HABEAS CORPUS
LEI DE PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO
MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
LEGALIDADE
RECURSO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário


I. A jurisprudência do STJ vem admitindo a aplicação do regime do habeas corpus a situações não expressamente previstas nos arts. 31º da CRP e 220º e 222º do CPP com base em considerações de salvaguarda da liberdade enquanto valor fundamental constitucionalmente tutelado.
II. Por essa via podem ser objecto de habeas corpus situações em que um menor seja sujeito de uma medida de protecção, não por se tratar verdadeiramente de uma situação de «prisão», entendido o termo na acepção de reacção criminal envolvendo a privação de liberdade, mas por este tipo de medida ter como efeito o afastamento forçado do menor relativamente aos progenitores, ou pelo menos relativamente a um deles, contra o que seria a normalidade da vida e a presumível vontade dos pais e do menor. Tais medidas, implicando uma limitação da liberdade de movimentos, traduzem-se numa restrição de direitos fundamentais, restrição a avaliar numa perspetiva de conformidade com o princípio da legalidade e que assim não poderão ser subtraídas ao campo de admissibilidade da providência de habeas corpus.
III. A medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista à adoção, aplicada nos termos dos artigos 1º; 3º, nºs 1 e 2, alíneas a) e f); 4º, 34º; 35º, g); 38º-A e 62.º-A, da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, alterada pela Lei nº 142/2015, de 8 de Setembro, pode encerrar em si própria o potencial para se traduzir numa limitação da liberdade do menor, razão pela qual não lhe deverá ser negada a susceptibilidade de reversão mediante a utilização da providência excepcional de habeas corpus, suposto estar verificado o condicionalismo em que esta providência necessariamente deverá assentar.
IV. A providência de habeas corpus não permite sindicar a adequação e pertinência da solução encontrada no processo de protecção, por não se oferecer como alternativa ao recurso daquela decisão, havendo apenas que apreciar a verificação de qualquer ilegalidade evidente, ostensiva e actual.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO:

AA, melhor identificada nos autos, veio requerer providência de habeas corpus mediante requerimento subscrito por si própria e que tem o seguinte teor (transcrição – itálico nosso):

(…)

1. O meu filho foi me retirado logo à nascença no HSFX com falsas acusações em 2014.

Tentaram dar me RISPERIDONA no hospital e 2 anos depois, fica provado no processo que não tenho qualquer problema do foro mental. A verdade é que era vítima de violência doméstica do progenitor mas terminei assim que soube da gravidez.

2. O meu filho passou os 3 primeiros anos de vida na instituição onde com 2 anos teve diagnóstico de depressão grave.

3. Consegui a guarda porque tive boa avaliação do Psiquiatra forense.

4. Criei o meu filho dos 3 aos 8 anos, quando volta a ser retirado à mãe pela 2 vez. A brincar as portas em casa fecharam se, chamei os bombeiros e a PSP acusou me falsamente de maus tratos psicológicos.

5. Nunca fiz maus tratos físicos/psicológicos ao meu filho e ele provou-o na audição a ........2024.

6. A juíz que indeferiu a audição do meu filho a meu pedido foi a que fez a audição, por ordem do Tribunal da Relação.

7. A advogada oficiosa deixou passar o prazo do Recurso para a Relação e só me disse que não o fez, já decorrido o prazo.

No dia da leitura da 2 Sentença, enviei e-mail à advogada a avisá-la para não deixar passar o prazo do Recurso.

Mentiu para o Tribunal e a sra Juíz indeferiu o prolongamento do prazo com base na mentira da advogada oficiosa.

Há fundamentos legais para o recurso depois da audição do menor favorável à mãe.

8. Na instituição de ... medicaram no com RISPERIDONA com 9 anos e ficou muito doente com Eritema nodoso e Quisto no pescoço.

Medicação perigosa proibida na bula com 9 anos e só para autismo e esquizofrenia e sem o conhecimento e consentimento escrito da mãe.

Em Março 2024 estava já desnutrido e um semblante extremamente pesado; o meu próprio filho já me tinha dito que o tratavam mal.

9. As visitas estão suspensas desde Agosto 2023. As chamadas desde Julho 2024, de forma ilegal apesar do efeito suspensivo do Recurso que anulou a 1 Sentença por falta da audição do menor.

10. Está muito depressivo em grande sofrimento retirado à mãe; é a única testemunha pois viveu 5 anos só com a mãe. Era alegre e saudável com a mãe(provado)na instituição está doente e depressivo em pedopsiquiatria.

11. Ficou provado no processo o forte vínculo afetivo materno-filial que impede a medida de adoção.

12. Em Setembro de 2024 foi transferido para o ... no ... onde foi encontrado morto em 2023 um jovem que ia fazer 18 anos e sair do Instituto.

Temo pela Integridade física e psicológica do meu único filho que tive com 43 anos.

O meu filho está já muito traumatizado retirado à mãe pela 2 vez, na instituição privado de liberdade e do afeto da mãe biológica, já provado no processo,com relatório psicológico, que o seu desenvolvimento integral saudável está seriamente comprometido.

Têm destruído a vida do meu filho física e psicológicamente desde que nasceu e acusam a mãe.

Tenho todas as condições psicológicas, emocionais e habitacionais para ter o meu único filho.

A Meritíssima Juiz do Tribunal de Família e Menores de ... – Juiz ..., Tribunal da Comarca de Lisboa, prestou nos autos a informação a que se reporta o n.º 1 do art. 223.º do Código de Processo Penal nos seguintes termos:

(…)

Foram instaurados os autos com data de entrada ...-...-2021 Processo de Promoção e Protecção quanto à criança BB nascido a ... de ... de 2014 na freguesia de ... filho de CC e de AA - requerimento inicial de fls 3 a 7

Dos autos, resulta em síntese, na parte que se considera mais relevante que em ... de ... de 2022, foi agendada diligência.

Nesta apenas se realizou tomada de declarações à senhora Técnica da EMAT e à progenitora do menor AA (todas gravadas em suporte digital, através do sistema de gravação “Media Studio” do sistema Citius), tendo-se agendado nova data audição do progenitor, ... de ... de 2022, pelas 11h00, nos termos do disposto 107.º e 112.º da LPCJP)

Nessa data - ... de ... de 2022 - realizou -se diligência na ausência da progenitora AA e foi ouvido em declarações o progenitor, CC.

Foi proferido despacho no sentido de que estando junta informação social relativa à tia materna do menor, não existindo outras diligências a realizar e, que face à conduta e posição manifestadas pela progenitora na diligência que teve lugar no passado dia ...-...-2022, se mostrava manifestamente improvável uma solução negociada determinou-se que o processo siga para a fase de debate judicial, nos termos previstos pelo art.º 110.º, n.º 1, alínea c), da LPCJP em cumprimento do que preceitua o art.º 114.º, n.º 1, da referida Lei e assim foram notificados o Ministério Público e os progenitores, para, no prazo de 10 (dez) dias, alegarem por escrito, querendo, e para apresentarem as provas julgadas relevantes, no mesmo prazo.

Por requerimento, REFª: 42151715 de ........2025 apenas a progenitora veio apresentar alegações – fls 228 a 231 e foi junta a fls 232 a 234 informação social após foi promovida a realização de relatório pericial quantio à mãe, o mais adiante nos autos, voltou a suceder, mas a mãe não prestou consentimento tal como resulta de fls 240.

Em .../.../2022 foi agendada data para a realização do debate judicial, que se realizou no dia ..., às 09h30m.

Na informação social de fls. 244 foi requerida a aplicação de medida de acolhimento residencial nos termos que aí constam.

A Magistrada do Ministério Público, veio requerer a aplicação imediata à criança de medida cautelar de acolhimento residencial pelo prazo de seis meses, ao abrigo do disposto no art. 37.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, com vista a obstar que o mesmo continue aos cuidados da sua mãe, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 3º, nºs 1 e 2, alíneas b) e c); 35º, nº.1, alínea f); 37º; 49º e 50º, nº.2, alínea b, todos da Lei nº.147/99 de 1 de Setembro, o que foi determinado, por se haver considerado que a situação de perigo em que o menor se encontra se agravou/agudizou sensivelmente e que «é a própria mãe do BB quem coloca em perigo a vida, a saúde, a segurança, a educação e o desenvolvimento do filho infligindo-lhe maus tratos psíquicos e negando-lhe a prestação dos cuidados e da afeição adequados á sua idade e situação pessoal e nessa sequência a criança BB no dia ........2022 deu entrada na ... D., ... sita na Avenida ....

Em acta Referência: .......56 consta a realização de debate judicial na data ... de ... de 2022 e a ... de ... de 2022 foi proferido acórdão que decidiu aplicar a favor de BB medida de acolhimento residencial pelo período de um ano, com revisão semestral, de acordo com o plano de execução junto aos autos pelo EMAT a .../.../2022, que aqui se dá por integralmente reproduzido – cfr. arts. 1º; 3º, nºs 1 e 2, alíneas a) e f); 4º, 34º; 35º, f); 38º e 49º, da Lei nº 147/99, de 1 de setembro, alterada pela Lei nº 142/2015, de 8 de setembro e autorizar as visitas e contactos entre progenitora e tia materna e o Menor BB na medida em que, a casa de acolhimento em articulação com a EMAT, assim o entenda.

O Acórdão foi objecto de recurso tendo sido confirmado por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - de ...-...-2022 - Referência: .......59.

Mais tarde foi sugerida pela EMAT nova medida a favor da criança agora de confiança judicial com vista com vista a futura adoção e do mesmo modo considerou-se que, se mostrava inviável a obtenção de acordo de promoção e proteção– dado que inexistiu acordo aquando da aplicação da 1ª medida – e o projeto de vida proposto pelo ISS/EMAT que propõe a aplicação da medida de promoção e proteção de confiança com vista a futura adoção, pelo que, considerando o disposto no art.º 114.º, n.º5, al. a), da LPP, e entendeu-se haver lugar a novo debate judicial, que foi determinado e a notificação do nos termos do disposto do art.º 114.º, n.º1, da L.P.P- notificação feitas com data de ........2024

Apenas o MP veio apresentar alegações Referência: ...34, escritas com prova documental e testemunhal- ...-...-2024.

A progenitora por requerimento de ........2024 respondeu nos seguintes termos Em resposta à notificação do art114 da LPCJP” N/Referência .......47 veio referir; “1. Não fui notificada nos últimos 7 meses de qualquer consentimento para a realização de perícia psicológica e psiquiátrica, logo não seria possível eu responder.

Consta no processo desde 2016 perícia psiquiátrica onde se prova que a mãe não tem qualquer problema do foro mental, por isso a entrega da guarda do filho em 2017.

2. O Lar no Relatório de ... de ... de 2023 diz que eu referi a côr da pele do meu filho sem fundamento, no entanto nesse mesmo dia, o meu filho contou-me que a psicóloga do lar DD lhe chamava EE e tenho gravação audio como prova - a qual posso apresentar em tribunal.

Estranhamente, a psicóloga já não se encontra a exercer a profissão no lar.

3. Quando entrou para o lar com 8 aninhos o meu filho foi logo de início agredido pelo FF de 15 anos com problemas psiquiátricos - toma medicação.

_ Dia ... de ... de 2023 o GG de 15 anos agrediu o meu filho, da qual eu tive conhecimento e informei a PSP que se deslocou ao lar e o meu filho e o próprio lar confirmaram a agressão.

Estranhamente a PSP não comunicou a ocorrência ao Tribunal.

_ Dia 9 de Outubro, em clara negligência, o lar deixou o meu filho continuar a brincar com o jovem que o agrediu há um mês atrás e o meu filho é deixado cair pelo jovem de 15 anos e vai parar ao Hospital e é cozido em 4 pontos na CARA.

_ O HH, melhor amigo e colega de quarto na altura, contou-me que alguns jovens só de não gostarem de alguma coisa que o meu filho diga agridem no.

4. No lar o meu filho passou os invernos sempre constipado.

Tanto em 2022 como em 2023 eu tive que lhe comprar sapatos de casa de inverno pois andava com chinelos de dedo e com os pezinhos quase roxos do frio.

Entreguei ao lar ..., mas não lha dão.

5. O meu filho com 5 anos presenciou a agressão física do progenitor à mãe e pode confirmá-lo em tribunal pois ainda se lembra.

6. O progenitor fez denúncia de incumprimento da mãe, mas em 1 ano e meio não foi visitar o filho nem 1 vez à instituição.

7. As visitas suspensas à mãe há quase 8 meses é de uma violência atriz para o meu filho que se encontra depressivo em grandes sofrimento privado do afecto e amor da Mãe.

Todos os dias que ligo o meu filho diz que me ama.

Se diz que está triste no lar e que queria estar com a mãe prova que a mãe nunca lhe fez maus tratos físicos nem psicológicos.

8. O processo encontra-se em tribunal territorialmente incompetente.

A mãe tem residência fiscal em distrito bem longe de ... desde ... de ... de 2023 e as deslocações de graça” todos os destacados da nossa autoria.

Realizou –se novo debate judicial cuja acta consta Referência: ........3L ... de ... de 2024, pelas 09:30 horas e referência .......43 –: ... de ... de 2024 tendo por Acórdão proferido em ... de ... de 2024 sido decidido;

1. Aplicar ao menor BB a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista à adoção – cfr. arts. 1º; 3º, nºs 1 e 2, alíneas a) e f); 4º, 34º; 35º, g); 38º-A e 62.º-A, da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, alterada pela Lei nº 142/2015, de 8 de Setembro – a qual durará até ser decretada a sua adoção.

Tal medida será executada no CAR “D. II”, sita na Avenida ..., onde o menor se encontra.

2. Nomear como curadora provisória ao menor a Sra. Diretora do referido CAR, nos termos do nº 3 do art. 62º-A, da Lei de Proteção, que exercerá funções até ser decretada a adoção, exercendo ela as responsabilidades parentais por os pais biológicos ficarem inibidos do seu exercício – artigo 1978º-A do CC e art. 62º-A, nº 3 da LPCJP.

3. Acionar de imediato o mecanismo previsto no referido art. 62º-A, nº 6 da LPCJP, pelo que não haverá lugar a visitas ou quaisquer contatos (incluindo telefónicos) ao menor por parte da família biológica.

*

A medida ora aplicada perdura até ser decretada a adoção e não está sujeita a revisão – art.º 38.º-A e 62.º-A, n.º 1, ambos da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do mesmo artigo.

*

Foi interposto recurso para o Venerando Tribunal da Relação de lisboa e foi proferido Acórdão Referência: ......45 de ........2024 que nos termos e fundamentos que deste consta acordou em: a) julgar a apelação do despacho de .../.../2024 procedente e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual se substitui por outro que determina que o menor BB seja ouvido em sede de debate judicial; b) julgar prejudicada a apreciação da apelação interposta da decisão de .../.../2024.

Nessa sequência foi reaberto debate judicial em ... de ... de 2024 (audição da criança) e no dia ... de ... de 2024, foi proferido acórdão que manteve a anterior decisão, e logo acordando-se em “aplicar ao menor BB a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista à adoção – cfr. arts. 1º; 3º, nºs 1 e 2, alíneas a) e f); 4º, 34º; 35º, g); 38º-A e 62.º-A, da Lei nº 147/99, de 1 de setembro, alterada pela Lei nº 142/2015, de 8 de setembro – a qual durará até ser decretada a sua adoção.

Tal medida será executada no CAR “...”, sita na sita na Rua ..., onde o menor se encontra desde 11 de Setembro último.

2. Nomear como curadora provisória ao menor a Sra. Diretora do referido CAR, nos termos do nº 3 do art. 62º-A, da Lei de Proteção, que exercerá, até ser decretada a adoção, as responsabilidades parentais por os pais biológicos ficarem inibidos do seu exercício – artigo 1978º-A do CC e art. 62º-A, nº 3 da LPCJP.

3. Acionar de imediato o mecanismo previsto no referido art. 62º-A, nº 6 da LPCJP, pelo que não haverá lugar a visitas ou quaisquer contatos (incluindo telefónicos) ao menor por parte da família biológica.

*

A medida ora aplicada perdura até ser decretada a adoção e não está sujeita a revisão – art.º 38.º-A e 62.º-A, n.º 1, ambos da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do mesmo artigo.

*

O Acórdão em causa transitou em julgado em ........2025.

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De acordo com o disposto no artigo 222º do Código de Processo Penal "a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus". A providência de Habeas Corpus é o meio processual adequado a uma reação expedita contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal.

A petição é dirigida em duplicado ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual o requerente se mantenha preso e deve fundamentar-se em ilegalidade da prisão por um dos seguintes motivos:

a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou decisão judicial.

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Com o acórdão do S.T.J. de 18-01-2017 (proc. n.º 3/17.6YFLSB, in www.dgsi.pt), passou a admitir-se, também, a aplicação do regime penal de habeas corpus à medida de promoção e proteção de acolhimento residencial.

No mesmo sentido, pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09-06-2021 (proc. n.º 6/21.6T1PTG.S1) e de 23-07-2021 (proc. n.º2943/20.6T8CBR-A.S1), tendo como argumentos, designadamente, a definição ampla de privação da liberdade que resulta do ponto 11 do Anexo, relativo às Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 45/113, de 14.12.1990 - «privação de liberdade significa qualquer forma de detenção, de prisão ou a colocação de uma pessoa, por decisão de qualquer autoridade judicial, administrativa ou outra autoridade pública, num estabelecimento público ou privado do qual essa pessoa não pode sair pela sua própria vontade» - e o art.37.º, alínea d) da Convenção Sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21.9.1990, enquanto dispõe que «A criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre a matéria.».

A medida de «acolhimento residencial» consiste, nos termos do art.49.º da LPCJP, «..na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados (n.º1), e tem como finalidade «…contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efetivo exercício dos seus direitos, favorecendo a sua integração em contexto sociofamiliar seguro e promovendo a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral» (n.º2).

O «acolhimento residencial» tem lugar em casa de acolhimento e obedece a modelos de intervenção socioeducativos adequados às crianças e jovens nela acolhidos (art.50.º, n. º1), ou seja, esta medida retira o exercício das responsabilidades (e guarda da criança) a quem não se encontra em condições de as exercer, entregando-as a uma instituição terceira.

À exceção da medida de «confiança a pessoa selecionada para a adoção a família de acolhimento ou a instituição com vista a adoção», a que alude a g) do n.º 1 do art.35.º da LPCJP, todas as medidas de promoção e proteção podem ser decididas a título cautelar. É o que resulta do art.35.º, n.º 2 da LPCJP, ao dispor que «As medidas de promoção e de proteção são executadas no meio natural de vida ou em regime de colocação, consoante a sua natureza, e podem ser decididas a título cautelar, com exceção da medida prevista na alínea g) do número anterior.».

Ora no caso destes autos, à criança BB foi aplicada nesta fase medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista à adoção – cfr. arts. 1º; 3º, nºs 1 e 2, alíneas a) e f); 4º, 34º; 35º, g); 38º-A e 62.º-A, da Lei nº 147/99, de 1 de setembro, alterada pela Lei nº 142/2015, de 8 de setembro – a qual durará até ser decretada a sua adoção - e não medida de acolhimento residencial (a não ser no inicio do processo)

Tal ocorreu por entidade competente para tal - tribunal misto e em sede de debate judicial com contraditório, a decisão foi motivada por facto que a lei permite, e não existe qualquer manutenção além dos prazos fixados pela lei posto que esta medida que foi aplicada a favor da criança dura até à adoção.

Assim, pelas razões expostas considera-se que não existe fundamento para considerar que a permanência da criança a favor da qual foi aplicada medida de confiança judicial com vista a futura adoção, em casa de acolhimento seja ilegal – não vemos, perante a medida que foi aplicada a seu favor onde poderia estar nesta fase, e assim, a nosso ver, não se verifica qualquer das circunstâncias previstas no artigo 222º, alíneas a) b) e c) do Código de Processo Penal) sem prejuízo, naturalmente, de superior decisão, em melhor critério do Exmo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, para onde o apenso em cumprimento do disposto no artigo 223.° do referido Código de Processo Penal será, de imediato, remetido após junção das certidões que se seguem.

*

II - Extraia certidão do requerimento inicial, notificações nos termos do disposto no artigo 114º da LPPCJ, alegações na primeira fase da progenitora, na segunda do MP, actas de debates judicial, dos acórdãos proferidos nesta instância primeiro que decretou medida de acolhimento residencial e os dois segundos que decretaram medida de confiança judicial com vista a futura adoção, com datas trânsito requerimento de interposição de recurso, e para efeitos de consulta dos acórdão proferidos nos tribunais superiores, dê –se acesso ao processo respectivo de promoção e protecção, caso venha a ser solicitado juntando as peças referidas no presente apenso- o qual como dito logo após é remetido .

(…)

Constam da certidão geral com que os autos foram instruídos as peças processuais referidas na parte final da informação supratranscrita.

Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o mandatário do arguido, realizou-se audiência conforme previsto no artigo 223.º, n.º 2.

Finda a audiência a secção reuniu para deliberação, como prevê o n.º 3 do mesmo artigo.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

Os factos relevantes para a apreciação e decisão desta providência de habeas corpus são os enunciados na petição apresentada pela requerente, na informação judicial prestada nos autos e na certidão geral com que estes foram instruídos, sem que se veja necessidade de solicitar qualquer elemento complementar.

Da documentação constante dos autos resulta essencialmente e com relevo para a decisão desta providência o seguinte:

1. BB nasceu em ... de ... de 2014 na freguesia de ..., filho de CC e de AA.

2. Em ........2014 a CPCJ ... abriu PP em nome do menor.

3. A situação do menor foi sinalizada à CPCJ pelo Centro Hospitalar... (...), na sequência de entrevista à mãe do menor, realizada em sede de internamento, e relatório de avaliação em sede de acompanhamento durante a gestação pelo Núcleo de Apoio Criança e Jovem em Risco ....

4. A progenitora rejeitou qualquer hipótese de o bebé permanecer no hospital e posterior integração em CAT enquanto fosse feita a sua avaliação e do seu agregado familiar e ponderada a viabilidade do retorno do menor a casa.

5. O Ministério Público intentou acção de promoção e protecção do menor, entretanto acolhido na instituição “...”, sita no ..., descrevendo as condições de nascimento e requerendo várias diligências a fim de se proceder ao diagnóstico da situação e definição de qual o projecto de vida mais adequado, propondo desde logo o acolhimento institucional a título provisório, pedindo a validação do procedimento de urgência previsto no art. 91º da LPPCJP aplicado pela CPCJ.

6. Veio a ser proferida sentença em ........2015, ulteriormente anulada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de ........2015, que determinou a realização de diligências e prolação de nova sentença.

7. Foi proferida nova sentença em ........2015, de cujo dispositivo consta o seguinte:

(…)

Assim e, face ao exposto:

1) Decide-se aplicar a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção a favor do menor BB, ao abrigo do disposto no art. 35º, n.º 1 alínea g) da LPPCJP.

2) Designa-se como curador provisório a/o director/a da instituição onde se encontra confiado.

3) Como é decorrência do art. 1978º-A do C.Civil ficam os progenitores inibidos das responsabilidades parentais do menor.

4) Não se suspendem as visitas dos progenitores, bem como da demais família biológica, ao menor, atendendo ao facto de terem sido retomadas e de uma nova interrupção, sem certezas sobre a mesma implica nova destabilização do BB, contrária ao seu superior interesse, isto sem prejuízo de ulterior decisão, caso sejam vertidos novos factos para o processo, concretamente pela instituição de acolhimento.

5) O acompanhamento da medida, de acordo com o disposto no art. 59º da LPPCJP, será concretizado pela instituição de acolhimento.

8. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de Lisboa, de ........2017, foi esta sentença revogada e determinada a aplicação, em benefício do menor, da medida de apoio junto da mãe, por um ano, com acompanhamento de ... e com obrigação de a mãe se apresentar na ..., com a periodicidade que esta instituição entender adequada, para que o menor possa continuar a usufruir das terapias que aí lhe vêm sendo ministradas, como é o caso da psicomotricidade relacional, como instrumento também de fortalecimento da relação mãe-filho.

9. Por despacho de ........2017 foi determinado:

- Que o BB seja entregue à mãe no dia ........2017, às 11 horas.

- Que o ... acompanhe a integração do BB no lar da mãe, designadamente realizando visitas domiciliárias semanais.

- Que a ... elabore e envie aos autos relatórios mensais.

- Que o BB frequente, com assiduidade e pontualidade, o equipamento de infância pela mãe escolhido e referido nos autos.

Fica a progenitora:

- Advertida de que terá que colaborar com as entidades que acompanham o processo: ECJ e ..., sob pena de, não o fazendo, a medida poder ser revista por este tribunal.

- Notificada para, em dez dias, vir indicar a sua entidade patronal bem como juntar cópia do contrato de trabalho e horário laboral.

10. Por despacho de ........2019 foi determinada a cessação da medida de promoção e proteção aplicada a BB, nascido a ... de ... de 2014, nos termos dos artigos 60.º/1/2 e 62.º/1/3/a)/5, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo.

11. Por sentença de ........2021 foi a mãe do menor, AA, condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada em que foi ofendido o seu filho, BB, p. e p. pelos arts. 143º, nº. 1, 145º, nº. 1, al. a), e nº. 2, por referência ao artº. 132º, nº. 2, als. a) e c), do Cód. Penal na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, com regime de prova.

12. Na sequência desses factos foi intentado pelo M.P. Processo Judicial de Promoção e de Proteção referente a BB.

13. Por sentença de ........2022 foi decidido:

1. Aplicar ao menor BB a medida de acolhimento residencial pelo período de um ano, com revisão semestral, de acordo com o plano de execução junto aos autos pelo EMAT a .../.../2022, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais – cfr. arts. 1º; 3º, nºs 1 e 2, alíneas a) e f); 4º, 34º; 35º, f); 38º e 49º, da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, alterada pela Lei nº 142/2015, de 8 de Setembro;

2. Autorizam-se as visitas e contactos entre progenitora e tia materna e o menor BB na medida em que, a casa de acolhimento em articulação com a ..., assim o entenda.

A presente medida será acompanhada pela técnica da Segurança Social, na qualidade de gestora do processo naquela entidade relativamente ao menor.

A medida aplicada tem a duração de um ano e será revista decorrido o período de seis meses.

14. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de ........2022 foi julgado improcedente recurso de apelação daquela sentença e confirmada a decisão apelada.

15. Por despacho de ........2024 foi indeferida (…) a audição do menor BB, por se entender, tal como a Digna Procuradora da República, que uma criança de apenas oito anos e dez meses de idade não dispõe da necessária capacidade de discernimento nem da necessária maturidade para ser ouvido em declarações, e ainda por cima enquanto meio probatório (como vem requerido), quer sobre todas as questões que estão na origem dos presentes autos quer para manifestar de uma forma livre, consciente e esclarecida a sua vontade em relação ao seu próprio projeto de vida, sendo inconveniente e contrário ao seu superior interesse ouvir o menor BB em sede de debate judicial e utilizar as suas declarações como meio de prova, face ao assunto em discussão nos presentes autos, tal como pretende a sua progenitora.

16. Por sentença de ... de ... de 2024, do Juízo de Família e Menores de ... - Juiz ..., foi decidido:

1. Aplicar ao menor BB a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista à adoção – cfr. arts. 1º; 3º, nºs 1 e 2, alíneas a) e f); 4º, 34º; 35º, g); 38º-A e 62.º-A, da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, alterada pela Lei nº 142/2015, de 8 de Setembro – a qual durará até ser decretada a sua adoção.

2. Tal medida será executada no CAR “D. II”, sita na Avenida ..., onde o menor se encontra. Nomear como curadora provisória ao menor a Sra. Diretora do referido CAR, nos termos do nº 3 do art. 62º-A, da Lei de Proteção, que exercerá funções até ser decretada a adoção, exercendo ela as responsabilidades parentais por os pais biológicos ficarem inibidos do seu exercício – artigo 1978º-A do CC e art. 62º-A, nº 3 da LPCJP.

3. Acionar de imediato o mecanismo previsto no referido art. 62º-A, nº 6 da LPCJP, pelo que não haverá lugar a visitas ou quaisquer contatos (incluindo telefónicos) ao menor por parte da família biológica.

A medida ora aplicada perdura até ser decretada a adoção e não está sujeita a revisão – art.º 38.º-A e 62.º-A, n.º 1, ambos da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do mesmo artigo.

17. Por acórdão de 10.09.2024 o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu:

a) julgar a apelação do despacho de 22/5/2024 procedente e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual se substitui por outro que determina que o menor BB seja ouvido em sede de debate judicial;

b) julgar prejudicada a apreciação da apelação interposta da decisão de 3/7/2024.

18. Em 13 de Dezembro foi reaberto o debate judicial e ouvido o menor.

19. Por acórdão de ... de ... de 2024 foi decidido:

1. Aplicar ao menor BB a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista à adoção – cfr. arts. 1º; 3º, nºs 1 e 2, alíneas a) e f); 4º, 34º; 35º, g); 38º-A e 62.º-A, da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, alterada pela Lei nº 142/2015, de 8 de Setembro – a qual durará até ser decretada a sua adoção.

Tal medida será executada no CAR ..., sita na sita na Rua ..., onde o menor se encontra desde 11 de Setembro último.

2. Nomear como curadora provisória ao menor a Sra. Diretora do referido CAR, nos termos do nº 3 do art. 62º-A, da Lei de Proteção, que exercerá, até ser decretada a adoção, as responsabilidades parentais por os pais biológicos ficarem inibidos do seu exercício – artigo 1978º-A do CC e art. 62º-A, nº 3 da LPCJP.

3. Acionar de imediato o mecanismo previsto no referido art. 62º-A, nº 6 da LPCJP, pelo que não haverá lugar a visitas ou quaisquer contatos (incluindo telefónicos) ao menor por parte da família biológica.

A medida ora aplicada perdura até ser decretada a adoção e não está sujeita a revisão – art.º 38.º-A e 62.º-A, n.º 1, ambos da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do mesmo artigo.

20. Este Acórdão transitou em julgado em 07.01.2025.

***

É pacífico na jurisprudência, como na doutrina, o entendimento de que o habeas corpus, no recorte dos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa e 220.º a 224.º do Código de Processo Penal, se traduz numa providência urgente e de natureza extraordinária que visa essencialmente garantir o direito à liberdade individual tutelado pelo art. 27.º da CRP, constituindo o adequado instrumento reactivo contra o abuso de poder por detenção ou prisão ilegal tendo como escopo a imediata reversão dessas situações, suposto que a ilegalidade da detenção ou da prisão se ofereça como manifesta, traduzindo ostensivo abuso de poder.

A primeira questão que se coloca no caso dos autos é a de saber se a situação em que o menor BB se encontra, sujeito a medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista à adoção [arts. 1º; 3º, nºs 1 e 2, alíneas a) e f); 4º, 34º; 35º, g); 38º-A e 62.º-A, da Lei nº 147/99, de 1 de setembro, alterada pela Lei nº 142/2015, de 8 de setembro], que durará até ser decretada a sua adoção, é susceptível de equiparação a uma privação de liberdade e se, por essa via, consente o recurso à providência de habeas corpus.

A jurisprudência do STJ vem admitindo a aplicação do regime do habeas corpus a situações não expressamente previstas nos arts. 31º da CRP e 220º e 222º do CPP com base em considerações de salvaguarda da liberdade enquanto valor fundamental constitucionalmente tutelado. Nessa linha de orientação estão abrangidos no âmbito do habeas corpus, para além dos casos de detenção ou de prisão ilegal, todas as outras situações em que alguém esteja privado da sua liberdade ou em que ela se encontre restringida de forma abusiva e injusta 1 / 2 . Assim, e por essa via, podem ser objecto de habeas corpus situações em que um menor seja sujeito de uma medida de protecção, não por se tratar verdadeiramente de uma situação de «prisão», entendido o termo na acepção de reacção criminal envolvendo a privação de liberdade, mas por este tipo de medida ter como efeito o afastamento forçado do menor relativamente aos progenitores, ou pelo menos relativamente a um deles, contra o que seria a normalidade da vida e a presumível vontade dos pais e do menor. Tais medidas, implicando uma limitação da liberdade de movimentos, traduzem-se numa restrição de direitos fundamentais, restrição a avaliar numa perspetiva de conformidade com o princípio da legalidade e que assim não poderão ser subtraídas ao campo de admissibilidade da providência de habeas corpus 3.

Esta perspectiva, especificamente no que a crianças e jovens concerne, encontra apoio nas Regras das Nações Unidas para a Protecção dos Jovens Privados de Liberdade 4, e na Convenção Sobre os Direitos da Criança 5.

Assim, abrangendo as situações de crianças institucionalizadas, prevê a al. b) do Ponto 11 daquelas Regras das Nações Unidas que privação de liberdade significa qualquer forma de detenção ou prisão ou a colocação de uma pessoa num estabelecimento público ou privado do qual essa pessoa não possa sair por sua própria vontade, por ordem de qualquer autoridade judicial, administrativa ou outra autoridade pública, especificando, por seu turno, a Convenção Sobre os Direitos da Criança, no seu art. 37º, al. d), que a criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre tal matéria.

Independentemente das objecções que se possam levantar relativamente à aceitação da aplicabilidade da providência de habeas corpus a situações como aquela a que se reportam os autos – e a mais difícil de ultrapassar será, seguramente, a que questiona a aplicação desta medida por um tribunal penal a providências de natureza essencialmente civil, como é o caso da confiança a instituição com vista à adoção – não questionaremos a viabilidade da medida, quer por força da sedimentação da jurisprudência que a vem admitindo no âmbito das medidas de protecção e prevenção, quer pelo reconhecimento da inexistência de qualquer outra providência especificamente vocacionada para essa finalidade, ainda que à partida se nos afigurem de difícil verificação em tais situações os pressupostos que condicionam esta providência excepcional. Reconhecemos, pois, que a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista à adoção, aplicada nos termos dos artigos 1º; 3º, nºs 1 e 2, alíneas a) e f); 4º, 34º; 35º, g); 38º-A e 62.º-A, da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, alterada pela Lei nº 142/2015, de 8 de Setembro, pode encerrar em si própria o potencial para se traduzir numa limitação da liberdade do menor, razão pela qual não lhe deverá ser negada a susceptibilidade de reversão mediante a utilização da providência excepcional de habeas corpus, suposto estar verificado o condicionalismo em que esta providência necessariamente deverá assentar 6.

Posto isto, reconhecendo-se a tempestividade da petição formulada, por força da actualidade da medida imposta ao menor BB, há que reconhecer também que a legitimidade da requerente é inquestionável, à luz do disposto nos artigos 31.º, n.º 2, da CRP e 222.º, n.º 2, do CPP.

Sabido que a lei processual penal distingue os procedimentos de habeas corpus por detenção ilegal e por prisão ilegal, é a esta última vertente que deverá ser equiparada a pretensão formulada pela requerente, por estar em causa a execução de uma medida judicialmente decretada.

No que tange à prisão ilegal, o procedimento correspondente pauta-se pela livre disponibilidade (pode ser requerido pelo próprio cidadão privado da liberdade ou por qualquer outra pessoa no gozo dos seus direitos políticos), pela celeridade (é apresentado à própria autoridade à ordem da qual o preso se encontrar, que o remete de imediato ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sendo decidido pela competente Secção Criminal no prazo de oito dias) e pela simplicidade da tramitação (o seu objecto é restrito à previsão da alínea ou alíneas do n.º 2 do art. 222.º que quadrem ao caso, com exclusão de quaisquer outras questões de fundo ou de forma que extravasem aquele âmbito).

O Supremo Tribunal de Justiça vem considerando uniformemente que o habeas corpus só poderá fundar-se nas circunstâncias taxativamente previstas na lei, sendo inadmissível a sua utilização para sindicar os motivos determinantes da prisão, questionando o mérito da decisão condenatória, a sua pertinência de facto ou de direito, ou quaisquer outras razões, que não as expressamente previstas, susceptíveis de pôr em causa a legalidade da prisão ou a sua regularidade, não constituindo meio adequado para lograr uma reapreciação da decisão de fundo 7.

Assim, e com as devidas adaptações ao caso em análise, podem constituir fundamento de habeas corpus:

a) Ter a medida imposta ao menor sido ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Verificando-se que está em causa medida imposta por decisão judicial no âmbito de um processo de protecção e promoção regularmente tramitado, há que afastar o primeiro daqueles fundamentos.

A medida em causa foi decidida na sequência de medida inicial de acolhimento residencial, foi tramitada com observância do formalismo processual legalmente previsto e teve a sua génese na verificação de que a progenitora punha em perigo o regular e harmonioso desenvolvimento do menor, de tal modo que foi condenada na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, com regime de prova, pela autoria de crime de ofensa à integridade física qualificada em que foi ofendido o seu filho, BB. A medida conta, pois, com sustentação legal.

A última das vertentes previstas na lei não encontra aplicação no caso, por a medida aplicada não estar sujeita a revisão e ter sido imposta até que seja decretada a adopção (artigo 62.º-A, n.º 1, da LPCJP).

Não está, pois, verificado qualquer dos fundamentos legais que poderiam conduzir à concessão da providência de habeas corpus e esta providência não permite sindicar a adequação e pertinência da solução encontrada no processo de protecção, por não se oferecer como alternativa ao recurso do acórdão de 18 de Dezembro de 2024; decisão que, aliás, não foi atacada por via de recurso ordinário, tendo transitado em julgado. Ora, não cabendo aqui conhecer do mérito daquela decisão, mas apernas apreciar de qualquer ilegalidade evidente, ostensiva e actual, o pedido de habeas corpus deverá ser indeferido por inequívoca falta de fundamento bastante, de acordo com a previsão do art. 223.º, n.º 4, al. a), do Código de Processo Penal.

III – DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus por falta de fundamento legal.

Fixa-se a taxa de justiça devida pela requerente em 3 (três) UC (art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e correspondente Tabela III).

*

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Março de 2025

(Texto processado pelo relator e revisto por todos os signatários)

Jorge Miranda Jacob (Relator)

José Piedade (1ºAdjunto)

Ernesto Nascimento (2º Adjunto)

Helena Moniz (Presidente da Secção)

_____________________________________________

1. - Entendimento que se conforma com os mecanismos internacionais de vigilância dos locais onde existem pessoas privadas de liberdade, como é o caso do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, adoptado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 18 de Dezembro de 2002, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 143/2012, de 13/12, ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 167/2012, de 13/12 e com início de vigência relativamente a Portugal em 14.02.2013. Prevê o respectivo art. 4º, nº 2, que para efeitos do presente Protocolo, entende-se por privação de liberdade qualquer forma de detenção ou prisão ou a colocação de uma pessoa num local de detenção público ou privado do qual essa pessoa não possa sair por vontade própria, por ordem de qualquer autoridade judicial, administrativa ou outra.

2. - Cf. Acórdãos do STJ de 18-01-2017, Proc.º n.º 3/17.6YFLSB, relatado por Rosa Tching; de 08-03-2006, Proc.º n.º 06P885, relatado por João Bernardo; de 02-03-2011, Proc.º n.º 25/11.0YFLSB.S1, relatado por Armindo Monteiro.

3. - Para além dos já indicados na nota 2, vejam-se os Acórdãos do STJ de 23.07.2021, processo n.º 2943/20.6T8CBR-A.S1, relatado por Nuno Gonçalves; de 30.06.2022, processo n.º 736/20.0T8CBR-E.S1, e de 16.11.2022, processo n.º 2638/22.6T8LRA-A.S1, ambos relatados por Orlando Gonçalves.

4. - Adoptadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução 45/113, de 14 de Dezembro de 1990.

5. - Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990.

6. - Revemo-nos, no entanto, nas dúvidas suscitadas no Acórdão do STJ, de 13.08.2024, proc. nº 268/24.7T8TVD-B.S1, relatado por Jorge Gonçalves.

7. - Vejam-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, e de 06.09.2022, proc. 2930/04.1GFSNT-A.S1, relatados por Lopes da Mota; e o Acórdão de 02.06.2021, proc. 2840/20.5T8STR-B.S1, relatado por Helena Moniz.