LITISCONSÓRCIO
CÔNJUGE
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
MANDATO
GESTÃO DE NEGÓCIOS
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário

I – O art.º 34º, n.º 3 do Código de Processo Civil, na parte em que dispõe que devem ser intentadas contra ambos os cônjuges as acções emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão suscetível de ser executada sobre bens próprios do outro, não impõe o litisconsórcio necessário.
II – Atentos os factos assentes nos autos, julga-se afastada a presunção prevista pelo art.º 27º, n.º 3 da Lei Geral Tributária, actuando a A. enquanto mera representante fiscal do R. e não como gestora de negócios – a sê-lo, teria de ser da sociedade devedora de imposto, o que não se verifica – a A. aceitou ser apenas representante fiscal do seu genro porquanto o casal formado por este e a filha da A. se deslocaram para o estrangeiro; e nada mais do que isso, pelo que está afastada a responsabilidade solidária pelo pagamento do imposto.
III - A A. não se constituiu em qualquer obrigação de proceder ao pagamento do imposto em causa, inexistindo desta forma qualquer contrato de mandato.
IV - No caso dos autos não se tratou de uma doação nem de um contrato de mútuo.
V - Verifica-se assim um enriquecimento sem causa do R. à custa da A., tal como este vem previsto pelo art.º 473.º do Código Civil; com a dissolução do vínculo matrimonial entre o R. e a filha da A. cessou toda e qualquer causa - melhor dizendo, toda e qualquer justificação para a deslocação patrimonial em causa.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
R… intentou contra A… a presente acção, pedindo a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de €19.117,59, por enriquecimento sem causa.
Para tanto alega, em síntese, que o R. foi seu genro durante 18 anos e que esteve a trabalhar no estrangeiro, período em que a A., a pedido do R. o representou junto da Administração Fiscal (AT), tendo pago, através de quantias de que a A. era proprietária, dívidas fiscais deste no montante de 19.117,59€, valor que o R. não lhe devolveu, e pede que este seja condenado a pagar-lhe tal quantia, por considerar que este se enriqueceu nesse montante à custa do património da A.
*
O R. contestou invocando as excepções de prescrição e de ilegitimidade passiva, por considerar que a dívida em causa nos autos era sua e da sua ex-mulher, filha da A.; não põe em causa os factos alegados pela A. na sua p.i., apenas refere que esta deturpa a realidade dos factos, pugnando por não ter de devolver as quantias entregues pela A. e pede a sua absolvição no pedido.
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A A. veio responder às excepções, defendendo dever as mesmas improceder.
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Tendo-se procedido a julgamento a final foi proferida Sentença onde se decidiu julgar improcedentes por não provadas as excepções de ilegitimidade passiva, de prescrição e de abuso de direito e julgar a acção procedente, por provada, e, em consequência, condenou-se o R. a pagar à A. a quantia de €19.117,59, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento.
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Desta sentença recorreu o R., formulando as seguintes Conclusões:
“1 – No âmbito dos autos acima referidos foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente e, em consequência, condenou o R. … a pagar à A…. , a quantia de €19.117,59, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento.
2 – Ora, o recorrente não pode de todo concordar com essa decisão na medida em que a mesma padece de vários vícios, quer ao nível da matéria de direito selecionada quer ao nível da matéria de direito aplicada, que a afectam e inquinam e que põem em causa os direitos do recorrente.
3 – Esta decisão põe a nu uma errada interpretação efectuada pelo tribunal acerca da prova produzida sendo certo que, por isso, qualificou factos que deveriam ser considerados como provados como não provados quando se exigia precisamente o contrário e olvidou, inclusive, alguns factos que foram alegados pelas partes nos seus articulados, e que, como se verá, mostram-se essenciais para o apuramento da verdade.
4 – Na sequência deste erro ao nível da selecção da matéria de facto, o tribunal julgou mal fazendo também errada interpretação acerca da matéria de direito que ao caso cabia sendo certo que mesmo que se considere que a matéria de facto foi e está bem avaliada, as consequências jurídicas que dela decorrerem não podem ser nunca aquelas que foram decididas pelo tribunal a quo.
5 – Deveria ter sido dada como provada matéria alegada pelo recorrente no artigo 48º) da sua contestação, nomeadamente, que A dava várias quantias de dinheiro ao casal sem que pedisse a este o seu reembolso, ou seja, tratavam-se de verdadeiras doacções ao casal.
6 – Desde a testemunha M…– vide ficheiro informático Diligencia_446-21.0T8CSC_2023-05-29_10-07-19 do minuto 11:20 até ao minuto 11:30 e do minuto 15.27 até ao minuto 18.55 – desde a testemunha JN… – cfr. ficheiro informático Diligencia_446-21.0T8CSC_2023-05-29_10-35-20 do minuto 6:10 até ao minuto 7:00 – desde a testemunha JC… – cfr. ficheiro informático Diligencia_446-21.0T8CSC_2023-05-29_11-27-14 do minuto 5:00 até ao minuto 6:00 e do minuto 7:30 até ao minuto ao 10:10 e do minuto 19:15 até ao minuto 19:40 – até à PRÓPRIA A., ora recorrida, ouvida em sede de declarações de parte constantes do ficheiro informático Diligencia_446-21.0T8CSC_2023-07-07_09-48-28, todas elas confirmaram este facto.
7 – Todos estes testemunhos são unânimes ao expressamente referirem e reconhecerem que o casal formado pelo R. e pela filha da A. recebiam imensa ajuda por parte desta, recebiam “miminhos” oferecidos por esta ao casal. Isto também corroborado pela prova documental constante dos autos – cfr. documentos juntos com a contestação apresentada que nunca foram postos em causa pela A..
8 – O tribunal também fez errada interpretação na selecção da matéria de facto dada como não provada, confundindo-a, quando alguns factos dos que lá estão elencados deveriam, sem sombra de dúvidas, serem dados como provados.
9 – Na verdade, o facto número 1 da matéria de facto dada como não provada deveria ter sido dado como provado na medida em que a prova que existe nos autos e que ali foi produzida SÓ aponta nesse sentido.
10 – O R., ora recorrente, foi sócio de uma sociedade com o número de identificação de pessoa colectiva e contribuinte fiscal 5… que, na sua génese, teve a firma D…, LDA, Lda sendo certo que depois alterou essa firma passando a girar sob a designação M…, LDA tendo, por via disso, pelo menos nos anos de 2008 e 2009, recebido rendimentos categorizados como rendimentos do trabalho dependente desta sociedade.
11 – O Tribunal deveria ter valorado melhor os documentos juntos com a resposta à contestação elaborada pela A. pois por ali percebe-se, sem margem para qualquer dúvida, que o recorrente recebeu como rendimentos do trabalho dependente, cerca de € 2 924,20, no ano de 2008, e recebeu como rendimentos do trabalho dependente cerca de € 11 241,90, no ano de 2009, provenientes daquela sociedade.
12 – Acompanhando esta tese deve ter-se em consideração o que disse a testemunha R… confirmando-a no seu depoimento prestado perante o tribunal – vide ficheiro informático Diligencia_446-21.0T8CSC_2023-05-29_10-44-47 do minuto 23:50 até ao minuto 26:40.
13 – Mas mais: a testemunha disse inclusivamente que esse valor foi transferido para uma conta conjunta do casal que era administrada pelo ora recorrente e que acreditava que esse valor foi utilizado para pagar contas da vida familiar do casal – logo, não conseguimos perceber porque é que este facto documental e testemunhalmente demonstrado figura no rol dos factos dados como provados!
14 – Como consequência do que acima ficou exposto, cremos que os pontos dados como não provados relativos aos números 3 e 4 também deveriam ter sido dados como provados!
15 – Atente-se, em específico, ao que a testemunha acima referida disse no seu depoimento do minuto 25:45 até ao minuto 26:40 – vide ficheiro informático Diligencia_446-21.0T8CSC_2023-05-29_10-44-47 – onde a testemunha admite expressamente que tal rendimento caiu numa conta conjunta do casal cuja gestão estava entregue ao R., aqui recorrente, e que dessa conta familiar partiam pagamentos para gastos da vida comum!
16 – Atento ao que ficou acima exposto de forma cristalina, é de elementar justiça corrigir este erro cometido pelo tribunal a quo devendo transitar os pontos 3 e 4 da matéria de facto dada como não provada para o rol da matéria de facto dada como provada.
17 – Nos presentes autos estão em causa duas versões contraditórias entre si pois que a A., ora recorrida, entende que o pagamento efectuado foi feito ao abrigo de um empréstimo e o R., ora recorrente, entendeu tal pagamento como mais uma liberalidade concedida por aquela ao casal na senda e na sequência do que atrás ficou vertido.
18 – O tribunal recorrido – na nossa maneira de ver mal – perfilhou a tese da A. embora não consigamos, até agora, perceber da análise do documento ora em crise de onde retira e assenta esta sua posição na medida em que não é explícito e/ou claro o raciocínio lógico que utilizou para afastar e preterir a versão apresentada pelo recorrente.
19 – Na verdade, salvo melhor opinião, não existe na sentença sub judice qualquer referência à valoração de um depoimento de uma testemunha em contraposição com outra, não existe nenhuma referência à credibilidade forte, concisa e precisa em relação a uma prova em detrimento de outra, não existe, enfim, qualquer explicação para a sustentação factual apurada em benefício de uma solução com prejuízo de outra.
20 – Ora, se o tribunal a quo concluiu que casal formado pelo R., ora recorrente, e pela filha da A., ora recorrida, beneficiavam da ajuda desta e dos pais do R. consubstanciada em entregas de quantias em dinheiro – cfr. número 10 dos factos dados como provados – com que base e fundamento é que excluiu dessas ajudas a dívida que foi paga pela A. junto das Finanças?
21 – Cremos que o pagamento efectuado foi mais uma liberalidade concedida pela A. junto do R. e da sua família à semelhança de outras que foram acontecendo ao longo de 18 anos!
22 – E esta nossa conclusão não é presumida mas sim suportada em prova factual que espelha de forma inequívoca aquilo que estamos a dizer pois basta atentar no trecho do depoimento prestado pela testemunha R… gravado no sistema digital do tribunal sob o ficheiro informático Diligencia_446-21.0T8CSC_2023-05-29_10-44-47 do minuto 5:00 até ao minuto 5:20 onde esta testemunha, filha da A., reconhece de forma expressa e inequívoca que “…havia dívidas que foram sendo contraídas e que a minha foi sempre, enfim, ajudando e acolitando como podia…”
23 – Outrossim, chamamos a V/ atenção para o que disse o R., nas suas declarações de parte, gravadas no sistema informático sob o ficheiro Diligencia_446-21.0T8CSC_2023-05-29_11-47-45, do minuto 1:00 até ao minuto 3:30. No fundo, parece resultar da prova produzida que o extinto casal era fortemente ajudado pelos pais no que tange à sua vida económico-financeira sem que essas ajudas tenham sido concedidas contra o reembolso das mesmas.
24 – As ajudas destinavam-se aos mais variados fins, desde “miminhos”, a pagamento de dívidas assim como para viagens – vide gravações constantes do ficheiro informático Diligencia_446-21.0T8CSC_2023-05-29_11-47-45 do minuto 7:50 até ao minuto 9:22 – e ainda para, por exemplo, para pagar as mudanças de bens de um país para o outro – vide depoimento da testemunha JC… constante do ficheiro informático Diligencia_446-21.0T8CSC_2023-05-29_11-27-14 do minuto 8:30 até ao minuto 10:10.
25 – E foi dentro deste contexto acabado de descrever e suportado em prova produzida que a liberalidade aconteceu!
26 – Bastava ao Tribunal fazer um raciocínio lógico através das conclusões que tirou e que cristalizou no facto número 10 dado como provado em conjugação com estes depoimentos para perceber e concluir que, como o casal vivia acima das suas possibilidades, os problemas financeiros iam surgindo e seriam apenas resolvidos com a ajuda que os progenitores dos membros do casal é que se iam resolvendo – o caso em questão nos presentes autos apenas seria mais uma dessas ajudas atendendo ao enquadramento económico-financeiro em que o casal vivia.
27 – Atento ao que ficou acima exposto de forma cristalina, é de elementar justiça corrigir este erro cometido pelo tribunal a quo devendo transitar os pontos 5, 7 e 9 da matéria de facto dada como não provada para o rol da matéria de facto dada como provada.
28 – Mas para além dessas alterações, e salvo melhor opinião, o tribunal a quo deveria ter atendido a outros factos que na instrução da causa foram revelados ao mundo dos autos e que deveriam também figurar no rol dos factos dados como provados, nomeadamente, que aquando do pagamento da referida em 4 dos factos dados como provados, a A. não estabeleceu com o R. condições, prazo e forma de reembolso do valor que pagou junto das Finanças e que só volvidos mais de 2 (dois) anos depois do pagamento que efectuou junto das Finanças, e estando já o R. divorciado da sua filha, é que a A. reclamou o pagamento da quantia junto daquele;
29 – A inclusão destes factos que resultam à evidência e à saciedade da prova produzida no rol da matéria de facto dada como provada está legitimada pela aplicação do artigo 5º, n.º 2, alínea b) do CPC a este caso pois, para além destes factos complementarem aquilo que foi alegado em sede de oposição/contestação apresentada pela recorrente também foram percepcionados pelo julgador que tinha o dever e o poder de os incluir no rol dos factos dados como provados.
30 – Ao nível da matéria de direito, com o devido respeito, esta decisão também não está, à semelhança do que aconteceu com a matéria factual, conforme a normatividade vigente e mesmo que se entenda não alterar a matéria de facto nos termos acima expostos, a matéria de facto dada como provada na decisão que ora se impugna é insuficiente para dela se retirar os efeitos jurídicos que o tribunal a quo retirou.
31 – Como acima vimos, existe um erro elementar e manifesto na decisão quanto à matéria de facto, nomeadamente, e para o que aqui interessa, quando se diz que o R. não tenha recebido qualquer quantia proveniente de proveitos económicos ou rendimentos do trabalho de uma determinada sociedade comercial que constituíra enquanto casado.
32 – Se o tribunal a quo dá como provado que a sociedade D…, LDA foi constituída em plena vigência do matrimónio do R. com a filha da A., tendo como um dos sócios precisamente o R., ora recorrente – cfr. facto dado como provado no número 11; se o tribunal a quo dá como provado que esta dívida estava em nome do R. e tinha por base uma dívida daquela sociedade – facto dado como provado no número 3; e se configurarmos a questão tal qual a A. a configurou, isto é, que esta é uma dívida e não uma doacção ao casal, cremos, salvo melhor opinião, que nos parece ser claro e cristalino que esta é uma dívida que responsabiliza ambos os cônjuges pois foi contraída pelo R. no estado de casado e por força do exercício do comércio!
33 – Ou seja: dúvidas não temos que esta dívida cai no âmbito de aplicação do disposto no artigo 1691.º, n.º 1, alínea d) primeira parte do Código Civil!
34 – Assim sendo, a dívida presume-se comum a não ser que se prove que não foram contraídas em proveito comum do casal e esta presunção legal beneficia o R. e, caso a A., recorrida, ou outros sujeitos, não concordassem com esta presunção pretendendo ilidi-la, deveriam levar ao conhecimento do tribunal factos objectivos que demonstrassem que aquela dívida não foi realizada ou contraída em proveito comum do casal - o tribunal a quo que produziu o documento agora em crise decidiu precisamente ao contrário!
35 – E ao ter assim decidido, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 34.º, número 1 e 3 do Código de Processo Civil na medida em que, sendo uma dívida que afecta o património comum do casal conforme determina o artigo 1691.º, n.º 1, alínea d) do Código Civil, esta acção deveria ter sido instaurada contra o R. e contra a sua cônjuge da altura – a filha da A., ora recorrida! O tribunal a quo preteriu uma situação de litisconsórcio necessário, como acima configurado, pelo que deveria ter absolvido o R. da instância nos termos e para os efeitos do artigo 577.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil!
36 – Em sede de contestação, o R., ora recorrente, levantou uma questão que queria ver ser decidida pelo tribunal ora recorrido e que se prendia com a aplicação do artigo 474.º do Código Civil ao presente caso.
37 – Contudo, percorrida a sentença ora em crise, em momento algum o tribunal a quo se pronuncia acerca dessa excepção suscitada pelo ora recorrente quando, salvo melhor opinião, o deveria ter feito.
38 – Ali se disse, de uma forma sintética, que o recurso à acção que deu origem aos presentes autos, pela sua causa de pedir e pela essência do seu pedido, teria que improceder pois não estávamos perante um enriquecimento sem causa mas sim perante uma eventual acção de condenação para restituição de despesas e/ou indemnizatória por força da violação de uma das obrigações impostas ao R. na qualidade de mandante – no fundo litigava-se por causa de um incumprimento contratual!
39 – É que, configurada a acção como a A. a configurou – e já agora de acordo como ficou assente a matéria de facto mesmo sem as alterações agora preconizadas – cremos, salvo melhor opinião, que a representação fiscal por ausência prolongada do território configura, tout court, que a dívida fiscal foi paga no âmbito de um contrato de mandato – in casu, na modalidade de representação fiscal.
40 – A representatividade, ou melhor, o acto jurídico do pagamento, foi feito pela A. em nome e por conta do R. independentemente de ela ter uma relação de parentesco com o devedor; logo, e porque despesas e/ou prejuízos, tidos no exercício do cargo de representante fiscal – mandato – a A. tinha ao seu dispor outros meios de reembolso do valor que adiantou, nomeadamente, por violação dos deveres a que estava obrigado o R. por força do mandato que atribuiu à A., nomeadamente, aqueles que estão consagrados no artigo 1167.º, alínea c) e d).
41 – Prescreve o artigo 474.º do Código Civil que “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei faculta ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído (…)” pelo que neste artigo é consagrada a subsidiariedade da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa em ordem a evitar que se coloque em causa a aplicação de uma série de outras regras do direito positivo.
42 – Resumindo: para além de o tribunal a quo não se ter pronunciado sobre esta matéria, o que constituí uma causa de nulidade insanável da sentença nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil – o que aqui expressamente se requer – o tribunal devia ter reconhecido a excepção alegada e ter absolvido o R., ora recorrido, do pedido por falta de fundamento do mesmo – o que também aqui expressamente se requer!
43 – Para além de todos os erros já identificados na sentença ora em crise, o tribunal a quo ainda conseguiu contradizer-se na fundamentação jurídica que apresentou ao caso tendo em conta a matéria dada como provada e a sua subsunção jurídica na norma aplicada.
44 – Da matéria de facto dada como provada – sem as alterações agora preconizadas por via desta peça – o tribunal a quo apenas reconhece que a A., ora recorrida, pagou uma dívida registada em nome do R., ora recorrente, sem que ali reconheça que tipo de relação jurídica se estabeleceu para que esse pagamento ocorresse – se por força de um mútuo ou se por força de uma doacção.
45 – Todavia, na fundamentação que apresenta, o tribunal a quo entende que a A., com dinheiro seu, a pedido do R., procedeu ao pagamento da uma dívida fiscal deste, valor que deveria ser restituído à A. e que embora a A. lhe tenha dado oportunidades para o fazer o R. não lhe pagou tal quantia.
46 – Ou seja: na fundamentação, o tribunal a quo assume que o R. pediu à A. que pagasse uma dívida sua com a obrigação de aquele restituir o valor a esta – um verdadeiro contrato de mútuo!
47 – Afinal, existia uma causa justificativa para que determinados valores saíssem do património da A., empobrecendo-a, e que foram enriquecer o património do R., enriquecendo-o – um verdadeiro contrato de mútuo!
48 – Foi, aliás, esta a tese que foi apresentada pela A. e pelas suas testemunhas no decorrer de todo este processo e no decorrer da audiência de discussão e julgamento pois tentou-se sempre passar a ideia que o valor em causa nos presentes autos foi um empréstimo para acudir uma emergência financeira que a A. fez ao R.. Por isso mesmo, sempre foi admitido pela A. existir uma causa justificativa para o pagamento daquela dívida pela A. em nome do R.!
49 – In casu, percebemos de forma cristalina que o requisito falta de causa justificativa do enriquecimento previsto no artigo 473.º do Código Civil não está verificado, isto é, mostra-se claro nestes autos que, afinal, existia uma causa justificativa do enriquecimento devendo falecer a acção e toda a sua argumentação!
50 – Era este o caminho que o tribunal deveria ter seguido e que se quer ver corrigido pois caso contrário está a violar ostensivamente o disposto no artigo 473.º do Código Civil fazendo errada aplicação do direito!
51 – É da conjugação da matéria de facto que deve ser alterada com a demais matéria que foi dada como provada que se pode extrair uma conclusão mais ou menos segura acerca da qualificação jurídica que se deve fazer para caracterizar a relação estabelecida entre a A. e o R. acerca da quantia em causa e que só deve ser esta – de o pagamento que a A. fez junto das Finanças constitui uma verdadeira liberalidade que esta fez ao R., rectius, ao casal formado pelo R. e pela sua filha …!
52 – Se bem atentarmos na matéria dada como provada de acordo com as alterações agora preconizadas, estão ali todos os elementos estruturais do contrato de doacção nos termos e para os efeitos do artigo 940.º do Código Civil pelo que seria este o caminho que o tribunal deveria ter seguido e, em consequência, absolver o R. do pedido.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, deve revogar-se a sentença nos termos expostos com a consequência de o aqui recorrente ser absolvido da instância e/ou pedido.”
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Contra-alegou a A., entendendo não caber razão ao R. e pugnando pela manutenção da Sentença recorrida.
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O Recurso foi devidamente admitido, como efeitos e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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II. Questões a decidir:
Como resulta do disposto pelos artigos 5º; 635º, n.º 3 e 639º n.º 1 e n.º 3, todos do Código de Processo Civil (e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores) para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente.
Deste modo no caso concreto as questões a apreciar consistem em:
- Da nulidade da Sentença;
- Da reapreciação da matéria de facto;
- Da ilegitimidade do R. por preterição de litisconsórcio necessário;
- Se se verifica uma causa para o pagamento efectuado pela A., diversa de enriquecimento sem causa, devendo improceder a acção.
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III. Da nulidade da Sentença.
Nas suas alegações de recurso o R. invoca a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, alegando, em síntese, que a Juiz a quo não se pronunciou sobre a inaplicabilidade do instituto do enriquecimento sem causa suscitada pelo R. na contestação, onde este invocou a existência de um mandato e também de um contrato de mútuo.
Vejamos.
Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil que a Sentença é nula quando “d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; (…)”.
Ora, as decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas causas distintas, obstando qualquer delas à sua eficácia ou validade, a saber:
a) por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respetiva consequência a sua revogação; e
b) como atos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art.º 615.º do Código de Processo Civil - conf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 9/7/2014, Proc. n.º 00858/14, disponível em www.dgsi.pt.
Os vícios a que se reporta o art.º 615º do Código de Processo Civil enquadram-se nesta segunda categoria e encontram-se taxativamente previstos pela norma, tratando-se de vícios que se prendem com a própria estrutura – vícios formais – ou aos limites da sentença, relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal – vícios de actividade.
Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronuncia ultra petitum.
Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”, conf. Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.
Como vimos, dispõe o art.º 615º, n.º 1, al. d) que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse conhecer ou quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Os vícios a que se reporta este preceito – omissão e excesso de pronúncia - encontram-se em consonância com o comando do n.º 2 do art.º 608º do Código de Processo Civil, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.
Trata-se da concretização prática do princípio do dispositivo, que na sua conceção clássica e tradicional significava que “o processo é coisa ou negócio das partes”, é “uma luta, um duelo entre as partes, que apenas tem de decorrer segundo certas normas”, cumprindo ao juiz arbitrar “a pugna, controlando a observância dessas normas e assinalando e proclamando o resultado”, princípio esse de que, entre outras consequências, decorre que cabe às partes, através do pedido, causa de pedir e da defesa, circunscreverem o thema probandum e decidendum (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 373 e 374), mas também do princípio do contraditório, que na sua atual dimensão positiva proíbe a prolação de decisões surpresa (art.º 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil), ao postergar a indefesa e, consequentemente, ao reconhecer às partes o direito de conduzirem ativamente o processo e contribuírem ativamente para a decisão a ser nele proferida.
Como consequência, devendo o tribunal conhecer de todas as questões que lhe são submetidas (art.º 608º, n.º 2 do Código de Processo Civil), isto é, de todos os pedidos deduzidos e todas as causas de pedir e exceções invocadas e, bem assim de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção, desde que suscitada/arguida pelas partes (logo se o tribunal não conhecer de exceção ou exceções do conhecimento oficioso, mas não suscitada(s) pelas partes, o não conhecimento desta(s), não invalida a decisão por omissão de pronúncia) cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica diferentes da decisão, que as partes tenham invocado, uma vez que o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º, n.º 3 do Código de Processo Civil), sequer a não apreciação de todos os argumentos aduzidos pelas mesmas para sustentarem a sua pretensão (conf. Manuel de Andrade, ob. cit).
Assim, quando na norma em questão se comina com nulidade a sentença/acórdão, em que o juiz “…deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…” está a referir-se às questões que constituem o objecto da sentença ou do acórdão.
Essas questões, que se impõem ao juiz que resolva na sentença são, em primeira linha, por uma ordem de precedência lógica, as questões de forma (vícios de natureza processual, excepções dilatórias) susceptíveis de conduzir à absolvição da instância e consequente ineficácia do processo e que não tenham sido resolvidas no despacho saneador (art.º 608º nº 1), quer tenham sido alegadas pelas partes, quer devam ser apreciadas oficiosamente.
Depois e principalmente, o juiz aprecia e decide às questões de fundo, que constituem o mérito da causa, suscitadas pelas partes como fundamento do pedido ou como fundamento das excepções e, ainda, das que o juiz deva conhecer oficiosamente.
Veja-se o que refere Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, Almedina, pág. 142: “A palavra questões deve ser tomada aqui em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e à causa de pedir (melhor, à fungibilidade ou infungibilidade de umas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem”.
Ora, no caso dos autos, lida a decisão proferida, não estamos perante uma nulidade do despacho por omissão de pronúncia; o Tribunal pronunciou-se no sentido de entender que a questão dos autos se reconduzia ao instituto do enriquecimento sem causa e decidiu em conformidade, não tendo, como vimos, de considerar linhas de fundamentação jurídica diferentes da decisão, nos termos do art.º 5º do Código de Processo Civil.
Desta forma a nulidade invocada não se verifica.
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IV. Fundamentação de Facto.
Há que considerar a seguinte decisão sobre a Matéria de Facto proferida na 1ª Instância:
A – FACTOS PROVADOS
1 - O Réu foi genro da Autora durante 18 anos consecutivos.
2 - O Réu recebeu uma oferta de emprego no estrangeiro, motivo pelo qual, a Autora assumiu a qualidade de Representante Fiscal do R., seu genro e nessa qualidade foi notificada para proceder ao pagamento da dívida fiscal que pendia sobre o Réu.
3 - Em Outubro de 2017, a Autora foi notificada pelas Finanças para comparecer no Balcão de Atendimento para liquidar das dívidas que se encontravam pendentes em nome do Réu (por reversão fiscal de uma sociedade comercial M…, Lda., da qual era sócio).
4 - No dia 12 de Outubro de 2017, a Autora procedeu ao pagamento da quantia global em dívida de €19.117,59 (dezanove mil, cento e dezassete euros e cinquenta e nove cêntimos) registada em nome do Réu.
5 - Um ano após, em 2018 o Réu divorciou-se da filha da Autora tendo voltado para Portugal, onde permanece até ao momento.
6 – A A. efectuou várias tentativas para entrar em contacto com o Réu, para que este procedesse à devolução do montante pago pela Autora, mas o mesmo têm-se recusado a abordar o assunto.
7 - No dia 14 de Outubro de 2020, a Autora, através da sua Ilustre Advogada, enviou uma carta registada com AR, ao Réu com o objetivo de marcação de uma reunião “para discutir os assuntos que se encontram pendentes”, porém, apesar da receção da carta, o Réu manteve-se no silêncio não querendo colaborar.
8 - Mais tarde no dia 10 de novembro de 2020, a Autora solicitou a Notificação Judicial Avulsa do Réu para que este procedesse à restituição do montante de €19.117,59 (dezanove mil cento e dezassete euros e cinquenta e nove cêntimos), não constando dos autos que tal notificação foi cumprida.
9 - O Réu não procedeu ao pagamento do valor pedido nos autos.
10 – O casal que foi formado pelo R. e pela R… sempre viveu acima das suas possibilidades, sendo que tal era possível porque quer os pais do R. quer os pais da R…, filha da A., lhes davam quantias em dinheiro.
11 - A sociedade comercial referida em 3 dos Factos Provados foi constituída com o nome de “D…, LDA”, com o capital social de € 5 000,00 (cinco mil euros), em Abril de 2008, tendo como sócio, entre outros, o aqui R., casado à época com R…, no regime de comunhão de adquiridos.
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B – FACTOS NÃO PROVADOS
Não se mostra provado que:
1 – O R. tenha retirado proveitos económicos e financeiros da identificada em 3 e 11 dos Factos Provados, nem que auferisse da D…, LDA. uma remuneração mensal a título de salário.
2 – A relevante fonte de rendimento do casal formado pelo R. e pela sua mulher naquela altura proviesse da actividade económica dessa empresa.
3 – Fosse com aquele rendimento que o R. e a sua mulher pagavam as suas refeições, as suas despesas do dia a dia, as rendas, o seu vestuário e o dos seus filhos.
4 - Fosse com aquele rendimento que o casal formado pelo R. e pela sua mulher compravam os bens essenciais à sua sobrevivência e tudo aquilo que quisessem e pudessem comprar nomeadamente viaturas, objectos de decoração, imóveis e móveis.
5 – A A. tenha procedido ao pagamento da quantia pedida nos autos nos termos de uma doação da A. ao R. e à sua filha, R…, que, em Outubro de 2017, ainda formavam um casal unidos pelo casamento.
6 - A A. tenha efectuado o pagamento das dívidas fiscais em causa nos autos apenas porque quis e sem que o R. lhe tenha dados instruções nesse sentido.
7 - Não raras vezes quer o A. quer a agora sua ex-mulher se dirigissem aos seus pais e sogros pedindo-lhes que estes lhes doassem várias quantias em dinheiro nunca em valor inferior a € 5 000,00, nem que os pais e sogros do R. e da sua mulher acedessem e dessem esses valores.
8 - Esses pedidos e entregas de dinheiro acontecessem de forma mensal ao longo de um ano civil.
9 - Os pais e sogros do casal doassem as quantias referidas em 7 e 8 e também lhes pagassem dívidas que estes iam acumulando, nem que tal tenha sido o caso da alegada dívida dos autos.
10 - Aquando da constatação da existência da dívida fiscal em causa nos autos, quer o R. quer a sua esposa tenham dito à sua sogra e mãe que não tinham o valor para pagamento, nem que perante tal a A. se tenha predisposto a pagar aquela dívida em nome do casal sem que tenha existido entre as partes qualquer obrigação de reembolso.
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V. Da reapreciação da matéria de facto.
O actual Código de Processo Civil introduziu um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, sujeitando a sua admissão aos requisitos previstos pelo art.º 640º do Código de Processo Civil.
Embora tal reapreciação tenha alcançado contornos mais abrangentes, não pretendeu o Legislador que se procedesse, no Tribunal Superior, a um novo Julgamento, com a repetição da prova já produzida nem com o mesmo limitar de alguma forma o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido.
Em caso de dúvida, porém, e como se encontra consagrado no artigo 414º do Código de Processo Civil, a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
E, no caso de reapreciação da prova pelo Tribunal Superior, entende  Ana Luísa Geraldes, Impugnação, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610, que “(…) em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte (…) O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.”
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o Tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
 Desta forma, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada convicção, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, “(…) tal não impede a Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada” (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
Posto isto, para que o Tribunal Superior assim se possa pronunciar sobre a prova produzida e reapreciar e decidir sobre a matéria de facto, sem que tal acarrete na verdade todo um novo julgamento e repetição da prova produzida, impõe-se à parte que assim pretende recorrer que cumpra determinados requisitos, previstos no citado art.º 640º do Código de Processo Civil, aqui observados pelo Recorrente.
Ainda assim, para além destes requisitos, impõe-se ainda que a requerida reapreciação verse sobre factos que interessem à decisão da causa, não cabendo ao Tribunal pronunciar-se, por a tanto lhe ser vedado pelo art.º 130º do Código de Processo Civil, que estabelece a limitação da prática de actos inúteis, sobre factos irrelevantes para a decisão de mérito.
Assim se decidiu, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/4/2022, proferido no Proc. n.º 9805/18.5T8LRS.L1-2, citando outra jurisprudência: “Acrescenta-se, então, citando Acórdão desta Relação de 27/11/2018 [Processo nº. 1660/14.0T8OER-E.L1] que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem reconhecendo que “a reapreciação da matéria de facto não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa, pelo que sempre que se conclua que a reapreciação pretendida é inútil – seja porque a decisão sobre matéria de facto proferida pela primeira instância já permite sustentar a interpretação do direito aplicável ao caso nos termos sustentados pelo recorrente, seja porque ainda que proceda a impugnação da matéria de facto, nos termos requeridos, a decisão da causa não deixará de ser a mesma – a reapreciação sobre matéria de facto não deve ter lugar, por constituir um ato absolutamente inútil, contrariando os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º, e 138.º do CPC)” (sublinhado nosso) [Em idêntico sentido, citam-se ainda, entre outros, os doutos acórdãos da Relação de Guimarães de 10-09-2015, no processo 639/13.4TTBRG.G1, e 11-07-2017, no processo n.º 5527/16.0T8GMR.G1, da Relação do Porto de 01-06-2017, no processo n.º 35/16.1T8AMT-A.P1, e do STJ de 13-07-2017, no processo 442/15.7T8PVZ.P1.S1, todos in www.dgsi.pt].
Em consonância, refere-se expressamente no douto Acórdão do STJ de 17/05/2017 [Relatora: Fernanda Isabel Pereira, Processo nº. 4111/13.4TBBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt], que “o princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo”, tratando-se de uma das “manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Acrescenta, nada impedir “que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questões que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis”.
Pelo que, conclui, “para se aferir da utilidade da apreciação da impugnação da decisão fáctica importa considerar se os pontos de facto questionados se não apresentam de todo irrelevantes, se a eventual demonstração dos mesmos é susceptível de gerar um juízo diferente sobre a questão de direito, se é passível de influenciar e, porventura, alterar a decisão de mérito no quadro das soluções plausíveis da questão de direito”.
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Feito este enquadramento, pretende o Recorrente ver aditados dois Factos Provados à matéria de facto constante da Sentença, com a seguinte redacção:
- Que aquando do pagamento da [quantia] referida em 4 dos factos dados como provados, a A. não estabeleceu com o R. condições, prazo e forma de reembolso do valor que pagou junto das Finanças e que só volvidos mais de 2 (dois) anos depois do pagamento que efectuou junto das Finanças, e estando já o R. divorciado da sua filha, é que a A. reclamou o pagamento da quantia junto daquele;
- A A. dava várias quantias de dinheiro ao casal sem que pedisse a este o seu reembolso, ou seja, tratavam-se de verdadeiras doacções ao casal.
O primeiro facto que se pretende ver aditado pode ser desdobrado em dois:
- Que aquando do pagamento da [quantia] referida em 4 dos factos dados como provados, a A. não estabeleceu com o R. condições, prazo e forma de reembolso do valor que pagou junto das Finanças;
- Só volvidos mais de 2 (dois) anos depois do pagamento que efectuou junto das Finanças, e estando já o R. divorciado da sua filha, é que a A. reclamou o pagamento da quantia junto daquele;
Ora, tanto este último Facto - Só volvidos mais de 2 (dois) anos depois do pagamento que efectuou junto das Finanças, e estando já o R. divorciado da sua filha, é que a A. reclamou o pagamento da quantia junto daquele - como o Facto - A A. dava várias quantias de dinheiro ao casal sem que pedisse a este o seu reembolso, ou seja, tratavam-se de verdadeiras doacções ao casal - se mostram inúteis para a decisão da causa; o primeiro porquanto está já decidida a questão da prescrição, com trânsito em julgado e mostra-se ainda assente o que consta em 7 e 8 dos Factos Provados; o segundo uma vez que o que está em causa é o concreto e muito específico pagamento reclamado pela A. nos autos, sendo perfeitamente irrelevante a matéria em causa.
Desta forma, relativamente a estes dois factos rejeita-se a reapreciação requerida.
Quanto ao Facto: - Que aquando do pagamento da [quantia] referida em 4 dos factos dados como provados, a A. não estabeleceu com o R. condições, prazo e forma de reembolso do valor que pagou junto das Finanças – pois bem, ouvida na íntegra a prova produzida em audiência de julgamento tal facto resulta assente, tal como decorre desde logo das declarações de parte da própria A., que referiu que as dívidas iam surgindo e ela comunicava com o R. pelo telefone e mandava os comprovativos e o R. dizia “… a tia pague que eu depois faço contas consigo…”; e neste caso específico o R. terá ainda dito que “…depois pedia ao pai”.
Desta forma, adita-se à matéria de Facto Provada o seguinte:
“12- Que aquando do pagamento da [quantia] referida em 4 dos factos dados como provados, a A. não estabeleceu com o R. condições, prazo e forma de reembolso do valor que pagou junto das Finanças.”
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Pretende ainda o R. que os seguintes factos Não Provados passem a constar como Provados:
1 – O R. tenha retirado proveitos económicos e financeiros da identificada em 3 e 11 dos Factos Provados, nem que auferisse da D…, LDA. uma remuneração mensal a título de salário.
3 – Fosse com aquele rendimento que o R. e a sua mulher pagavam as suas refeições, as suas despesas do dia a dia, as rendas, o seu vestuário e o dos seus filhos.
4 - Fosse com aquele rendimento que o casal formado pelo R. e pela sua mulher compravam os bens essenciais à sua sobrevivência e tudo aquilo que quisessem e pudessem comprar nomeadamente viaturas, objectos de decoração, imóveis e móveis.
Com a reapreciação de tais factos pretende o R. ver decidida a excepção de preterição de litisconsórcio necessário. Sucede que, como infra se decidirá, os factos aqui em causa igualmente se revestem de inutilidade para a decisão de mérito a proferir sobre a excepção em causa, pelo que igualmente se rejeita a sua reapreciação.
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O R. pretende ainda ver como Provados os seguintes Factos Não Provados:
5 – A A. tenha procedido ao pagamento da quantia pedida nos autos nos termos de uma doação da A. ao R. e à sua filha, R…, que, em Outubro de 2017, ainda formavam um casal unidos pelo casamento.
7 - Não raras vezes quer o A. quer a agora sua ex-mulher se dirigissem aos seus pais e sogros pedindo-lhes que estes lhes doassem várias quantias em dinheiro nunca em valor inferior a € 5 000,00, nem que os pais e sogros do R. e da sua mulher acedessem e dessem esses valores.
9 - Os pais e sogros do casal doassem as quantias referidas em 7 e 8 e também lhes pagassem dívidas que estes iam acumulando, nem que tal tenha sido o caso da alegada dívida dos autos.
Mais uma vez, a reapreciação do que consta em 7 e 9 é inútil; o que está em causa é o concreto e muito específico pagamento reclamado pela A. nos autos, sendo perfeitamente irrelevante a matéria em causa.
 Quanto ao Facto Não Provado 5, em que essencialmente está em causa se o pagamento efectuado pela A. se tratou de uma doação, o mesmo deve permanecer Não Provado, tal como decorre da ponderação da prova produzida em Audiência.
Assim, a testemunha M…, amiga da A. há mais de cinquenta anos, referiu saber que a A. era a representante fiscal do R. quando este e a filha da A. foram viver para o Brasil, a pedido do R. e porque este confiava na A.
Costumava acompanhar a A. sempre que esta tinha um problema nas finanças, uma vez que a testemunha tem o curso comercial e trabalhava em contabilidade.
Presenciou o telefonema da A. para o R. a informar da dívida aqui em causa, em que a A. disse ao R. que ele tinha esta dívida para pagar e o R. respondeu “Ó tia por favor pague…”; a testemunha fixou o valor da dívida porque era muito elevado, uma dívida de uma sociedade do R. que reverteu para ele; a A. era a representante dele, tinha de ser ela a pagar.
Acompanhou a A. a levantar as guias para o pagamento.
Sabe que a A. teve de resgatar uma aplicação que tinha no Banco, porque não tinha dinheiro na altura; a A. pensou que o R. ia reembolsá-la.
A A. telefonou ainda para a testemunha mais tarde, quando pediu o dinheiro ao R. e este não pagou.
Foi peremptória a dizer que não houve doação nenhuma; a A. vivia só do seu rendimento e do marido e não tinha bens; mais afirmou que este pagamento nada teve a ver com ofertas de dinheiro que de vez em quando a A. fazia à filha, ao casal ou aos netos.
A…, funcionário bancário, tratou da liquidação de um depósito a prazo da A. que utilizou para o pagamento da dívida em causa.
Sabe que nessa altura o R., genro da A., estava no Brasil; sabe que de vez em quando a A. fazia transferências mas não eram valores muito elevados; está convicto que nesta situação a A. efectuou o pagamento porque o genro não estava e a A. iria depois fazer um acerto de contas.
R…, filha da A. igualmente refere que neste caso não estava em causa qualquer doação por parte da mãe; souberam na altura que havia este pagamento para fazer e a mãe pagou porque estava aqui, fez o favor em fazer essa diligência porque o R. estava longe.
JC…, pai do R., referiu que apenas soube da existência desta dívida quando teve de vir a tribunal, pelo que pouco soube esclarecer em concreto; mas na verdade referiu que se o filho lhe pedisse para ser representante fiscal, não aceitava, porque tinha uma vida muito ocupada. Sobre a atitude do filho, entende que “Ou ele achava que era mais um presente e não interiorizou que era para pagar…” mas acha que não era habitual a sogra dar 20 mil euros.
O R. nas suas declarações reiterou entender que o dinheiro reclamado pela A. não é devido, entendendo que o pagamento do imposto em causa foi mais uma das ofertas da sogra e indigna-se por lhe virem pedir uma das coisas que lhe deram dois anos depois.
A A. em declarações de parte mantém que esta dívida não era uma das ofertas que fazia em contexto familiar, nem foi uma doação.
Ora, da ponderação conjunta destas declarações e depoimentos, fazendo apelo a regras de experiência comum, não se pode considerar provado que o pagamento da dívida fiscal aqui em causa, de uma das sociedades do R., pela sua sogra, tenha sido efectuado sem que a A. pretendesse o reembolso de tal quantia, quer pela origem e natureza da dívida, quer pelo montante da mesma e o esforço que implicou para a A. proceder ao seu pagamento.
Assim, o facto mantém-se como Não Provado.
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VI. Do Direito.
Decidida a reapreciação da matéria de facto, cumpre agora entrar na análise das questões jurídicas suscitadas no presente recurso.
Invoca o R. que deveria ter sido absolvido da instância nos termos e para os efeitos do artigo 577.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil, por se ter violado o disposto pelo artigo 34.º, número 1 e 3 do Código de Processo Civil na medida em que, sendo uma dívida que afecta o património comum do casal conforme determina o artigo 1691.º, n.º 1, alínea d) do Código Civil, esta acção deveria ter sido instaurada contra o R. e contra a sua cônjuge da altura – a filha da A.
Dispõe o art.º 34º do Código de Processo Civil que devem propostas por ambos ou contra ambos os cônjuges:
“1 - Devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as ações que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família.
2 - Na falta de acordo, o tribunal decide sobre o suprimento do consentimento, tendo em consideração o interesse da família, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 29.º.
3 - Devem ser propostas contra ambos os cônjuges as ações emergentes de facto praticado por ambos os cônjuges, as ações emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão suscetível de ser executada sobre bens próprios do outro, e ainda as ações compreendidas no n.º 1.”
Ao caso apenas é susceptível de ter aplicação o disposto pelo n.º 3 da norma citada, na parte em que dispõe que devem ser intentadas contra ambos os cônjuges as acções emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão suscetível de ser executada sobre bens próprios do outro.
No entanto, este segmento da norma não impõe o litisconsórcio necessário.
Conforme pode ler-se em Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pg. 61, em anotação ao art.º 28º-A, n.º 3 do Código de Processo Civil, cuja redacção se manteve inalterada no art.º 34º, n.º 3 do Código de Processo Civil, considerando estar-se perante litisconsórcio necessário no que à primeira e última parte da redacção daquele n.º 3 respeita mas esclarecendo que “Já no segundo caso a redacção do preceito inculca que a acção (de dívida) só deve ser proposta contra ambos os cônjuges quando se pretenda obter decisão suscpetível de ser executada sobre bens próprios do cônjuge que não praticou o acto que constitui a causa de pedir. Se, pelo contrário, não obstante a comunicabilidade da dívida, o credor lhe quiser dar o tratamento das dívidas próprias do autor do acto, executando apenas os seus bens e, subsidiariamente, a meação dos bens comuns, poderá propor a acção apenas contra ele.  O caso é, pois, de litisconsórcio voluntário e não de litisconsórcio necessário.”
Perfilha-se este entendimento, pelo que não se verifica qualquer ilegitimidade do R. por preterição de litisconsórcio necessário.
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Pretende o R. que ao caso não tem aplicação o instituto do enriquecimento sem causa, uma vez que este apenas tem aplicação subsidiária.
Alega o R. que “…não estávamos perante um enriquecimento sem causa mas sim perante uma eventual acção de condenação para restituição de despesas e/ou indemnizatória por força da violação de uma das obrigações impostas ao R. na qualidade de mandante – no fundo litigava-se por causa de um incumprimento contratual.”
Sobre o incumprimento contratual invoca o R. “…que a representação fiscal por ausência prolongada do território configura, tout court, que a dívida fiscal foi paga no âmbito de um contrato de mandato – in casu, na modalidade de representação fiscal” pelo que “…a A. tinha ao seu dispor outros meios de reembolso do valor que adiantou, nomeadamente, por violação dos deveres a que estava obrigado o R. por força do mandato que atribuiu à A., nomeadamente, aqueles que estão consagrados no artigo 1167.º, alínea c) e d).
De seguida invoca o R. que “Da matéria de facto dada como provada – sem as alterações agora preconizadas por via desta peça – o tribunal a quo apenas reconhece que a A., ora recorrida, pagou uma dívida registada em nome do R., ora recorrente, sem que ali reconheça que tipo de relação jurídica se estabeleceu para que esse pagamento ocorresse – se por força de um mútuo ou se por força de uma doacção. (…) Todavia, na fundamentação que apresenta, o tribunal a quo entende que a A., com dinheiro seu, a pedido do R., procedeu ao pagamento da uma dívida fiscal deste, valor que deveria ser restituído à A. e que embora a A. lhe tenha dado oportunidades para o fazer o R. não lhe pagou tal quantia (…) Ou seja: (…) um verdadeiro contrato de mútuo.”
Antes de mais, impõe-se clarificar a figura do representante fiscal, socorrendo-nos aqui do que se refere no Acordão do Tribunal Central Administrativo Sul de 3/5/2018 proferido no Proc. 711/11.5BELRS:
“1. O artº.27, da L.G.T., na redacção resultante da Lei 107-B/2003, de 31/12 (OE de 2004) prevê a responsabilidade solidária pelo pagamento do imposto de duas figuras jurídicas distintas: a do gestor de bens ou direitos e a do representante fiscal, neste último caso, por via da presunção consagrada no nº.3 daquela norma.
2. Haverá, antes de mais, que fazer a distinção entre estas duas figuras jurídicas de representantes de residentes no estrangeiro (cfr.artº.19, nº.6, da L.G.T.; artº.130, nº.1, do C.I.R.S.; artº.126, nº.1, do C.I.R.C.).
3. O representante fiscal correspondente ao elo de ligação formal entre o contribuinte e a Administração Fiscal, necessário em função da distância física entre aquele e esta, justamente porque a designação em causa apenas se exige perante contribuintes não residentes em território nacional. O representante fiscal está onerado com a responsabilidade pelo cumprimento das diversas obrigações acessórias (v.g.obrigações declarativas) do sujeito passivo propriamente dito, mas sem que tal encerre em si mesmo a própria obrigação principal de pagamento de imposto. Essa não sujeição à obrigação de pagamento do imposto é facilmente compreensível, na medida em que o representante não tem, em princípio, quaisquer meios para controlar a produção ou a transferência do rendimento para o não residente, justamente por a sua intervenção ser apenas formal. O representante, por definição e enquanto tal, não tem intervenção na obtenção de rendimentos e na gestão de património por parte do sujeito passivo não residente, sendo, ao invés, apenas o interlocutor entre este último e a Administração Fiscal, para efeitos exclusivamente formais.
4. Por sua vez, os gestores de bens ou direitos são todas aquelas pessoas singulares ou colectivas que assumam ou sejam incumbidas, por qualquer meio, da direcção de negócios de entidade não residente em território português, agindo no interesse e por conta dessa entidade (cfr.artº.27, nº.2, da L.G.T.). O legislador foi assim claro quanto à delimitação do âmbito subjectivo deste preceito. Não é qualquer pessoa que tenha uma relação estreita com um sujeito passivo não residente que é responsável solidário pelas suas dívidas fiscais, mas, apenas, aquele que assuma ou que seja incumbido da direcção de negócios do não residente e que aja no interesse e por conta dessa entidade. Há, assim, apelo, a um tempo, às regras da gestão de negócios (cfr.artº.464 e seg. do C. Civil), aplicáveis quando “uma pessoa assume a direcção de negócios alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada”, e, bem assim, às regras do mandato, enquanto “contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra” (cfr.artº.1157 e seg. do C.Civil). Em qualquer um dos casos, para os quais o legislador remete, torna-se clara a intenção de onerar o “gestor de bens ou direitos” com a responsabilidade fiscal, a partir do momento em que seja igualmente clara a sua capacidade de intervenção na própria “gestão” do cumprimento das obrigações tributárias.
5. Impende sobre o mero “representante fiscal”, enquanto tal, o dever de imediatamente informar a Administração Fiscal de uma de duas coisas, nos termos e para efeitos do artº.27, nº.3, da L.G.Tributária: ou da identificação do “gestor de bens ou direitos” do sujeito passivo não residente, no caso de existir; ou, em alternativa, da sua inexistência (o facto que serve de base ao funcionamento da presunção consiste na ausência da mesma informação). Tudo sob pena de se presumir a qualidade de gestor de bens ou direitos na pessoa do representante fiscal, assim passando a figurar como responsável solidário das dívidas do não residente. (…)”.
Ora, atentos os factos assentes nos autos, julga-se afastada a presunção prevista pelo art.º 27º, n.º 3 da Lei Geral Tributária, actuando a A. enquanto mera representante fiscal do R. e não como gestora de negócios – a sê-lo, teria de ser da sociedade devedora de imposto, o que não se verifica, como decorre dos Factos Provados1 e 2 – a A. aceitou ser apenas representante fiscal do seu genro porquanto o casal formado por este e a filha da A. se deslocaram para o estrangeiro; e nada mais do que isso.
E como esclarecido ainda no Parecer Técnico ordem dos contabilistas certificados, disponível em https://www.occ.pt/pt-pt/noticias/representante-fiscal:
“…Conforme foi esclarecido em despacho de 11 de maio de 1993, sobre a extensão das obrigações e a responsabilidade do representante fiscal, não é correto estabelecer uma responsabilidade fiscal subsidiária do representante fiscal previsto nos artigos 101.º do Código do IRC e 120.º do Código do IRS (artigos aplicáveis à data), uma vez que este, em princípio, não tem quaisquer meios para controlar a produção ou a transferência do rendimento para o não residente. (…)
Assim, para efeitos de impostos sobre o rendimento, o representante fiscal tem a responsabilidade de garantir o cumprimento dos deveres tributários acessórios, como obter o número de identificação fiscal do não residente, entregar declarações fiscais, guardar os documentos comprovativos de despesas e rendimentos e prestar esclarecimentos à AT. Adicionalmente, o representante pode responder por infrações fiscais do sujeito passivo que representa, mas não será responsabilizado pelo pagamento de impostos devidos por este. Só no caso de ser igualmente gestor de bens ou direitos do sujeito passivo não residente é que o representante fiscal passa a ser solidariamente responsável por todas as contribuições e impostos do não residente relativos ao exercício do seu cargo, estando, assim, obrigado ao pagamento dos impostos do representado. (…)”.
Nos termos do art.º 1157.º do Código Civil, o mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra.
Ora, como resulta do que se vem expondo, a A. não se constituiu em qualquer obrigação de proceder ao pagamento do imposto em causa, inexistindo desta forma qualquer contrato de mandato.
Alega ainda o R. que o pagamento em causa se traduziu num mútuo, alegando igualmente porém que se tratou de uma doação.
De acordo com o art.º 940º do Código Civil, a doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.
Já o mútuo está previsto no art.º 1142.º do Código Civil, como aquele contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
Que no caso dos autos não se tratou de uma doação nem de um contrato de mútuo decorre da própria contestação do R., ao invocar estes institutos jurídicos contraditórios entre si – sendo o R. parte nos alegados contratos deveria saber qual o contrato específico celebrado com a A., ao invés de tentar enquadrar a conduta da A. em qualquer instituto jurídico possível tendo em vista levar à improcedência da acção…
Ora, que a quantia paga pela A. não foi doada ao R. resulta dos Factos Provados 6, 7 e 8 e Facto Não Provado 5.
Quanto a um contrato de mútuo, igualmente não resultou o mesmo provado, não tendo ficado acordado entre as partes qualquer empréstimo e quaisquer condições, prazos, etc. para a sua restituição, nem consta que um qualquer suposto contrato de mútuo tenha observado a forma prevista pelo art.º 1143º do Código Civil; antes decorre da factualidade provada que a A. procedeu ao pagamento da quantia em causa apenas porque o R. era seu genro e decorrente da circunstância de na altura o R. estar ausente no estrangeiro mas sem que lhe pretendesse doar ou mutuar tal quantia, ocorrendo tal pagamento e tão somente no âmbito da relação familiar na altura existente, sendo que o R. já regressou do estrangeiro e o vínculo familiar veio porém a perder-se com o divórcio entre a filha da A. e o R.
Verifica-se assim um enriquecimento sem causa do R. à custa da A., tal como este vem previsto pelo art.º 473.º do Código Civil:
“1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.”
Decorre deste normativo que para que se possa falar de enriquecimento sem causa é necessário que se verifiquem cumulativamente três requisitos:  o enriquecimento de outrem; sem causa justificativa; à custa do empobrecido.
No caso não há dúvida que ocorreu uma transferência patrimonial da esfera jurídica da A. para o R.
Igualmente se entende que a justificação pela qual a A. procedeu ao pagamento em causa deixou de existir, pelo que a ausência de causa está demonstrada nos autos. Igualmente logrou a A. afastar a existência de uma qualquer obrigação contraída com o R. e que fundamentasse a peticionada restituição da quantia peticionada nos autos, como era seu ónus.
Vejamos, por pertinente para o que aqui se vem dizendo, o que se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2020, proferido no Proc. 3627/17.8T8STR-A.E1.S1 e disponível em www.dgsi.pt:
“Todavia, a obrigação de restituir pressupõe também, conforme dissemos, que o enriquecimento careça de causa justificativa, cabendo ao empobrecido alegar e provar a falta de causa atributiva da vantagem patrimonial que integra o enriquecimento, atenta a regra de direito probatório contida no artigo 342º, n.º 1 do CC.
A lei não define o que seja causa do enriquecimento, mas deixa algumas indicações no n.º 2 do artigo 473º sobre as hipóteses integradoras desse conceito, ao referir que a obrigação de restituir tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou. 
A propósito do conceito de causa no enriquecimento injusto, escreve Pedro Pais de Vasconcelos [Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “Teoria Geral do Direito Civil”, 9ª edição, página 322]: “Todas as atribuições e deslocações patrimoniais, todos os actos e negócios jurídicos, todo o agir privado autónomo tem motivação subjectiva subjacente à sua deliberação, tem finalidade que o orienta, e desempenha uma função pessoal concreta ou social geral. A causa liga estas realidades com o Direito e permite avaliar a compatibilidade do agir negocial privado com o ordenamento jurídico”. Por isso é que Antunes Varela conclui que “quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa” [Ob. cit., página 408]. Ao invés, o enriquecimento não tem causa quando a atribuição patrimonial de que decorre não encontra fundamento jurídico, ou porque se frustrou a sua finalidade ou função, ou porque cessou ou não subsiste a respectiva justificação [Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “Teoria Geral do Direito Civil”, 9ª edição, página 319]. A ausência de causa justificativa - quer porque nunca tenha existido, quer porque, existindo inicialmente, entretanto se tenha esvanecido - traduz-se na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz do direito, da ordenação jurídica dos bens ou dos princípios aceites pelo ordenamento jurídico, legitime tal enriquecimento.
A noção de causa varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe serve de fonte: causa da prestação, causa da obrigação negocial, causa das restantes deslocações patrimoniais [Antunes Varela, ob. cit. páginas 404 a 409].
A diversidade de situações é tal que, para o Conselheiro Júlio Gomes [“Enriquecimento sem causa e união de facto”, página 14 do texto da comunicação apresentada a 18 de Maio de 2017 no Salão Nobre do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do II Colóquio sobre o Código Civil, Comemorações do Cinquentenário], seria melhor, à semelhança da actual lei francesa, evitar a palavra causa e falar simplesmente em justificação.
No caso vertente, a causa da deslocação dos valores patrimoniais da Autora para o Réu, de acordo com o alegado pela própria (cfr. artigos 73º a 75º da petição inicial), foi o projecto de vida em comum que conceberam, do qual fazia parte a realização de obras e melhoramentos no imóvel pertencente ao Réu, de modo a servir de morada do casal.
As contribuições monetárias da Autora para a conclusão da moradia do Réu tiveram, portanto, uma causa jurídica, concretizada na adopção dessa moradia como residência do casal, tendo a Autora para aí canalizado essas contribuições.
Com o divórcio de ambos, em ... de Dezembro de 2014, extinguiu-se a causa, deixando de haver justificação para o enriquecimento do Réu [Cfr, neste sentido, os acórdãos deste STJ de 17.01.2002, no processo n.º 01B4058, (Conselheiro Quirino Soares), e de 19.04.2018, no processo n.º 2440/13.6TBLRA.C1.S1 (Conselheira Fernanda Isabel Pereira), ambos em www.dgsi.pt]. Foi a própria Autora quem o disse nos artigos 76º e 78º da petição, cumprindo dessa forma o ónus de alegação que, conforme referimos, lhe cabia.”
Tal jurisprudência tem inteira aplicação ao caso dos autos; com a dissolução do vínculo matrimonial entre o R. e a filha da A. cessou toda e qualquer causa - melhor dizendo e como referido no Acórdão que se acabou de citar, toda e       qualquer justificação para a deslocação patrimonial em causa.
Estão assim verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa, devendo assim manter-se a condenação do R. e tal como decorre do art.º 479º do Código Civil, na restituição do montante despendido pela A.
Em suma, o recurso improcede, mantendo-se a Sentença proferida.
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VII. Das Custas do Recurso.
Vencida no Recurso, é o apelante o responsável pelo pagamento das custas devidas, nos termos do art.º 527, n.º 1 do Código de Processo Civil.
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DECISÃO:
Por todo o exposto, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a Sentença proferida pela 1ª Instância.
Custas do Recurso pelo Recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 6/3/2025
Vera Antunes
Gabriela Fátima Marques
Adeodato Brotas