EXTRADIÇÃO
EXECUÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA PENAL ESTRANGEIRA
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
CUMPRIMENTO DE PENA
PENA DE PRISÃO
CONVENÇÃO INTERNACIONAL
Sumário


I – Para que a suspensão da execução da pena de prisão possa ser decretada é necessário que se verifique um pressuposto formal – não ser a pena superior a 5 anos – e, cumulativamente, um pressuposto material – que seja possível fazer um juízo de prognose segundo o qual, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, se possa concluir - com alguma firmeza mas sem que se exija uma certeza quanto ao desenrolar futuro do comportamento do arguido - que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição;
II – Esse juízo de prognose deve ser feito com referência ao momento da decisão e não ao momento da prática dos factos;
III – O Código Penal considera que o decurso de 15/20 anos sobre a prática dos factos, sem haja notícia de cometimento de outros crimes nem da ocorrência de má conduta, pode justificar e uma atenuação especial da pena, sendo também o prazo máximo para a prescrição do procedimento criminal e das penas;
IV – Face ao atrás exposto, sendo o arguido primário e não lhe sendo conhecida a prática de qualquer outro ilícito, estando a trabalhar e encontrando-se inserido familiarmente, impõe-se que se lhe suspenda a execução da pena de 4 anos e 8 meses de prisão, por igual período.

Texto Integral


Acordam em Conferência na 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO

1. Enquadramento

O Requerente, natural do ... - República Federativa do Brasil (doravante “República do Brasil”), mas atualmente residente na ... - Portugal, foi condenado, no âmbito do processo n.°...00, por sentença n° ...5/2011, proferida a 18 de março de 2011, pela ...ª Vara da Secção Judiciária de ... - transitada em julgado a 26.2.2019 –, na pena de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão, a ser cumprida em regime fechado, pela prática do crime continuado de recetação, previsto e punível pelos artigos 180º, §1° e 71º do Código Penal da República Federativa do Brasil (doravante “República do Brasil”).

Dado residir em Portugal e na sequência de pedido da República do Brasil, foi instaurado, na 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, o Processo de Extradição n.°553/23.5..., no qual foi deferido o pedido, através de acórdão proferido a 9 de maio de 2023, determinando-se a entrega do recorrente às autoridades brasileiras para, naquele país, cumprir a aludida pena.

Contudo, o AA solicitou o cumprimento dessa pena em Portugal, o que foi aceite pelas autoridades brasileiras.

Assim e por despacho de 12 de maio de 2023, do Juiz Federal da ...ª Vara Federal de ..., foi decidida a suspensão da entrega do arguido até ser decidido pelas autoridades judiciais portuguesas o pedido de cumprimento da pena em Portugal.

Em sequência, veio então o Ministério Público junto da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, por solicitação das autoridades brasileiras, requerer, no Tribunal da Relação de Lisboa, a revisão e a confirmação da acima referida sentença penal proferida pela ...ª Vara do Tribunal de Justiça Federal de ....

O pedido foi formulado ao abrigo dos artigos 95º e sgs. da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, aprovada pela Lei nº 144/99 de 31 de agosto (doravante LCJIMP), e dos artigos 234º a 240º do Código de Processo Penal.

1. Anteriores acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa e deste STJ

• O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 10 de janeiro de 2024, decidiu declarar como revista e confirmada a sentença revidenda, passando aquela a produzir todos os seus efeitos em Portugal, tendo, designadamente e para o que ora interessa, decidido o seguinte:

“Declarar revista e confirmada a sentença proferida pelo tribunal da República Federativa do Brasil, supra identificado, com vista à execução em Portugal da pena em que foi condenado o arguido AA”.

Inconformado com essa decisão veio o requerido interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão prolatado a 21 de maio de 2024, lhe deu razão, decidindo, também para o que ora interessa, o seguinte:

“Pelo exposto, julga-se o recurso procedente quanto à adaptação/conversão da pena de prisão solicitada, a efetuar no Tribunal recorrido nos termos atrás mencionados no ponto 3.2.4.”1

• Tendo os autos baixado ao Tribunal da Relação de Lisboa proferiu este acórdão, a 10 de julho de 2024, no qual foi decidido:

“(…)

- Indeferir as pretensões formuladas pelo Requerido nas suas alegações;

- Declarar revista e confirmada a sentença proferida pelo tribunal da República Federativa do Brasil, supra identificado, com vista à execução em Portugal da pena em que foi condenado o arguido AA, ficando este condenado pelo crime de receptação p. e p. pelo art. 231º nº 1 do Código Penal Português e adaptando-se a pena à lei portuguesa, fixando-se em cinco anos a pena que o condenado tem de cumprir.”

Ainda inconformado, o arguido interpôs novamente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à possibilidade de suspensão da execução da pena de 5 anos de prisão e pretendendo que tal suspensão seja decretada.

• Por acórdão de 24 de outubro de 2024 o Supremo Tribunal de Justiça veio a declarar nulo o referido acórdão deste Tribunal da Relação e determinou, em síntese, que:

- fosse apreciada “(…) a matéria de facto apurada e tendo em conta a moldura abstracta do crime a que a mesma era subsumível, encontrasse a pena concreta que “ao caso coubesse”.

E, como pretendido no recurso, que:

- fosse conhecida da “possibilidade de suspensão da execução da pena”.

* * * *

1. A decisão recorrida

Prosseguindo o processo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 05 de dezembro de 2024, decidiu o seguinte:

Nestes termos, acordam os juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em obediência ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nestes autos, em:

Declarar revista e confirmada a sentença proferida pelo tribunal da República Federativa do Brasil, com vista à execução em Portugal da pena em que foi condenado AA, ficando este condenado pela prática do crime de receptação, previsto e punido pelo artigo 231.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 4 anos e 8 meses de prisão.

2. O recurso

Continuando inconformado com o decidido vem, mais uma vez, o arguido recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas motivações com as seguintes conclusões (transcrição Integral):

“- CONCLUSÕES

1. O arguido, ora recorrente, foi condenado por sentença proferida em 18 de novembro de 2011 e transitada em julgado em 26/02/2019, proferida pela ....º Vara do Tribunal de Justiça Federal de ..., e confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça do Estado de ..., República Federativa do Brasil, na pena de 8 anos e 4 meses, pela prática de 1 crime de receptação qualificada, previsto e punido pelos artigos 180.º, parágrafo 1.º e artigo 71.º, do Código Penal da República Federativa do Brasil, crime este que encontra correspondência no artigo231.º, n.º1 doCódigoPenal Português.

2. Conforme resulta do acórdão recorrido, os factos que motivaram a condenação do requerido são puníveis pela lei portuguesa, nos termos do artigo 231.º, n.º 1 do Código Penal Português, cuja pena máxima é de 5 anos de prisão.

3. O Tribunal recorrido declarou revista e confirmada a sentença revidenda, após o reenvio dos presentes autos pelo Supremo Tribunal de Justiça, adaptando a pena à lei portuguesa, fixando-se em 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses a pena que o condenado tem de cumprir.

4. Entende o recorrente que se impõe a modificação da decisão do tribunal “a quo” sobre uma diferente interpretação da matéria de direito aplicável, nos termos do artigo 412.º, n.º 2, do Código do Processo Penal, designadamente a questão da medida da pena.

5. Porquanto, entende o recorrente que o Tribunal “a quo” deveria ter suspendido a pena de prisão efectiva, nos termos do artigo 50.º do Código Penal, por remissão dos artigos3.º, n.º1 e 2e 101.º, n.º1, 2 e 6, ambosda Lei 144/99, de31 de agosto(LCJIMP).

6. Ora, a Legislação Portuguesa prevê a possibilidade da suspensão da execução de penas em medidas não superiores a 5 (cinco) anos, porquanto nos termos do n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

7. Para as exigências de prevenção geral e especial deve-se relevar não só a personalidade do arguido, bem como as regras do Estado onde o arguido se encontra e onde cumprirá a pena de prisão, designadamente para efeitos de ressocialização, ou seja, tendo sempre em conta o artigo 71.º do Código Penal.

8. Por esse motivo, o recorrente requereu ao Tribunal “a quo” a elaboração do seu relatório social, o qual nunca foi elaborado.

9. Com efeito, o recorrente, nos presentes autos de revisão de sentença penal estrangeira, foi condenado a uma pena de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão efectiva.

10. Entende o Tribunal recorrido que não deverá ser aplicada a suspensão da pena, porquanto alegadamente a gravidade dosfactosafastamqualquer juízo de prognose favorável quanto ao comportamento do arguido, sendo que o facto de estar socialmente bem inserido (sublinhado nosso) não assume particular relevo.

11. Não podemos concordar com este entendimento. Vejamos então:

12. O recorrente é primário, sem antecedentes criminais.

13. O recorrente trabalha e está bem integrado socialmente.

14. Desde que se iniciou o procedimento judicial contra sua pessoa, o recorrente demonstrou um alto respeito pelas autoridades judiciárias, nunca se furtando à sua responsabilidade, quer no que diz respeito ao comparecimento das diligências para o qual foi convocado, bem como pela apresentação diária na esquadra da PSP aquando da sua determinação.

15. Igualmente quando esteve preso no Estabelecimento Prisional 1 em ... e depois no Estabelecimento Prisional 2, no âmbito dos presentes autos, a sua conduta carcerária foi irrepreensível.

16. Efectivamente, não há nenhum benefício à Sociedade ser o recorrente preso neste momento da sua vida em que está sendo altamente produtivo.

17. Inclusive, o recorrente, conforme constará nos autos, foi notificado para proceder ao levantamento do seu Passaporte, nunca se colocando em fuga, sempre agindo com respeito pela Justiça.

18. O recorrente actualmente, isto é, desde maio de 2024, trabalha como motorista de pesados na empresa M..., apresentando uma conduta irrepreensível.

19. Aliás, quando foi colocado em liberdade, no âmbito dos presentes autos, em novembro de 2023, logo de seguida iniciou funções como motorista da plataforma UBBER.

20. Significa isto, que o recorrente sempre contribui para a economia portuguesa, pagando os seus impostos, descontando para a Segurança Social, sempre laborando,

nunca estando à mercê do Estado Português, diferentemente de muitos portugueses que vivem à custa de subsídios (sublinhado nosso).

21. Com efeito, o recorrente é mais útil para a sociedade portuguesa com uma pena suspensa do que em prisão efectiva, para não falar do efeito crimogéneo das prisões (conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no âmbito do processo n.º 67/12.9GCSTB.E1, em 09/10/2012, “como efeitos adversos dessa privação da liberdade, destacam-se a dessocialização decorrente da interrupção das relaçõesfamiliares, profissionais e sociais, bem como a má fama e descrédito associados a quem já alguma vez esteve preso”).

22. O artigo 50.º, do Código Penal, estabelece que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos, que é o caso, se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior aocrime e àscircunstânciasdeste, concluir que a simplescensura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

23. O facto de o recorrente já ter estado preso, e o facto de actualmente estar bem inserido socialmente e profissionalmente demonstra, no entendimento do recorrente, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

24. O tribunal recorrido, na verdade, não atendeu à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime, tanto que não foi elaborado relatório social.

25. Segundo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 11/02/2021, no âmbito do processo n.º 762/19.1GBAGD.P1.S1, “nos termos do art. 40.º do CP, que dispõe sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no art. 71.º, do mesmo diploma. Como se tem reiteradamente afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (art. 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos – adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva.”

26. Na esteira do entendimento do Professor Figueiredo Dias: "1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”

27. Por outro lado, como refere Anabela Rodrigues, "o modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena, Ano 12, n.º 2, abril a junho de 2002, 147/182), o art.º 40, do Código Penal, após a revisão de 1995, condensa em três proposições fundamentais um programa político-criminal: "Em primeiro lugar, a medida da pena éfornecida pela medida da necessidadedetutela debensjurídicos,isto é,pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas".

28. No caso concreto, uma rigorosa aplicação dos critérios de determinação da medida da pena enunciados no artigo 71.º do Código Penal (à luz da teorização enunciada supra) imporão a suspensão da pena na sua execução, visto que no plano da prevenção especial, não se mostra necessária uma resposta punitiva tão grave para promover uma eficaz recuperação do arguido, prevenindo a prática de comportamentos da mesma natureza, fazendo-lhe sentir a antijuridicidade e gravidade da sua conduta, visto que, este demonstrou sempre respeito pelas autoridades judiciárias, não se furtando às suas responsabilidades, demonstrando arrependimento.

29. Neste contexto, ponderados todos estes fatores e sem esquecer as condições pessoais e de personalidade do arguido afigura-se-nos incompreensível que o Tribunal recorrido não tenha optado pela suspensão da pena na sua execução.

30. Pelo que, entendemos que o Tribunal recorrido, ao condenar o arguido nos termos em que o fez, violou o estatuído nos artigos 40.º, n.º 1 e 71.º, n.º 1 e 2, ambos do Código Penal, e, bem assim, o Princípio da Proporcionalidade, previsto no artigo n.º 18, n.º 2 da CRP.

31. Entende o recorrente que, a suspensão da pena seria mais equitativa e justa, e seria suficiente para afastá-lo da prática de crimes de igual natureza, e satisfazia as necessidades da prevenção geral e especial, por exemplo, acompanhada nos termos do artigo 50.º, n.º 2, do Código Penal, de regime de prova.

32. Errou o Tribunal recorrido ao não ter aplicado a suspensão da execução da pena, prevista no artigo 50.º do Código Penal, por remissão dos artigos 3.º, n.º 1 e 2 e 101.º, n.º 1, 2 e 6, ambos da Lei 144/99, de 31 de agosto (LCJIMP).

33. Pelo que, deveriao Tribunalrecorrido teraplicado a suspensão da execução da pena, nos termos da legislação portuguesa e com base nas finalidades de prevenção geral e especial das penas.”

3. Resposta do Ministério Público

O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa apresentou resposta, na qual concluiu o seguinte (transcrição parcial):

“EM CONCLUSÃO:

7. O recorrente discorda de tal decisão, por entender que «o Tribunal a quo deveria ter suspendido a pena de prisão efetiva, nos termos do artigo 50.º do Código Penal».

8. É certo que, ao abrigo do disposto no art. 50.º, do Código Penal, o Tribunal pode suspender a execução da pena de prisão aplicada em medidanão superior acincoanos se,atendendo àpersonalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

9. No entanto, dos factos dados como assentes pelas autoridades judiciárias brasileiras resulta com clareza que estamos perante uma situação de recetação que durou, pelo menos, de 2005 a 2010, efetuada por um grupo de pessoas organizado para o efeito, que mantinha contactos dentro do sistema de saúde brasileiro, designadamente com funcionários do próprio sistema, os quais cuidavam de retirar os medicamentos da rede pública de saúde, que depois entregavam aos arguidos para posterior reinserção no mercado, contando estes com um sistema de produção de embalagens similares às originais, para acondicionar os medicamentos assim obtidos,

10.Sendo de salientarqueneste casoestáem causanão só aviolação de direitos patrimoniais de terceiros, como também a diminuição da disponibilidade desses medicamentos por parte do sistema de saúde brasileiro, com inerentes prejuízos para os seus utentes.

11. Ora, como bem se salienta no acórdão recorrido, a “acentuada gravidade dos factos e o tempo durante o qual decorreram afastam qualquer juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido”,

12. Nesta conformidade, entendemos que não se verifica qualquer vício, quer de natureza substantiva, quer de natureza formal ou adjetiva, nos necessários pressupostos e fundamentos que conduziram à decisão em recurso.”

4. Parecer

O Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer, do qual se extrai o seguinte excerto:

(…) No caso vertente, nenhuma dúvida se suscita quanto ao preenchimento do pressuposto formal porquanto a medida concreta da pena aplicada à recorrente (e contra a qual o mesmo não se insurge) é de 4 anos e 8 meses de prisão.

O problema coloca-se em relação ao pressuposto material.

Na verdade, o arguido não foi condenado por um crime de recetação trivial.

O arguido foi condenado porque, em «associação (…) de carácter permanente» com outros «denunciados», ao longo de cinco anos, através de três empresas de que era proprietário e administrador, adquiriu medicamentos desviados de hospitais públicos e da rede pública de saúde brasileira «por meio de atravessadores» para depois revender e reintroduzir no mercado.

Ora, nesse contexto, independentemente do que se provou acerca da sua situação pessoal, familiar e profissional [«É em Portugal que se encontra actualmente a família e amigos do arguido, aqui vivendo e trabalhando até ser detido no processo de extradição e, conforme factos provados no processo de extradição. (…) veio para Portugal com a sua mulher em Abril de 2019 onde ambos residem desde então, tendo o filho de ambos se juntado a eles há cerca de 2 anos. A sua esposa e filho têm nacionalidade portuguesa. (…) tem autorização de residência em Portugal válida até 26 de Julho de 2027 e trabalha numa empresa como motorista de pesados desde 1.02.2023. A esposa (…) trabalha como empregada de escritório e aufere o salário mínimo. Ambos suportam o pagamento de todas as despesas essenciais e da renda da casa onde vivem, que é de 550,00€ por mês. Ambos apresentam, conjuntamente, declaração para efeitos de IRS e têm empréstimos a bancos portugueses. (…) toma regularmente medicação para a diabetes e hipertensão»], afigura-se bastante evidente que a censura social, as necessidades de prevenção geral e de proteção do bem jurídico, neste caso, o património público, que a magnitude do ilícito e os prejuízos que, inevitavelmente, causaram à população e Estado brasileiros projetam para um patamar bastante elevado, ficariam seriamente comprometidas com a aplicação de uma pena não privativa da liberdade.

Donde que, acompanhando as considerações vertidas no acórdão recorrido e na resposta do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, se emita parecer no sentido da improcedência do recurso.

5. Contraditório

Notificado nos termos do disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, o arguido não reagiu ao aludido parecer.

* * *

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

II.1. Âmbito do recurso

O âmbito do recurso delimita-se, como já atrás se referiu, pelas conclusões do recorrente (artigos 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal) sem prejuízo, se necessário à sua boa decisão, da competência do Supremo Tribunal de Justiça para, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, (acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95 in D.R. I Série de 28 de dezembro de 1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do aludido artigo 410º) e de nulidades da sentença ( artigo 379º, nº do Código de Processo Penal).

Assim e em suma, no caso em apreço a única questão a apreciar é a de saber se a pena de prisão aplicada ao arguido e ora recorrente deveria ter sido suspensa na sua execução.

II.2. Matéria de facto dada como provada e não provada

Para proceder a essa apreciação importa, antes de mais consignar a matéria de facto dada como provada e não provada que serviu de fundamento à prolação do acórdão recorrido, recordando que, nos termos do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 100º da Lei 144/99, de 31 de agosto, o tribunal está vinculado à matéria de facto considerada provada na sentença estrangeira.

Assim o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa deu como provados os seguintes factos:

1. O requerido sofreu a condenação transitada em julgado em 26.9.2019, junta ao requerimento inicial formulado pelo Ministério Público, nos autos da Ação Penal n° ...00, de 08 (oito) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, a ser cumprida em regime fechado, em razão de condenação pela prática dos crimes tipificados no artigo 180, §1°, do Código Penal Brasileiro, c/c o artigo 71 do mesmo Código, melhor sintetizada no pedido de extradição:

Narra a sentença condenatória, transitada em julgado em 26/02/2019, que AA, BB, CC e DD, agindo em unidade de desígnios, de forma consciente e voluntária, adquiriram e revenderam, no exercício de atividade comercial, medicamentos desviados de hospitais públicos, durante, pelo menos, o período de 2005 a 2010.

Os denunciados AA e BB, sendo casados, foram proprietários e sócios-administradores da empresa C... Ltda. (CNPJ ...96) e administradores e proprietários de fato das empresas A... ME (CNPJ ...52) e T... ME (CNPJ ...45), empresas que usavam o nome fantasia MA..., todas com objeto social que compreendia o comércio de medicamentos.

Conforme a acusação, por meio das citadas empresas, com auxílio consciente das funcionárias, ora denunciadas, CC e DD, eram receptados medicamentos desviados da rede pública de saúde, obtidos por meio de atravessadores, para posterior reinserção no mercado.

Para tal reinserção, por vezes teriam sido confeccionadas embalagens similares à original para acondicionar os medicamentos adquiridos sem caixa, com pretensa infração ao artigo 273, §1°, do Código Penal Brasileiro.

A associação dos denunciados seria de caráter permanente, tendo por finalidade a receptação dos medicamentos desviados da rede pública de saúde, para posterior reinserção no mercado.

A denúncia foi recebida em 27/05/2010. O réu AA apresentou defesa e foi interrogado. Contudo, do acervo probatório que se tem nos autos, que inclui diálogos interceptados com autorização judicial, restou comprovado que AA, com vontade livre e consciente, praticou o delito de receptação qualificada previsto no parágrafo primeiro, do artigo 180, do Código Penal Brasileiro.

2. Constando ainda do pedido:

Após o trânsito em julgado da sentença condenatória, integralmente mantida nos Tribunais Superiores, foi deflagrada a execução definitiva da pena, com a expedição de mandado de prisão em desfavor do condenado, válido até 25/02/2031.

Em 27/07/2022, sobreveio a informação de que AA encontrava-se fora do território nacional, motivo pelo qual foi expedido alerta em Difusão Vermelha de Procurado Internacional.

Tipos penais:

As condutas narradas acima caracterizam a prática das infrações penais dispostas no artigo 180, §1°, do Código Penal Brasileiro, c/c o artigo 71 do mesmo Código, a seguir transcrito:

Código Penal Brasileiro - Decreto-Lei n. 2.848/1940

Receptação

Art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Receptação Qualificada

§ 1° Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime. Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa.

Crime continuado

Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

Prescrição:

De acordo com a legislação brasileira, a ação e/ou a(s) pena(s) relativas ao processo em epígrafe não estão prescritas.

3. Sua Excelência a Ministra da Justiça de Portugal considerou admissível o pedido de execução da sentença penal estrangeira, por despacho de 2.11.2023, que se transcreve:

Nos termos do disposto no artigo 95.º da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, aprovada pela Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, verificados os requisitos previstos nos artigos 96.º, 98.º e 99.º da mesma Lei, e considerando a informação prestada pela Procuradoria-Geral da República, declaro admissível o pedido de execução de sentença penal estrangeira formulado pelas autoridades judiciárias do Brasil, proferida contra o cidadão AA pela ...ª Vara da Secção Judiciária de ..., Justiça Federal de Primeira Instância, transitada em julgado em 26 de fevereiro de 2019.

3. O arguido está em liberdade, em Portugal, sujeito ao termo de identidade que prestou e à obrigação de não se ausentar de Portugal, nos termos do artigo 200.º, n.º1, al. b) do Código de Processo Penal, por despacho proferido em 14.11.2023 no processo de extradição 553/23.5... que corre termos na 5ª secção deste Tribunal.

4. Nesse processo, por acórdão de 9.5.2023 foi autorizada “a extradição do cidadão brasileiro AA para a República Federativa do Brasil, para efeitos de cumprimento da pena de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão, que lhe foi imposta no processo-crime n.°...00, da ...ª Vara da Secção Judiciária de ..., por sentença n° ...5/2011, de 18 de Março de 2011”.

5. Em face da suspensão do pedido de extradição por despacho proferido pela Sra. Juiz Federal da ...ª Vara Federal de ..., até ser decidido pelas autoridades judiciais portuguesas o pedido de cumprimento da pena em Portugal, foi decidida a suspensão da execução da entrega do Requerido ao Estado requerente por despacho de 12.5.2023.

6. À ordem do processo no qual foi condenado, o requerido esteve detido entre 29.4.2010 e 25.5.2010.

7. O requerido esteve detido à ordem do processo de extradição n.° 553/23.5..., que correu termos nesta Relação de Lisboa, 5.ª Secção, entre 16 de Fevereiro de 2023 e 17 de Fevereiro de 2023; e entre 31 de Março de 2023 e 14 de Novembro de 2023.

4. O requerido solicitou o cumprimento da pena em Portugal, a fim de aqui cumprir o remanescente daquela pena, que não se mostra extinta por prescrição, amnistia ou outro motivo.

5. As autoridades brasileiras, concordando com o deferimento do pedido do arguido, solicitaram às autoridades portuguesas o prosseguimento da execução da pena que àquele foi imposta.

6. É em Portugal que se encontra actualmente a família e amigos do arguido, aqui vivendo e trabalhando até ser detido no processo de extradição e, conforme factos provados no processo de extradição:

O extraditando veio para Portugal com a sua mulher em Abril de 2019 onde ambos residem desde então, tendo o filho de ambos se juntado a eles há cerca de 2 anos. A sua esposa e filho têm nacionalidade portuguesa.

O extraditando tem autorização de residência em Portugal válida até 26 de Julho de 2027 e trabalha numa empresa como motorista de pesados desde 1.02.2023.

A esposa do extraditando trabalha como empregada de escritório e aufere o salário mínimo. Ambos suportam o pagamento de todas as despesas essenciais e da renda da casa onde vivem, que é de 550,00€ por mês. Ambos apresentam, conjuntamente, declaração para efeitos de IRS e têm empréstimos a bancos portugueses.

O extraditando toma regularmente medicação para a diabetes e hipertensão.

A mulher e filho do extraditando não têm meios económicos que lhes permitam visitar o extraditando no estabelecimento prisional no Brasil, no caso de extradição do mesmo.

II.3. O Direito

II.3.1. Introdução

O artigo 50º do Código Penal estabelece que:

Artigo 50.º

Pressupostos e duração

1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.

3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.

4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.

5 - O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.

Assim, face ao nº 1 da norma transcrita, a suspensão da execução da pena de prisão depende da verificação, cumulativa, de dois pressupostos:

• Um primeiro, de natureza formal, que exige que a pena aplicada não ultrapasse os 5 anos de prisão;

• E outro, de ordem material, que consiste num juízo de prognose, segundo o qual, o Tribunal, «atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste conclua que simples censura do facto e a ameaça da pena realizam, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Antes da redação dada a esta norma pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de março, o requisito formal exigia que a pena aplicada não ultrapassasse os 3 anos de prisão.

Este alargamento encontra-se em sintonia com o que tem sido a evolução do instituto que, nas palavras de Figueiredo Dias2 “processou-se no sentido de alargar o mais possível o seu campo de aplicação e a efectiva frequência da sua utilização, sem perder o seu sentido político criminal originário. Nesta via, desde logo começou por se notar que a restrição do benefício aos delinquentes primários não teria fundamento bastante. Mas a ideia nova mais importante que, desde cedo, neste espaço se inscreveu – sobretudo por influência do instituto anglo-americano da probation ou regime de prova: cf infra IV – foi a de que as virtualidades poderiam largamente potenciadas (e o seu âmbito e a frequência da sua aplicação significativamente ampliados) se aquele não descansasse apenas na ideia da ameaça da pena e do seu efeito intimidativo, mas a integrasse pela imposição ao agente de deveres ou regras de conduta(…)”

Debruçando-nos agora sobre o requisito material, começaremos por referir que este se verifica quando o Tribunal possa formular uma prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, quando entenda que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

E, na formulação desse juízo de prognose, “deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida (inserção social, profissional e familiar, por exemplo), à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais e, no caso de os ter já, se são ou não da mesma natureza e tipo de penas aplicadas), bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir).”3

Com efeito e voltando a citar Figueiredo Dias4, “(p)ara a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto”

E, sublinhe-se, “na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto”.5

Por outro lado, e citando Manuel simas Santos e Manuel Leal-Henriques, “O código traça confessadamente, um sistema punitivo que arranca do pensamento fundamental de que as penas devem sempre ser executadas com sentido pedagógico e de ressocialização (cfr. anotação ao art 43º), objetivo que a existência da própria prisão parece comprometer.

(…)

Ora, a suspensão da execução da pena, com ou sem regime de prova, é substitutivo particularmente adequado das penas privativas de liberdade – pondera-se no Preâmbulo do Código de 1982 - que importa tornar maleável na sua utilização, libertando-a, na medida do possível, de limites formais, de modo a com ele cobrir uma apreciável gama de infrações puníveis com pena de prisão”

Também tem sido esse o entendimento da nossa jurisprudência. Assim, e a título de exemplo:

“Trata-se de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança fundada e não uma certeza - assumida sem ausência de risco - de que a socialização em liberdade se consiga realizar, que o condenado sentirá a sua condenação como uma advertência séria e solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito.”

Ac. S.T.J. nº 8/2012 in D.R. nº 206, Série I, de 24 de outubro de 2012

“A finalidade político criminal da pena de substituição do art. 50º do CP (suspensão da execução da pena) é o afastamento do delinquente, no futuro da prática de novos crimes ressalvada a exigência mínima da defesa do ordenamento jurídico, a suspensão de execução da pena de prisão só deverá ser negada quando se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização que a execução da prisão é necessária ou mais conveniente.”

Ac. S.T.J. de 1/6/2020, Proc. 1678/01-3 in www.dgsi.pt

“I - Na interação entre as exigências de prevenção geral e de prevenção especial, no que toca à suspensão de execução da pena, são as últimas que têm prevalência, pois são elas que predominantemente justificam a adoção de penas de substituição como meio de combater a pena de prisão no âmbito da pequena e média criminalidade.

II – Prendem-se com esse combate razões ligadas ao efeito criminógeno da prisão, particularmente nefasto no âmbito da pequena criminalidade, mas também não desprezível no âmbito da média criminalidade, e razões conexionadas com as finalidades das penas: de prevenção geral (positiva e negativa) e de prevenção especial ou de socialização.

III As primeiras não são satisfeitas adequadamente salvo casos extremos, através da pena de prisão, havendo que distinguir o mais possível reacções criminais próprias da grande criminalidade e reacções criminais mais consentâneas com a pequena e média criminalidade (…)”

Ac. S.T.J. de 6/3/2002 – Proc. 128/06-5

Finalmente, e face ao caso em apreço, cite-se ainda mais este acórdão:

“A fundamentação da decisão de suspender ou não a execução da pena, nos casos em que formalmente ela é possível, é uma fundamentação específica, que é como quem diz, mais exigente que a decorrente do dever geral de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente, postulado nomeadamente no art. 205º, nº 1 da CRP. Decorre do exposto o dever do juiz assentar o incontornável “juízo de prognose”, favorável ou desfavorável, em bases de facto capazes do suportarem com alguma firmeza, sem que, todavia se exija uma certeza quanto ao desenrolar futuro do comportamento do arguido.”

Ac. S.T.J. de 14/12/14 – Proc. 2769/00-5 in SASTJ, n.º 46, p. 54

II.3.2. A decisão recorrida.

O acórdão recorrido fundamentou a não suspensão da pena de prisão aplicada nos seguintes termos (transcrição):

“A suspensão da execução da pena de prisão tem como pressuposto formal a aplicação de uma pena de prisão não ser superior a 5 anos. E, como pressuposto material, a formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido, em termos de se considerar suficiente para evitar futuros crimes a simples censura do facto e a ameaça do cumprimento da pena.

A acentuada gravidade dos factos e o tempo durante o qual decorreram afastam qualquer juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido. A circunstância de estar em Portugal, juntamente com a sua mulher, desde 2019 e de ambos estarem a trabalhar, não assume particular relevo, tanto mais que a sentença condenatória transitou precisamente nesse mesmo ano de 2019 e que, se tivessem permanecido no Brasil, teriam certamente de cumprir a pena imposta, substancialmente mais gravosa.”

II.3.3. Apreciação

Como atrás consignámos, o Tribunal a quo limitou-se a fundamentar o afastamento da suspensão da execução da pena na “acentuada gravidade dos factos e o tempo durante o qual decorreram”.

E desconsiderou, completamente, o facto de o arguido “estar em Portugal, juntamente com a sua mulher, desde 2019 e de ambos estarem a trabalhar”

Parecendo-nos desadequada a afirmação de que “se tivessem permanecido no Brasil, teriam certamente de cumprir a pena imposta, substancialmente mais gravosa”.

Ou seja, não nos parece que esta (parca) fundamentação do acórdão recorrido esteja alinhada com a doutrina e jurisprudência (designadamente deste Supremo Tribunal de Justiça) atrás consignada e justifique a não suspensão da execução da pena aplicada ao arguido.

E, por outro lado, omite a consideração de factos dados como provados, quer no seu proprio acórdão, quer na decisão estrangeira que, como já atrás se mencionou e face ao disposto na al. a) do nº 1 do artigo 100º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, não podem ser ignorados.

Com efeito,

Não há dúvida de que a ilicitude dos factos praticados pelo arguido e ora recorrente se pode considerar de média/alta intensidade, atendendo, designadamente, ao período durante o qual decorreram os factos e por ter sido cometido em conjunto com outras pessoas (embora, a este propósito, se deva consignar que o arguido foi absolvido da prática do crime de organização criminosa6 por que estava acusado…).

E o dolo terá sido direto.

Contudo, já no que concerne às consequências desse comportamento a matéria de facto dada como provada não é, em rigor, completamente esclarecedora, até porque não foi apreendido ao arguido nenhum medicamento7

Por outro lado, e no que concerne às necessidades de prevenção geral e especial, desde logo temos de notar que o crime foi cometido no Brasil – onde o arguido não vive desde 2019 – e num circunstancialismo que, se deixou, há muito, de se verificar.

Mais importante do que isso, os factos foram cometidos no período de 2005 a 2010.

Ou seja, os factos foram cometidos há 20/15 anos.

E dos autos não resulta que o arguido não tenha mantido, desde então – quer durante os curtos períodos em que esteve detido/preso quer durante a sua longa permanência em liberdade – boa conduta.

Assim, o decurso de um tão longo espaço temporal tem de ser, forçosamente e pelas razões acima indicadas, devidamente ponderado.

Na verdade, estamos perante uma circunstância que o próprio Código Penal valoriza acentuadamente, designadamente quando estabelece prazos de prescrição ou quando dá exemplos do que deve conduzir à aplicação de uma atenuação especial da pena.

Com efeito,

Refere Germano Marques da Silva8 que “Se o decurso do tempo é causa de prescrição da punibilidade, também pode constituir, por idênticas razões, causa de atenuação especial, pois as necessidades de punição serão mais reduzidas”

Defendem M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio “Não pode deixar de ser valorada para este efeito, v.g., a circunstância de o condenado ter sabido conduzir a sua vida durante o tempo decorrido desde a prática do crime ou de ter revisto com sucesso as suas relações anteriores” 9

Recordam Victor de Sá Pereira e de Alexandre Lafayette que “O tempo, por último, dispõe de nítida eficácia erosiva e a sua conjugação com a boa conduta do agente traduz mitigada culpa longínqua (…)”10

Ou, finalmente, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque “O prolongamento excessivo do processo pode e deve ser tido em conta na determinação das sanções criminais, no sentido do desagravamento das mesmas, desde que o agente mantenha boa conduta nesse período (acórdãos do TEDH Dzelili vs. Alemanha e Foldes Anad Foldesné Hhjlik v. Hungria11

E tem sido também esse o entendimento da jurisprudência, podendo citar-se, a título de mero exemplo, o seguinte acórdão:

“I – O fundamento da atenuação especial da pena consiste na diminuição acentuada da ilicitude, na diminuição acentuada da culpa e ainda na diminuição acentuada da necessidade da pena e, portanto, das exigências de prevenção.”12

“I - O art. 72.°, n.° 2, al. d), do CP, admite a atenuação especial da pena quando tiver decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta, quando estas circunstâncias diminuírem por forma acentuada a necessidade da pena. A “boa conduta” exige naturalmente a ausência de qualquer condenação por factos posteriores, mas esse facto poderá não bastar, sendo de valorizar, para a avaliação positiva da conduta, qualquer atitude de reparação, ainda que meramente moral, da vítima.”13

Por outro lado, e com os fundamentos também já atrás consignados, o acórdão recorrido não devia ter desconsiderado a matéria de facto relativa ao arguido.

Com efeito, o Tribunal a quo deu, designadamente, como provado que:

6. É em Portugal que se encontra actualmente a família e amigos do arguido, aqui vivendo e trabalhando até ser detido no processo de extradição e, conforme factos provados no processo de extradição:

O extraditando veio para Portugal com a sua mulher em Abril de 2019 onde ambos residem desde então, tendo o filho de ambos se juntado a eles há cerca de 2 anos. A sua esposa e filho têm nacionalidade portuguesa.

O extraditando tem autorização de residência em Portugal válida até 26 de Julho de 2027 e trabalha numa empresa como motorista de pesados desde 1.02.2023.

A esposa do extraditando trabalha como empregada de escritório e aufere o salário mínimo. Ambos suportam o pagamento de todas as despesas essenciais e da renda da casa onde vivem, que é de 550,00€ por mês. Ambos apresentam, conjuntamente, declaração para efeitos de IRS e têm empréstimos a bancos portugueses.

Ou seja, o Arguido encontra-se legalmente em Portugal, mostra-se bem integrado em termos familiares, e está empregado (bem como a sua mulher) desde 1 de fevereiro de 2023 o que, em nosso entender, deve ser valorizado positivamente.

Por outro lado, o acórdão recorrido também deu como provado que:

3. –“O arguido está em liberdade, em Portugal, sujeito ao termo de identidade que prestou e à obrigação de não se ausentar de Portugal, nos termos do artigo 200.º, n.º1, al. b) do Código de Processo Penal, por despacho proferido em 14.11.2023 no processo de extradição 553/23.5... que corre termos na 5ª secção deste Tribunal.

6. À ordem do processo no qual foi condenado, o requerido esteve detido entre 29.4.2010 e 25.5.2010.

7. O requerido esteve detido à ordem do processo de extradição n.° 553/23.5..., que correu termos nesta Relação de Lisboa, 5.ª Secção, entre 16 de Fevereiro de 2023 e 17 de Fevereiro de 2023; e entre 31 de Março de 2023 e 14 de Novembro de 2023.”

Finalmente, importa acrescentar que o arguido foi condenado por sentença proferida no Brasil a 18 de março de 2011, que transitou em julgado em 26 de setembro de 2019.

Ou seja, o arguido apenas esteve preso à ordem das autoridades judiciárias brasileiras cerca de um mês e, desde 14 de novembro de 2023, encontra-se a viver em Portugal em liberdade e apenas sujeito a termo de identidade e residência e à obrigação de não se ausentar do Portugal.

Por outro lado, embora o acórdão recorrido não tenha feito constar essa circunstância atenuante na matéria de facto dada com provada (como era suposto acontecer…), da sentença brasileira consta que o arguido, quando foi julgado no Brasil, era primário14 - mais constando que “Dos autos não consta que os réus possuam conduta desregrada”.

Finalmente, tendo os factos narrados na sentença brasileira ocorrido há cerca de 15/20 anos e tendo a sentença condenatória sido proferida a 10 de março de 2011 – e transitada em julgado a 26 de setembro de 2029 -, não se lhe conhece, quer no Brasil quer em Portugal e até ao presente momento, a prática de qualquer ato ilícito.

Face a todo o acima exposto, não se vê, neste momento; quais as exigências de prevenção ou especial que demandem a execução da pena de prisão que lhe foi imposta.

Dito de outra forma, parece-nos que ainda é possível, fazer a prognose, nos termos acima referidos, de que o arguido sentirá a condenação e todo este longo processo como uma advertência séria e solene e que aproveitará a oportunidade que lhe for dada para prosseguir na sua ressocialização e não voltar a cometer novos crimes.

Por outro lado, e para além de ser conhecido o efeito criminógeno da prisão, a comunidade certamente aceitará que, passados 15/20 anos sobre o crime praticado, não se execute uma pena de prisão relativamente a um indivíduo primário, que indicia estar inserido familiarmente, que está a trabalhar e sobre o qual há não notícia de ter voltado a praticar qualquer ilícito criminal desde 2010.

IV – Decisão

«Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão do acórdão recorrido, pelo que se substitui a pena de 4 anos e 8 meses de prisão, aplicada ao Recorrente AA, pela prática do crime de recetação, previsto e punido pelo artigo 231.º n.º 1 do Código Penal português, por uma pena de quatro anos e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período».

Sem custas por não serem devidas

Sem custas

Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada

(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Celso Manata (Relator)

Jorge Bravo (1º Adjunto)

Antero Luís (2º Adjunto)

_____________________________________________

1. 3.2.4. Conclusão Face a todo o exposto, conclui-se que, tendo em conta que, no caso em apreço, a sentença proferida pela ...ª Vara da Secção Judiciária de ... – República Federativa do Brasil – aplicou a AA a pena de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão, pela prática do crime continuado de recetação, previsto e punível pelos artigos 180º, §1° e 71º do Código Penal da República do Brasil, e dado que os factos que estiveram na base de tal condenação são puníveis pelo artigo 231º do Código Penal Português com pena de prisão cujo limite máximo se situa nos 5 (cinco) anos ou nos 8 (oito) anos – caso se considere que o agente fez da recetação modo de vida -, há que adaptar aquela pena a esta moldura penal, nos termos do disposto no nº 3 do art. 237º do Código de Processo Penal.

2. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 4.ª Reimpressão, pp. 338 e 339.

3. Ac. Rel. Coimbra de 29/11/2017, proferido no Proc202/16.8PBCVL.C1 e relatado por Orlando Gonçalves.

4. Obra citada, pág 343.

5. Prof. Figueiredo Dias, ob. e local citados.

6. Previsto e punível pelo artigo 288º do Código Penal Brasileiro.

7. Cf. Ponto II Fundamentação da decisão brasileira, pág. 14, onde se pode ler o seguinte: “A não apreensão de medicamentos desviados não infirma a acusação, pois o acompanhamento dos investigados que vinha sendo monitorizado com vista ao alcance do maior número de participantes”.

8. “Curso de Direito Penal”, 2008, pág. 163.

9. “Código Penal Parte Geral e Especial” pág. 322.

10. “Código Penal Anotado e Comentado”, 2ª edição, pág. 245.

11. “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, 6ª edição, pág. 422.

12. Ac. do Trib. da Rel. de Coimbra de 24/4/2019, relatado por o agora Juíz Conselheiro Vasques Osório.

13. Ac. do STJ de 15/3/2022 – Proc.1417/08.8TAVIS.C1.S1 in www.dgsi. pt

14. Cf. al. b) do Ponto III.I.I “Circunstâncias Judiciais” da sentença brasileira pág. 17.