemento intelectual antecede sempre o elemento volitivo, uma vez que apenas se pode querer aquilo que previamente se conheceu, estando ausente este elemento, estará necessariamente irradiado o elemento volitivo.
20. A exclusão do elemento volitivo, leva à exclusão da imputação dolosa, isto é, do dolo.
21. Ora, se o dolo está ausente em razão de perturbação psiquiátrica do arguido inimputável, não poderá ser descrito na acusação.
22. Não é, portanto, exigível que no despacho de acusação seja imputada a prática de factos a título de culpa (dolo), já que por força daquela doença o arguido não possuía capacidade de se determinar de acordo com a avaliação que realizou relativa a ilicitude da sua conduta.
23. Com efeito, para efeito de aplicação do disposto no artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal, entende-se que o facto ilícito típico aí mencionado integra apenas a conduta objetiva prevista no tipo legal de crime, não abrangendo os elementos subjetivos do mesmo, uma vez que a verificação destes depende da capacidade do agente ter culpa – o que pressupõe a sua imputabilidade e, por isso, afastaria a possibilidade de aplicação de medida de segurança à luz do aludido preceito legal.
24. Entendimento este também perfilhado por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, pág. 108, para quem “o facto praticado pelo inimputável supõe a existência do ilícito-típico e das causas adicionais de punibilidade, mas exclui os elementos do tipo subjectivo do ilícito e os elementos da culpa”.
25. Ora, encontrando-se devidamente descritos no despacho de acusação “os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma medida de segurança”, a saber: “o tempo, o lugar e a motivação da sua prática”, “o grau de participação que o arguido neles teve” e “as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” bem como “as disposições legais aplicáveis”, não se vislumbra que se verifique qualquer insuficiência do despacho de encerramento de inquérito.
26. Assim, e tendo-se provado, em julgamento, que os factos integradores dos elementos objetivos dos tipos legais dos crimes de violência doméstica agravado e de ofensa à integridade física simples foram cometidos pelo arguido por causa da sua anomalia psíquica (Psicose Esquizofrénica), deverá a decisão ora recorrida ser revogada, proferindo-se uma nova que condene o arguido pela prática dos aludidos crimes, devendo, em consequência, ser-lhe aplicada uma medida de segurança.
Nestes termos e pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra nos termos referidos supra, fazendo-se assim a costumada justiça”.

3. Admitido o recurso, não foi apresentada qualquer resposta.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º Código de Processo Penal (doravante, CPP), emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por outra a aplicar uma medida de segurança a R, nos termos do artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal, dada a prova dos elementos objetivos dos crimes imputados e a verificação da inimputabilidade e perigosidade do arguido.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.
6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre agora decidir.
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II – Fundamentação
Segundo dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do CPP, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar[1], sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[2].
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, são as seguintes as questões a decidir:
- Se os factos da acusação pública deduzida nos autos e, consequentemente, os factos levados a julgamento, sobre os quais o tribunal a quo tomou posição na sentença recorrida, considerando-os provados ou não provados, correspondem a todos os elementos necessários ao preenchimento dos ilícitos típicos imputados ao arguido R, em ordem à aplicação de medida de segurança de internamento, como inimputável, ao abrigo do disposto no artigo 91.º do Código Penal.
- Na afirmativa, o preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 91.º do Código Penal e a aplicação ao arguido da medida de segurança de internamento, como inimputável.
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2. A sentença recorrida.
2.1. Na sentença proferida pela 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
“1. O arguido R nasceu a (…..), e é filho dos ofendidos J, nascido em (….), e de C, nascida em (…..).
2. O arguido coabita com os seus pais e com a sua irmã, a ofendida E, na residência sita no (….), tendo-se ausentado dessa morada durante algumas temporadas para trabalhar num ginásio na zona da margem sul.
3. Contudo, este voltou a coabitar com os seus pais e a sua irmã na referida morada desde 15 de julho de 2023 a novembro de 2023 e desde 19 de fevereiro de 2024 até aos dias de hoje.
4. Em 2014 o arguido sofreu um surto psicótico, tendo sido diagnosticado com esquizofrenia paranoide, tendo nessa altura iniciado internamente compulsivo em regime de ambulatório.
5. Em 2017 e em 2020 o arguido sofreu novamente de surtos psicóticos, durante os quais não dormia nem comia e deambulava pela via pública despido e descalço.
6. O arguido apenas cumpria com os tratamentos durante uns meses e depois deixava de ir às consultas e de cumprir a terapêutica prescrita.
7. Nessas alturas, o arguido descompensa e mostra-se irritado com os seus pais, falando com tom de voz elevado para com estes.
8. Em datas não concretamente apuradas, mas no período entre 2017 e 2023, em mais do que uma ocasião e sempre que não tomava a medicação, o arguido, no interior da residência comum, apelidou C de “feia” e ”gorda”.
9. No período entre 2017 e 2023, sempre que se encontrou a residir com os ofendidos C e J, o arguido, quando contrariado, dirigiu-se aos mesmos em tom de voz elevada, dizendo-lhes “mentirosos” e “eu despacho-vos”, o que aconteceu um número não concretamente apurado de vezes, mas pelo menos seis vezes por semana.
10. A 09-06-2022, após a hora do almoço, no logradouro da residência comum, C recebeu uma chamada do Hospital Garcia de Horta, onde o arguido era acompanhado no âmbito de internamente compulsivo em regime de ambulatório, informando-a que o arguido não tinha tomado a medicação prescrita.
11. Como o arguido se apercebeu de tal chamada telefónica, abeirou-se da ofendida C, tirou-lhe o telemóvel da mão ao mesmo tempo que lhe gritou que não tinha nada que ver com aquele assunto, porque era um assunto seu.
12. De seguida a ofendida pediu ao arguido que lhe devolvesse o telemóvel, o que este fez.
13. Com medo de ficar sozinha na companhia do arguido, a ofendida telefonou ao ofendido J solicitando-lhe que voltasse para casa.
14. Volvidos 10 minutos, J chegou a casa, tendo-se abeirado do arguido que ainda estava no logradouro da habitação.
15. Porque J lhe disse que não devia ter ido a Lisboa gastar dinheiro em gasóleo e demais despesas de deslocação para ir ao hospital, o arguido, sem que nada o fizesse prever, realizou um movimento não concretamente apurado com o braço que atingiu o ofendido no peito, provocando-lhe dores.
16. De seguida, o arguido abeirou-se de C e, usando uma mão, agarrou o cabelo da mesma na zona superior da cabeça, mais exercendo força e puxando-o durante um período de tempo não concretamente apurado.
17. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, a ofendida C sentiu dores e sentiu-se triste.
18. Na sequência deste episódio, o arguido foi internado no Hospital Garcia de Horta em Lisboa, onde ficou de 09-06-2022 a 21-06-2022.
19. Contudo, após a alta hospitalar, o arguido voltou a coabitar com os seus pais e a sua irmã na referida morada.
20. Com efeito, a 06-09-2022, pelas 18:00 horas, na zona do corredor da residência comum, à entrada da cozinha, o arguido, sem que nada o fizesse prever dirigiu-se à sua irmã E e exercendo força, colocou uma mão no pescoço da mesma e apertou-o durante um período de tempo não concretamente apurado, provocando-lhe dores e tirando-lhe a respiração.
21. O arguido apenas cessou a sua conduta porque J se aproximou.
22. Nessa sequência e porque E disse que ia contactar as autoridades policiais, o arguido agarrou no telemóvel desta e saiu da residência com tal objeto nas mãos.
23. Chegado à estrada, no exterior da residência comum, o arguido atirou o telemóvel de E para o chão, partindo-o, tendo de seguida atirado o mesmo para um terreno ali existente.
24. De seguida, o arguido voltou a entrar na residência comum, abeirou-se de J e, usando força, desferiu-lhe um empurrão no corpo, projetando-o para o chão, onde este veio a cair, embatendo com as costas num degrau que ali se encontrava.
25. Como C foi ajudar o ofendido J a levantar-se do chão, o arguido, usando força, desferiu um soco na têmpora desta, provocando-lhe dores.
26. Em consequência direta da conduta do arguido, o ofendido J sofreu dores nas zonas corporais atingidas e um traumatismo crânio encefálico e dorsal, um hematoma no lábio inferior e uma escoriação lombar.
27. Tais lesões determinaram-lhe 8 dias para a cura, sem alteração da capacidade de trabalho.
28. Em consequência direta da conduta do arguido, a ofendida C sofreu dores nas zonas corporais atingidas e um traumatismo craniano.
29. Tais lesões determinaram-lhe 5 dias para a cura, sem alteração da capacidade de trabalho.
30. A 19-07-2022, na sequência de uma discussão entre E e o arguido, e porque J interveio visando cessar o conflito, o arguido, no interior da habitação comum, desferiu um pontapé que atingiu o corpo de J em zona não concretamente apurada, mas entre as pernas e a zona abdominal, provocando a sua queda e causando-lhe dores.
31. Desde julho de 2023 que o arguido consome bebidas alcoólicas com uma frequência diária.
32. No dia 13-09-2023, o arguido, após ingerir bebidas alcoólicas, deslocou-se ao local de trabalho do ofendido J.
33. Pela hora de almoço, arguido e ofendido dirigiram-se para casa no veículo automóvel deste último.
34. Nessa sequência, em circunstâncias e de forma não concretamente apuradas, o arguido partiu o vidro do para-brisas do veículo automóvel do ofendido J.
35. O ofendido regressou à residência sozinho, tendo o arguido chegado à mesma perto da hora de almoço.
36. Aí chegado, o arguido deslocou-se para a cozinha e, usando força, abriu a porta do frigorifico, provocando a queda de todos os ímanes decorativos que ali estavam fixados, ao mesmo tempo que gritou “O que é o almoço?”.
37. Com medo do comportamento do arguido, os ofendidos J e C, acompanhados de E, saíram para o exterior da residência.
38. Ato continuo, o arguido correu no encalço destes para o exterior da residência enquanto gritava “porcos”, “putas”.
39. De seguida, o arguido abeirou-se do veículo automóvel de E e, usando as mãos, partiu a antena do mesmo.
40. Após, deferiu um soco no vidro do para-brisas do mesmo veículo, partindo-o.
41. De seguida, visando fugir do arguido, os ofendidos e E entraram para o interior do veículo automóvel, momento em que o arguido desferiu um pontapé na porta do veículo do lado direito, riscando-a.
42. Seguidamente, os ofendidos e E seguiram no aludido veículo automóvel para as instalações da GNR.
43. Enquanto ficou sozinho em casa, o arguido espalhou alimentos pelo chão da residência, atirou objetos decorativos da cozinha ao chão, partindo-os e desferiu pancadas, por forma não concretamente apurada, no espelho retrovisor do veículo automóvel do ofendido J, danificando-o.
44. Na sequência deste episódio, o arguido foi conduzido de urgência ao Hospital do Espírito Santo em Évora para efeito de internamento compulsivo de urgência, tendo tido alta psiquiátrica no próprio dia.
45. O arguido não trabalha, nem possui qualquer ocupação.
46. O arguido sofre de Psicose Esquizofrénica desde data não concretamente apurada, mas seguramente desde data anterior a 2020.
47. Por força de tal patologia, à data da prática dos factos ilícitos que lhe são imputados o arguido não apresentava capacidade para avaliar a ilicitude dos mesmos e de se determinar de acordo com essa avaliação.
48. Do ponto de vista médico-legal, nada obsta a que seja declarado inimputável em razão de anomalia psíquica.
49. Atendendo ao quadro clínico em questão e na ausência de adesão a um tratamento psicofarmacológico eficaz, aliada ao consumo diário de bebidas alcoólicas, é expectável que o arguido possa repetir factos semelhantes aos descritos.
50. O arguido apresenta falta de insight e impulsividade, não cumprindo a medida de tratamento compulsivo em regime ambulatório e consumindo diariamente bebidas alcoólicas.
Mais se provou,
51. À data da prática dos factos o arguido não cumpria de forma regular a medicação prescrita para tratamento da patologia de que padece, apresentando um quadro de heteroagressividade.
52. O consumo de bebidas alcoólicas, ocasional ou continuado, em simultâneo com a administração do injetável para tratamento da patologia de que padece o arguido pode afetar a eficácia de tal terapêutica.
53. O consumo de álcool, ocasional ou continuado, em conjunto com a toma do injetável pode potenciar os efeitos do álcool no organismo.
54. O consumo de álcool com a toma de antipsicóticos provoca alterações ao nível do sistema nervoso central, com consequências a nível cognitivo e comportamental.
55. O arguido averba as seguintes condenações no seu CRC:
i. Condenação no processo n.º 272/19.2PACSC, que correu termos no 2.º Juízo Criminal de Cascais, na pena de 5 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de €7,00, por sentença transitada em julgado a 13-09-2021, pela prática, em 20-07-2010, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, extinta por decisão de 13-11-2014.
ii. Condenação no processo n.º 1025/14.4PBOER, que correu termos no Juízo Local Criminal de Cascais, na medida de segurança de internamento suspenso por 3 anos, com sujeição a regras de conduta, por sentença transitada em julgado a 01-02-2016, pela prática, em 04-10-2014, de factos integradores de um crime de injúria agravada, um crime de injúria, um crime de ofensa à integridade física simples e um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, extinta por decisão de 18-12-2015.
56. É licenciado em Educação Física e Desporto, tendo completado o curso de Personal Trainer em 2006 e o curso de Instrutor de Musculação, Avaliação e Prescrição do Exercício em 2012.
57. Desenvolveu atividade como Personal Trainer em vários ginásios, designadamente na zona do Algarve, Lisboa e margem Sul, sem vínculo laboral.
58. Beneficiou do apoio económico dos pais quando se encontrou deslocado, quer para pagamento da renda dos alojamentos, quer para a sua subsistência quotidiana.
59. Atualmente não aufere qualquer rendimento.
60. O sustento do agregado familiar é assegurado pela pensão de reforma e rendimentos dos trabalhos realizados pelo pai, bem como pela contribuição em géneros da irmã.
61. É medicado com Aripiprazol 400mg, encontrando-se atualmente a cumprir a toma do injetável no Centro de Saúde do Alandroal.
62. As últimas duas tomas do injetável ocorreram em 14-04-2024 e 13-05-2024”.

2.2. Por sua vez, na sentença recorrida constam indicados os seguintes factos não provados (transcrição):
“Com relevância para a decisão da causa não resultaram provados os seguintes factos:
1. Entre 2020 e junho de 2022, por número de vezes não concretamente apurado, o arguido falou com os seus pais e com a irmã em tom de voz alto e sério pedindo-lhes dinheiro.
2. Quando os ofendidos não satisfaziam o seu pedido, o arguido acusava-os de não o ajudarem e de que não os conhecia.
3. O arguido ingere bebidas alcoólicas diariamente desde 22-06-2022.
4. O descrito em 17. dos factos provados ocorreu em virtude de a ofendida C se ter dirigido ao arguido, dizendo-lhe: “já as fizeste das boas”.
5. Sem prejuízo do descrito em 24. dos factos provados, o arguido desferiu um soco na zona do lábio do ofendido J.
6. Nas circunstâncias descritas em 25. e 26. dos factos provados, e porque E se abeirou do arguido e da ofendida C visando cessar o comportamento do arguido, este último, usando força, desferiu um número não concretamente apurado de socos na cabeça de E, provocando-lhe dores.
7. Em consequência direta da conduta do arguido, a ofendida E sofreu dores nas zonas corporais atingidas e um traumatismo facial.
8. Tais lesões determinaram-lhe 8 dias para a cura, sem alteração da capacidade de trabalho.
9. Nas circunstâncias descritas em 34. dos factos provados, o arguido disse ao ofendido J que “queria sair dali”, referindo-se ao interior do veículo.
10. Como o ofendido não imobilizou a viatura, o arguido abriu a porta do pendura do veículo automóvel enquanto este se encontrava em marcha, momento em que o ofendido imobilizou a viatura.
11. O descrito no facto provado 36. verificou-se em consequência de o arguido ter agarrado numa caixa de vinho e numa garrafa de cerveja que tinha consigo e ter arremessado as mesmas contra o vidro do para-brisas do veículo do ofendido J.
12. Nas circunstâncias descritas em 44. dos factos provados, o arguido espalhou alimentos pela via pública, nas imediações da residência”.
*
3. Apreciando.
3.1. Nos presentes autos o Ministério Público acusou o arguido R como inimputável perigoso, imputando-lhe factos suscetíveis de configurar, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, dois crimes de violência doméstica agravados, previstos e punidos pelo artigo 152.º, n.os 1, alíneas d), 2, alínea a), 4 a 6 do Código Penal, e um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, requerendo, a final, a aplicação ao arguido de uma medida de segurança.
Realizada a audiência de julgamento, o tribunal a quo proferiu sentença em que decidiu absolver o arguido R da prática de factos qualificados como dois crimes de violência doméstica e um crime de ofensa à integridade física simples, previstos e punidos nos termos das disposições do Código Penal acima indicadas.
Entendeu o julgador que, pese embora os factos dados como provados tenham preenchido o elemento objetivo dos crimes de violência doméstica e de ofensa à integridade física simples, certo é que, no que concerne ao elemento subjetivo, cotejada a factualidade provada, se constata que inexistem quaisquer factos que possam ser reconduzíveis a uma atuação dolosa por parte do arguido, o que sucede em consequência de aqueles terem sido omitidos da acusação pública, sendo que, por força da jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 1/2015, do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça[3], se mostra vedado ao tribunal proceder ao aditamento de tais factos.
Concluindo, assim, que, por falta do preenchimento do referido elemento subjetivo, não podia considerar verificados na sentença recorrida todos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido, como inimputável, de uma medida de segurança.
O que fundamentou do seguinte modo:
Do crime de violência doméstica
(…)
No caso sub judice, cotejada a factualidade provada, resulta que o arguido, no período entre 2017 e 2023, cerca de seis dias por semana, proferiu na direção dos ofendidos C e J as expressões “mentirosos” e “eu despacho-vos”.
De igual modo, também no mesmo período apelidou, em mais do que uma ocasião, de “feia” e “gorda” a ofendida C.
Acresce que resultou igualmente provado que, no dia 09-06-2024, o arguido realizou um movimento não concretamente apurado com o braço que atingiu o ofendido J no peito, provocando-lhe dores, mais tendo, na mesma ocasião, agarrado o cabelo da ofendida C na zona superior da cabeça, exercendo força e puxando-o durante um período de tempo não concretamente apurado.
Da factualidade provada também resulta que, no dia 06-09-2022, o arguido desferiu um empurrão no corpo de J, projetando-o para o chão onde este veio a cair, embatendo com as costas num degrau que aí se encontrava e provocando-lhe um traumatismo crânio encefálico e dorsal e uma escoriação lombar.
Na mesma data, o arguido, abeirando-se de C, desferiu-lhe um soco na têmpora, provocando-lhe dores e um traumatismo craniano.
Por fim, resultou também provado que, no dia 13-09-2023, o arguido, após partir o vídeo para-brisas do veículo automóvel do ofendido J, regressou à residência comum onde também se encontrava a ofendida C, dirigindo-se ao frigorífico, que abriu com força provocando a queda de todos os ímanes decorativos que ali estavam.
Nessa sequência, e com medo do que o arguido pudesse fazer, os ofendidos dirigiram-se para o exterior da residência, ao que o arguido correu no seu encalço, enquanto lhes dirigia as expressões “porcos” e putas”.
No mais, provou-se também que o arguido, em tal ocasião, partiu a antena do veículo automóvel de E, mais tendo desferido um soco no para-brisas do mesmo, partindo-o. Tal levou a que os ofendidos C e J, bem como E, tenham fugido do mesmo para o interior de tal veículo, momento em que o arguido desferiu um pontapé na porta direita do mesmo.
Ora, da globalidade das condutas acima descritas, perpetradas pelo arguido, resultam a prática de factos que consubstanciam quer injúrias, quer ameaças, bem como ofensas corporais e crimes de dano, os quais, no quadro de repetição em que ocorreram, são perfeitamente suscetíveis de causar humilhação e medo nos ofendidos, colocando em causa a sua saúde física e psíquica, o seu bem-estar, a sua honra e consideração e a sua segurança.
Para além disto, tais factos assumem gravidade acrescida na medida em que ocorreram no âmbito de uma relação familiar e num contexto de coabitação, onde os progenitores, aqui ofendidos, tinham a expectativa de se sentirem acarinhados, respeitados e protegidos, ao invés de serem sujeitos a um tratamento que os diminuía nas múltiplas dimensões da sua personalidade.
Assim, é forçoso concluir que o comportamento do arguido, atenta a sua reiteração e gravidade inerente, se mostra perfeitamente apto a atingir a dignidade humana dos ofendidos, assim se enquadrando no conceito de maus tratos a que alude o art.º 152.º do CP.
Acresce que, em face da idade dos ofendidos e do comportamento do arguido, aliado ao facto de este padecer de esquizofrenia e de em tais momentos não se encontrar a tomar a medicação ou se encontrar alcoolizado, dúvidas não existem que os primeiros são pessoas particularmente indefesas.
Com efeito, considerando o circunstancialismo concreto e a desproporção de forças, desde logo patente nas idades dos ofendidos à data dos factos, resulta claro que estes não tinham capacidade para se impor perante o arguido e, bem assim, para dele se defenderem.
Aliás, facto é que no último episódio, ocorrido em 13-09-2024, tentaram fugir do arguido e nem assim este se absteve de os amedrontar, danificando, de múltiplas formas, o veículo no qual aqueles se vieram a refugiar, o que reforça o nosso entendimento quanto ao que se deixou exposto quanto à sua especial vulnerabilidade em razão da idade.
Acresce que, no caso em apreço, resultou provado que os ofendidos coabitavam com o arguido, estando assim preenchida a previsão da alínea d) do no n.º 1 do art.º 152.º do CP.
Por fim, da factualidade provada também resulta que os factos praticados pelo arguido o foram no interior da residência comum, verificando-se igualmente o preenchimento da alínea a) do n.º 2 do art.º 152.º do CP.
Deste modo, e face a tudo o que se deixou exposto, temos que se mostra preenchido o elemento objetivo do crime de violência doméstica.
Aqui chegados, cumpre analisar o elemento subjetivo, sendo que, conforme já referido, o crime em apreço é necessariamente doloso.
E quanto a este, cotejada a factualidade provada, constata-se que inexistem quaisquer factos que possam ser reconduzíveis a uma atuação dolosa por parte do arguido, o que sucede em consequência da sua omissão na acusação pública, mostrando-se vedado ao Tribunal o aditamento de tais factos à luz da jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 1/2015.
Com efeito, em tal Acórdão de Uniformização de Jurisprudência decidiu-se que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.
Ora, pese embora tenha resultado provado que, à data da prática dos factos que lhe são imputados, o arguido não apresentava capacidade para avaliar a ilicitude dos mesmos e para se determinar de acordo com essa avaliação em virtude da anomalia psíquica de que padecia, tal não dispensa, em nosso entendimento, a alegação e prova dos factos atinentes ao elemento subjetivo do tipo de ilícito.
De facto, a inimputabilidade decorrente da incapacidade para avaliar a ilicitude dos factos e para se determinar de acordo com a mesma atua ao nível da culpa do arguido, a qual, não se verificando, obsta à aplicação de uma pena, podendo fundamentar a aplicação de uma medida de segurança ao abrigo do art.º 91.º, n.º 1 do CP.
E isso mesmo decorre do teor literal de tal artigo, nos termos do qual quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do art.º 20.º do CP, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.
Ora, para que um facto ilícito seja típico, à luz da doutrina geral do crime, necessário será que se mostrem preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do mesmo, quer se trate de agente imputável ou inimputável.
Não se desconhece, quanto a esta matéria, posição distinta, nos termos da qual, tratando-se de agente inimputável, basta que este preencha com a sua conduta o elemento objetivo de um tipo legal de crime, isto que é, que pratique um facto formalmente típico.11 12 [11 Neste sentido, cfr. os Ac. do STJ, de 19-12-2012, Processo n.º 127/10.0S3LSB.A.S1, relator Armindo Monteiro, e Ac. do TRP, de 07-02-2018, Processo n.º 586/16.8PHMTS.P1, relator Jorge Langweg, ambos disponíveis em www.dgsi.pt] [12 Por tal razão, optou-se por não rejeitar a acusação por manifestamente infundada, na medida em que, e no que aqui releva, tal só deve ocorrer quando os factos descritos na acusação não constituem, de forma inequívoca, a prática de um facto ilícito típico (neste sentido, Ac. do TRL, de 11-05-2021, relator Jorge Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt)].
Contudo, e na senda do defendido por Figueiredo Dias, não podemos perfilhar tal entendimento, na medida em que o juízo de inimputabilidade se reporta à culpa do agente e não à sua consciência psicológica, mas também porque tal posição é, salvo melhor entendimento, violadora dos princípios do Estado de Direito Democrático, na medida em que nega, a agentes inimputáveis, a possibilidade de verificação de causas de exclusão da ilicitude.
A este propósito, ensina o referido Mestre13 que “O ilícito-típico não pretende exprimir nada mais (embora também nada menos) do que um específico sentido de desvalor jurídico-penal que atinge um concreto comportamento numa concreta situação, por referência à necessidade de protecção de bens jurídicos. Um tal juízo nada tem ainda a ver com a atitude interna do agente face a este desvalor; e só essa atitude pode ser tocada pelo problema da inimputabilidade por motivo de anomalia psíquica. O que vale por dizer que o inimputável também age; que, relativamente a ele, se podem cumprir as exigências de sentido contidas na imputação objectiva (causalidade e potenciação do risco) e subjectiva (representação e vontade de realização do facto, por um lado, violação do dever objectivo de cuidado, por outro; e que também relativamente a ele se pode falar, com sentido pleno, na justificação do facto por intervenção de uma causa de exclusão da ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, consentimento, etc.).” [13 In Direito Penal Português, Parte Geral, Tomo II, As Consequências Jurídicas do Crime, 2009, 2.ª Reimpressão, Coimbra Editora, p. 460].
Ora, a anomalia psíquica do agente não contende com a sua capacidade de representar o facto ilícito típico, nem com a vontade de o querer realizar (elementos intelectual e volitivo do dolo), uma vez que essa representação e vontade se reportam a um posicionamento e consciência psicológicos do agente.
Estes, por sua vez, não se confundem com a consciência ética, decorrente da incapacidade de avaliar a ilicitude dos factos e de se posicionar de acordo com a mesma, a qual fundamenta o juízo de inimputabilidade.
Mesmo admitindo que existam situações em que a gravidade e extensão da anomalia psíquica possam comprometer essa capacidade de representação e vontade da prática de um facto ilícito, entendemos que em tal caso deverá o agente ser absolvido. E tal deverá ocorrer precisamente por não estarem verificados os requisitos que fundamentam a aplicação de uma medida de segurança, nos termos do art.º 91.º, n.º 1 do CP, nomeadamente o elemento subjetivo do tipo de ilícito.
Para além disto, também aqui haverá que apelar à unidade e coerência do sistema jurídico, na medida em que o legislador não deixou de prever e acautelar essas mesmas situações, nomeadamente por via de outros institutos jurídicos, como o regime de internamento em tratamento involuntário.
Em abono da nossa posição, veja-se o também defendido por Paulo Pinto de Albuquerque14, que refere que “O facto do inimputável só é penalmente relevante se for típico. Ao facto cometido pelo inimputável é aplicável a teoria da ação, do tipo objetivo, incluindo a causalidade, e do tipo subjetivo (isto é, conhecimento e vontade de realizar o facto e violação do dever objetivo de cuidado) (…). Por isso, o facto do inimputável pode ser doloso ou negligente. Por isso também, a aferição da anomalia psíquica e a consequente declaração de inimputabilidade estão intimamente ligadas ao facto concreto praticado pelo agente (…). Por isso ainda, o agente pode na mesma ocasião cometer um facto em estado de inimputabilidade e outro facto em estado de imputabilidade (…).” [14 Op. Cit., p. 424].
No mesmo sentido, exigindo a alegação e demonstração dos factos atinentes ao elemento subjetivo no caso de arguido inimputável, vejam-se ainda, entre outros, os recentes Acs. do TRL, de 27-06-202315 e do TRG, de 03-10-202316. [15 Processo n.º 787/20.4PWLSB.L1-5, relator Jorge Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt]. [16 Processo n.º 614/20.2T9PTL.G1, relator Pedro Cunha Lopes, disponível em www.dgsi.pt].
Em face do que se deixou exposto, na impossibilidade de o Tribunal proceder ao aditamento dos factos atinentes ao elemento subjetivo dos crimes de violência doméstica por via dos mecanismos previstos nos art.ºs 358.º e 359.º do CP, de acordo com jurisprudência uniformizada pelo AUJ n.º 1/2015, é forçoso concluir que aquele não se mostra preenchido, devendo o arguido ser absolvido.
Não se olvida que tal desfecho poderia não ser o esperado ou desejado pelos ofendidos, mas facto é que na administração da justiça o Tribunal se encontra vinculado à lei e à Constituição, não se tratando, in casu, de uma questão meramente formal ou que por nós possa ser ultrapassada.
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Do crime de ofensa à integridade física simples
Dispõe o art.º 143.º, n.º 1 do CP que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
Esta norma incriminadora visa tutelar a integridade física e psíquica da pessoa humana, tratando-se de um crime de dano e de resultado. Assim, o tipo objetivo consiste no ataque ao corpo ou à saúde de outra pessoa viva, entendendo-se por saúde aquela que abrange não apenas a integridade corporal, como psíquica e emocional.
No que concerne ao elemento subjetivo, por sua vez, trata-se de um crime necessariamente doloso, em qualquer das modalidades previstas no art.º 14.º do CP.
No caso em apreço, resultou provado que o arguido, no dia 06-09-2022, pelas 18:00 horas, dirigiu-se à ofendida E e, exercendo força, colocou uma mão no pescoço da mesma e apertou-o durante um período de tempo não concretamente apurado, provocando-lhe dores e tirando-lhe a respiração.
Ora, dúvidas não existem que, com tal conduta, o arguido atingiu e molestou a saúde e o corpo da ofendida, estando preenchido o elemento objetivo do tipo legal de crime.
Contudo, e à semelhança do que se deixou dito aquando da análise do elemento subjetivo dos crimes de violência doméstica, para onde se remete por uma questão de economia processual, da factualidade provada também nada consta quanto ao elemento subjetivo do crime de ofensa à integridade física simples.
Pelo exposto, não se mostrando o mesmo preenchido, haverá que concluir que também quanto a este crime se impõe a absolvição do arguido”.
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Está em causa aplicação de uma medida de segurança a quem, segundo alega o Ministério Público, deve ser considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal.
Neste contexto, de acordo com o que dispõe o artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal, são pressupostos da aplicação de medida de segurança, a prática, pelo inimputável, de um facto ilícito típico, e a perigosidade criminal do agente.
In casu, a acusação invocou tratar-se de uma situação de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, conforme prevê o artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal, a qual, como é sabido, obsta à condenação do agente com base na culpa, face à incapacidade de, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
Verificada a inimputabilidade, será aplicada medida de segurança quando por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado o agente revelar perigosidade consubstanciada no fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie (cf. artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal).
Segundo o modelo consagrado no artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal, o juízo de inimputabilidade depende da verificação cumulativa de dois requisitos: por um lado, o elemento biopsicológico, que pressupõe que o agente seja portador de anomalia psíquica no momento da prática do facto; por outro, o elemento normativo, que se traduz na exigência de que, por força daquela anomalia psíquica, o agente tenha em tal momento sido incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa mesma avaliação.
Assim, para referido juízo não basta a comprovação do substrato biopsicológico de que o agente padece de anomalia psíquica, por mais grave que seja, tornando-se ainda necessário determinar a existência da relação causal entre aquela e o ato do agente, em termos de ter praticado o facto por ser incapaz de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, resultando tal incapacidade cognitiva e/ou volitiva da anomalia psíquica que o afetava no momento da prática do facto.
Processualmente, a decisão sobre a inimputabilidade pressupõe, em sede de apuramento factual, a realização de perícia psiquiátrica destinada a determinar a existência de um estado psicopatológico que integra o apontado conceito de anomalia psíquica, na medida em que o mesmo tem por base factos cuja perceção e/ou apreciação exige especiais conhecimentos técnico-científicos.
Por sua vez, cabe ao tribunal efetuar a comprovação do elemento normativo da inimputabilidade, ajuizando da verificação do nexo de relação causal entre a anomalia psíquica detetada e o facto concreto praticado, a partir dos elementos científicos fornecidos pela perícia que constituem, assim, contributos essenciais para tal tarefa decisória.[4]
A declaração de inimputabilidade exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena.
Contudo, se o agente do facto ilícito típico declarado inimputável revelar um grau de perigosidade tal que a sociedade tenha de se defender, prevenindo o risco da prática futura de factos criminosos, haverá lugar à aplicação de uma medida de segurança, dentro dos pressupostos estabelecidos no artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal, segundo o qual quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.
Assim, a aplicação de uma medida segurança, que no caso do artigo 91.º é a de internamento, depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
- prática de um facto ilícito típico (crime);
- inimputabilidade por anomalia psíquica do agente; e
- formulação de um juízo de perigosidade, assente no fundado receio de que a anomalia psíquica do agente, na sua correlação com a gravidade do facto cometido, faça supor o cometimento de outros factos da mesma espécie (repetição homótropa).
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Como se constata, a questão a decidir no recurso centra-se no primeiro pressuposto, o “facto ilícito típico”, sem o qual cai por terra a possibilidade de se aplicar a medida de segurança de internamento, obstando a que um eventual juízo positivo acerca da inimputabilidade e perigosidade do agente produza a referida consequência jurídico-penal.
No presente contexto, merece destaque o entendimento segundo o qual a medida de segurança de internamento configura uma forte restrição do direito fundamental do inimputável à liberdade e, como tal, este deve gozar da mesma proteção constitucional e jurídico-penal que é reconhecida ao imputável. Como sublinha Américo Taipa de Carvalho, “[c]ompreende-se, pois, que tal restrição esteja sujeita também – e na mesma medida que a restrição da liberdade dos imputáveis – aos princípios da legalidade, da proporcionalidade (quer na dimensão da proibição de excesso, quer na de indispensabilidade), da igualdade (de tratamento em relação ao imputável) e da jurisdicionalidade, quer na aplicação quer na execução da medida de segurança. Ou seja: os mesmos princípios constitucionais e jurídico-criminais, que regem a aplicação e a execução de uma pena, também valem para as medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis”.[5]
A este respeito, assinala Maria João Antunes que uma das consequências do processo de aproximação entre as medidas de segurança e as penas, com o intuito de fazer valer para as primeiras as garantias político-criminais que já informavam as segundas, foi a crescente importância conferida ao facto ilícito típico praticado, até que o mesmo passasse a ser, como é hoje, um verdadeiro pressuposto para a aplicação da medida de segurança, ao lado da perigosidade do agente. Deste modo, com o reconhecimento da medida de segurança como sanção de natureza penal foi correspondendo uma valorização do facto praticado pelo agente inimputável, passando a sua aplicação a depender de dois pressupostos autónomos: a prática de um facto com as características própria do facto ilícito típico, e um juízo positivo sobre a perigosidade criminal do agente (artigo 91.º do Código Penal).[6]
Assim, o facto do inimputável, para ser penalmente relevante e poder fundamentar a aplicação de uma medida de segurança de internamento, tem de ser típico, englobando, pois, também o dolo e a negligência, na parte em que constituem elementos do tipo subjetivo de ilícito, ou seja, o dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo, ou então a negligência, enquanto violação do dever objetivo de cuidado.
O inimputável por anomalia psíquica pode ter o dolo do tipo (representação e vontade) ou a negligência prevista para o tipo de ilícito (pode causar resultados danosos através da violação do dever de cuidado).[7]
O que não pode é ser sujeito a um juízo de censura pessoal pela prática do ilícito, uma vez que este juízo tem por base a culpa do agente e a sua comprovação depende, aí sim, da capacidade de o mesmo valorar e/ou de se determinar (artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal).
Deste modo, a anomalia psíquica que, nos termos do artigo 20.º do Código Penal, fundamenta a inimputabilidade penal, não exige que o agente fique desprovido da capacidade de querer e de entender, mas apenas que essa capacidade seja afetada ao ponto de não conseguir avaliar ilicitude da sua conduta e determinar-se de acordo com essa avaliação (cf. Acórdão da Relação de Évora, de 20 de dezembro de 2018[8]).
É verdade que, como se assinala no Acórdão da Relação de Lisboa, de 27 de junho de 2023[9], o entendimento de que o inimputável por anomalia psíquica pode ter o dolo do tipo ou a negligência prevista para o tipo de ilícito deixa fora do âmbito da proteção dispensada pela medida de segurança de internamento, prevista no artigo 91.º do Código Penal, a conduta do agente que enferme de patologia que o prive radicalmente do entendimento ou da vontade.
Com efeito, conforme refere Figueiredo Dias, a anomalia psíquica pode ser tal que impeça o conhecimento ou a vontade de realização do tipo objetivo, ou conduza ao erro sobre a factualidade típica respetiva, em hipóteses nas quais, provavelmente, um imputável não deixaria de apreender corretamente a situação. Contudo, nesses casos de privação radical do entendimento ou da vontade, “parece que o agente deve ser absolvido por falta de dolo (do tipo), não por inimputabilidade, com a consequência de, nessa base, não dever ter lugar a possibilidade lhe ser aplicada qualquer medida de segurança. Também o imputável pode agir sem dolo (ou errar sobre a factualidade típica) só porque é extremamente (ou mesmo anormalmente) distraído, inconsiderado ou leviano, sem que esta circunstância deixe de conduzir à negação do dolo”.[10]
Em tais casos a perigosidade, desacompanhada da existência de um facto ilícito típico, não pode servir de fundamento para se aplicar uma medida de segurança a um inimputável, pois como medida de reação penal que depende dos pressupostos legais próprios, não pode ser utilizada fora das condições que a legitimam.
É, assim, com acerto que se afirma sentença recorrida que “[m]esmo admitindo que existam situações em que a gravidade e extensão da anomalia psíquica possam comprometer essa capacidade de representação e vontade da prática de um facto ilícito, entendemos que em tal caso deverá o agente ser absolvido. E tal deverá ocorrer precisamente por não estarem verificados os requisitos que fundamentam a aplicação de uma medida de segurança, nos termos do art.º 91.º, n.º 1 do CP, nomeadamente o elemento subjetivo do tipo de ilícito”.
Ora, como também refere o tribunal a quo, há que ter presente que, dentro do que se considera ser a unidade e coerência do sistema jurídico, o legislador não deixou de prever e acautelar essas mesmas situações, nomeadamente por via de outros institutos, como o tratamento involuntário em internamento, no âmbito da Lei de Saúde Mental.[11]
Seja como for, independentemente da posição que se adote quanto ao enquadramento dogmático das figuras do dolo e da negligência, não podemos deixar de as considerar como uma exigência do regime jurídico-penal aplicável aos inimputáveis perigosos, sendo os factos que as integram imprescindíveis para que os comportamentos do agente correspondam à prática de factos ilícitos típicos.
Com efeito, para além do que já se disse quanto à medida de segurança constituir uma reação criminal cuja aplicação exige que ao inimputável seja assegurada a mesma proteção que é reconhecida ao imputável, a própria interpretação sistemática da lei fornece outros argumentos que tornam incontornável a necessidade de se tomar em consideração as categorias dogmáticas do crime, nomeadamente para se saber se, no caso concreto, o tipo de ilícito a ter em conta é doloso ou negligente. Assim, estando o internamento de inimputável sujeito aos limites máximos das molduras legais dos tipos de ilícito praticados (cf. artigos 91.º, n.º 2 e 92.º, n.os 2 e 3, ambos do Código Penal), então a aplicação dessa medida de segurança depende do enquadramento da conduta do agente em determinado tipo de crime ao qual corresponde certa moldura punitiva, o que implica também que se conheça e decida a questão do dolo e da negligência, pois “uma grande parte dos crimes tipificados no Código Penal não é punível a título negligente e existe quase sempre uma diferença sensível de gravidade entre as penalidades cominadas a crimes dirigidos contra o mesmo bem jurídico, quando praticados com ou dolo ou com negligência” (cf. Acórdão desta Relação, de 20 de dezembro de 2018).
O conhecimento dos elementos subjetivos no facto ilícito do inimputável releva também para, em sede de qualificação do facto, se saber, entre outros aspetos, se se verificou o exigido dolo de um crime tentado (artigo 22.º do Código Penal) ou se se comprovam os pressupostos de que depende um crime agravado pelo resultado (artigo 18.º do Código Penal).
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Os crimes de violência doméstica previstos e punidos pelo artigo 152.º, n.os 1, alínea d), 2, alínea a), 4, 5 e 6 do Código Penal, por cuja prática o arguido R foi acusado e julgado, assumem natureza dolosa, não estando legalmente prevista a sua punição a título de negligência. Acresce que a conduta concretamente imputada ao arguido, como frequentemente sucede (veja-se o caso descrito no Acórdão desta Relação, de 20 de dezembro de 2018, aresto que aqui seguimos de perto), desdobra-se em diversos episódios e é dirigida contra uma pluralidade de bens jurídicos pessoais dos ofendidos, entre os quais se contam, pelo menos, a integridade física, a honra e consideração e a liberdade de ação e de decisão, devendo o dolo manter-se na execução de cada ato que releva para a tipicidade.
Como tal, se tivesse sido deduzida contra agente imputável, a acusação deveria, além do mais, conter, sob pena de fracassar, referência aos factos integradores dos elementos intelectual e volitivo do dolo, em relação às condutas relevantes para a tipicidade, com a abrangência que acima foi referida, formando uma unidade de sentido do comportamento ilícito global.
Do mesmo passo, o crime de ofensa à integridade física simples, descrito no artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, por cuja prática o arguido foi também acusado e julgado, assume igualmente natureza dolosa, exigindo-se, outrossim, referência aos factos integradores dos elementos intelectual e volitivo do dolo do tipo aqui em causa, enquanto factos típicos que fundamentam a aplicação de uma medida de segurança e carecem, deste modo, de articulação na acusação para fazerem parte do objeto do processo, sujeitando-se a prova no julgamento e à devida apreciação na sentença.
Impunha-se, pois, a narração dos factos integradores do dolo, seja do elemento intelectual, seja do elemento volitivo, atinentes aos tipos de ilícito em causa no presente processo, imprescindíveis para que a imputação feita ao arguido correspondesse à prática de factos ilícitos típicos em relação aos quais se devesse excluir a culpa, em razão de inimputabilidade por anomalia psíquica, e que esta, aliada à perigosidade do agente, fundamentasse a requerida aplicação de medida de segurança.
O que nos remete para o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 e a jurisprudência nele fixada, para a qual a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, o que abrange também o facto do inimputável, por referência à acusação deduzida com vista à aplicação de uma medida de segurança.
Aliás, o Acórdão da Relação do Porto, de 10 de setembro de 2013[12], é precisamente uma das decisões indicadas pelo Supremo como estando do lado do acórdão-fundamento da oposição de julgados decidida pela referida jurisprudência fixada. Naquele aresto, estava em causa um crime de violência doméstica cometido por inimputável, em que a acusação foi rejeitada por não conter a descrição dos factos em que se traduziria o dolo. Interposto recurso, a Relação do Porto confirmou a decidida rejeição, por entender que a descrição dos factos em que se materializa o tipo subjetivo do ilícito (dolo ou negligência) é imprescindível na acusação, mesmo quando se trata de crime cometido por inimputável. Isto, porque “pressuposto da aplicação de uma medida de segurança de internamento é a prática, por inimputável, não de um mero ilícito típico, mas de um facto criminoso, com ressalva de todos os elementos que pertençam à categoria da culpa ou dela decorram”.
Com interesse para o caso que agora nos ocupa, o Supremo Tribunal de Justiça, em apoio do entendimento que veio a adotar no Acórdão n.º 1/2015, assinalou o seguinte:
“Entre os elementos relevantes que dão um sentido a uma determinada conduta ou acção emergentes num dado contexto social e histórico, ou a uma omissão que se traduza num desvalor, uma e outra enquanto referidas a uma acção ou omissão abstractamente tipificadas como crime, estão os que configuram os aspectos objectivos do tipo de ilícito e os que consubstanciam os seus aspectos subjectivos.
Com efeito, enquanto os elementos do tipo objectivo de ilícito definem o conteúdo ou objecto da acção ou omissão tipificadas como crime, os elementos subjectivos definem a relação do agente ou omitente com essa acção ou omissão, a sua particular ligação com elas, com o facto objectivo praticado ou omitido.
A outra coisa não conduz a muito concisa e muito técnica definição legal de crime contida no art. 1.º, alínea a) do CPP: «conjunto de pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança criminais» - pois nesse conjunto de pressupostos tanto contam os de carácter objectivo, como os de natureza subjectiva descritos no respectivo tipo legal de crime e noutras disposições legais de carácter penal geral.
De forma mais concreta, o art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP, impõe que a acusação contenha “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.»
Todo o preceito está impregnado de referências aos elementos subjectivos, pois, ao falar dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, está a abarcar tanto os factos de carácter objectivo, como os de natureza subjectiva (…)”.

Ora, estando em causa os factos que fundamentam a aplicação ao arguido inimputável de uma medida de segurança, o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito corresponde a uma alteração fundamental, de tal forma que essa alteração equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica e que a respetiva operação determina, assim, uma alteração dos factos que é substancial.
Porém, se nestas situações não é aplicável o mecanismo do artigo 358.º do CPP, também o do artigo 359.º de nada serve, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta atípica numa conduta típica (e, nesse sentido, substancial), a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso, pois os exatos factos constantes da acusação não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma medida de segurança criminal.
Daí que, como se afirma ainda no aresto uniformizador, tendo o processo prosseguido para julgamento, sem ter passado pela instrução, o juiz deve rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes previstos no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.os 2, alínea a), e 3, alínea b), do mesmo diploma, dado que não contém a narração dos factos.
*
Revertendo ao caso dos autos, importa começar por afirmar que as razões invocadas na sentença recorrida para fundamentar a decretada absolvição do arguido, assentes na circunstância de que o objeto definido pela acusação, materialmente vinculante da causa submetida a julgamento e que condicionou, assim, a factualidade que o tribunal a quo pôde conhecer, não contém a indicação de qualquer aspeto do elemento subjetivo enformador do dolo exigido pelos tipos incriminadores da violência doméstica e da ofensa à integridade física simples, encontram respaldo no nosso ordenamento jurídico-penal e na solução jurisprudencial uniformizada pelo invocado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015.
Do ponto de vista dos pressupostos materiais em que se fundou a 1.ª instância para assim ter entendido, é de salientar que dos sessenta e dois pontos de matéria alegada na acusação que o Ministério Público deduziu no presente processo, catorze referem-se à anomalia psíquica do arguido R, indicada como fundamento da sua incapacidade de avaliar a ilicitude dos factos que praticou e de se determinar de acordo com essa avaliação, sendo também fundamento do juízo de perigosidade, assente no fundado receio de que a anomalia psíquica do agente, na sua correlação com a gravidade do facto cometido, faz supor o cometimento de outros factos da mesma espécie.
Pontos esses que descrevem a seguinte factualidade:
“5. Em 2014 o arguido sofreu um surto psicótico, tendo sido diagnosticado com esquizofrenia paranoide, tendo nessa altura iniciado internamente compulsivo em regime de ambulatório.
6. Em 2017 e em 2020 o arguido sofreu novamente de surtos psicóticos, durante os quais não dormia nem comia e deambulava pela via pública despido e descalço.
7. O arguido apenas cumpria com os tratamentos durante uns meses e depois deixava de ir às consultas e de cumprir a terapêutica prescrita.
(…)
20. Na sequência deste episódio [em 9 de junho de 2022], o arguido foi internando no Hospital Garcia de Horta em Lisboa, onde ficou de 9/06/2022 a 21/06/2022.
21. Contudo, após a alta hospitalar, o arguido voltou a coabitar com os seus pais e a sua irmã na referida morada.
22. Desde então que o arguido ingeriu bebidas alcoólicas diariamente, tornando-se mais violento com os ofendidos.
(…)
38. Desde então [15 de julho de 2023], o arguido consome diariamente bebidas alcoólicas nem sempre cumprindo a medicação que lhe é prescrita pelo médico psiquiatra.
(…)
56. O arguido sofre de Psicose Esquizofrénica desde data não concretamente apurada, mas seguramente desde data anterior a 2020.
57. Por força de tal patologia, à data da prática dos factos ilícitos que lhe são imputados o arguido não apresentava capacidade para avaliar a ilicitude dos mesmos e de se determinar de acordo com essa avaliação.
58. Com efeito, médico-legalmente, nada obsta a que seja declarado inimputável em razão de anomalia psíquica.
59. Atendendo ao quadro clínico em questão e na ausência de adesão a um tratamento psicofarmacológico eficaz aliada ao consumo diário de bebidas alcoólicas é expectável que o arguido possa repetir factos semelhantes aos descritos.
60. O arguido pratica os factos descritos no presente despacho há vários anos e apresenta falta de insight, impulsividade, não cumprindo a medida de tratamento compulsivo em regime ambulatório e consumindo diariamente bebidas alcoólicas.
61. É, assim, necessário, assegurar a adesão a um esquema terapêutico eficaz, visando o controlo da patologia que apresenta.
62. Tal risco apenas pode ser afastado mediante a aplicação de uma medida de segurança de internamento”.

Conforme resulta do teor dos pontos provados 4 a 6, 18, 19, 31 e 46 a 50 da sentença recorrida, o tribunal a quo considerou assentes todos os apontados factos alegados na acusação, relativos à anomalia psíquica do arguido, excetuando os citados n.os 61 e 62, que excluiu da decisão judicial por entender revestirem natureza conclusiva.
Por outro lado, os restantes pontos da acusação dizem direta ou indiretamente respeito às condutas objetivas subsumíveis nos tipos de crime imputados ao arguido.
Ora, em nenhum dos pontos alegados na acusação e, consequentemente, em nenhum dos pontos do elenco de matéria provada e não provada levada à sentença recorrida, consta a mínima alusão aos elementos do dolo inerente aos tipos incriminadores da violência doméstica e da ofensa à integridade física simples, ou a quaisquer outros, tratando-se, assim, de uma situação de total omissão dos elementos subjetivos dos tipos de ilícito imputados.
A sentença recorrida, versando, como versou, sobre o objeto delimitado pela acusação pública, apenas contém os factos que configuram a materialidade objetiva das condutas praticadas pelo arguido e os factos relativos à inimputabilidade por anomalia psíquica e à perigosidade do agente.
Aqui chegados, importa chamar de novo à colação a jurisprudência fixada no Acórdão n.º 1/2015, nos termos da qual, para o que importa considerar, a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica e na vontade de praticar o facto, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.
A jurisprudência assim fixada dirige-se, precisamente, à fase de julgamento, pelo que a obediência que a ela é devida conduz inelutavelmente ao desfecho absolutório decretado na sentença recorrida.

Não obstante, a Relação não pode deixar de fazer notar que, seguindo ainda o sentido do aresto uniformizador, a 1.ª instância deveria ter rejeitado a acusação logo no saneamento previsto no artigo 311.º do CPP, não só pela nulidade decorrente da falta dos elementos subjetivos que dela têm de obrigatoriamente constar (artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP), como também por ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.os 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP, uma vez que não contém a narração dos factos.

Visão que, concordantemente com o que acima foi dito, implica que os factos omitidos da descrição constante da acusação são essenciais, imprescindíveis, e que a sua falta corresponde à falta de narração a que se refere a norma já indicada. A acusação que tem em vista a aplicação de medida de segurança a arguido inimputável deve abarcar todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só logra assumir essa dimensão quando abrange a totalidade dos seus elementos constitutivos.

Ora, não podendo o tribunal socorrer-se no julgamento do disposto no artigo 358.º do CPP, a que acresce que, pelas razões já expostas, também não se trata de um caso que convoque a aplicação do mecanismo do artigo 359.º, o julgamento transformou-se num ato inútil em que, a final, só pode ter como desfecho a absolvição do arguido. Situação que, como já foi dito, poderia ter sido obviada com a rejeição da acusação logo no saneamento do processo.[13]

Isto tanto mais que o caso julgado que resulta da sentença absolutória proferida pelo tribunal a quo esgota (consome) o objeto do processo, nos termos e pelas razões indicadas na respetiva fundamentação, o qual, em obediência ao princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, não pode mais voltar a ser investigado e submetido a julgamento, com repetição da causa penal pelos mesmos factos.
Já a rejeição da acusação no saneamento do processo, ao não conhecer do mérito da causa, formaria apenas caso julgado formal (artigo 620.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) e, como tal, com força obrigatória unicamente no processo, nos precisos termos que resultam da decisão que a recusou. O que, na linha do entendimento firmado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 246/2017, não impede que o Ministério Público validamente deduzisse nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo, assim, a omissão da descrição do elemento típico anteriormente verificada e sujeitando-se o arguido a julgamento pelos factos e qualificação jurídica constantes do novo libelo acusatório [cf. Acórdão desta Relação, de 9 de abril de 2024[14], e a jurisprudência aí indicada].
Seja como for, nesta fase, atendendo a tudo quanto acima foi dito, à Relação não resta senão negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e confirmar a sentença absolutória proferida pela 1.ª instância.
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III – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmam a sentença recorrida.
Sem custas, por delas o recorrente estar isento.

(Elaborado pela primeira signatária, revisto e assinado eletronicamente por todos os signatários – artigo 94.º, n.os 2 e 3 do CPP)

Évora, 11 de março de 2025
Helena Bolieiro
Fátima Bernardes
Fernando Pina

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[1] Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193.
[2] Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, Série I-A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995.
[3] Acórdão de 20 de novembro de 2014, publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015.
[4] Cf. Pedro Soares de Albergaria, “Aspectos judiciários da problemática da inimputabilidade”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 14 (2004), n.º 3, págs. 384-385.
[5] Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral – Questões Fundamentais, Teoria Geral do Crime, 3.ª ed., Universidade Católica Editora, 2016, pág. 98.
[6] Maria João Antunes, “O passado, o presente e o futuro do internamento de inimputável em razão de anomalia psíquica”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 13 (2003), n.º 3, págs. 348-349.
[7] Cf. Américo Taipa de Carvalho, op. cit., pág. 99. Cf. ainda Maria da Conceição Ferreira da Cunha, As Reações Criminais no Direito Português, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, 2024, págs. 334 e 345, e M. Miguez Garcia e J. M Castela Rio, Código Penal - Parte geral e especial, com notas e comentários, Almedina, 2014, pág. 416.
[8] Aresto proferido no processo n.º 1005/15.2PAENT.E1 (relator Sérgio Corvacho), disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>.
[9] Proferido no processo n.º 787/20.4PWLSB.L1-5 (relator Jorge Gonçalves), disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>.
[10] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 2.ª reimp., Coimbra Editora, 2009, págs. 463-464. Sobre este aspeto, cf. ainda Maria da Conceição Ferreira da Cunha, op. cit., págs. 334-335.
[11] A nova Lei de Saúde Mental, aprovada pela Lei n.º 35/2023, de 21 de julho, abandonou o conceito de “internamento compulsivo” da revogada Lei n.º 36/98, de 24 de julho, e adotou o de “tratamento involuntário”, ou seja, o tratamento decretado ou confirmado por autoridade judicial, em ambulatório ou em internamento (cf. artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 35/2023). O tratamento involuntário em internamento tem como pressuposto a existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais de terceiros, em razão de doença mental e da recusa de tratamento, ou de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais do próprio, em razão de doença mental e da recusa de tratamento, quando a pessoa não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, e se o internamento for a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, cessando logo que o tratamento possa ser retomado em ambulatório (cf. artigos 15.º, n.º 3 e 27.º, n.º 1 da Lei n.º 35/2023).
[12] Aresto proferido no processo n.º 327/10.3PGVNG.P1 (relatora Leonor Esteves), disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>.
[13] Não colhe, portanto, o argumento aduzido na sentença recorrida, de que o tribunal a quo optou por não rejeitar a acusação por manifestamente infundada, na medida em que tal só deve ocorrer quando os factos descritos na acusação não constituem, de forma inequívoca, a prática de um facto ilícito típico. A jurisprudência que invoca em seu apoio (Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de maio de 2021, proferido no processo n.º 96/18.9PBVLS.L1-5, sendo relator Jorge Gonçalves), diz respeito a um outro fundamento de rejeição da acusação por manifestamente infundada – artigo 311.º, n.os 2, alínea a), e 3, alínea d), do CPP – em que está em causa saber se os factos que constam da acusação não constituem crime (em concreto, se a expressão proferida pelo ali arguido é passível de concretizar factualmente o anúncio de um “mal futuro”, pressuposto do imputado crime de ameaça), considerando-se que, se e apenas quando de forma inequívoca não o forem, é que será de rejeitar a acusação. Não se tratava, pois, de uma situação em que a descrição dos factos acusação está amputada de matéria essencial para o preenchimento dos elementos do tipo, como sucede nos presentes autos.
[14] Aresto proferido no processo n.º 7/21.4GEMRA.E1 (relatora Fátima Bernardes), disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>.