CONTRA-ORDENAÇÃO
PRESCRIÇÃO
SUSPENSÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
UNIÃO EUROPEIA
Sumário

Sumário (elaborado pelo relator):
I. . O regime de prescrição aplicável é o resultante da Lei 19/2012, na versão da Lei 17/2022, de 17 de Agosto, mais concretamente, atenta a questão em causa, é aplicável o artigo 74.º, n. 9, que estipula que inexiste limitação temporal para a suspensão decorrente da impugnação judicial da decisão da AdC, ou de recurso interlocutório, ou recurso para o Tribunal Constitucional.
II. A suspensão do prazo de prescrição pelo período máximo de 3 anos “em que a decisão da Autoridade da Concorrência for objeto de recurso judicial”, previsto na Lei da Concorrência (2012) – artigo 74., n. 4, al. a) e n. 7), que se entendeu aplicável, não pode considerar-se um prazo razoável.
III. As regras nacionais não podem tornar impossível ou excessivamente difícil a efetivação de um direito decorrente da ordem jurídica europeia.
IV. Apenas a aplicação imediata do novo prazo de suspensão do prazo de prescrição aos prazos ainda em curso, decorrentes de uma causa de suspensão já preexistente e já verificada, afasta o existente “risco sistémico de impunidade dos factos constitutivos” das infrações ao direito da concorrência.
V. O artigo 9.º, n. 1, da Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto (que aprovou o Novo Regime Jurídico da Concorrência), que estipula que “as disposições da presente lei aplicam-se aos procedimentos desencadeados após a respetiva entrada em vigor” deve ser afastado se interpretado no sentido de englobar a previsão do n. 9 do artigo 74.º. Este entendimento é o único compatível com o Direito da União, sendo obrigação deste tribunal interpretar o direito nacional em conformidade com aquele Direito e a afastar disposições nacionais incompatíveis com o mesmo.
VI. O Legislador nacional, ao condicionar a aplicação das disposições resultantes da transposição da Diretiva ECN+ através do aludido artigo 9.º, n. 1, fê-lo de forma errónea e atentatória do Direito da União, o que legítima a desaplicação daquele mesmo normativo, pelo menos no que concerne ao respetivo artigo 74.º, n. 9.
VII. O princípio da legalidade não se opõe, no caso, à aplicação da lei nova e consequente alteração do prazo de suspensão da prescrição.
VIII. Enquanto a norma do domínio penal refere “disposições penais vigentes” e “o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”, em sede contraordenacional tal terminologia não foi replicada. Em vez de tais expressões o Legislador usou, no artigo 3.º, n. 2, do RGCO, “lei vigente” e “lei mais favorável”, o que aponta para um sentido mais restrito, em especial, que os conceitos de “disposições penais” e “regime mais favorável”. Por sua vez, o n. 1, do artigo 3.º em referência refere expressamente “A punição da contraordenação é determinada pela lei vigente…”, restringindo o escopo daquele preceito legal, à norma incriminadora (o tipo contraordenacional) e respetiva sanção.
IX. Os factos constantes do processo não demonstram, nem se mostra alegado, a violação de outros princípios constitucionais, designadamente o princípio da tutela da confiança ou do direito à decisão em prazo razoável.
X. A norma que resulta da aplicação conjugada do artigo 9.º da Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto, e do artigo 3.º, n. 1 e n. 2, do RGCO, na interpretação segundo a qual a redação do n. 9 do artigo 74.º da LdC, introduzida por aquela Lei, não é aplicável a factos praticados em data anterior à sua entrada em vigor e em relação aos quais, nesta data, ainda não se tenha verificado o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional, é inconstitucional, por violação dos princípios do primado do Direito da União Europeia (a “exigência existencial”, nas palavras de Pierre Pescatore), consagrado no artigo 8.º, n. 4, da Constituição, e do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, n. 1, da Constituição.
XI.O recurso interposto sobre o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-05-2023, foi rejeitado por se mostrar ultrapassado o respetivo prazo de recurso, pelo que é irrelevante para efeitos do trânsito em julgado daquele acórdão.
XII. No caso, a prescrição do procedimento contraordenacional não ocorreu e o trânsito em julgado da decisão condenatória ocorreu a 23-05-2024.

Texto Integral

Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
EDP – Gestão da Produção de Energia, S.A. recorre “do despacho proferido por este Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (“TCRS”) sob referência n.º 485112, que, entre o mais, fixou o trânsito em julgado do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 25.09.2023 por referência à data de 23.05.2024 e julgou não verificada a prescrição do procedimento (…)”.
Formulou as seguintes conclusões:
§ 1. Vem o presente Recurso interposto dos §§ 1 – 133 do despacho proferido pelo TCRS que fixou o trânsito em julgado do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 25.09.2023 por referência à data de 23.05.2024, e, bem assim, julgou não verificada a prescrição do procedimento.
O erro do Tribunal a quo na fixação do trânsito em julgado
§ 2. Ao fixar o trânsito em julgado da decisão condenatória por referência à data de
23.05.2024, o Tribunal recorrido subscreveu uma leitura ilegal da LOTC e regras atinentes ao trânsito em julgado de decisões objeto de recurso para o Tribunal Constitucional.
§ 3. O único regime legal que admite a antecipação da data do trânsito em julgado durante a pendência de um recurso ou reclamação (ordinária ou constitucional, em face do artigo 70.º, n.º 3, da LOTC) é o regime do artigo 670.º do Código de Processo Civil.
§ 4. O regime do artigo 670.º do Código de Processo Civil — que só pode ser aplicado
perante um ato processual manifestamente dilatório e após um incidente específico para a sua tramitação —, porém, não foi acionado nestes autos, nem nos autos de recurso de constitucionalidade que o TCRS quer agora excluir da contagem do trânsito em julgado.
§ 5. Note-se que nem o Tribunal da Relação (que admitiu o recurso de constitucionalidade que o TCRS exclui na contagem que faz do trânsito em julgado), nem o Tribunal Constitucional (que julgou o recurso e a reclamação correspondentes) imputaram qualquer comportamento indevido ou dilatório à EDP Produção.
§ 6. O que se extrai do despacho recorrido é, portanto, uma tentativa do TCRS de construir uma nova regra de antecipação do trânsito em julgado fora dos casos do artigo 670.º do Código de Processo Civil e por referência a atos processuais que foram praticados noutras jurisdições e que o TCRS não é, por isso, competente para avaliar e ajuizar.
§ 7. Um Tribunal de Primeira Instância não pode, à revelia das posições e análises de Tribunais superiores, determinar post-factum que certos recursos interpostos na jurisdição constitucional foram abusivos.
§ 8. Um Tribunal de Primeira Instância também não pode amputar regimes legais tendo em vista construir soluções que lhe permitam tomar uma decisão com efeitos no trânsito em julgado que a Lei só admite que sejam tomadas por Tribunais diferentes.
§ 9. O Tribunal recorrido, além de estar a criar uma nova norma sobre os efeitos da
decisão constitucional não prevista na LOTC, acaba também por aplicar uma regra que é contrária ao segmento literal do seu artigo 80.º, n.º 4.
§ 10. Em segmento legal algum o artigo 80.º, n.º 4, da LTC (ou qualquer outra disposição legal desta Lei Orgânica) admite uma exceção nos termos agora avançados pelo TCRS.
§ 11. A regra prevista no artigo 80.º, n.º 4, da LTC é clara: só após o trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional é que a decisão recorrida poderá vir a transitar. E assim é independentemente do teor da decisão final do Tribunal Constitucional — isto é, seja esta de não admissão formal ou de indeferimento material do recurso de constitucionalidade.
§ 12. À mesma conclusão se chega através do artigo 70.º, n.º 3, da LOTC, que equipara os recursos e reclamações apresentados na jurisdição constitucional a recursos e reclamações ordinários — e, portanto, a atos processuais que obstam ao trânsito em julgado, ex vi artigo 628.º do Código de Processo Civil.
§ 13. Pior: o TCRS, ao querer excluir o recurso de constitucionalidade de maio de 2024 da computação do trânsito em julgado da decisão condenatória, incorre numa
contradição, uma vez que, na mesma decisão aqui recorrida, o TCRS concede que um outro recurso de constitucionalidade apresentado neste processo — o recurso que culminou com a prolação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 360/2024, datado de 08.05.2024, que igualmente determinou a não admissão — condicionou o trânsito em julgado do mesmo Acórdão condenatório do Tribunal da Relação de Lisboa.
§ 14. É pacífico na Jurisprudência e Doutrina que a interposição de recurso e/ou reclamação perante a jurisdição constitucional obsta ao trânsito em julgado da decisão recorrida, mesmo que tal recurso ou reclamação sejam rejeitados por inadmissibilidade; vejam-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.06.2007 (processo n.º 1885/07), de 11.03.2021 (processo n.º 130/4.1PDPRT.P1.S1), e de 14.10.2021 (processo n.º 7447/08.2TDLBS-G.S1).
§ 15. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 618.º, 628.º e 670.º do Código de Processo Civil, 70.º, n.º 3, e 80.º, n.º 4, da LOTC, na interpretação normativa segundo a qual uma decisão condenatória proferida em procedimento contraordenacional que foi objeto de recurso de constitucionalidade pode transitar em julgado antes de transitar em julgado a decisão do Tribunal Constitucional que não admita o recurso ou lhe negue provimento, por efeito de uma decisão de um Tribunal diferente daquele que admitiu o recurso de constitucionalidade e que decidiu a não admissão ou negou o provimento, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.os 1 e 4, 29.º, n.os 1 e 3, 32.º, n.os 1 e 10, e 280.º da Constituição.
§ 16. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 618.º, 628.º e 670.º do Código de Processo Civil, 70.º, n.º 3, e 80.º, n.º 4, da LOTC, na interpretação normativa segundo a qual uma decisão condenatória proferida em procedimento contraordenacional que foi objeto de recurso de constitucionalidade pode transitar em julgado antes de transitar em julgado a decisão do Tribunal Constitucional que não admita o recurso ou lhe negue provimento, por efeito de uma decisão de um Tribunal diferente daquele que admitiu o recurso de constitucionalidade e que decidiu a não admissão ou negou o provimento e que é posterior à data do trânsito em julgado do recurso de constitucionalidade, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.os 1 e 4, 29.º, n.os 1 e 3, 32.º, n.os 1 e 10, e 280.º da Constituição.
§ 17. Ainda que existisse base legal para a antecipação do trânsito em julgado por decisão do TCRS (no que não se concede), sempre se acrescente que não é verdade o que se lê no despacho recorrido, no sentido de que o recurso interposto pela EDP Produção para o Tribunal Constitucional teria visado protelar a data do trânsito em julgado e “obter uma decisão deste Tribunal de não admissão do recurso por intempestividade”.
§ 18. Não foi essa a perceção do Tribunal da Relação de Lisboa, que admitiu o recurso por despacho datado de 03.06.2024, por o considerar tempestivo, nem do Tribunal Constitucional, que julgou o recurso e reclamação constitucional.
§ 19. O recurso de constitucionalidade da EDP Produção baseou-se numa interpretação literal dos requisitos de admissibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional previstos na LOTC, que, ademais, era e é suportada por precedentes decisórios daquele mesmo Tribunal.
§ 20. Concretamente, a tese sustentada pela EDP Produção — de que uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa só é recorrível para o Tribunal Constitucional após se esgotar a discussão dos incidentes pós-decisórios — foi indicada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 360/2024, proferido neste processo, e aplicada, entre outros, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 385/2006, 441/2020 e 155/2022.
§ 21. Note-se que, na própria Decisão Sumária n.º 362/2024, proferida nestes autos (e para a qual o aludido Acórdão n.º 360/2024 remete) se lê que “[a]mbas as interpretações [isto é, a interpretação sustentada pela EDP Produção e a interpretação da relatora daquela Decisão Sumária] são possíveis, à luz da letra da lei, como se elucida no Acórdão n.º 155/2022, e encontram respaldo em decisões deste Tribunal Constitucional. Esta problemática tem sido discutida, em regra, a propósito da situação prevista no artigo 75.º, n.º 2, da LTC, mas o aresto esclarece que se trata “da mesma “definitividade” que se prevê sem que assim seja expressamente nomeada, no artigo 70.º, n.º 2, da LTC”; na mesma linha, o Acórdão
n.º 546/2022, na senda do Acórdão n.º 521/2008, afirma que não restam “dúvidas
de que o conceito de definitividade é necessariamente o mesmo”.”.
§ 22. Mais: no âmbito do próprio Acórdão n.º 360/2024 — ou seja, da decisão final que o TCRS quer desconsiderar para efeitos de contagem do trânsito em julgado — dois dos cinco Juízes Conselheiros da 2.ª Secção do Tribunal Constitucional secundaram a posição da EDP Produção, deixando expressos os seus votos de vencido.
§ 23. Caso este recurso de constitucionalidade tivesse sido distribuído a um dos Juízes Conselheiros que discordam do entendimento sufragado na Decisão Sumária n.º 362/2024, o recurso teria sido logo admitido e as questões de fundo constitucionalmente apreciadas — o que torna também evidente que, sendo tal cenário legalmente sustentável e já jurisprudencialmente validado, nunca poderia ser indevido o recurso da EDP Produção ao ponto de dar azo a que a decisão condenatória do Tribunal da Relação de Lisboa transitasse em julgado antes da análise do Tribunal Constitucional.
§ 24. Nem de outra forma poderia ser, sob pena de se estar materialmente a conceder
a um Tribunal ordinário o poder de impedir a discussão, em sede constitucional, dos requisitos de admissibilidade de recurso de constitucionalidade à luz da LOTC.
§ 25. É importante sublinhar que nem mesmo na jurisdição ordinária (essa sim, governada pelo Código de Processo Civil) se admite a antecipação da data do trânsito em julgado de uma decisão recorrida objeto de decisão de inadmissibilidade por intempestividade quando existe um fundamento sério e razoável para suscitar a discussão em torno da admissibilidade desse mesmo recurso — como aqui havia.
§ 26. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 618.º, 628.º e 670.º do Código de Processo Civil, 70.º, n.º 3, e 80.º, n.º 4, da LOTC, na interpretação normativa segundo a qual, por decisão tomada depois de transitada a decisão de recurso de constitucionalidade, pode uma decisão condenatória proferida em procedimento contraordenacional que foi objeto de recurso de constitucionalidade transitar em julgado antes de transitar em julgado a decisão do Tribunal Constitucional que não admita o recurso, quando essa decisão do Tribunal Constitucional tem por base requisitos de admissibilidade do recurso alvo de controvérsia jurisprudencial, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.os 1 e 4, 29.º, n.os 1 e 3, 32.º, n.os 1 e 10, e 280.º da Constituição.
§ 27. Também não faz qualquer sentido o argumento aduzido a quo quanto à adesão que faz ao conceito de definitividade subscrito pelo Tribunal Constitucional e quanto às consequências que daí pretende extrair para efeitos de antecipação da data de trânsito em julgado da decisão condenatória do Tribunal da Relação de Lisboa.
§ 28. O conceito de definitividade da LOTC não tem projeção alguma nas regras de trânsito em julgado, até porque, sobre o trânsito em julgado tem aplicação o já aludido artigo 80.º, n.º 4, da LOTC, que é claro ao definir que nunca o trânsito da decisão ordinária recorrida pode ocorrer antes de esgotada a discussão na jurisdição constitucional.
§ 29. A inexistente conexão entre o conceito de definitividade para efeitos da LOTC e o conceito de trânsito em julgado foi já explicada pelo próprio Tribunal Constitucional, inclusive a páginas 16, 18 e 19 da Decisão Sumária n.º 362/2024 que consta dos autos.
§ 30. Em consequência, e contrariamente ao que lê no despacho recorrido, nada há de anormal ou legalmente indevido na constatação de que uma decisão pode não ser passível de recurso ou reclamação ordinária, ao mesmo tempo que pode ser, ou é, alvo de recurso de constitucionalidade — como sucedeu in casu.
§ 31. A somar ao já exposto, é de sublinhar que o TCRS vem agora declarar que a decisão condenatória transitou em maio de 2024 quando, entre maio e setembro de 2024, os dois Tribunais superiores que tramitaram o processo nunca anteviram, muito menos declararam, esse trânsito.
§ 32. O pretenso trânsito em julgado da decisão condenatória não foi invocado pelo Tribunal da Relação de Lisboa para rejeitar o recurso de constitucionalidade da EDP Produção (que admitiu, porque tempestivo, em 03.06.2024), nem foi fundamento da rejeição desse recurso pelo Tribunal Constitucional.
§ 33. De igual forma, nem o Ministério Público, nem a Autoridade da Concorrência — nas alegações que apresentaram perante o Tribunal Constitucional em resposta ao recurso de constitucionalidade aqui em causa — alegaram o trânsito em julgado da decisão recorrida como fundamento para a inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade ora em causa.
§ 34. E ainda que assim não se entenda e se pretendesse anuir à tese da derrogação parcial do artigo 80.º, n.º 4, da LOTC, subscrita a quo, sempre haveria que rejeitar esse entendimento por uma outra e autónoma razão: é que essa interpretação dos artigos 80.º, n.º 4, da LOTC, e 670.º do Código de Processo Civil, porque assente na criação de uma regra de antecipação de trânsito em julgado que não encontra respaldo nos elementos literais daquelas disposições legais, redunda num raciocínio analógico contra reo, que é proibido no âmbito do direito sancionatório.
§ 35. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 618.º, 628.º e 670.º do Código de Processo Civil, 70.º, n.º 3, e 80.º, n.º 4, da LOTC, na interpretação normativa segundo a qual uma decisão condenatória proferida em procedimento contraordenacional que foi objeto de recurso de constitucionalidade pode transitar em julgado antes de transitar em julgado a decisão do Tribunal Constitucional que não admita o recurso ou lhe negue provimento, por efeito de uma decisão de um Tribunal diferente daquele que admitiu o recurso de constitucionalidade e que decidiu a não admissão ou negou o provimento e que é posterior à data do trânsito em julgado do recurso de constitucionalidade, sem que seja levado a cabo incidente de defesa contra demoras abusivas, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.os 1 e 4, 29.º, n.os 1 e 3, 32.º, n.os 1 e 10, e 280.º da Constituição.
Assim:
§ 36. Atenta a ausência de norma habilitante e a inexistência de qualquer comportamento abusivo relacionado com o recurso de constitucionalidade interposto em 22.05.2024, deve ser revogada a decisão a quo na parte em que fixou
o trânsito em julgado da decisão condenatória por referência à data de 23.05.2024.
§ 37. Ademais, estando ainda pendente de decisão final definitiva a questão sobre a
prescrição do procedimento, afigura-se que, nesta data, não pode ainda ser declarado o trânsito em julgado da condenação proferida nos autos.
§ 38. A pendência de decisão sobre a prescrição do procedimento, tendo sido suscitada ainda antes do trânsito em julgado da decisão final do Tribunal Constitucional sobre o acórdão condenatório do Tribunal da Relação de Lisboa (que só transitou em 10.09.2024), obsta a que esse Acórdão possa transitar em julgado.
§ 39. A decisão condenatória só poderá transitar quando estiver esgotada a apreciação de todas as questões oportunamente suscitadas e que possam contender com a sua exequibilidade.
§ 40. Caso assim não se entenda, e subsidiariamente, a ser declarado o trânsito em
julgado, no que não se concede, nunca o mesmo poderia ser fixado em data anterior à data já certificada do trânsito em julgado da última decisão do Tribunal Constitucional sobre o Acórdão condenatório, que apenas ocorreu em 10.09.2024, em obediência ao disposto nos artigos 70.º, n.º 3, e 80.º, n.º 4, da LOTC e à certidão de trânsito em julgado datada de 16.09.2024 (referência CITIUS 22076291).
A prescrição do procedimento
§ 41. Num segundo momento do despacho aqui sob recurso (cfr. §§ 58 – 130), o Tribunal a quo analisa a questão em torno da arguida prescrição do procedimento: conclui, primeiramente, que, seguindo as regras inscritas na LdC, a prescrição não correu antes de 30.06.2024 (e, portanto, depois da data por si ilegalmente fixada como a data do trânsito em julgado da condenação); num segundo momento, afirma que é aplicável in casu a suspensão prescricional resultante da pandemia de Covid-19, o que, na lógica do TCRS, tem como efeito alargar o prazo de prescrição e reforçar, destarte, a sua decisão no sentido da não verificação da prescrição do procedimento.
§ 42. Novamente, improcede a construção subscrita pelo Tribunal recorrido.
A prescrição do procedimento independentemente da aplicabilidade, ou não, no caso
vertente, da legislação Covid-19
§ 43. Para efeitos de cálculo do prazo de prescrição, relevam, nos presentes autos, os
seguintes factos e enquadramentos:
a. De acordo com a Sentença proferida por este Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão em 10.08.2022, a pretensa infração imputada à EDP Produção cessou em 31.12.2013
b. À luz da LdC, na redação aqui aplicável, o procedimento de contraordenação prescreve no prazo de 5 (cinco) anos (cfr. artigo 74.º, n.º 1, alínea b), da LdC) c. A estes cinco anos, podem acrescer os períodos temporais relacionados com a verificação de causas de interrupção e suspensão desse prazo, sendo certo que, nos termos da referida Lei, a prescrição “tem sempre lugar” uma vez decorridos “sete anos e meio”, “ressalvado o tempo de suspensão” (cfr. artigo 74.º, n.º 8, da LdC)
d. O tempo máximo de suspensão legalmente admissível “não pode ultrapassar três anos” (cfr. artigo 74.º, n.º 7, da LdC)
§ 44. A versão do artigo 74.º da LdC, introduzida pela Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto, não pode ser aplicável in casu: ora porque existe uma disposição legal transitória no artigo 9.º referida Lei n.º 17/2022 que obsta a essa aplicação a processos iniciados antes da sua entrada em vigor; ora porque tal aplicação implicaria uma retroatividade in malam partem contra a EDP Produção (porquanto ampliadora dos prazos prescricionais), constitucionalmente vedada.
§ 45. O próprio Tribunal recorrido secunda este entendimento, rejeitando a aplicação vertente da Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto, no § 62 do despacho recorrido.
§ 46. Acompanhando as regras do artigo 74.º, n.º 1, alínea b), da LdC, e tomando por
referência a referida data de 31.12.2013, verifica-se que o prazo normal de prescrição do procedimento, correspondente a cinco anos, foi atingido no passado dia 31.12.2018.
§ 47. A este prazo, acresce ainda o prazo adicional máximo de dois anos e meio, o que
atrasa o prazo para o dia 30.06.2021.
§ 48. A este prazo adicional máximo acresce ainda o período de suspensão prescricional, tal como regulado no artigo 74.º, n.º 4, da LdC.
§ 49. Uma vez que, nos presentes autos, não se verificou a situação prevista no artigo
74.º, n.º 4, alínea b), da LdC, ao prazo máximo de prescrição já concretizado há apenas que fazer acrescer “o período de tempo em que a decisão da Autoridade da Concorrência fo[i] objeto de recurso judicial” (cfr. artigo 74.º, n.º 4, alínea a), da LdC).
§ 50. Esse período correspondeu a 812 (oitocentos e doze) dias.
A propósito desta causa de suspensão:
§ 51. O Tribunal recorrido, no § 64 do despacho recorrido, veio decidir que o prazo prescricional deste processo esteve suspenso durante o período máximo de 3 (três) anos, tal como previsto no artigo 74.º, n.º 7, da LdC.
§ 52. Uma vez que a decisão da Autoridade da Concorrência proferida nos presentes autos não esteve sob recurso durante 3 (três) anos, afigura-se que o TCRS, nessa parte do despacho recorrido, incorreu em erro na computação da duração do período da suspensão prescricional, porventura incluindo nessa conta o hiato temporal posterior à prolação da Sentença do TCRS datada de 10.08.2022 — o que é ilegal à luz do artigo 74.º, n.º 4, da LdC.
§ 53. Como se extrai da letra da Lei, a causa de suspensão prescricional do artigo 74.º, n.º 4, alínea a) da LdC só vigora durante “o período de tempo em que a decisão da Autoridade da Concorrência for objeto de recurso judicial” — logo, por força da letra da Lei, uma vez concluída a apreciação judicial dessa decisão administrativa, cessa a causa de suspensão.
§ 54. Excluído do escopo desta causa de suspensão ficam, pois, o período temporal
anterior à admissão do recurso de impugnação judicial da decisão da Autoridade da Concorrência (porque durante esse hiato temporal a mesma não está a ser “objeto de recurso judicial”) e, bem assim, o período subsequente à prolação da Sentença.
§ 55. Uma vez esgotado o poder jurisdicional do Tribunal competente para apreciar o recurso de impugnação judicial da decisão da Autoridade da Concorrência — isto é, o TCRS —, em momento algum posterior volta a estar sob recurso “a decisão da Autoridade Concorrência”.
§ 56. No cenário de recurso para o Tribunal da Relação já não é a decisão da Autoridade da Concorrência que permanece como o objeto do novo recurso judicial, mas apenas e só a Sentença do TCRS.
§ 57. Por conseguinte, uma vez proferida a Sentença do TCRS, não mais subsiste suspenso o prazo prescricional à luz do artigo 74.º, n.º 4, alínea a) da LdC.
§ 58. Esta leitura ampara-se em argumentos interpretativos literais, sistemáticos e dogmáticos do artigo 74.º, n.º 4, alínea a) da LdC.
§ 59. Do prisma literal, é evidente que a ampliação do âmbito de vigência temporal desta suspensão prescricional para outros momentos do procedimento contraordenacional nos quais estão sob recurso outras decisões que não a decisão da Autoridade da Concorrência (por exemplo, o recurso da decisão judicial que apreciou a decisão da Autoridade da Concorrência) colide com os limites literais do enunciado inscrito naquele artigo 74.º, n.º 4, alínea a), da LdC.
§ 60. Do prisma sistemático, é manifesto que a LdC distingue, em vários momentos e regimes, entre recursos de decisões da Autoridade da Concorrência e recursos de decisões judiciais (vejam-se, entre outros, os artigos 84.º e 87.º, por um lado, e o artigo 89.º, por outro lado).
§ 61. O facto da LdC distinguir recursos que têm por objeto decisões da Autoridade da Concorrência de outros recursos deve, pois, ser também tida em conta na interpretação do artigo 74.º, n.º 4, alínea a), da LdC.
§ 62. Do prisma dogmático, está estabilizada há muito, no âmbito do procedimento contraordenacional, uma césure entre a decisão administrativa (que pode ser alvo de um recurso de impugnação judicial) e as posteriores decisões judiciais que a substituem (que, nos casos legalmente admissíveis, podem também ser alvo de recurso para tribunais superiores).
§ 63. O tribunal competente para apreciar o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa tem poderes de plena jurisdição e julga ex novo — e a sua decisão (sob a forma de despacho ou Sentença) substitui a decisão administrativa.
§ 64. Tanto assim que, uma vez proferida decisão final pelo tribunal competente para apreciar o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa, de seguida, apenas é possível recorrer dessa decisão judicial final, não mais se tornando a analisar a decisão administrativa.
§ 65. Como escreveu este Tribunal da Relação de Lisboa (Acórdão do processo n.º 74/19.0YUSTR.L1-PICRS), “[u]ma vez proferida decisão de avaliação do recurso de impugnação judicial de decisão administrativa proferida em processo de contraordenação, desapareceram os factos fixados na fase administrativa e são reconstruídos outros, com distinta autoria de cristalização. Neste contexto, não subsistem, após tal imobilização fáctica, formulações e desenho Demandada matéria
de facto que não sejam os definidos pelo Tribunal”.
§ 66. E depois de apreciada judicialmente, através da prolação de despacho ou sentença, a decisão administrativa, não mais essa decisão é objeto de recurso judicial, pois que, nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 190/24.7YUSTR.L1-PICRS, de 11.09.2024, “o tribunal de recurso aprecia unicamente a decisão judicial recorrida”.
§ 67. A análise dos presentes autos confirma tudo isto, porque revela que a Sentença, datada de 10.08.2022, não mantém a decisão administrativa da Autoridade da Concorrência, antes emite uma nova decisão e culmina com uma condenação judicial.
§ 68. Da mesma forma, o recurso que foi de seguida interposto pela EDP Produção para o Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 30.09.2023, tinha por objeto a Sentença do TCRS.
§ 69. Tal como o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 25.09.2023 versa exclusivamente sobre a Sentença, alterando-a parcialmente, não se debruçando em momento algum sobre a decisão administrativa (que não integrava o objeto do recurso).
§ 70. Dúvidas não restam que a decisão da Autoridade da Concorrência só é objeto de recurso judicial durante o período em que é admitida a impugnação judicial e a mesma está sob apreciação pelo TCRS — e é esse, portanto, o período temporal que deve ser considerado na computação da suspensão prescricional do artigo 74.º, n.º 4, alínea a), da LdC.
§ 71. O alargamento do escopo desta causa de suspensão para lá deste período temporal, por colidir com o seu sentido literal e sistemático, redundaria sempre numa interpretação desviada do sentido possível das palavras e, por conseguinte, em analogia contra reo, que é constitucional e legalmente desautorizada no âmbito contraordenacional
§ 72. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 74.º, n.º 1, alínea b), n.º 4, alínea a), e n.º 7 da LdC, na redação resultante da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, e do artigo 9.º da Lei n.º 17/2022, na interpretação normativa segundo a qual permanece suspenso o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional por infração às regras da concorrência depois de proferida a decisão judicial que tem por objeto a decisão da Autoridade da Concorrência alvo de impugnação judicial, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 32.º, n.os 1 e 10, da Constituição.
§ 73. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 74.º, n.º 1,
alínea b), n.º 4, alínea a), e n.º 7 da LdC, na redação resultante da Lei n.º 19/2012,
de 8 de maio, e do artigo 9.º da Lei n.º 17/2022, na interpretação normativa segundo a qual permanece suspenso o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional por infração às regras da concorrência durante o período de tempo em que está sob recurso ordinário e constitucional a Sentença que teve por objeto a decisão da Autoridade da Concorrência, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 32.º, n.os 1 e 10, da Constituição.
Em consequência:
§ 74. A EDP Produção interpôs recurso de impugnação judicial contra a decisão condenatória da Autoridade da Concorrência no passado dia 30.10.2019 e esse recurso foi admitido pelo TCRS por despacho datado de 20.05.2020.
§ 75. Em 10.08.2022, o TCRS proferiu a sua Sentença final, pondo termo ao recurso
judicial que tinha por objeto a decisão da Autoridade da Concorrência.
§ 76. Desde essa data, não mais esteve em curso um recurso judicial tendo por objeto
a decisão da Autoridade da Concorrência, mas sim recursos judiciais que tinham por objeto Sentenças, Acórdãos e despachos do TCRS, do Tribunal da Relação de Lisboa e do Tribunal Constitucional.
§ 77. Entre 20.05.2020 (data de admissão do recurso que tinha por objeto a decisão da Autoridade da Concorrência) e 10.08.2022 (data da Sentença que pôs termo a essa fase processual) decorreram 812 (oitocentos e doze) dias.
§ 78. Somando-se estes 812 (oitocentos e doze) dias ao prazo máximo de prescrição de sete anos e meio, resulta, pois, que o prazo de prescrição máximo, incluindo a ressalva do prazo em que o mesmo esteve suspenso, foi atingido no passado dia 20.09.2023.
§ 79. Caso se entenda que podem ser retroativamente aplicáveis ao presente procedimento as regras de suspensão prescricionais resultantes da legislação Covid-19 (no que não se concede, pelas razões aduzidas infra), a este prazo de prescrição máximo, ressalvado o prazo em que o mesmo esteve suspenso, importa, pois, aditar àquela contagem um prazo adicional de 160 (cento e sessenta) dias.
§ 80. Somados 160 (cento e sessenta) dias à data anteriormente estabilizada como prazo máximo de prescrição, já com ressalva do prazo de suspensão — isto é, o dia 20.09.2023 —, conclui-se que, mesmo caso se entenda aplicável a suspensão prescricional Covid-19, o procedimento prescreveu no passado dia 27.02.2024.
§ 81. Razão pela qual devem V. Exas. declarar a prescrição deste processo, com as devidas consequências legais, mormente o seu arquivamento.
Subsidiariamente: a inadmissibilidade constitucional e legal da aplicação retroativa da suspensão prescricional introduzida in media res pela legislação Covid-19
§ 82. O decurso do prazo prescricional do presente procedimento contraordenacional não é afetado pela entrada em vigor de novas e supervenientes causas de suspensão no âmbito da pandemia Covid-19.
§ 83. O Tribunal recorrido entendeu diferentemente e concluiu pela aplicação retroativa das causas de suspensão do prazo de prescrição resultantes da legislação Covid-19 e pela consequente não verificação da prescrição do procedimento contraordenacional vertente. Mas sem razão.
§ 84. Primeiro, as alterações ao prazo prescricional inscritas na legislação Covid-19
entraram em vigor em momento muito posterior aos factos pretensamente instanciadores da presente infração, que cessou em 31.12.2013, sendo que as respetivas disposições legais versam sobre normas de natureza material ou processual-material, que, como tal, não podem ser retroativamente aplicadas in casu.
§ 85. Logo, sempre haverá de se concluir que as disposições legais que versam sobre os prazos prescricionais se encontram abrangidas pelo âmbito de aplicação do princípio da legalidade, e, por inerência, da proibição da aplicação retroativa de leis posteriores desfavoráveis a que aludem os artigos 2.º, 19.º, n.º 6, e 29.º, n.os 1 e 4, 32.º, n.º 10 da Constituição, 3.º do RGCO e 2.º do Código Penal, aplicável ex vi artigo 13.º da LdC e 32.º do RGCO.
§ 86. As disposições legais incorporadas na legislação Covid-19, tendo como efeito o
alargamento do prazo final de prescrição, se aplicadas retroativamente, prejudicam a situação processual e material dos arguidos visados nesses processos.
§ 87. Aliás, a proibição de aplicação retroativa da legislação Covid-19 a procedimentos contraordenacionais já iniciados antes da sua entrada em vigor foi logo reconhecida por Acórdãos de Tribunais superiores (neste exato sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.07.2020, proferido no processo
n.º 76/15.6SRLSB.L1-5; o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.07.2020, no processo n.º 128/16.5SXLSB.L1-5; e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães no processo n.º 179/15.9FAF.G2, de 25.01.2021; similares entendimentos foram também proferidos e podem ser colhidos, entre o mais, do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora no processo n.º 201/10.3GBVRS.E1, de 23.01.2021; do Acórdão da Conferência do Tribunal da Relação de Lisboa no processo n.º 207/09.5PAAMD-A.L1-5, de 09.03.2021; e do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no processo n.º 300/19.6Y9PRT-B.P1, de 14.04.2021).
§ 88. Pelo que, no presente caso, deverá ser afastada a aplicação retroativa da legislação Covid-19 e decretar-se a prescrição do presente procedimento.
§ 89. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 7.º, n.os 3 e 4, 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 37.º do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de março, 2.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, 5.º, 6.º e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, 3.º do RGCO e 2.º do Código Penal, aplicáveis ex vi artigo 13.º da LdC e 32.º do RGCO, na interpretação normativa segundo a qual a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí
prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 19.º, n.º 6, 20.º, n.º 4, e 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 32.º, n.os 1 e 10 da
Constituição.
§ 90. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 7.º, n.os 3 e 4, 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 37.º do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de março, 2.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, 5.º, 6.º e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, 3.º do RGCO e 2.º do Código Penal, aplicáveis ex vi artigo 13.º da LdC e 32.º do RGCO, na interpretação normativa segundo a qual a causa de alargamento do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do
início da respetiva vigência é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 19.º, n.º 6, 20.º, n.º 4, e 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 32.º, n. os 1 e 10 da
Constituição.
Avançando:
§ 91. Segundo, a circunstância de terem sido depois proferidos três Acórdãos do Tribunal Constitucional (Acórdãos n.os 500/2021, 660/2021 e 798/2021) sobre a questão da aplicação retroativa das causas de suspensão da prescrição contraordenacional resultantes da legislação Covid-19 — para os quais remete integralmente o Tribunal recorrido — não impede que se conclua pela inaplicabilidade dessas causas de suspensão aos processos contraordenacionais por infrações iniciados antes da sua entrada em vigor.
§ 92. E assim é porque os referidos Acórdãos (i) não versam sobre procedimentos por infração ao direito da concorrência, (ii) não foram proferidos com força obrigatória geral e (iii) não negam (pelo contrário, até validam) a suportabilidade constitucional de um entendimento normativo no sentido de ser proibida a aplicação retroativa das disposições legais da legislação Covid-19.
§ 93. Nos referidos Acórdãos, o Tribunal Constitucional não declarou a inconstitucionalidade da inaplicabilidade daquelas Leis aos processos contraordenacionais por infrações iniciados antes da sua entrada em vigor.
§ 94. Como se assume no despacho recorrido, a aplicação retroativa das leis prescricionais Covid-19 a processos já iniciados, subsiste ainda hoje sob controvérsia no próprio Tribunal Constitucional, como se alcança dos votos de vencido inscritos nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 827/2023, de 13.12.2023, 874/2023, de 09.01.2024, e 14/2024, de 09.10.2024.
§ 95. Recentemente, e já depois da legislação Covid-19 ora sob referência, o Plenário
do Tribunal Constitucional, chamado a pronunciar-se sobre o mesmíssimo problema em torno da aplicação retroativa de novas normas prescricionais a processos contraordenacionais já antes em curso, reiterou que as regras sobre suspensão de prazos de prescrição não podem aplicar-se retroativamente in malam partem (a este propósito, atente-se no Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 231/2021, de 21.04.2021 e no Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 319/2021, de 18.05.2021).
§ 96. E tanto assim é que, mesmo depois daqueles Acórdãos n.os 500/2021, 660/2021 e 798/2021 do Tribunal Constitucional, os Tribunais Superiores continuam a declarar a inaplicabilidade retroativa da legislação Covid-19 a procedimentos iniciados antes da sua entrada em vigor (a título exemplificativo, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 1056/21.8T9PVZ.P1, de 09.03.2022; o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto,
proferido no processo n.º 294/22.0T9VCD.P1, de 07.09.2022; o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo n.º 1407/18.2T9LAG.E1, de 10.05.2022; o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 2544/22.4T9AVR.P1, de 01.02.2023; o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo n.º 279/22.7Y4LSB.E1, de 18.12.2023; e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo n.º 6/23.1T8FTR.E1, de 23.01.2024).
Mais:
§ 97. Terceiro, as regras Covid-19 com influência no prazo prescricional também não podem produzir efeitos nos presentes autos, porquanto as normas Covid-19 se qualificam como leis temporárias e, como tal, nunca podem ser aplicadas retroativamente a factos praticados antes da sua entrada em vigor.
§ 98. Contrariamente ao entendimento veiculado pelo Tribunal a quo, resulta da natureza temporária dessas normas e do artigo 3.º, n.º 3, do RGCO que as mesmas só podem vigorar para futuro e apenas podem abranger os factos praticados durante o período da sua vigência.
§ 99. Se é certo que, no caso de leis temporárias, ainda que a lei nova seja mais favorável ao agente, continuar-se-á a aplicar a lei temporária vigente no momento da prática dos factos, igualmente verdade é que o agente, nesse cenário, sabe que essa lei existe quando decide praticar o facto.
§ 100. A EDP Produção, à data da prática dos factos, não sabia, nem tinha como saber, que seriam introduzidas na ordem jurídica novas causas de suspensão que, a
serem aplicadas retroativamente, teriam por efeito o alargamento do prazo prescricional com que podia contar quando agiu.
§ 101. Pelo que, a aplicação da legislação Covid-19 à conduta da EDP Produção, praticada em data muito anterior e cessada em 31.12.2013, sempre redundaria numa outra e autónoma violação do disposto nos artigos 29.º da Constituição e 2.º e 3.º do RGCO.
Mais ainda:
§ 102. Existe uma quarta razão impeditiva da aplicação in casu dos prazos prescricionais resultantes da legislação Covid-19: a inexistência de norma habilitante que preveja a possibilidade de suspensão do prazo de prescrição, in media res, perante uma disposição legal superveniente.
§ 103. Para o Tribunal Constitucional, apesar de inexistir uma norma a tanto habilitante como a que foi positivada na ordem jurídica italiana, a suspensão do prazo prescritivo seria, ainda assim, possível perante uma lei que determina a paralisação dos processos porque, mesmo que essa norma habilitante existisse, o agente estaria na mesma situação, isto é, nunca saberia quando seria acionada.
§ 104. Porém, não é comparável, na balança constitucional, um cidadão que, na pendência de procedimento contraordenacional, conhece desde o início a possibilidade de o prazo de prescrição vir a ser suspenso por via da entrada em vigor de uma lei posterior nesse sentido, com um cidadão que, desde o início de um mesmo procedimento, é confrontado com um elenco taxativo de causas de suspensão prescritivas que não inclui a admissibilidade da suspensão operar supervenientemente ope legis.
§ 105. Na primeira situação, que retrata o caso italiano invocado pelo Tribunal Constitucional, sempre haverá, pelo menos, uma base legal prévia para opor ao cidadão a suspensão do prazo prescricional; na segunda situação, que é a do caso vertente, em que não existe base legal anterior, qualquer suspensão legal do prazo de prescrição ocorre necessariamente contra legem, e, portanto, em violação da confiança legítima dos cidadãos.
§ 106. A compreensão e concordância com a excecionalidade covidiana não pode ser
transformada numa carta branca à violação da Constituição.
§ 107. A omissão legislativa pretérita na delimitação do exercício do poder punitivo,
concretamente na inclusão de outras causas de suspensão dos prazos de prescrição, não pode ser suprida à custa da confiança legítima dos cidadãos, por aplicação plena não só do princípio da legalidade, mas também dos princípios da segurança e certeza jurídica e da tutela da confiança.
§ 108. Para mais quando essa confiança é estribada num comportamento legislativo
emanado do mesmo Estado, que positivou de forma taxativa as causas de suspensão do prazo de prescrição.
§ 109. Aqui chegados, é já incontornável a violação da confiança legítima da EDP Produção no caso vertente: (i) uma situação de confiança justificada, materializada na taxatividade das causas de suspensão do procedimento contraordenacional; (ii) um investimento de confiança, que se dá com a expectativa formulada pela EDP Produção de que, nestes autos, apenas os casos expressamente previstos na Lei como justificativos da suspensão poderiam determinar uma suspensão do prazo prescritivo; e (iii) a imputação da situação de confiança à pessoa que vai ser atingida com a proteção dada ao confiante, isto é, o próprio Estado no exercício do poder sancionatório.
§ 110. Logo, também por ausência de norma a tanto habilitante, não pode a legislação
Covid-19 ser aplicada nos presentes autos para fazer aumentar a duração do seu prazo prescritivo — sendo certo que uma eventual inclusão das normas da legislação Covid-19 nas causas legais de suspensão do prazo prescricionais aplicáveis aos procedimentos por infração ao direito da concorrência redundaria sempre em analogia proibida, porque necessariamente desligada do sentido possível do texto da Lei.
§ 111. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 7.º, n.os 3 e 4, 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 37.º do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de março, 2.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, 5.º, 6.º e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, 3.º do RGCO e 2.º do Código Penal, aplicáveis ex vi artigo 13.º da LdC e 32.º do RGCO, na interpretação normativa segundo a qual a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí
prevista pode ser aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência mesmo após ter cessado a vigência da Lei n.º 1-A/2020, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 19.º, n.º 6, 20.º, n.º 4, e 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 32.º, n.º 1 e 10 da Constituição.
§ 112. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 7.º, n.os 3 e 4, 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 37.º do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de março, 2.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, 5.º, 6.º e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, 74.º da LdC, 3.º, 27.º-A do RGCO e 2.º do Código Penal, aplicáveis ex vi artigo 13.º da LdC e 32.º do RGCO, na interpretação normativa
segundo a qual a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é subsumível às causas legais de suspensão da prescrição do procedimento aplicáveis aos processos contraordenacionais por infração ao direito da concorrência, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 19.º, n.º 6, 20.º, n.º 4, e 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 32.º, n.º 1 e 10 da Constituição.
Prosseguindo:
§ 113. Há uma quinta razão que milita no sentido da inconstitucionalidade da aplicação retroativa da legislação Covid-19 aos presentes autos, relativamente à qual, até à data, a jurisdição constitucional não foi chamada a pronunciar-se: a violação das garantias e direitos ínsitos ao princípio do Estado de Direito.
§ 114. Os problemas suscitados pela referida aplicação retroativa nunca foram apreciados e decididos pelo Tribunal Constitucional; se o tivessem sido, outros balanceamentos e ponderações teriam sido levados a cabo acerca dos interesses aqui em conflito.
§ 115. Como é sabido, o princípio do Estado de Direito incorpora uma componente de tutela da segurança jurídica e de proteção da confiança ainda mais ampla do que
aquela que é conferida pelo princípio da legalidade.
§ 116. O que é tanto mais relevante porque o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão
n.º 500/2021, tal como agora o Tribunal a quo, baseia a sua decisão no sentido da não inconstitucionalidade no aligeiramento e até desconsideração das regras que dimanam do princípio da legalidade sancionatória — circunstância que abre espaço aplicativo pleno à projeção do princípio do Estado de Direito, princípio esse que, como se reputa elementar, não admite qualquer tipo de minimização.
§ 117. À luz do princípio do Estado de Direito, é notório que a confiança legítima que se quebra com a aplicação de causa de suspensão de prazo prescricional posterior à
data da prática do facto. Só há confiança se a pessoa pode perceber a priori qual será o horizonte temporal máximo a partir do qual pode vir a gozar de um estado de absoluta paz jurídica, concretizada na condenação, absolvição ou prescrição do procedimento.
§ 118. Qualquer alteração do regime da prescrição em sentido desfavorável ao agente
afeta irremediavelmente a expectativa por si legitimamente formada no momento da prática do facto e arrimada na legislação à data existente.
§ 119. Portanto, a expectativa do agente na duração limitada — e, sobretudo, na duração não ilimitada — da possibilidade de punição, que assenta nas normas que preveem e afetam os prazos de prescrição à data da prática dos factos, merece tutela constitucional e é protegida pelo princípio do Estado de Direito, mesmo quando se entenda (como o entende o Tribunal a quo) que o princípio da legalidade não pode aqui ser plenamente aplicável.
§ 120. A eventual aplicação da suspensão do prazo prescricional introduzida pela legislação Covid-19 a processos contraordenacionais que tenham por objeto factos praticados antes da sua entrada em vigor consubstanciaria uma lesão especialmente intensa da legítima confiança dos arguidos.
§ 121. Impõe-se, assim, concluir que as disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 7.º, n.os 3 e 4, 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 37.º
do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de março, 2.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6
de abril, 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1
de fevereiro, 5.º, 6.º e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, 3.º do RGCO e 2.º do
Código Penal, aplicáveis ex vi artigo 13.º da LdC e 32.º do RGCO, na interpretação normativa segundo a qual a causa de suspensão e alargamento do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 2.º da Constituição.
Acresce que:
§ 122. Há uma sexta e decisiva razão que em definitivo impede a aplicação retroativa da legislação Covid-19 ao prazo prescricional dos presentes autos: a não paralisação
da atividade judiciária no caso vertente.
§ 123. O Tribunal Constitucional elegeu esta singularidade de circunstâncias como
critério essencial para se afastar daquela que tem sido a sua prática decisória — é isso que resulta dos seus Acórdãos n.os 500/2021 e 660/2021.
§ 124. Sendo este o fundamento decisivo do afastamento do princípio da legalidade e da proibição da aplicação retroativa de leis desfavoráveis ao arguido, sempre se exigirá que se verifique casuisticamente se essa paralisação ocorreu, ou não, e em
que termos.
§ 125. E é precisamente à luz dessa exigência que, no caso vertente, se deve recusar a aplicação do prazo prescricional resultante da legislação Covid-19: durante o período de vigência da legislação Covid-19, praticaram-se inúmeros atos processuais nestes autos, por parte de todos os seus sujeitos processuais, incluindo — nas palavras do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 500/2021 — “atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição”.
§ 126. A mera constatação de que foram praticados atos durante o período de suspensão, independentemente do concreto momento em que o foram, permite concluir que a tramitação dos presentes autos não esteve paralisada.
§ 127. Por conseguinte, a excecionalíssima razão material que levou o Tribunal Constitucional a afastar o juízo de inconstitucionalidade da aplicação retroativa in malam partem não é transponível para o caso vertente.
§ 128. Ao contrário do que sustenta o Tribunal recorrido, em nada relevam ponderações sobre o momento em que tais atos foram praticados durante a suspensão (ou sobre os motivos pelos quais não foram os mesmos praticados antes), tal como não releva saber se a aferição casuística da prática de atos durante o período da paralisação é genericamente exequível ou não.
§ 129. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 7.º, n.os 3 e 4, 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 37.º do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de março, 2.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, 5.º, 6.º e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, 3.º do RGCO e 2.º do Código Penal, aplicáveis ex vi artigo 13.º da LdC e 32.º do RGCO, na interpretação normativa segundo a qual a causa de suspensão e o alargamento do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável a processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência que não foram afetados pela situação de paralisação da atividade judiciária, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 19.º, n.º 6, 20.º, n.º 4, e 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 32.º, n.º 1 e 10 da Constituição.
§ 130. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 7.º, n.os 3 e 4, 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 37.º do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de março, 2.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, 5.º, 6.º e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, 3.º do RGCO e 2.º do Código Penal, aplicáveis ex vi artigo 13.º da LdC e 32.º do RGCO, na interpretação normativa segundo a qual a causa de suspensão e o alargamento do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável a processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência nos quais foram proferidos despachos de exame preliminar e de admissão de recursos durante o período da aludida suspensão é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 19.º, n.º 6, 20.º, n.º 4, e 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 32.º, n.º 1 e 10 da Constituição.
Finalmente:
§ 131. É também inevitável reconhecer que a natureza materialmente penal do procedimento contraordenacional vertente impede a aplicação retroativa das normas temporárias sobre prescrição previstas na legislação Covid-19
§ 132. Com efeito, a coima aplicada in casu — primeiro, em sede administrativa, no valor de € 48.000.000 e, depois, judicialmente reduzida para € 40.0000.000 — corresponde a uma sanção sem paralelo no ordenamento penal (e, já agora, contraordenacional português, no que a condutas unilaterais respeita), sujeitando a EDP Produção a uma sanção que nem a prática dolosa de ilícitos consideravelmente mais graves do catálogo de crimes aplicáveis a pessoas coletivas poderia suscitar.
§ 133. Assim, se, por um lado, se pode teoreticamente admitir que o direito sancionatório secundário preveja sanções mais graves do que o Direito Penal, por outro lado, isso não pode deixar de implicar a aplicação ótima dos mais garantísticos princípios e direitos processuais sancionatórios sempre que se pretendam impor pela janela contraordenacional sanções mais graves do que aquelas vigoram na Ordem Jurídica Penal.
§ 134. É isso, aliás, que decorre da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (“CEDH”), conforme vem sendo realçado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (“TEDH”), que têm necessária influência na aplicação da Constituição da República Portuguesa, em face do disposto nos seus artigos 8.º, n.º 2 e 16.º.
§ 135. Estamos perante uma coima de € 40.000.000 (quarenta milhões de euros), uma coima que se insere confortavelmente dentro da margem de certeza positiva no
que concerne à sua materialidade penal e à aplicabilidade direta e integral do disposto no artigo 6.º da CEDH.
§ 136. O que impõe a conclusão de que, no momento de se proceder à análise sobre a possibilidade de aplicação retroativa da legislação Covid-19, os princípios e regras relevantes em matéria de lei no tempo devem ser manuseados na sua projeção máxima, tal como vigentes no ordenamento criminal, por imposição dos aludidos artigos 8.º e 16.º, n.º 2, da Constituição.
§ 137. Sendo que, como vem sendo afirmado jurisprudencialmente, no âmbito penal é manifestamente inconstitucional e ilegal a aplicação retroativa das normas sobre prazos prescricionais resultantes da legislação Covid-19 a procedimentos iniciados antes da sua entrada em vigor.
§ 138. A este propósito, atente-se, entre o mais, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25.01.2021, processo n.º 179/15.9FAF.G2; Acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra, de 07.12.2021, processo n.º 200/09.8TASRE.C3; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.10.2022, processo n.º 902/16.2IDLSB-A.L1-9; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.10.2022, processo n.º 902/16.2IDLSB-A.L1-9; e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.12.2022, processo n.º 804/03.2PCALM-A.L1-9.
§ 139. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 11.º, n.os 1 e 2, alínea b), 68.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 69.º da LdC, na interpretação normativa
segundo a qual não assume natureza materialmente penal o procedimento por infração formalmente contraordenacional no qual foi aplicado coima de valor superior ao valor máximo das multas aplicáveis no Direito Penal é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 6.º da CEDH, 8.º, 16.º, n.º 2,
20.º, n.º 4, 29.º e 32.º, n.º 1, da Constituição.
§ 140. As disposições legais, isoladas ou conjuntas, resultantes dos artigos 7.º, n.os 3 e 4, 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 37.º do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de março, 2.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, 5.º, 6.º e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, 3.º do RGCO e 2.º do Código Penal, aplicáveis ex vi artigo 13.º da LdC e 32.º do RGCO, na interpretação normativa segundo a qual a causa de suspensão e o alargamento do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável a processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência nos quais foram aplicadas sanções materialmente penais, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 6.º da CEDH e 2.º, 8.º, 16.º, n.º 2, 19.º, n.º 6, 20.º, n.º 4, e 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 32.º, n.º 1 e 10 da Constituição.
§ 141. Pelas razões expostas, devem V. Exas. rejeitar a aplicação retroativa das causas
de suspensão prescricionais previstas na legislação Covid-19, e, em consonância com o disposto na LdC, reconhecer que o prazo prescricional ocorreu em 20.09.2023 ou, caso assim não se entenda, e o mais tardar, em 30.06.2024.
Termina pedindo que
“NESTES TERMOS E OUTROS MAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, A ORA RECORRENTE RESPEITOSAMENTE REQUER:
a) seja revogado o despacho recorrido na parte em que fixa o trânsito em julgado da decisão condenatória por referência à data de 23.05.2024;
b) seja declarada a prescrição do procedimento, com as devidas consequências legais.”
O Ministério Público respondeu ao recurso formulando as seguintes conclusões:
A - A Recorrente não concorda com a fixação do trânsito em julgado da condenação à data de 23/5/2024 e pretende que seja declarada a prescrição do procedimento contraordenacional.
B – O despacho recorrido detém a seguinte estrutura:
.Os pontos 1 a 11 da decisão recorrida estabelecem as questões a decidir na sequência do peticionado pela
Recorrente sobre o tema da prescrição,
.Nos pontos 12 a 49, o douto Tribunal fixou o trânsito em julgado do Acórdão condenatório do Venerando TRL de 25/9/2023 na data de 23/5/2024, para tanto enunciando a cronologia dos atos processuais conforme o ponto 12.a a 12.r, e analisando as previsões normativas dos artigos 628.º do CPC (noção de trânsito em julgado), 379.º do CPP, 75.º e 76.º da LOTC, 9.º do CC, 80.º da LOTC, com contributos de jurisprudência,
. Nos pontos 50 a 57 esclarece por que razão está precludido o conhecimento da prescrição do procedimento, apoiando–se em vários elementos de jurisprudência,
. Nos pontos 58 a 131, e, subsidiária e incidentalmente, julgou não verificada a prescrição do procedimento, cotejando o regime do artigo 74.º da LdC e considerando aplicáveis as causas de suspensão das leis temporárias COVID, com respaldo em jurisprudência do Colendo TC e jurisprudência firmada no Venerando TRL para o direito das contraordenações, a partir da previsão do artigo 27.º-A do RGCO.
C - O despacho recorrido não contém erro na fixação do trânsito em julgado da condenação, à data de 23/5/2024, nem o Tribunal procurou construir uma nova regra de antecipação do trânsito fora do âmbito do artigo 670.º do CPC, mas paralela, não tendo qualificado como abusivos os recursos que a Recorrente apresentou no TC.
D – O recurso contém inúmeras invocações de vícios de inconstitucionalidade em interpretações normativas que o douto TCRS não fez, ou censura por o TCRS ter avaliado atos dos Tribunais superiores que também não avaliou,
E - O TCRS nunca fez a aplicação conjugada das normas dos artigos 618.º, 628.º e 670.º do CPC, não tendo efetuado um juízo de antecipação do trânsito por conduta abusiva, criando uma norma paralela ao artigo 670.º do CPC, avaliando a conduta processual da Recorrente em sede de recurso.
F – Ao invés, fixou no ponto 12 a cronologia dos atos processuais relevantes, as sucessivas decisões, recursos, reclamações e notificações, transcrevendo partes dos textos das decisões em causa nos autos, para extrair do concreto procedimento, e dessas decisões no confronto com as normas dos artigos 628.º do CPC e 80.º da LOTC, a data do trânsito em julgado do Acórdão condenatório do TRL, o que é da sua competência legal.
G - Conforme dispõe o artigo 112.º da LOSJ, mais concretamente o seu número 5, o TCRS detém competência material para executar as suas decisões nos processos de contraordenação aí sujeitos a um elenco legal e taxativo.
H - Para o exercício desta competência, deste poder-dever vinculado de executar as suas sentenças e Acórdãos dos Tribunais superiores sobre as mesmas proferidos, o TCRS tem de partir de uma premissa essencial, a de saber se a decisão a executar está ou não transitada, pois não estando consolidada não é exequível.
I - Não tendo sido certificado anteriormente nos autos o trânsito em julgado do Acórdão condenatório do Venerando TRL de 25/9/2023, o TCRS, por força da cit. norma de ordem pública, tinha o dever legal de mandar certificar o trânsito da condenação, e foi o que fez, não tendo usurpado competências quer do TRL, quer do TC, como a Recorrente parece querer dizer.
J - O TCRS não abrogou ou derrogou, nem parcialmente, o artigo 80.º/4 da LOTC, tendo-o interpretado segundo a o seu sentido literal e teleológico, com suporte na Jurisprudência.
K - As alegadas interpretações normativas que a Recorrente diz serem inconstitucionais, nunca foram efetuadas no despacho recorrido.
L - Não há dúvidas sobre o sentido do artigo 80.º/4 da LOTC, nos termos do qual, transitada em julgado a decisão do TC que não admita o recurso ou lhe negue provimento transita também a decisão recorrida, se estiverem esgotados os recursos ordinários, ou começam a correr os prazos para estes recursos.
M - A exclusão do recurso de constitucionalidade da EDP de maio de 2024 do cômputo do trânsito ocorre por via da cit. previsão: este recurso de constitucionalidade é interposto do Acórdão condenatório do TRL de 25/9/2023, quando este já não é suscetível de recurso ordinário ou reclamação, nem a decisão do TC de 8/5/2024, conforme se encontra esclarecido nos pontos 45 e 46 do douto despacho recorrido.
N - 45. Ora, a questão da tempestividade do recurso interposto pela EDP Produção para o Tribunal Constitucional em 22.05.2024 do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 25.09.2023 (ref.ª 20515236) consubstancia um antecedente lógico necessário da decisão de não admissão desse recurso, pelo que o mesmo produziu efeito de caso julgado formal em relação a esta questão. O despacho de admissão do recurso pelo Tribunal da Relação de Lisboa (cf. alínea n) dos factos provados) não altera estas asserções, não medida em que esta decisão não vincula o Tribunal Constitucional conforme estipula o artigo 76.º, n.º 3, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, pelo que não produz efeito de caso julgado formal. Consequentemente, dever-se-á concluir que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 25.09.2023 (ref.ª 20515236) deixou de ser suscetível de recurso para o Tribunal Constitucional dez dias após a data em que este acórdão se tornou definitivo “com referência à ordem jurisdicional respetiva” nos termos que constam nas referidas decisões do Tribunal Constitucional e tendo em conta o disposto no artigo 75.º, n.º 1, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
O - 46. Essa definitividade ocorreu após o decurso do prazo geral que a EDP Produções dispunha para reclamar do acórdão proferido em 22.01.2024. O que sucedeu no dia 05.02.2024, tendo em conta que foi notificada do referido aresto em 26.02.2024 (cf. alínea f) dos factos provados). Consequentemente, o prazo para a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 25.09.2023 (ref.ª 20515236) esgotou-se nessa data ou quando muito (considerando os 3 dias úteis subsequentes) em 08.02.2024.
P - Neste sentido, em anotação ao artigo 80.º/4 da LOTC escreve Carlos Lopes do Rego in Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, páginas 306 e 307 … o regime prescrito no n.º 4 deste artigo 80.º estabelece a articulação entre a decisão do recurso de constitucionalidade e a possível e eventual interposição de recursos ordinários que caibam da decisão impugnada o trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional que não admite o recurso de fiscalização concreta ou lhe nega provimento determina reflexamente: - o trânsito em julgado da decisão recorrida, se estavam esgotados os recursos ordinários possíveis: é o que necessariamente ocorre nos recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º (que pressupõem o esgotamento dos meios impugnatórios ordinários)
Q - Foi o que aconteceu no caso concreto: os recursos de constitucionalidade interpostos por EDP em 5 de fevereiro de 2024, foram-no ao abrigo do disposto no artigo 70.º/1/b da LOTC, - decisões de que pode recorrer-se |Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais… que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, e, não foram conhecidos pelo Colendo TC, o primeiro por ter sido interposto em momento processual em que não se encontravam esgotados os recursos ordinários do Acórdão do TRL, não sendo este definitivo na respetiva jurisdição e não ter sido renovado em tempo oportuno, o outro por falta de conexão entre a norma ou interpretação normativa que tenha integrado a ratio decidendi da decisão recorrida e o pedido formulado pela EDP, por decisão do TC que veio a transitar em 23/5/2024 – cfr. factos provados do despacho recorrido 12.j e 12.l.
R - Em 22/5/2024 a Recorrente interpôs novo recurso de constitucionalidade do Acórdão do TRL de 23/9/2023 – facto provado 12.m do despacho recorrido -, que não foi admitido pelo TC por intempestividade, agora, por se encontrar ultrapassado o prazo de recurso para o TC – cfr. ponto 46 do despacho recorrido.
S - A proposta interpretativa da Recorrente para o artigo 80.º/4 da LOTC, encontra-se amplamente recusada pelas várias decisões do TC proferidas nos autos, por razões que se reconduzem no essencial à tutela de interesses associados à racionalidade na administração da justiça.
T - A proposta da Recorrente levaria a que o trânsito de uma decisão judicial dependesse da disposição do Recorrente em ir interpondo sucessivos recursos de constitucionalidade – com efeito suspensivo – até obter, por exemplo a prescrição do procedimento, permitindo-se assim a instrumentalização do processo, público e sancionatório, por vontade arbitrária do Recorrente e assim a eternização do processo, permitindo-se por esta via o mau uso do direito ao recurso, tudo a ofender e a banalizar o princípio do Estado de direito democrático, o princípio do processo justo e equitativo, o direito à decisão em tempo útil, a segurança jurídica e mesmo o princípio da igualdade de tratamento dos cidadãos perante a lei:
U - A maior ou menor capacidade de suportar as despesas com o processo, ditaria a maior ou menor extensão do percurso recursivo de constitucionalidade – com efeito suspensivo - ficando o trânsito da sentença condenatória dependente dessa capacidade.
V – A matéria das conclusões de recurso reunida na conclusão 40, encerra erro de interpretação quanto às normas dos artigos 70.º e 80.º da LOTC e bem assim quanto ao sentido decisório do TC, e do TCRS, devendo ser excluído do cômputo do trânsito em julgado do Acórdão condenatório do TRL de 25/9/2023 o seu recurso de constitucionalidade de maio de 2024.
X - A interpretação normativa proposta pela EDP para o artigo 80.º/4 da LOTC afronta diretamente o princípio do processo justo e equitativo, o direito à decisão em tempo útil, a segurança jurídica e mesmo o princípio da igualdade de tratamento dos cidadãos perante a lei – artigos 13.º e 20.º da CRP.
Y – A matéria das conclusões 37 a 39 onde indica a Recorrente que o seu requerimento de 25/7/2024 - cfr. facto provado 12.r do despacho recorrido -sobre a prescrição - cfr. facto provado 12.r do despacho recorrido - impediu o trânsito do Acórdão condenatório do TRL e que estando pendente de decisão definitiva a questão da prescrição, o trânsito da condenação não pode ser certificado, enferma de erro: como o douto TCRS decidiu nos pontos 50 a 57 do despacho recorrido, a prescrição do procedimento só pode ser suscitada até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, sendo que a partir daí o que se poderá discutir é a prescrição da concreta sanção.
Z - A Recorrente invocou a prescrição do procedimento contraordenacional em 25/7/2024 junto do TCRS, quando os autos ainda não haviam baixado do Venerando TRL e se encontravam no TC, mas, quando a condenação já transitara em julgado em 23/5/2024, pelo que se encontra precludido o conhecimento da questão.
AA - A discussão em torno dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional, das causas de suspensão das leis temporárias, da verificação ou não da prescrição do procedimento é, s.m.o espúria e inútil, um exercício retórico sobre o instituto na LdC e sobre a suspensão das leis temporárias COVID, uma vez que o TCRS decidiu que o Acórdão condenatório transitou a 23/5/2024 e a Recorrente invocou a prescrição do procedimento em data posterior, em 25/7/2024, de igual decidindo-se o TCRS pela improcedência da alegação por este motivo, conforme decorre do ponto 57 do despacho recorrido.
BB - O TCRS nos pontos 58 a 131 do despacho recorrido conheceu a questão da não verificação da prescrição do procedimento, mas, somente a título incidental.
CC - O douto despacho, para além de analisar o instituto da prescrição vigente no setor, enuncia de forma ampla e esgotante os argumentos em favor da aplicação das causas de suspensão das leis temporárias em conformidade com o já decidido pelo TC para o direito das contraordenações – cfr. ponto 76 do despacho – e com a jurisprudência que vem sendo firmada nos Tribunais da Relação a propósito da questão nas contraordenações – cfr. ponto 75 do despacho.
DD - Recentemente no Processo 141/24.9YUSTR.L1, SPICRS, Acórdão de 11/7/2024 e no Processo 322/17.1 YUSTR.L1. SPICRS, este do J1 do TCRS, em Acórdão de 19/2/2024 foi decidido, porque reconhecido, que na SPICRS do TRL se firmou jurisprudência no sentido da conformidade constitucional das Leis temporárias, assim do regime da suspensão dos prazos processuais e substantivos aplicável aos processos de contraordenação pendentes e não extintos, justificado pelo estado de calamidade, de emergência e de exceção introduzido pela pandemia, aliás com respaldo no artigo 19.º da CRP, enunciando-se vários Acórdãos da SPICRS do Venerando TRL neste sentido.
EE – Nas conclusões 74 a 81 a EDP defende que ocorreu prescrição do procedimento contraordenacional a 27/2/2024, uma vez que o TCRS errou ao contabilizar a totalidade do prazo de 3 anos de suspensão prevista no artigo 74.º da LdC, isto porque no seu entender este prazo conta-se desde a data de admissão do recurso de impugnação judicial até à sentença final que ponha termo à impugnação, no caso a sentença do TCRS de 10/8/2022, e logo na data em que é proferida, sem ter transitado, assim só aproveitando 812 dias deste prazo e fixando a prescrição em 20/9/2023.
FF- Trata-se de uma errada interpretação da norma, sem qualquer amparo
seja na jurisprudência, seja na doutrina.
GG - O efeito do recurso de jurisdição plena ou de substituição opera a substituição da decisão da AdC pela sentença contraordenacional, mas este efeito só ocorre na ordem jurídica quando a sentença transita em julgado, pelo que o prazo de 3 anos de suspensão apresenta-se como um limite, uma garantia de que em qualquer caso, a suspensão do prazo enquanto a decisão da AdC for objeto de recurso judicial, ou seja entre a notificação do despacho que procede ao exame preliminar da impugnação judicial da autoridade administrativa e o trânsito em julgado da decisão judicial que estabiliza o recurso da decisão impugnada da AdC, isto é, da decisão judicial que em definitivo se lhe substitui, nunca ultrapassará 3 anos.
HH - Por isso e no caso concreto o TCRS contabilizou 10 A, 6 M de prescrição por referência ao regime legal do artigo 74.º/3/7/8 da LdC, vindo após, a adicionar os prazos de suspensão do regime excecional das leis temporárias.
II - Como refere José Lobo Moutinho/Pedro Garcia Marques na anotação 12 ao número 4 do artigo 74.º da LdC, página 900, LEI DA CONCORRÊNCIA, COMENTÁRIO CONIMBRICENSE, 2.ª edição, Almedina, Deve mesmo, entender-se que é de seguir a jurisprudência do acórdão do STJ n.º 4/2011, segundo a qual esta suspensão se inicia com a notificação do despacho que procede ao exame preliminar da impugnação judicial da autoridade administrativa e cessa …com a última decisão judicial que vier a ser proferida na fase judicial (sublinhado nosso).
JJ - Também António Beça Pereira, no Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 2017 - 12.ª Edição, Almedina, em anotação ao artigo 27.º-A a propósito da mesma causa de suspensão no RGCO, embora de duração diversa, diz que (6) A decisão final do recurso tem necessariamente natureza definitiva, o que implica que essa decisão terá que se encontrar transitada em julgado.
KK - Enquanto não transitar em julgado a decisão final do recurso que substitua em definitivo a decisão impugnada da AdC, esta decisão é objeto de recurso judicial.
LL - Esta mesma interpretação já foi defendida e acolhida pela Recorrente EDP nos autos:
Quando invocou a prescrição do procedimento contraordenacional através do requerimento de 25/7/2024 com a ref. 83594 perante o TCRS, pretendia a EDP que a prescrição fosse declarada com efeitos a partir de 30/6/2024, para tanto contabilizando o prazo máximo de prescrição do procedimento de 10 A, 6 M, e pugnando pela aplicação dos 3 A de suspensão.
- Propondo agora a EDP que a prescrição ocorreu a 23/9/2023, teria o evento ocorrido antes da prolação do Acórdão condenatório do TRL de 25/9/2023. E mesmo sendo a prescrição de conhecimento oficioso, no âmbito de processo público, sancionatório por se tratar, também, de um pressuposto sancionatório, vê-se que a EDP nunca invocou a prescrição junto do TRL em sede de arguição de nulidades ou reclamação do mencionado Acórdão, optando por impulsionar o processo para recursos de constitucionalidade.
MM – A Recorrente não esclarece a razão por que nos mesmos autos e no espaço temporal de 5 meses alterou a sua interpretação jurídica do artigo 74.º da LdC, pelo que o argumentário se revela carecido de credibilidade.
NN - O douto despacho recorrido não enferma de qualquer erro de direito, ou interpretação, ou vícios de inconstitucionalidade, ou incompetência material ou em razão da hierarquia.”
Termina, concluindo que “o douto despacho recorrido deverá ser integralmente mantido e porque a Recorrente não pode desconhecer a jurisprudência maioritária do TC e do TRL – SPICRS, as normas constitucionais e legais aplicáveis, propondo interpretações normativas que ofendem princípios constitucionais do Estado de direito democrático, distorce o sentido literal do despacho recorrido e das decisões do TC, não justifica a sua alteração de convicção jurídica no mesmo processo, deve o seu recurso pós sentença ser julgado manifestamente improcedente com as legais consequências.
VEXAS farão, contudo, a costumada JUSTIÇA.”
A Autoridade da Concorrência respondeu também ao recurso, não tendo apresentado conclusões.
Termina pedindo que seja negado “provimento ao presente recurso, e, em consequência, manter, na íntegra, o Despacho Recorrido, confirmando o trânsito em julgado do Acórdão Condenatório do TRL em 23.05.2024 e julgando não verificada a prescrição do processo contraordenacional”.
O Ministério Público nesta Relação apôs o seu “visto”.
Colhidos os Vistos e reunida a Conferência, cabe apreciar e decidir.
*
II. Questões a decidir
O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. os artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2 e 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal. aplicável) e atento o dispsoto no artigo 75º n.º 1 do DL n.º 433/82, de 27/10 (RGCO) este Tribunal apenas conhece de matéria de direito.
Assim, atentas as conclusões da recorrente, e apesar dos inúmeros argumentos apresentados, há apenas duas questões a decidir, intimamente ligadas entre si.
i.  Uma é a de saber se o tribunal a quo errou quando considerou que o procedimento contraordenacional não se encontra prescrito; e
ii. A outra é a de  saber se o tribunal a quo errou quando considerou a data de 23.05.2024 como a do trânsito em julgado da decisão condenatória.
III. Fundamentação
Os factos
Dos autos resultam os seguintes factos com relevância para a decisão:
A. Consta do despacho recorrido, que aqui se dá por integralmente reproduzido, designadamente que:
1. Com relevo para a decisão da questão enunciada importa considerar os seguintes atos processuais:
a. Em 25.09.2023, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu douto acórdão nos presentes autos que julgou, entre o mais, parcialmente procedente o recurso interposto da sentença proferida por este Tribunal e, em consequência, condenou a Recorrente EDP-Gestão da Produção de Energia, SA na coima única de €40.000.000,00 (quarenta milhões de euros), mantendo no mais a sentença recorrida (cf. ref.ª 20515236).
b. Em 02.10.2023, a Sociedade condenada apresentou um requerimento, no qual arguiu omissões de pronúncia, requerendo, em conformidade, que fosse invalidado o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e que o mesmo fosse substituído por outro que se pronunciasse sobre os temas de Recurso cuja decisão foi omitida e que reparasse a irregularidade incorrida, com as devidas consequências legais e subsidiariamente, arguindo as correspondentes irregularidades do acórdão, nos termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal, requerendo-se a sua reparação, com as devidas consequências legais (cf. ref.ª 652439).
c. Em 09.10.2023, a Sociedade condenada interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão referido na alínea a) (cf. ref.ª 653387).
d. Em 06.12.2023, o Tribunal da Relação de Lisboa apreciou o requerimento referido na alínea b), tendo proferido acórdão no qual julgou o mesmo improcedente (cf. ref.ª 20832412).
e. Em 14.12.2023, a Sociedade condenada apresentou um pedido de aclaração do acórdão referido na alínea precedente, terminando o mesmo nos seguintes termos: “Nestes termos e mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, requer-se: Clarificação sobre os concretos segmentos do Acórdão sob V. referência 20515236 nos quais se analisa o vício a quo de falta de indicação de prova que sustenta o facto provado 133 e nos quais se encontra a fundamentação para a convicção de V. Exas. quanto à menor eficiência das centrais não-hídricas, nos termos e para os efeitos do artigo 380.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal; Ou, caso V. Exas. constatem que esta matéria não foi efetivamente analisada por este Tribunal, se declare a omissão correspondente e se proceda à reforma do Acórdão agora proferido, com vista à reapreciação e ao reconhecimento da omissão de pronúncia no Acórdão sob V. referência 20515236, por falta de decisão sobre o aludido vício de falta de indicação de prova, nos termos e para os efeitos dos artigos 379.º, n.º 1, alínea a) e c), 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, e/ou, bem assim, do artigo 616.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal. Ou, caso assim não se entenda, que se declare a irregularidade do Acórdão agora proferido, pelas mesmas razões, ao abrigo do disposto no artigo 123.º do Código de Processo Penal.” (cf. ref.ª 665673).
f. Em 22.01.2024, o Tribunal da Relação de Lisboa apreciou este requerimento, tendo proferido acórdão no qual julgou o mesmo improcedente, que foi notificado à EDP Produção em 26.01.2024 e do qual não foi apresentada reclamação (cf. ref.ª 21028407).
g. Em 05.02.2024, a Sociedade condenada interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido na alínea precedente (cf. ref.ª 675183).
h. Por despacho proferido em 08.02.2024, o Tribunal da Relação de Lisboa admitiu os dois recursos interpostos pela Arguida para o Tribunal Constitucional, que deram origem ao processo n.º 174/2024 (cf. ref.ª 21113372 e volume 24.º).
i. Em 22.03.2024, o Tribunal Constitucional proferiu no referido processo n.º 174/2024 um despacho, no qual decidiu o seguinte: “Face a isto, e tendo em conta a jurisprudência constante do Acórdão n.º 416/2018, invocado no requerimento da recorrida, conclui-se estar legitimada a atribuição da qualificação de urgência, nos termos do n.º 5 do artigo 43.º da LTC, atendendo à proximidade do termo do prazo prescricional. Em consequência, declara-se o presente processo urgente neste Tribunal Constitucional, determinando-se, de forma provisória e cautelar, a tramitação dos presentes autos nos termos daquela norma legal, para os ulteriores trâmites processuais, o que implica que os prazos processuais aplicáveis corram durante as férias judiciais. Por forma a assegurar o efeito útil da presente decisão, atenta a proximidade das férias judiciais, mais se determina que os prazos processuais no presente recurso não se suspenderão durante as férias, continuando a correr nesse período, até decisão definitiva deste incidente” (cf. fls. 15 e 16, volume 24.º).
j. Em 27.03.2024, o Tribunal Constitucional proferiu decisão sumária com o n.º 222/2024 na qual decidiu não conhecer do objeto dos recursos interpostos: o primeiro em razão da sua intempestividade, por ter sido “interposto em momento processual em que não se encontravam ainda esgotados os recursos ordinários, não tendo sido renovado em momento oportuno”;  e o segundo por “falta de conexão entre a norma ou interpretação normativa que tenha integrado a ratio decidendi da decisão recorrida e o pedido formulado” (cf. ref.ª 21663850).
k. Desta decisão, a Recorrente apresentou reclamação para a conferência, na sequência da qual o Tribunal Constitucional proferiu o acórdão n.º 360/2024, em 08.05.2024, que indeferiu a reclamação apresentada e confirmou a decisão sumária indicada na alínea precedente, tendo sido notificado à EDP em 13.05.2024 e do qual não foi apresentada reclamação (cf. ref.ª 21663851 e página 155 do volume 24.º).
l. No referido processo n.º 174/2024, a Secretaria do Tribunal Constitucional certificou o trânsito em julgado do acórdão n.º 360/2024 no dia 23.05.2024 (cf. fls. 161, volume 24.º).
m. Em 22.05.2024, a Sociedade condenada interpôs recurso para o Tribunal Constitucional novamente do acórdão proferido em 25.09.2023, com a  ref.ª 20515236 (cf. ref.ª 691970).
n. Por despacho proferido em 03.06.2024, o Tribunal da Relação de Lisboa admitiu o recurso referido na alínea precedente, que origem ao processo n.º 580/2024 do Tribunal Constitucional (cf. ref.ª 21663873 e volume 24.º).
o. Por decisão sumária com o n.º 362/2024, proferida em 06.06.2024, o Tribunal Constitucional não admitiu o recurso por intempestividade (cf. ref.ª 22076286).
p. Desta decisão, a Recorrente reclamou para a conferência, na sequência da qual o Tribunal Constitucional proferiu o acórdão n.º 544/2024, em 11.07.2024, que indeferiu a reclamação apresentada e confirmou a decisão sumária indicada na alínea precedente, não tendo sido apresentada reclamação deste acórdão e tendo o mesmo sido notificado à Arguida em  15.07.2024 (cf. ref.ª 22076290, volumes 24.º e página 288 do volume 25.º).
q. No referido processo n.º 580/2024, a Secretaria do Tribunal Constitucional certificou o trânsito em julgado do acórdão n.º 544/2024 no dia 10.09.2024 (cf. fls. 161, volume 24.º).
r. Em 25.07.2024, a Recorrente invocou a prescrição do procedimento contraordenacional (cf. ref.ª 83594).
B. Consta igualmente, da decisão em recurso, ponto 59, que:
a. A Recorrente foi condenada pela prática de uma contraordenação, prevista e punida pelo artigo 68.º, n.º 1, alíneas a) e b), por violação do disposto no artigo 11.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), ambos do Regime Jurídico da Concorrência (RJC) e pelo artigo 102.º, 1.º e 2.º parágrafo, alínea b), do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), que  se iniciou em 2019 e terminou em 31 de dezembro de 2013 (cf. página 116, § 95 e 96 da sentença proferida por este Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão em 10.08.2022).
b. O processo de contraordenação foi instaurado em 08.09.2016 (cf. fls. 2-7).
c. Em 03.09.2018 a nota de ilicitude foi notificada à Arguida (cf. fls. 898-902).
d. A decisão da Autoridade da Concorrência foi proferida em 17.09.2019, tendo sido notificada à Arguida em 23.09.2019 (cf. ref.ªs 259058 e 259743).
e. Em 20.05.2020, o recurso de impugnação judicial foi admitido, tendo sido notificado à Arguida em 25.05.2020 (cf. ref.ª 261142).
f. A sentença prolatada por este Tribunal foi proferida em 10.08.2022 (cf. ref.ª 366716).
C. O acórdão do Tribunal da Relação que julgou parcialmente procedente o recurso da decisão do TCRS considerou que a infração então em apreciação “decorreu de modo permanente durante o respetivo período temporal em causa, o mesmo é dizer que a alegada prática ilícita só cessou em 31 de dezembro de 2013”.
O Direito
Como já acima se referiu, há duas questões a apreciar.
Como acertadamente se refere na decisão em recurso, “a determinação do trânsito em julgado consubstancia um pressuposto necessário da decisão da questão suscitada pela Requerente, que, consequentemente, apenas poderá terminar com uma de duas decisões possíveis: ou a certificação do trânsito em julgado, caso não se verifique a prescrição do procedimento contraordenacional; ou a extinção do procedimento contraordenacional em virtude da prescrição.”
Efetivamente, a decisão condenatória apenas transita em julgado caso não tenha ocorrido a sua prescrição.
Se isto é certo, importa referir que, para além da questão referente à eventual prescrição do procedimento, a data do transito em julgado, caso o procedimento não esteja prescrito, é relevante e deve, ainda assim, ser apreciado porque desta fixação resultam outras consequências, designadamente, quanto à executoriedade da decisão e da própria prescrição da coima.
Uma vez que não haverá trânsito em julgado caso o procedimento se encontre prescrito, apreciaremos primeiro esta questão.
Quanto à prescrição do procedimento
Não há qualquer dúvida, nem é questionado, que o prazo de prescrição é, no caso, de 5 anos, podendo prolongar-se por mais 2 anos e 6 meses nos casos de interrupção do prazo inicial. O que sucedeu nestes autos.
Ou seja, é de 7 anos e 6 meses o prazo de prescrição, sem prejuízo das suspensões a tal prazo.
Considerou a decisão em recurso que:
 “A Lei n.º 17/2022 introduziu uma alteração muito relevante e significativamente mais gravosa para o arguido, na medida em que veio estipular, no artigo 74.º, nº 9, que a suspensão do prazo durante o recurso de impugnação judicial não tem limite temporal. Contudo, esta redação não se aplica ao caso, pelo menos, em virtude da norma transitória consagrada no artigo 9.º, n.º 1 da Lei n.º 17/2022, nos termos da qual as disposições dessa lei apenas se aplicam aos procedimentos desencadeados após a respetiva entrada em vigor”.
Também a recorrente entende não ser aplicável tal lei atualmente em vigor.
É o que resulta das conclusões 44 e 45, e 97 a 100 do corpo das alegações, para além da nota 1:
“§ 44. A versão do artigo 74.º da LdC, introduzida pela Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto, não pode ser aplicável in casu: ora porque existe uma disposição legal transitória no artigo 9.º referida Lei n.º 17/2022 que obsta a essa aplicação a processos iniciados antes da sua entrada em vigor; ora porque tal aplicação implicaria uma retroatividade in malam partem contra a EDP Produção (porquanto ampliadora dos prazos prescricionais), constitucionalmente vedada.
§ 45. O próprio Tribunal recorrido secunda este entendimento, rejeitando a aplicação vertente da Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto, no § 62 do despacho recorrido.”
É outro o nosso entendimento.
O art. 74.º da Lei 19/2012, atualmente em vigor estabelece que:
9 - A prescrição do procedimento por infração suspende-se pelo período de tempo em que a decisão da AdC for objeto de recurso judicial, incluindo recurso interlocutório ou recurso para o Tribunal Constitucional, sem qualquer limitação temporal.
Entendemos, pelas razões que se seguem, que o regime de prescrição aplicável é o resultante desta Lei 19/2012, atualmente em vigor e, mais concretamente, atenta a questão em causa, é aplicável este art. 74.º, n. 9, que estipula que inexiste limitação temporal para a suspensão decorrente da impugnação judicial da decisão da AdC, ou de recurso interlocutório, ou recurso para o Tribunal Constitucional.
Atendendo aos ilícitos em apreciação e, como é o caso, à necessidade de aplicação do direito da União Europeia, é pacífico que o julgador (mesmo o constitucional) deve escolher a interpretação que melhor se adeque ao direito da União Europeia, salvaguardada a sua conformação constitucional.
Neste sentido o importante Acórdão TC n.º 268/2022, de 19.4.2022:
O princípio da interpretação conforme — nascido na década de 70 do século XX a propósito da obrigação de os tribunais nacionais alcançarem, através da interpretação do direito nacional, o efeito útil de diretivas insuscetíveis de produzir efeito direto (cfr., entre muitos outros, Acórdãos do TJUE Mazzalai, de 20.05.1976, proc. 111/75, e Von Colson, de 10.04.1984, proc. 14/83; Marleasing, de 13.11.1990, proc. 106/89) — foi sendo reconduzido a um cânone geral de interpretação do direito nacional (de todo o direito nacional) de modo a atingir a plena eficácia do direito da União Europeia. Determina tal princípio que os tribunais nacionais, ao aplicar o direito interno, são obrigados a interpretá-lo, na medida do possível, à luz do direito europeu: «Esta obrigação de interpretação conforme do direito nacional é inerente ao sistema do Tratado FUE, na medida em que permite aos órgãos jurisdicionais nacionais assegurar, no âmbito das suas competências, a plena eficácia do direito da União quando decidem dos litígios que lhes são submetidos» (Acórdão do TJUE de 24.01.2012, Maribel Dominguez, proc. C-282/10).
Assim, os tribunais dos Estados-Membros, na fixação do sentido das normas de direito nacional, estão vinculados ao efeito útil do direito europeu e devem, dentro da margem permitida pelas regras interpretativas internas, escolher a exegese que melhor se acomode às normas europeias. No fundo, no seio da obrigação de as autoridades nacionais tomarem as medidas que garantam a efetividade do direito da União, «uma dessas medidas consiste precisamente na obrigação de os tribunais, e as restantes autoridades nacionais, interpretarem a lei nacional em conformidade com o direito da União» (cfr. Sofia Oliveira Pais, “Princípio da interpretação conforme”, Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia, 3.ª Edição, Almedina, 2016, p. 96). Trata-se, pois, de uma garantia de eficácia do direito europeu plenamente recebida pelo disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição.
(…)
Em consequência, caso as regras constitucionais convocadas comportem várias interpretações, impõe-se ao Tribunal Constitucional, no domínio de aplicação do direito da União Europeia, privilegiar a congruência com o direito europeu e garantir a sua efetividade. Trata-se de uma decorrência do princípio de cooperação leal, que é recebida na primeira parte do n.º 4 do artigo 8.º da Constituição (cfr. Acórdão n.º 268/2022, ponto 8.).
(…)
(…) Na verdade, nos termos definidos pelo direito da União Europeia, a interpretação do direito nacional (em qualquer das suas fontes) tem em conta o direito europeu: «Cabe ao tribunal nacional dar à lei interna, em toda a medida em que uma margem de apreciação lhe seja concedida pelo respectivo direito interno, uma interpretação e uma aplicação em conformidade com as exigências do direito comunitário» (Acórdão do TJUE de 4 de Fevereiro de 1988, Murphy, proc. 157/86).».
(são nossos os destaques)
Vejamos, definido este pressuposto essencial.
Está em causa a violação de regras do regime jurídico da concorrência.
A norma em apreciação (o art. 74.º, n. 9) é uma norma imposta pelo direito da União.
A Lei n.º 17/2022, de 17 de Agosto, que aprovou o novo regime jurídico da concorrência, expressamente indica que:
“Transpõe a Diretiva (UE) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados-Membros competência para aplicarem a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno, alterando o regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, e os estatutos da Autoridade da Concorrência”.    
A Diretiva (UE) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018 (conhecida como ‘Diretiva ECN+’), foi publicada em 14.1.2019, com entrada em vigor 20 dias depois (art. 36.º).
Foi concedido prazo até 4 de fevereiro de 2021 para os Estados porem “em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente diretiva” (art. 34.º, n. 1).
A Lei 17/2022 (que procedeu à transposição da Diretiva), é como vimos, de 17 de Agosto de 2022, com entrada em vigor 30 dias após a sua publicação. Ou seja, o Estado português incumpriu o prazo de transposição em mais de 1 ano e 7 meses. Embora parte desse período tenha sido abrangido pela pandemia Covid-19.
O art. 29.º da Diretiva (Regras relativas aos prazos de prescrição da aplicação de coimas e de sanções pecuniárias compulsórias) estabelecia que:
1.(…).
2.Os prazos de prescrição para a aplicação de coimas ou de sanções pecuniárias compulsórias por parte de uma autoridade nacional de concorrência são suspensos ou interrompidos enquanto a decisão dessa autoridade nacional da concorrência for objeto de recurso pendente perante um tribunal de recurso.
3. (…)”
(são nossos os destaques)
O considerando (70) expressamente indica a matéria dos prazos de prescrição como um obstáculo à aplicação eficaz das regras da concorrência:
“(70) Para assegurar a aplicação eficaz pelas ANC dos artigos 101.º e 102.º do TFUE, é necessário prever regras viáveis em matéria de prazos de prescrição. Em especial, num sistema de competência paralela, deverão ser suspensos ou interrompidos os prazos nacionais de prescrição durante a pendência do processo perante as ANC de um outro Estado-Membro ou da Comissão. Tal suspensão ou interrupção não deverá impedir que os Estados-Membros mantenham ou prevejam prazos de prescrição absoluta, desde que a duração de tais prazos não torne praticamente impossível ou excessivamente difícil a aplicação eficaz dos artigos 101.º e 102.º do TFUE”.
(são nossos os destaques)
O considerando (1) demonstra a particular importância dos artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia:
 “Os artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) relevam da ordem pública e deverão ser aplicados de forma eficaz em toda a União para assegurar que a concorrência não seja falseada no mercado interno. É necessária uma aplicação eficaz dos artigos 101.º e 102.º do TFUE para garantir mercados concorrenciais mais abertos e mais justos na União, nos quais as empresas concorram mais em função dos seus próprios méritos e não criem obstáculos à entrada no mercado, de modo a permitir-lhes criar riqueza e empregos. Desta forma, protegem-se os consumidores e as empresas que exercem atividades no mercado interno de práticas comerciais que mantêm os preços de produtos e serviços artificialmente elevados e aumenta as suas possibilidades de escolha de produtos e serviços inovadores.”
(são meus os destaques)
A matéria da concorrência assume particular importância no âmbito do direito da União e essa especial importância é também reconhecida pelo Estado português. Como se verá infra, a complexidade dos respetivos processos sancionatórios, é também um facto reconhecido, inclusive, pela jurisprudência do TJUE.
Estas importância e especificidade resultam desde logo da criação do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão pela Lei n.º 46/2011 (https://www.historico.portugal.gov.pt/pt/o-governo/arquivo-historico/governos-constitucionais/gc18/comunicados-cm/cm-2010/20100422.aspx).
Não por acaso, no comumente designado Memorando da Troika, de 17 de maio de 2011 (https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexosmou_pt_0.pdf), o Estado português assumiu particulares obrigações quanto à matéria da concorrência:
“7.11. Tornar completamente operacionais os tribunais especializados em matéria de concorrência e de Direitos de Propriedade Intelectual. [T1‐2012]
(…)
Concorrência, contratos públicos e ambiente empresarial
Objectivos
Assegurar condições concorrenciais equitativas e minimizar comportamentos abusivos de procura de rendimentos (rent-seeking behaviours), reforçando a concorrência e os reguladores sectoriais (…). 
7.20. Adoptar medidas para melhorar a celeridade e a eficácia da aplicação das regras da concorrência. Em particular:
v. Estabelecer um tribunal especializado no contexto das reformas do sistema judicial; [T1-2012]
vi. Propor uma revisão da Lei da Concorrência, tornando-a o mais autónoma possível do Direito Administrativo e do Código do Processo Penal e mais harmonizada com o enquadramento legal da concorrência da UE, em particular: [T4-2011]
Simplificar a lei, separando claramente as regras sobre a aplicação de procedimentos de concorrência das regras de procedimentos penais, no sentido de assegurar a aplicação efectiva da Lei da Concorrência;
(…);
Avaliar o processo de recurso e ajustá-lo onde necessário para aumentar a equidade e a eficiência em termos das regras vigentes e da adequação dos procedimentos.
vii. (…)
7.21. (…)”
(são nossos os sublinhados)
Impõe-se, ainda, chamar à colação o que consta do art. 2.º (Âmbito de aplicação), da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, em vigor:
1 – (…).
2 – (…).
3 - A presente lei é interpretada de modo conforme ao direito da União Europeia, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, incluindo no que diz respeito às práticas restritivas da concorrência que não sejam suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados-Membros.
4 - Na ausência de legislação aplicável de direito da União Europeia, a aplicação da presente lei não pode tornar praticamente impossível ou excessivamente difícil a eficácia e uniformidade do direito da concorrência da União Europeia.
5 - No âmbito dos artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), a aplicação da presente lei deve respeitar os princípios gerais do direito da União Europeia e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.”
 (são meus os destaques)
A diferente natureza do direito penal e do direito das contraordenações, exemplarmente exposta no Acórdão n. 336/2008 (reafirmada, p. ex., no Acórdão 252/2016), levou o Tribunal Constitucional a ditar a importante advertência de que “Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social”.
(são nossos os destaques)
Impondo-se reafirmar, em sede interpretativa, a intenção manifestada pelo Estado português de separar “claramente as regras sobre a aplicação de procedimentos de concorrência das regras de procedimentos penais, no sentido de assegurar a aplicação efectiva da Lei da Concorrência”.
A “aplicação efectiva da Lei da Concorrência” relaciona-se diretamente com o princípio da eficácia, ou da efetividade, do direito da União.
Determina este importante princípio que as regras nacionais não podem tornar impossível ou excessivamente difícil a efetivação de um direito decorrente da ordem jurídica europeia.
Esta necessidade de aplicação efetiva da Lei da Concorrência também resulta expresso da Diretiva ECN+ (cf. considerando 1, acima reproduzido).
Impõe-se, portanto, uma interpretação das leis nacionais que não torne impossível ou excessivamente difícil a efetivação das regras do regime jurídico da concorrência.
Havendo, neste caso, que chamar à colação o Acórdão TARICCO, e muitos outros na mesma linha: Acórdão de 9 de Março de 1978, Simmenthal (106/77, EU:C:1978:49), e Acórdão de 5 de Dezembro de 2017, M.A.S. e M.B. (C-42/17, EU:C:2017:936), para além do fundador Acórdão do Tribunal de Justiça, de 15 de Julho de 1964, Costa 6/64 (EU:C:1964:66).
Considerou-se, neste importante Acórdão:
“Quanto às consequências de uma eventual incompatibilidade das disposições nacionais em causa com o direito da União e ao papel do juiz nacional
49 Caso o órgão jurisdicional nacional chegue à conclusão de que as disposições nacionais em causa não satisfazem a exigência do direito da União quanto ao caráter efetivo e dissuasor das medidas de luta contra a fraude ao IVA, incumbir-lhe-á garantir a plena eficácia do direito da União, não aplicando, se necessário, as referidas disposições e neutralizando assim a consequência assinalada no n.º 46 do presente acórdão, sem que tenha de pedir ou esperar pela sua revogação prévia por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, acórdãos Berlusconi e o., C-387/02, C-391/02 e C-403/02, EU:C:2005:270, n. o 72 e jurisprudência referida, e Kücükdeveci, C-555/07, EU:C:2010:21, n. o 51 e jurisprudência referida).
50 A este respeito, importa sublinhar que a obrigação dos Estados-Membros de combater as atividades ilícitas lesivas dos interesses financeiros da União através de medidas dissuasoras e efetivas, bem como a sua obrigação de adotar as mesmas medidas que adotarem para combater as fraudes lesivas dos seus próprios interesses financeiros, são obrigações impostas, designadamente, pelo direito primário da União, a saber, o artigo 325.º, n.ºs 1 e 2, TFUE.
(…)
57 A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 7. o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950, que consagra os direitos correspondentes aos garantidos pelo artigo 49.º da Carta, corrobora esta conclusão. Com efeito, segundo essa jurisprudência, a prorrogação do prazo de prescrição e a sua aplicação imediata não implicam uma violação dos direitos garantidos pelo artigo 7. o da referida Convenção, uma vez que esta disposição não pode ser interpretada no sentido de que impede uma prorrogação dos prazos de prescrição quando os factos imputados não estão prescritos [v., neste sentido, TEDH, Coëme e o. c. Bélgica, n. os 32492/96, 32547/96, 32548/96, 33209/96 e 33210/96, § 149, CEDH 2000-VII; Scoppola c. Itália (n. o 2), n. o 10249/03, § 110 e jurisprudência referida, 17 de setembro de 2009; e OAO Neftyanaya Kompaniya Yukos c. Rússia, n. o 14902/04, §§ 563, 564, 570 e jurisprudência referida, 20 de setembro de 2011].
(são nossos os destaques)
A jurisprudência do TJUE no Acórdão TARICCO é aplicável a todos os casos em que normas nacionais em matéria de prescrição impeçam ou tornem excessivamente difícil a aplicação de sanções efetivas e dissuasoras num número considerável dos casos.
Posteriormente o TJUE, embora reiterando o entendimento de que os órgãos jurisdicionais nacionais devem abster-se, por norma, de aplicar disposições nacionais em matéria de prescrição que coloquem em causa a aplicação efetiva de sanções penais dissuasoras num número considerável de casos, veio esclarecer que esta obrigação deve ceder na hipótese de o afastamento do direito nacional implicar a violação dos direitos fundamentais das pessoas acusadas de terem cometido uma infração penal, em particular, os decorrentes do princípio da legalidade dos crimes e das penas.
O Acórdão TJUE de 21.1.2021, (C-308/19 - ECLI:EU:C:2021:47) volta a apreciar o tema relativamente à matéria de prescrição, reiterando o que resultava da jurisprudência anterior do TJUE e agora precisamente no âmbito da concorrência:
“43 Antes de mais, saliente-se que nem as disposições do Tratado FUE em matéria de concorrência nem, como decorre da resposta à primeira questão prejudicial, as do Regulamento n.º 1/2003 estabelecem regras sobre prescrição em matéria de aplicação de sanções pelas autoridades nacionais de concorrência, seja nos termos do direito da União ou do seu direito nacional.
44 De resto, o artigo 35.º, n.º 1, do Regulamento n.º 1/2003 precisa expressamente que incumbe a cada Estado-Membro tomar as medidas necessárias para dotar as autoridades nacionais de concorrência do poder de aplicação dos artigos 101.º e 102.º TFUE.
45 Assim, na falta de uma regulamentação vinculativa do direito da União nesta matéria, cabe aos Estados-Membros estabelecer e aplicar regras nacionais de prescrição em matéria de aplicação de sanções pelas autoridades nacionais de concorrência, incluindo as modalidades de suspensão e/ou de interrupção (v., por analogia, Acórdão de 14 de junho de 2011, Pfleiderer, C-360/09, EU:C:2011:389, n.º 23)
46 No entanto, conforme sublinhou o advogado-geral no n.º 49 das suas conclusões, embora o estabelecimento e a aplicação destas regras sejam abrangidos pela competência dos Estados-Membros, estes devem exercer essa competência no respeito do direito da União e, em especial, do princípio da efetividade. Assim, não podem tornar, na prática, impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União e, especificamente, no domínio do direito da concorrência, devem zelar por que as regras que estabeleçam ou apliquem não prejudiquem a aplicação efetiva dos artigos 101.º e 102.º TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 14 de junho de 2011, Pfleiderer, C-360/09, EU:C:2011:389, n.º 24). Com efeito, as autoridades designadas em conformidade com o artigo 35.º, n.º 1, do Regulamento n.º 1/2003 devem assegurar a aplicação efetiva dos referidos artigos, no interesse geral (Acórdão de 7 de dezembro de 2010, VEBIC, C-439/08, EU:C:2010:739, n.º 56).
47 Por outro lado, importa realçar que, por força do artigo 4.º, n.º 3, TUE, os Estados-Membros são obrigados a não prejudicar, por intermédio da sua legislação, a aplicação plena e uniforme do direito da União e a não tomar ou manter em vigor medidas suscetíveis de eliminar o efeito útil das regras de concorrência aplicáveis às empresas (v., neste sentido, Acórdão de 19 de março de 1992, Batista Morais, C-60/91, EU:C:1992:140, n.º 11 e jurisprudência referida).
(…)
49 Assim, as regras nacionais que fixam os prazos de prescrição devem ser concebidas de modo a estabelecerem um equilíbrio entre, por um lado, os objetivos de garantir a segurança jurídica e de assegurar a tramitação dos processos num prazo razoável enquanto princípios gerais do direito da União e, por outro, a aplicação efetiva e eficaz dos artigos 101.º e 102.º TFUE, a fim de respeitar o interesse público de evitar que o funcionamento do mercado interno seja distorcido por acordos ou práticas anticoncorrenciais.
50 Para determinar se um regime nacional de prescrição estabelece tal equilíbrio, há que considerar todos os elementos desse regime (v., por analogia, Acórdão de 28 de março de 2019, Cogeco Communications, C-637/17, EU:C:2019:263, n.º 45), entre os quais podem figurar, nomeadamente, a data a partir da qual o prazo de prescrição começa a correr, a duração desse prazo, bem como as modalidades de suspensão ou de interrupção deste.
51 É igualmente importante ter em conta as especificidades dos processos abrangidos pelo direito da concorrência e, mais especificamente, a circunstância de esses processos necessitarem, em princípio, da realização de uma análise factual e económica complexa (v., por analogia, Acórdão de 28 de março de 2019, Cogeco Communications, C-637/17, EU:C:2019:263, n.º 46).
52 Consequentemente, uma legislação nacional que fixa a data a partir da qual o prazo de prescrição começa a correr, a duração e as regras de suspensão ou de interrupção deste deve ser adaptada às especificidades do direito da concorrência e aos objetivos da execução das regras desse direito pelas pessoas envolvidas, a fim de não prejudicar a plena efetividade das regras do direito da concorrência da União (v., por analogia, Acórdão de 28 de março de 2019, Cogeco Communications, C-637/17, EU:C:2019:263, n.º 47).
53 Ora, um regime nacional de prescrição que, por razões que lhe são inerentes, obsta de modo sistemático a aplicação de sanções efetivas e dissuasivas por infrações ao direito da concorrência da União é suscetível de tornar, na prática, a aplicação das regras desse direito impossível ou excessivamente difícil (v., por analogia, Acórdão de 17 de janeiro de 2019, Dzivev e o., C-310/16, EU:C:2019:30, n.º 31 e jurisprudência referida).
(…)
57 Incumbe ao órgão jurisdicional nacional, à luz do princípio da efetividade, verificar se a interpretação do regime nacional de prescrição em causa no processo principal, referida no n.º 55 do presente acórdão, apresenta, tendo em conta todos os elementos do regime nacional de prescrição em causa no processo principal, um risco sistémico de impunidade dos factos constitutivos dessas infrações.
 58 Se se verificasse ser esse o caso, incumbiria, em princípio, ao órgão jurisdicional de reenvio, sem esperar que a regulamentação nacional em causa seja alterada por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional, conferir pleno efeito às obrigações referidas no n.º 47 do presente acórdão através da interpretação desta regulamentação, tanto quanto possível, à luz do direito da União e, em particular, das regras do direito da União em matéria de concorrência, conforme interpretadas pelo Tribunal de Justiça, nomeadamente no n.º 56 do presente acórdão, ou afastando, se necessário, a aplicação da referida regulamentação (v., por analogia, Acórdão de 5 de junho de 2018, Kolev e o., C-612/15, EU:C:2018:392, n.º 66 e jurisprudência referida).
(…)
60 Nestas condições, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, tomando em consideração todo o direito interno e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos, interpretar as disposições nacionais em causa no processo principal, na medida do possível, à luz do direito da União e, mais especialmente, da letra e da finalidade do artigo 101.º TFUE (v., neste sentido, acórdãos de 11 de janeiro de 2007, ITC, EU:C:2007:16, n.º 68, e de 13 de julho de 2016, Pöpperl, C-187/15, EU:C:2016:550, n.º 43).
61 Ora, o princípio da interpretação interna do direito interno, por força do qual o órgão jurisdicional nacional deve dar ao direito interno, na medida do possível, uma interpretação conforme com as exigências do direito da União, é inerente ao sistema dos Tratados, na medida em que permite ao órgão jurisdicional nacional assegurar, no âmbito das suas competências, a plena eficácia do direito da União quando decide do litígio que lhe é submetido [Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C-585/18, C-624/18 e C-625/18, EU:C:2019:982, n.º 159].
62 Neste contexto, o princípio da interpretação conforme do direito nacional está sujeito a certos limites. Assim, a obrigação de o juiz nacional ter de se reportar ao conteúdo do direito da União quando interpreta e aplica as regras pertinentes do direito interno é limitada pelos princípios gerais do direito, incluindo pelo princípio da segurança jurídica, e não pode servir de fundamento a uma interpretação contra legem do direito nacional (v., neste sentido, Acórdão de 13 de julho de 2016, Pöpperl, C-187/15, EU:C:2016:550, n.º 44 e jurisprudência referida).”
(são nossos os destaques)
No presente processo, não estão em causa direitos fundamentais (como se refere infra, inexiste designadamente, um direito subjetivo à prescrição), não estão em causa infrações penais, nem, como veremos, está em causa o princípio da legalidade. Pelo que, não se mostram violados os limites referidos no n.º 62 do Acórdão citado.
O recente Acórdão do TJUE de 30.01.2025 (proferido no processo C‑511/23, ECLI:EU:C:2025:42) reafirma esta jurisprudência:
65. Embora os prazos processuais razoáveis visem assim, nomeadamente, garantir o exercício efetivo dos direitos de defesa das empresas que são objeto de um processo de infração, não é menos verdade que uma regulamentação nacional que estabelece prazos processuais em matéria de aplicação de sanções pelas autoridades nacionais da concorrência deve ser adaptada às especificidades do direito da concorrência da União e aos objetivos da execução desse direito pelas pessoas envolvidas, a fim de não prejudicar a sua plena eficácia (v., neste sentido, Acórdão de 21 de janeiro de 2021, Whiteland Import Export, C‑308/19, EU:C:2021:47, n.° 52).
(…)
78. Na medida em que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a aplicação do prazo em causa no processo principal resulta de uma determinada interpretação do direito nacional por um órgão jurisdicional superior, importa ainda acrescentar que, para garantir a efetividade de todas as disposições do direito da União, o princípio do primado impõe aos órgãos jurisdicionais nacionais que interpretem, tanto quanto possível, o seu direito interno em conformidade com o direito da União [Acórdãos de 6 de outubro de 2021, Sumal, C‑882/19, EU:C:2021:800, n.° 70 e jurisprudência referida, e de 12 de outubro de 2023, Z. (Direito a uma cópia do contrato de crédito), C‑326/22, EU:C:2023:775, n.° 34 e jurisprudência referida].
79 Ao aplicar o direito nacional, esses órgãos jurisdicionais são obrigados a interpretá‑lo, na medida do possível, à luz da letra e da finalidade das disposições pertinentes do direito da União, tomando em consideração todo o direito interno e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos, a fim de garantir a plena eficácia das referidas disposições e alcançar uma solução conforme com a finalidade por elas prosseguida [v., neste sentido, Acórdãos de 6 de outubro de 2021, Sumal, C‑882/19, EU:C:2021:800, n.° 71 e jurisprudência referida, e de 22 de setembro de 2022, Vicente (Ação para pagamento de honorários de advogado), C‑335/21, EU:C:2022:720, n.° 72 e jurisprudência referida].”
(são meus os destaques)
Apenas a aplicação imediata do novo prazo de suspensão do prazo de prescrição aos prazos ainda em curso, decorrentes de uma causa de suspensão já preexistente e já verificada afasta o “risco sistémico de impunidade dos factos constitutivos” das infrações ao direito da concorrência, risco esse existente.
A suspensão do prazo de prescrição pelo período máximo de 3 anos “em que a decisão da Autoridade da Concorrência for objeto de recurso judicial”, previsto na Lei da Concorrência (2012) – art. 74., n. 4, al. a) e n. 7), que se entendeu aplicável, não pode considerar-se um prazo razoável. Mesmo sem considerar a interpretação restritivíssima que a recorrente advoga quanto à expressão “decisão da Autoridade da Concorrência”.
Apesar da reconhecida complexidade destes processos, como expressamente admitida no Acórdão do TJUE C-308/19, citado, e que aponta, em linha com jurisprudência anterior, “a circunstância de esses processos necessitarem, em princípio, da realização de uma análise factual e económica complexa”, o legislador estabeleceu um prazo máximo de 3 anos para a suspensão do prazo de suspensão resultante da impugnação judicial.
Ora, partindo do pressuposto que o dito prazo de 3 anos é o prazo que o Legislador considerou razoável para toda a fase do recurso de impugnação judicial, incluindo-se, portanto, a fase do processo junto do TCRS, o recurso perante o TRL e outras vicissitudes processuais previsíveis, tais como o reenvio prejudicial para o TJUE e recursos perante o Tribunal Constitucional, o prazo aludido é manifestamente impraticável.
Com efeito, tal prazo não é razoável por inúmeras circunstâncias a acrescer à da já referida complexidade.
Sem preocupações de exaustão apontam-se as seguintes:
i. a apreciação judicial das impugnações é de jurisdição plena (cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uniformizador de jurisprudência, n. 3/2019, de 23 maio de 2019);
ii. a impugnação judicial apenas cessa com a última decisão judicial (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uniformizador de jurisprudência, n.º 4/2011, de 13 de Janeiro de 2011);  
iii. À semelhança do regime de processo penal (art. 399.º, do Código do Processo Penal), e diferentemente do que sucede em sede de Regime Geral das Contraordenações (art. 73.º), na Lei da Concorrência vigora a regra da recorribilidade de todas as decisões judiciais (art. 89.º, n. 1. da Lei da Concorrência). Apesar das ditas semelhanças com o processo penal, em sede de suspensão do prazo de prescrição, inexiste como causa de suspensão, a notificação ao arguido da sentença condenatória, que, naquele regime pode chegar a 15 anos (em casos de excecional complexidade e recurso para o Tribunal Constitucional - artigo 120.º, n. 1, al. e), n. 3 e 4, do Código do Processo Penal).
iv. O prazo máximo de prescrição (cinco anos) é manifestamente inferior ao constante, por exemplo, no art. 418.º, n. 1, al. b), do CVM, na redação conferida pela Lei n.º 28/2017, de 30 de Maio (8 anos), para procedimentos contraordenacionais que podem apresentar semelhante complexidade. Ainda em comparação com o regime do CVM, de notar que este prevê uma causa de suspensão do prazo de prescrição, sem limites temporais, consubstanciada na “confirmação, total ou parcial, pelo tribunal de primeira instância ou pelo tribunal de recurso da decisão administrativa de condenação”. Nestes casos, a suspensão apenas cessa quando “seja proferida, em sede de recurso, uma decisão de absolvição” (art. 418.º, n. 2 e 3, do CVM).
v. A necessidade reconhecida pela Diretiva ECN+, já referida, de obrigar os Estados a alterar tais prazos de suspensão da prescrição e que levou o legislador português a prever a suspensão sem limite temporal, é o reconhecimento, para nós evidente, da ausência de razoabilidade do prazo de 3 anos inicialmente previsto. É, aliás, no referido contexto da complexidade dos processos por infração aos artigos 101.º e 102.º do TFUE que se compreende que o Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos arts. 81.° e 82.° do Tratado (atuais arts. 101.º e 102.º), preveja, no respetivo art. 25.º, n. 6: “A prescrição em matéria de aplicação de coimas ou de sanções pecuniárias compulsórias fica suspensa pelo período em que a decisão da Comissão for objecto de recurso pendente no Tribunal de Justiça.”. Ou seja, em tal regulamento sempre se entendeu dever suspender o prazo de prescrição a partir do momento em que a decisão administrativa é objeto de impugnação judicial, sem qualquer restrição temporal.
Acresce que (para aqueles que entendem que o reenvio prejudicial não é causa de suspensão, dos prazos de prescrição, sem limite de tempo) neste tipo de processos de reconhecida complexidade é frequente colocarem-se dúvidas interpretativas sobre normas do Direito da UE, daí a necessidade de realizar pedidos de reenvio prejudicial ao TJUE (tal como ocorreu no citado processo n. 225/15.4YUSTR-W.L1, conhecido como “Cartel da Banca”) que pode até ser obrigatório, como se sabe.
Ora, a duração média de um processo de reenvio prejudicial, junto do TJUE[1], segundo os dados daquele tribunal (em meses e para processos não urgentes/acelerados), era de 16,7 (2021), 17,3 (2022) e 16,8 (2023). Ou seja, em média, um reenvio demora cerca de 17 meses. Um processo de reenvio complexo demorará, com elevada probabilidade, mais do que a média. Por exemplo, no reenvio do referido caso do Cartel da Banca (C-298/22), o pedido data de 03/05/2022 e a decisão final data de 13/09/2024. Ou seja, demorou cerca de 2 anos e 4 meses (https://curia.europa.eu/juris/documents.jsf?nat=or&mat=or&pcs=Oor&jur=C%2CT%2CF&num=C-298%252F22&for=&jge=&dates=&language=pt&pro=&cit=none%252CC%252CCJ%252CR%252C2008E%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252Ctrue%252Cfalse%252Cfalse&oqp=&td=%3BALL&avg=&lgrec=pt&page=1&lg=&cid=15660994).
Sendo frequentes os recursos para o Tribunal Constitucional, no exemplo dado do Cartel da Banca, somado ao reenvio, ao Tribunal Constitucional restariam 8 meses para que os 3 anos de suspensão, previstos na lei antiga fossem completamente exauridos. E deve notar-se que estes tempos não significam os tempos de decisão do Tribunais, já que algum deste tempo é gasto, necessária e evidentemente, com os prazos legais de exercício do direito ao recurso e às respetivas respostas dos intervenientes interessados, a que se devem somar, ainda, as vicissitudes do próprio trânsito em julgado definitivo da decisão final que, como o presente caso demonstra, não são despiciendas.
Ou seja, o prazo de 3 anos em causa esgotar-se-ia, com elevada probabilidade, apenas com um reenvio prejudicial e um recurso para o Tribunal Constitucional, isto é, sem contar com a impugnação judicial propriamente dita.
De recordar, por seu turno, que a Diretiva ECN+ não previa expressamente regras vinculativas do direito da União quanto à duração do prazo de suspensão a que se reporta o art. 29.º, n. 4, e a que se referia o considerando (70). A Diretiva ECN+ apenas impunha a necessidade de “prever regras viáveis em matéria de prazos de prescrição”.
Contudo a referida Diretiva, quanto à suspensão e interrupção do prazo de prescrição, previu, de forma muito clara que: “[o]s prazos de prescrição para a aplicação de coimas ou de sanções pecuniárias compulsórias por parte de uma autoridade nacional de concorrência são suspensos ou interrompidos enquanto a decisão dessa autoridade nacional da concorrência for objeto de recurso pendente perante um tribunal de recurso.” Ou seja, tal como ocorre ao abrigo do artigo 25.º, n.º 6, do Regulamento n.º 1/2003, nestes casos não se prevê qualquer limite temporal da suspensão, única solução razoável se tomarmos em conta as especificidades do Direito (sancionatório) da Concorrência.
É neste contexto que o Estado português, atenta a falta de razoabilidade do prazo anteriormente previsto, no cumprimento de obrigações decorrentes dos Tratados, transpôs a aludida Diretiva e consagrou:
“A prescrição do procedimento por infração suspende-se pelo período de tempo em que a decisão da AdC for objeto de recurso judicial, incluindo recurso interlocutório ou recurso para o Tribunal Constitucional, sem qualquer limitação temporal.” (art. 74.º, n. 9)
É, pois, neste contexto, atendendo às normas e princípios aplicáveis, que entendemos que apenas a interpretação das normas nacionais de acordo com o direito da União permitirá assegurar a eficácia das normas do regime da concorrência. Com plena conformidade constitucional.
De resto, existe já evidência de que tal prazo máximo de 3 anos “obsta de modo sistemático a aplicação de sanções efetivas e dissuasivas por infrações ao direito da concorrência da União”, como a recente decisão deste tribunal da Relação proferida no âmbito do processo 225/15.4YUSTR-W.L1 exemplifica.
Mas ainda que assim não fosse, como resulta da referida jurisprudência do TJUE, o que importa é que se entenda verificado o “risco sistémico de impunidade”.
As vicissitudes processuais supra aludidas e a experiência desta secção do tribunal da Relação de Lisboa, levam-nos a concluir que esse risco é real, num contexto, aliás, em que a litigância manifestada nas impugnações judiciais (tal como no presente processo se demonstra) é intensa, como os factos enunciados em “A” e “B” afloram.
Só o Tribunal Constitucional, que apenas é chamado a intervir quando já se esgotaram todos os recursos ordinários, já proferiu dois acórdãos, para além das reclamações.
Perante estes princípios e regras de direito da união e nacional, entendemos que o art. 74.º, n. 9, da Lei da Concorrência atualmente em vigor é aplicável ao procedimento em causa, porque o art. 9.º, n. 1, da Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto (que aprovou o Novo Regime Jurídico da Concorrência), que estipula que “as disposições da presente lei aplicam-se aos procedimentos desencadeados após a respetiva entrada em vigor” deve ser afastado se interpretado no sentido de englobar a previsão daquele normativo (n. 9 do art. 74.º).
Este entendimento, conforme resulta do que aqui se expõe, é o único compatível com o Direito da União, sendo obrigação deste tribunal, conforme já aludido, interpretar o direito nacional em conformidade com aquele Direito e a afastar disposições nacionais incompatíveis com o mesmo.
Esclarece-se, de seguida, com mais detalhe esta última asserção.
Conforme jurisprudência do TJUE já supra exposta, a este tribunal compete “dar plena eficácia” ao Direito da União, em concreto no âmbito de infrações ao disposto nos artigos 101.º e 102.º, do TFUE, através do princípio da interpretação conforme, não aplicando, se necessário, a regulamentação nacional que colida com aquela “plena eficácia[2].
O alcance desta obrigação do juiz nacional foi esclarecido pelo TJUE no Acórdão de 5 junho 2018, C-615/18, Kolev e o., ECLI:EU:C:2018:392, n.ºs 59 e ss.
Em tal caso estavam em causa infrações penais em matéria aduaneira em relação com o disposto no artigo 325.° TFUE (o artigo 325.°, n.° 1, TFUE obriga os Estados‑Membros a combaterem as fraudes e quaisquer outras atividades ilegais lesivas dos interesses financeiros da União por meio de medidas efetivas e dissuasivas).
Mais concretamente, estavam em causa os artigos 368.° e 369.° do Código do Processo Penal Búlgaro, segundo os quais, o juiz nacional deve, a pedido do arguido, ordenar o arquivamento do processo penal se, decorrido um prazo de dois anos, acrescido de prazos de três meses e meio e de um mês, o magistrado do Ministério Público não tiver concluído a investigação e, se for caso disso, não tiver fixado e notificado os factos imputados à defesa, concedido a esta acesso aos elementos do processo nem apresentado uma acusação ao juiz, ou se tiver, neste contexto, cometido violações de requisitos processuais essenciais na aceção do direito búlgaro, que não tenha sanado nesses prazos.
Mais resultava que os obstáculos causados pela defesa à comunicação regular dos factos imputados e dos elementos do processo, incluindo as suas eventuais manobras dilatórias, não impediam o decurso dos prazos de três meses e meio e de um mês concedidos ao magistrado do Ministério Público para pôr termo à investigação e submeter o processo ao juiz, em conformidade com o artigo 369.° do respetivo Código de Processo Penal, pelo que eram suscetíveis de provocar o arquivamento do processo penal, impedindo qualquer continuação do processo penal e qualquer novo processo.
Foi, portanto, neste contexto que o TJUE afirmou, em n.º 63 do aludido Acórdão:
“há que constatar que a regulamentação nacional em causa no processo principal é suscetível de obstar à efetividade dos processos penais e à repressão de factos constitutivos de fraude grave ou de outra atividade ilegal grave lesiva dos interesses financeiros da União, em contradição com o artigo 325.°, n.° 1, TFUE.”.
E perante tal cenário, acrescentou, ainda, o seguinte:
“65 O legislador nacional é o primeiro responsável pela adoção das medidas necessárias para respeitar essas obrigações. Assim, cumpre‑lhe, se for caso disso, alterar a sua regulamentação e garantir que o regime processual aplicável à repressão das infrações lesivas dos interesses financeiros da União não seja concebido de tal modo que represente, por razões inerentes a esse regime, um risco sistémico de impunidade dos factos constitutivos de tais infrações, bem como assegurar a proteção dos direitos fundamentais dos arguidos.
66 Por seu turno, o órgão jurisdicional de reenvio deve igualmente, sem esperar que a regulamentação em causa seja alterada por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional, dar plena eficácia às referidas obrigações através da interpretação desta regulamentação, tanto quanto possível, à luz do artigo 325.°, n.° 1, TFUE, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, ou não aplicando, se necessário, a referida regulamentação (v., neste sentido, Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o., C‑105/14, EU:C:2015:555, n.° 49).
67 No caso de, como parece considerar o órgão jurisdicional de reenvio, serem equacionáveis várias medidas para executar as obrigações em questão, caberá a esse órgão jurisdicional determinar qual dessas medidas aplicar. Em particular, cabe a este último decidir se, para esse efeito, há que afastar todas as disposições contidas nos artigos 368.° e 369.° do Código de Processo Penal, ou se importa prorrogar os prazos concedidos ao magistrado do Ministério Público por esses artigos para encerrar a fase de inquérito do processo e corrigir as eventuais irregularidades cometidas durante essa fase, ou ainda se, dado que o magistrado do Ministério Público lhe submeteu, neste caso, uma acusação definitiva dentro dos referidos prazos, deve determinar a abertura da fase judicial do processo e sanar, ele próprio, tais irregularidades. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio deve contudo assegurar que pode, nas diferentes fases do processo, ignorar a eventual obstrução deliberada e abusiva da defesa ao bom desenrolar e ao desenvolvimento desse processo.”
(são nossos os destaques).
Ou seja, resulta claro do citado n. 67 que o juiz nacional pode e deve afastar as disposições nacionais na medida do necessário ao cumprimento dos deveres que resultam do Direito da União.
Neste contexto, conforme resulta do já supra exposto e perante “risco sistémico de impunidade” de violações aos artigos 101.º e 102.º do TFUE, resultante da suspensão do prazo de prescrição, a partir da impugnação judicial, ser demasiado curto, o que foi, conforme já dito, assumido pelo Legislador nacional (e da União), ao transpor o atual artigo 74.º, n.º 9 do Regime Jurídico da Concorrência, outra solução não parece existir senão afastar a aplicabilidade da disposição transitória aqui em causa, pelo menos quanto àquele normativo.
Note-se, a Diretiva ECN+ não previu qualquer regime especial de aplicação no tempo para a referida disposição, diferentemente do que frequentemente ocorre em sede de Diretivas da UE (veja-se, por exemplo, o artigo 22.º da Diretiva Private Enforcement (Diretiva 2014/104/UE) ou, em sede de instrumentos de cooperação penal, o artigo 35.º da Diretiva relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal (Diretiva 2014/41/UE).
Ora, não prevendo a Diretiva qualquer norma transitória especial, não se vislumbram razões para a não aplicação imediata da respetiva lei de transposição (sobre o princípio da legalidade teceremos as considerações necessárias infra). Cremos, assim, que o Legislador nacional, ao condicionar a aplicação das disposições resultantes da transposição da Diretiva ECN+ através do aludido art. 9.º, n. 1, fê-lo de forma errónea e atentatória do Direito da União, o que legítima, como temos vindo a expor, a desaplicação daquele mesmo normativo, pelo menos no que concerne ao respetivo art. 74.º, n. 9.
Com efeito, a interpretar-se tal norma (do art. 9.º, n. 1) de forma literal, ter-se-ia como consequência que nem as alterações introduzidas no art. 2.º, do Regime Jurídico da Concorrência, poderiam ser imediatamente aplicáveis.
Recorde-se o teor de tais alterações:
“3 - A presente lei é interpretada de modo conforme ao direito da União Europeia, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, incluindo no que diz respeito às práticas restritivas da concorrência que não sejam suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados-Membros.
4 - Na ausência de legislação aplicável de direito da União Europeia, a aplicação da presente lei não pode tornar praticamente impossível ou excessivamente difícil a eficácia e uniformidade do direito da concorrência da União Europeia.
5 - No âmbito dos artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE),a aplicação da presente lei deve respeitar os princípios gerais do direito da União Europeia e a Cartados Direitos Fundamentais da União Europeia.”
Tal interpretação, literal do referido art. 9.º, n. 1, levaria ao absurdo de que as regras e princípios já enunciados pela jurisprudência do TJUE e previstos nestes números 3, 4 e 5, apenas seriam aplicáveis para os novos processos a “desencadear”.
A interpretação (e desaplicação) do direito nacional, no sentido da aplicação imediata do art. 74.º, n. 9, não atenta, como veremos de seguida, com os já descritos limites ao princípio da interpretação conforme, a saber, os princípios gerais do direito, incluindo o princípio da segurança jurídica, e interpretações contra legem.
Vejamos mais de perto esta última asserção.
Atualmente é consensual que o instituto jurídico da prescrição criminal não tem natureza exclusivamente processual, sendo maioritária a posição daqueles que consideram ter natureza híbrida, como refere o Acórdão TC n. 73/2024:
“Entre nós, a doutrina tem vindo a atribuir uma natureza híbrida ao instituto da prescrição, que por esta classificação parece convocar uma forma de síntese entre estas duas posições. FIGUEIREDO DIAS concede à doutrina germânica quando localiza os efeitos da prescrição em espaço exterior à estrutura dogmática do facto punível (i. e., do crime), assinalando que daqui resulta, face às normas criminais previsivas da responsabilidade criminal, diferente consequência no ambiente jurisdicional: enquanto estas últimas orientarão uma decisão de mérito da causa (absolvição ou condenação), o instituto da prescrição do procedimento participa na regularidade da instância penal, reclamando pela sua extinção quando dotada de efeito operativo e aliviando o órgão judiciário de pronúncia (extinção do procedimento jurisdicional ou arquivamento do inquérito)”.
Pode objetar-se que a lei nova é desfavorável à recorrente e que se estaria a violar o princípio da legalidade, já que é indiscutível que o princípio da legalidade (embora sem a mesma intensidade) é aplicável ao regime das contraordenações.
Estabelece o art. 2.º do RGCO, por remissão do art. 13.º, da LC que
 “Só será punido como contraordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática”.
Por sua vez, o art. 3.º, do RGCO estabelece que
“1- A punição da contraordenação é determinada pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que depende.
2- Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada.
3- (…).”
Há que atentar, desde logo, e como se refere no citado Acórdão TC n. 73/2024 que  os efeitos da prescrição manifestam-se em espaço exterior à estrutura dogmática do facto punível. Ou seja, por outras palavras, não respeitam ao “facto descrito e declarado passível de coima”.
Ou, como se reconhece no Acórdão TC n. 500/2021:
“As normas relativas à prescrição do procedimento criminal não se encontram incluídas, de modo literal, na proibição da retroatividade in pejus fixada para as normas incriminadoras.”
Entendemos, como alguma jurisprudência constitucional e toda a jurisprudência do TEDH e TJUE, que, em matéria de prazo de prescrição, a retroatividade, mais propriamente, a "retroatividade inautêntica" ou "retrospetividade” deve ser aferida pelo terminus do prazo e não pelo tempus deliti .
No caso estamos a apreciar, unicamente, a alteração de prazo de suspensão dos prazos de prescrição. Sem esquecer que se trata de prazos ainda em curso à data da alteração legislativa.
Entendemos que “Condição essencial da aplicação retroactiva da lei concretamente mais favorável é que a sucessão de leis se verifique nos limites da mesma incriminação ou da mesma norma que prevê uma determinada infracção de mera ordenação social, de seguida, que essa alteração legislativa se verifique na correspectiva descrição típica ou nos limites mínimo e máximo das coimas aplicáveis ou das sanções acessórias” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-11-2021 - proc. 1923/10.4TFLSB.L1-3)[3].
De notar, quanto a este último ponto, que apesar da jurisprudência do Tribunal Constitucional não fazer, ao que parece, distinção entre a norma expressa no citado artigo 3.º, n.º 2, do ReGCO, e a norma expressa no art. 2.º, n. 4, do Código Penal (neste sentido Ac. TC n.º 319/2021, citado nas alegações de recurso), é possível, e, dir-se-á, necessário, para respeitarmos o princípio da interpretação conforme já supra analisado, fazer tal distinção.
Efetivamente, enquanto a norma do domínio penal refere “disposições penais vigentes” e “o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”, em sede contraordenacional tal terminologia não foi replicada. Em vez de tais expressões o Legislador usou, no art. 3.º, n. 2, do RGCO, “lei vigente” e “lei mais favorável”, o que aponta para um sentido mais restrito, em especial, que os conceitos de “disposições penais” e “regime mais favorável”.
Tais diferenças, segundo cremos, não podem ser descuradas, pois, como tem sido sustentado em sede de interpretação jurídica (de lei ordinária), deve presumir-se que o Legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Ora, se o Legislador se expressou de forma diversa, estranho seria que não quisesse dizer coisa diversa.
Recorde-se, por sua vez, que o n. 1, do art. 3.º, em referência, refere expressamente “A punição da contraordenação é determinada pela lei vigente…”, restringindo o escopo daquele preceito legal, à norma incriminadora (o tipo contraordenacional) e respetiva sanção. O que também já resultava do art. 2.º, referido.

De recordar, nesta sequência, que lei nova não veio criar nenhuma outra causa de suspensão da prescrição do procedimento que já não estivesse prevista em Lei anterior tendo alterado, não o prazo da prescrição, mas unicamente o prazo de suspensão de tal prazo.
O art. 74.º da Lei 19/2004, na versão original, estabelecia que:
4 - A prescrição do procedimento por contraordenação suspende-se:
a) Pelo período de tempo em que a decisão da Autoridade da Concorrência for objeto de recurso judicial;
(…)
7 - A suspensão da prescrição do procedimento não pode ultrapassar três anos.
Atualmente, tendo sido revogado o anterior n. 4, a redação da norma, no que importa, é a seguinte:
9 - A prescrição do procedimento por infração suspende-se pelo período de tempo em que a decisão da AdC for objeto de recurso judicial, incluindo recurso interlocutório ou recurso para o Tribunal Constitucional, sem qualquer limitação temporal.
É, pois, fácil de constatar, e pacífico, que a causa de suspensão da prescrição aqui em causa já se encontrava prevista na Lei 19/2004 (2012).
O que se alterou, e com significado, foi o prazo da suspensão (e não o prazo de prescrição), o qual passou a deixar de estar sujeito a qualquer limitação temporal.
Resulta da literalidade do referido art. 2.º do RGCO, cuja epígrafe é, precisamente, “Princípio da legalidade”, que não há qualquer referência a normas respeitantes aos pressupostos na punição, mas unicamente à consideração dos factos suscetíveis de coima.
O Acórdão n.º 660/2021 do Tribunal Constitucional dá nota de alguma diferença de entendimento entre a doutrina nacional[4] (“é quase transversal o entendimento de que às regras referentes ao regime da prescrição do procedimento criminal são aplicáveis as garantias previstas no artigo 29.º da CRP, no tocante à retroatividade da lei penal.”) e a jurisprudência constitucional que “evidencia modos diferenciados de ponderação do escopo de aplicação do princípio da legalidade e, em particular, da proibição da irretroatividade da lei penal in malam partem.”.         
No que agora importa, considera o Tribunal Constitucional neste Acórdão:
“Igualmente nesta senda, tem sido afirmado que o princípio da proibição da imprescritibilidade das penas ou das sanções equiparáveis não ancora um direito subjetivo do arguido à prescrição (cfr. Acórdãos n.º 483/2002 e 366/2018), sendo lícito ao legislador estabelecer causas de suspensão e de interrupção da prescrição, ou prever limites máximos temporais a causas de suspensão, desde que isso não implique, em concreto, a ineficácia do instituto de que o arguido possa vir a beneficiar.
Com efeito, partindo destas premissas, no Acórdão n.º 126/2009 – (…) o Tribunal considerou existir fundamento bastante para o estabelecimento de um nova causa de suspensão da prescrição, ainda que fundada em facto jurídico diverso do previsto na aludida alínea b), decorrente do benefício concedido pelo legislador ao agente para aderir a plano de regularização de dívidas, eximindo-se à responsabilidade decorrente de comportamentos ilícitos passados (cfr. Lei n.º 51-A/96), na medida em que não importa qualquer preterição das garantias de defesa do arguido ou violação do princípio da proporcionalidade ou do princípio da legalidade da perseguição criminal.
A solução alcançada neste aresto mobilizou uma ponderação baseada num juízo de justo balanceamento entre a proteção das expectativas dos cidadãos, decorrentes do princípio do Estado de direito democrático, e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as soluções mais acertadas e razoáveis, impondo a intervenção do princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica sempre que a nova norma desrespeite standards mínimos de certeza e segurança dos destinatários na ordenação da sua vida de acordo com a ordem jurídica vigente.”
(são nossos os destaques)
A doutrina, esmagadoramente, e a jurisprudência constitucional, embora com relevantes exceções, contudo, têm um entendimento muito generoso do âmbito de aplicação deste princípio da legalidade, embora, sobretudo, no âmbito penal:
“As normas relativas à prescrição do procedimento criminal não se encontram incluídas, de modo literal, na proibição da retroatividade in pejus fixada para as normas incriminadoras (neste sentido, quanto à proibição da analogia, v. Acórdão n.º 205/1999). A sua recondução ao âmbito de aplicação do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4.º, da Constituição, só poderá fazer-se, por isso, com apoio em argumentos jurídico-constitucionais, os quais, por sua vez, haverão de extrair-se, não da classificação das normas atinentes ao instituto da prescrição segundo os critérios desenvolvidos no plano infraconstitucional, mas antes da ratio da proibição da retroatividade in pejus e, por conseguinte, dos próprios fundamentos do princípio da legalidade penal.”
(Acórdão TC 500/21, são nossos os destaques)
Partindo desta apreciação dos fundamentos da ratio da proibição da retroatividade in pejus o Tribunal Constitucional tem entendido que as alterações legislativas ao regime da prescrição tratam-se de “retroactividade de segundo grau (artigo 12º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil), "retroactividade inautêntica" ou "retrospectividade”
(Acórdão TC n.º 449/2002).
Ocupando-se expressamente da aplicação da lei no tempo de uma causa de suspensão da prescrição (a da norma do art. 336º, n. 1, do Código de Processo Penal que passou a prever como causa de suspensão da prescrição a declaração de contumácia), o Acórdão TC n.º 449/2002 não deixa de salientar que:
“Esta solução normativa só poderia ser julgada inconstitucional se ofendesse de modo arbitrário, inesperado ou desproporcionado, expectativas do agente do crime contemporâneas da prática do facto (artigo 2º e 29º, n.ºs 1, 3e 4, da Constituição). Ora, não se pode inferir do princípio da confiança, que constitui corolário do Estado de direito democrático, a exacta cognoscibilidade de todas as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal no momento da prática do facto.
Por isso, a interpretação e consequente aplicação temporal que o tribunal a quo fez do artigo 119º, n.º 1, do Código Penal de 1982 não viola o princípio da legalidade, na sua exigência de não retroactividade in pejus.
(são nossos os destaques e sublinhado)
O Acórdão TC n.º 660/2021, já referido, é esclarecedor:
“Assim, consideramos que a aplicação imediata desta causa de suspensão a processos em curso não colide com as garantias asseguradas pelo princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, quando, como é o caso, no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tinha iniciado e, apesar de se encontrar em curso, não se havia ainda extinto – aliás, encontra-se fora do respetivo âmbito de proteção (v., de novo, o Acórdão n.º 500/2021).
Quer isto dizer que, na linha de pensamento de GIAN LUIGI GATTA, quando o prazo de prescrição não tenha ainda atingido o seu fim, ao determinar o prolongamento – como no caos da suspensão motivada pela pandemia –, a lei superveniente não torna punível um facto não punível: ela limita-se a conceder ao Estado, por qualquer motivo, neste caso por força de uma emergência sanitária, mais tempo para apurar os factos e a responsabilidade criminal. O direito de defesa não resulta, de modo algum, comprometido e o Estado não abusa do poder punitivo, nem frustra aquela exigência de previsibilidade das consequências da violação da norma penal: como mostra a própria disciplina da prescrição do crime (…) o momento em que se cumpre a prescrição é, na verdade, variável e em boa medida imprevisível antes da prática do facto, quando o agente nem sequer sabe se alguma vez será alvo de um procedimento criminal (cfr. “Lockdown da justiça penal, suspensão da prescrição do crime e princípio da irretroatividade: um curto-circuito”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Separata, Ano 30, n.º 20, maio-agosto 2020, Gestlegal, pág. 312 e 313)”
(são nossos os destaques)
Já o referido Acórdão TC n.º 449/2002, anteriormente, afirmava expressamente que não configura um caso de retroatividade proibida pelos n.ºs 1 e 3 da Constituição, pois a nova causa de suspensão aplica-se para o futuro a processos crimes ainda pendentes, embora resultantes de crimes cometidos no passado.
Este é, de resto, o entendimento do TEDH e do TJUE.
Se assim é nos casos de alteração de causas de suspensão ou de interrupção, mais o será no caso presente em que estamos, unicamente, perante a alteração de prazos de suspensão ainda em curso à data da mudança legislativa.
Conforme citado pelo próprio TJUE em acórdão supra referido, é abundante a jurisprudência do TEDH no sentido de que não há, nestes casos, qualquer violação do princípio da legalidade (neste sentido, TEDH, Coëme e o. c. Bélgica, n. os 32492/96, 32547/96, 32548/96, 33209/96 e 33210/96, § 149, CEDH 2000-VII; Scoppola c. Itália (n. o 2), n. o 10249/03, § 110 e jurisprudência referida, 17 de setembro de 2009; e OAO Neftyanaya Kompaniya Yukos c. Rússia, n. o 14902/04, §§ 563, 564, 570 e jurisprudência aí referida, 20 de setembro de 2011).
Na data da entrada em vigor do novo prazo de suspensão da prescrição (17 de Setembro de 2022), os respetivos prazos de suspensão da prescrição já se tinham iniciado e, apesar de se encontrarem em curso, tais prazos não se haviam ainda exaurido, nem se estava perto de tal suceder.
A causa de suspensão prevista em ambas as leis já se tinha verificado e a suspensão decorria sem que o prazo limite da lei velha estivesse verificado.
Aliás, se perspetivarmos o referido princípio da confiança a partir do prisma específico aqui em causa, ou seja, do Direito (sancionatório) da Concorrência, é de recordar que as entidades competentes para aplicação dos arts. 101.º e 102.º do TFUE são:
• A Comissão Europeia (art. 4.º do Regulamento n.º 1/2003);
• As autoridades nacionais de concorrência dos Estados-membros (ANCs), no nosso caso a AdC (art. 5.º do Regulamento n.º 1/2003 e art. 5.º, al. h) dos Estatutos aprovados pelo D.L. n.º 125/2014];
• Os tribunais nacionais dos Estados Membros (art. 6.º do aludido Regulamento)
É, pois, de recordar que, preveem-se aqui competências partilhadas entre as referidas entidades: “the Commission shares the competence to apply Articles 101 and 102 with NCAs [ANCs] and national courts…” (Richard Whish e David Bailey, Competition law, Tenth edition (Oxford, United Kingdom: Oxford University Press, 2021), 78).
Ora, como vimos supra, no caso de sancionamento pela Comissão, o prazo de prescrição suspende-se, sem limite temporal, com a impugnação judicial junto do Tribunal de Justiça (mais especificamente perante o Tribunal Geral). Sustentar-se, assim, que o princípio da confiança seria abalado, perante solução nacional de idêntico teor, apenas porque a autoridade administrativa é nacional, parece-nos claramente incongruente.
Pelo exposto, é nosso entendimento, que a norma que resulta da aplicação conjugada do art. 9.º da Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto, e do art. 3.º, n. 1 e n. 2, do RGCO, na interpretação segundo a qual a redação do n. 9 do art. 74.º, da LdC, introduzida por aquela Lei, não é aplicável a factos praticados em data anterior à sua entrada em vigor e em relação aos quais, nesta data, ainda não se tenha verificado o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional, é inconstitucional, por violação dos princípios do primado do Direito da União Europeia (a “exigência existencial”, nas palavras de Pierre Pescatore[5]), consagrado no art. 8.º, n. 4, da Constituição, e do princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, n. 1, da Constituição.
Ainda que subsistissem dúvidas, e não as temos, os denominados acórdãos COVID-19 (Acórdãos n.ºs 500/2021, 660/2021, e 798/2021, a que se somam outra jurisprudência entretanto proferida: Acórdão 226/2023 e Decisões Sumárias n.os 177/2023, 225/2023, 226/2023 e 256/2023) demonstram que o Tribunal Constitucional admite que possam ocorrer condições que pela sua “singularidade, escapa totalmente a ambas as rationes com base nas quais é possível justificar o alargamento às normas sobre prescrição das garantias inerentes à proibição da retroatividade[6]”.
No caso, atentos os considerandos da Diretiva ECN+, entende-se estarmos, também, perante uma dessas situações excecionais, de ordem pública, que reclamam a compressão do princípio da legalidade caso se entenda aplicável.
Concluímos, pois, que o princípio da legalidade não se opõe, no caso, à aplicação da lei nova e consequente alteração do prazo de suspensão da prescrição, em curso.
As normas que regulam a prescrição do procedimento contraordenacional (ou criminal) visam oferecer “garantias de certeza, segurança e paz social no que concerne à efetivação do poder punitivo do Estado em tempo útil e sem inércia injustificada” (Acórdão TC n.º 366/2018).
Ora, no caso, não ocorreu qualquer inércia do Estado, inexistiu arbitrariedade (Acórdão do TC n.º 449/2002), existia lei prévia da causa de suspensão e a alteração do prazo de suspensão da prescrição ocorreu quando este ainda não estava esgotado.
Acresce, relevantemente, que as razões que justificam o instituto da prescrição no domínio penal não valem por inteiro no domínio contraordenacional:
“independentemente da adesão que mereça este entendimento, é seguro que ele não é transponível para o presente caso, desde logo porque então estava em causa matéria criminal e o prazo de prescrição do procedimento criminal e agora trata-se de matéria contraordenacional” (cf. Acórdão TC n.º 629/2005).
Como bem se compreende, atentos os diferentes valores em causa.
Reiteramos, pois, que a aplicação a lei nova aos presentes autos não viola o princípio da legalidade.
Acrescendo, ainda, que os direitos fundamentais, em especial no domínio penal, podem ter conteúdos diferentes atentas as distintas naturezas das pessoas coletivas e das pessoas singulares, como resulta de jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional:
“Simplesmente, a «aplicação» dos direitos fundamentais às pessoas colectivas não pode deixar de levar em conta a particular natureza destas — e de tal modo que seguramente tem de reconhecer-se que ainda quando certo direito fundamental seja compatível com essa natureza, e portanto susceptível de titularidade «colectiva» (hoc sensu), daí não se segue que a sua aplicabilidade nesse domínio se vá operar exactamente nos mesmos termos e com a mesma amplitude com que decorre relativamente às pessoas singulares. Tem a doutrina chamado a atenção para o ponto, e designadamente para o facto de o «conteúdo» dos direitos fundamentais poder ser diferente (e mais estreito) quando o respectivo titular for uma pessoa colectiva, antes que uma pessoa singular (assim, V. Andrade, ob. cit., pp. 176 e seg.)”.
(Acórdão n.º 198/1985[7], são nossos os destaques)
Os factos constantes do processo não demonstram, nem se mostra alegado, a violação de outros princípios constitucionais, designadamente o princípio da tutela da confiança ou do direito à decisão em prazo razoável.
 Sendo que a jurisprudência do TEDH e do TJUE expressamente exigem que a conformidade com esses princípios deve ser “apreciado caso a caso em função das circunstâncias da causa” e “em função das circunstâncias próprias de cada processo, designadamente da importância do litígio para o interessado, da complexidade do processo e do comportamento das partes em presença” (cf. TJUE Acórdão C-334/12 (ECLI:EU:C:2013:134) e restante jurisprudência nele citada). A jurisprudência do TEDH indica o mesmo sentido o (cf. o acórdão no caso Ferreira da Silva e Brito e outros c. Portugal, de 22.05.2012, queixa n.º 46273/09).
No contexto concreto a que nos temos vindo a fazer referência, atenta a data da publicação da Diretiva (UE) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018 ( ‘Diretiva ECN+’), 14.1.2019, com entrada em vigor 20 dias depois (art. 36.º), era razoável que a aqui recorrente contasse com a inexistência de limite temporal da suspensão da prescrição a partir do momento em que a decisão da AdC fosse objeto de impugnação judicial por sua iniciativa.
Sendo que a impugnação judicial da decisão da AdC ocorreu já no final de 2019 (31.10.2019), ou seja, muito depois da publicação da Diretiva ECN+.
Quaisquer expetativas que a recorrente pudesse ter quanto ao prazo de suspensão do prazo de prescrição após a impugnação judicial estavam irremediavelmente comprometidas pela solução prevista na Diretiva.
Acresce que as eventuais expetativas não merecem tutela jurídica já que não se mostrariam assentes em qualquer direito, já que não existe direito subjetivo à prescrição, como reiteradamente o tem afirmado o Tribunal Constitucional (entre muitos, os Acórdãos n.º 483/2002, n.º 629/2005, n.º 366/2018, e n.º 492/2021.).
Em conclusão, a alteração do prazo de suspensão da prescrição, operado pela lei nova, não viola o princípio da legalidade.
Aplicando o regime de prescrição da lei da concorrência atualmente em vigôr, podemos, com segurança, concluir que o procedimento não prescreveu, como acertadamente se decidiu em 1ª instância (ainda que agora com fundamentos diferentes).
Tendo a infração terminado em 31.12.2013 e a decisão a AdC sido impugnada judicialmente em 31.10.2019, verificamos que, atentas as causas de interrupção, ainda não tinham decorrido 7 anos e 6 meses.
Após a impugnação, o prazo de prescrição manteve-se suspenso, sem limite temporal.
Posteriormente, como veremos, e sem que tivesse cessado esta suspensão, a decisão transitou em julgado.
É, pois, negativa a resposta a esta questão.
Tal como é negativa, pelo exposto, a invocação das apontadas inconstitucionalidades.
Quanto à data do trânsito em julgado da decisão que condenou a recorrente em coima.
Nesta sede, alega a recorrente, de essencial, o seguinte:
“§ 11. A regra prevista no artigo 80.º, n.º 4, da LTC é clara: só após o trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional é que a decisão recorrida poderá vir a transitar. E assim é independentemente do teor da decisão final do Tribunal Constitucional — isto é, seja esta de não admissão formal ou de indeferimento material do recurso de constitucionalidade.
§ 12. À mesma conclusão se chega através do artigo 70.º, n.º 3, da LOTC, que equipara os recursos e reclamações apresentados na jurisdição constitucional a recursos e reclamações ordinários — e, portanto, a atos processuais que obstam ao trânsito em julgado, ex vi artigo 628.º do Código de Processo Civil.

 § 14 É pacífico na Jurisprudência e Doutrina que a interposição de recurso e/ou reclamação perante a jurisdição constitucional obsta ao trânsito em julgado da decisão recorrida, mesmo que tal recurso ou reclamação sejam rejeitados por inadmissibilidade; vejam-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.06.2007 (processo n.º 1885/07), de 11.03.2021 (processo n.º 130/4.1PDPRT.P1.S1), e de 14.10.2021 (processo n.º 7447/08.2TDLBS-G.S1)”.
Vejamos.
Estabelece o art. 70.º, n. 3, da LTC: “São equiparadas a recursos ordinários as reclamações para os presidentes dos tribunais superiores, nos casos de não admissão ou de retenção do recurso, bem como as reclamações dos despachos dos juízes relatores para a conferência.”.
Por seu turno, segundo o art. 80.º, n. 4 da mesma lei: “Transitada em julgado a decisão que não admita o recurso ou lhe negue provimento, transita também a decisão recorrida, se estiverem esgotados os recursos ordinários, ou começam a correr os prazos para estes recursos, no caso contrário.”.
Recorde-se, por sua vez, a tramitação que ocorreu junto do Tribunal da Relação e do Tribunal Constitucional.
Interposto recurso final pela ora Recorrente, em alegações “notoriamente extensas”, num total de 352 páginas, inclusive com 307 conclusões de recurso (vide o respetivo recurso, o parecer do Ministério Público junto deste Tribunal da Relação datado de 24-02-2023 e despacho da Relatora datado de 30-05-2023), foram os autos apresentados neste Tribunal em 22-02-2023. Foi realizada audiência de julgamento em 30-06-2023.
Nesta sequência, em processo de elevada complexidade, em 25-09-2023 foi proferido acórdão do TRL, ou seja, cerca de 7 meses após a receção dos autos (dentre os quais mediaram as férias judiciais de verão). Após, foram proferidos acórdãos em 06-12-2023 (arguição de nulidades do acórdão, julgado improcedente) e 22-01-2024 (pedido de aclaração, julgado improcedente).
Por seu turno, em 9 de outubro de 2023, a Recorrente interpôs recurso, à cautela, para o Tribunal Constitucional, identificando como decisão recorrida o mencionado Acórdão do TRL de 25-09-2023. Seguida a tramitação processual, a recorrente apresentou, em 5 de fevereiro de 2024, um segundo recurso de constitucionalidade, desta vez dirigido contra o referido Acórdão do TRL de 22-01-2024. A Recorrente interpôs ainda um terceiro recurso para o Tribunal Constitucional, em 22 de maio de 2024, identificando novamente como objeto de recurso o Acórdão do TRL de 25-09-2023.
Quanto aos recursos para o Tribunal Constitucional interpostos em outubro de 2023 e fevereiro de 2024, o Tribunal proferiu, em 27-03-2024, decisão sumária de não conhecimento (Decisão Sumária n.º 222/2024), e um acórdão em 08-05-2024 a confirmar a aquela decisão sumária (Ac. n.º 360/2024). A este respeito é esclarecedor o que se deixou consignado no Relatório deste acórdão “Pela referida Decisão Sumária n.º 222/2024, entendeu-se, nos termos do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não conhecer do objeto do primeiro recurso interposto [relativo ao Ac. TRL de 25-09-2023] por não se ter  verificado a exaustão dos recursos ordinários no momento da sua interposição – feita, conforme reconhece a própria recorrente, à cautela –, e não conhecer do objeto do segundo recurso interposto [relativo ao Ac. TRL de 22-01-2024] por inexistir coincidência entre a aplicação dos preceitos legais que sustentam a ratio decidendi da decisão recorrida e a formulação selecionada pela recorrente como objeto da questão colocada.”.
Quanto ao recurso interposto para o Tribunal Constitucional em maio de 2024, o mesmo Tribunal proferiu, em 06-06-2024, uma decisão sumária de não conhecimento, por extemporaneidade (decisão sumária n.º 362/2024) e um segundo acórdão em 11-07-2024 a confirmar aquela decisão sumária (Ac. n.º 544/2024).
Ou seja, em relação ao Ac. TRL de 25-09-2023, o primeiro recurso foi considerado extemporâneo por prematuridade (foi interposto antes da “definitividade” do Ac. TRL), e o segundo recurso extemporâneo por ter sido ultrapassado o respetivo prazo (a contar daquela “definitividade”).
Mais se denota, tal como salienta a ora recorrente, que no segundo acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional (Ac. n.º 544/2024), foram apostos dois votos de vencido, revelando que a questão é controversa naquele mesmo Tribunal e que, seguindo a posição vencida, o último recurso teria sido admitido.
A controvérsia, recorde-se, passa pela resposta a dar à seguinte questão, tal como enunciado no segundo voto de vencido: “trata-se de saber se a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que não admite o recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação se torna definitiva quando não é mais revertível na ordem jurisdicional respetiva ou, no caso de ter sido ela própria objeto de um recurso de constitucionalidade, somente depois de este ter sido apreciado”.
Mais resulta, conforme também salientado pela recorrente, que não foi aplicado o mecanismo previsto no artigo 670.º do Código de Processo Civil (veja-se, além do mais, as conclusões n.ºs 3 a 6), e que nenhum comportamento dilatório lhe foi imputado pelos Tribunais em causa. Esta alegação efetivamente corresponde à realidade dos autos.
Aqui chegados, há que tomar posição sobre a questão ora em análise.
A jurisprudência citada pela recorrente, insere-se, no essencial, na problemática do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, e contém nuances que não foram tomadas em conta pela recorrente.
Por exemplo, no Ac. STJ de 11-03-2021 (processo n.º 130/4.1PDPRT.P1.S1), pode ler-se:
 “… Nos casos em que não é admissível recurso (ordinário) para o Supremo Tribunal de Justiça, um dos meios de reacção ao acórdão confirmativo da condenação é a interposição de recurso para o TC no prazo de 10 dias (artigos 105.º, do CPP, e 75.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82).
Em relação à questão da tempestividade do recurso para o TC é necessário acatar, por força do caso julgado formal, quer o despacho do Senhor Desembargador do TR…. [que, por despacho de 9.7.2019, decidiu em relação aos (três) recursos interpostos para o TC, que o foram “tempestivamente (artigo 75º, 1, da L.T.C.), ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da L.T.C., tendo por objecto uma decisão que não admite recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo, por isso, admissível para o Tribunal Constitucional.”], quer a própria posição assumida pelo TC, que, por decisão de 22.9.2020, decidiu não conhecer do objecto do processo por outras razões que não a intempestividade. Aliás, quanto a isto, o próprio artigo 75.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82 (Lei do TC), preceitua que interposto recurso ordinário, mesmo que não admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o TC conta-se do momento em que se torna definitiva a decisão que não admite recurso.
Assim, não sendo questionado o recurso tempestivo para o TC, é posição do ac. STJ, que não se pode considerar a existência de um trânsito em julgado.
Como se exara no ac. STJ, Rel. Pires da Graça, 27.06.2007, Proc. n.º 1885/07 - 3ª Secção, havendo “recurso de uma decisão para o Tribunal Constitucional, inexiste trânsito em julgado dessa decisão”, o que, conforme se salienta nesse mesmo acórdão, “impede, pois, a interposição do recurso para fixação de jurisprudência, por falta de um pressuposto legal necessário – trânsito em julgado (cf. art. 438.º, n.º 1, do CPP).

O que, note-se, emerge igualmente do artigo 80.º, n.º 4, parte final, da Lei n.º 28/82 (Lei do TC), referindo que transitada em julgado decisão que não admita recurso ou lhe negue provimento, começam a correr os prazos para os recursos ordinários, se não estiverem esgotados.
E essa mesma norma, refere expressamente que transitada em julgado “a decisão que não admita o recurso ou lhe negue provimento, transita também a decisão recorrida, se estiverem esgotados os recursos ordinários”. O que é o caso dos autos. Ou seja, a data do trânsito em julgado da decisão recorrida coincide com o trânsito em julgado da Decisão Sumária que não conheceu do objecto do recurso.”
(são nossos os destaques).
Resulta, portanto, da aludida jurisprudência, que aí se parte do pressuposto, para considerar-se que um recurso para o Tribunal Constitucional possa ser relevante para determinar o momento do trânsito em julgado, que tal recurso se mostre tempestivo, mesmo que não tenha sido admitido com base noutras razões.
Ou seja, deve contar-se o trânsito a partir de tal decisão de inadmissibilidade do recurso para o TC, mas pressupondo-se que tal recurso foi tempestivo. E este pressuposto, apesar de não poder resultar, de forma literal e imediata, da leitura do art. 80.º, n. 4, da LTC, impõe-se sob pena de cairmos em soluções manifestamente absurdas.
Efetivamente, caso assim não fosse, estaria encontrado o mecanismo legal para protelar, indefinidamente, o caso julgado de qualquer decisão judicial e, assim, obter-se a prescrição em qualquer processo. Com efeito, uma interpretação literal do art. 80.º, n. 4 da LTC, no sentido de englobar sob a sua égide a decisão de rejeição de recurso para o TC por intempestividade, conduziria à situação caricata de que interposto um recurso para o TC, por exemplo, cinco anos depois da decisão das instâncias se ter tornado “definitiva”, teria o efeito de apenas considerar-se aquela decisão transitada com o trânsito da decisão do TC de rejeição do recurso por extemporaneidade. Este argumento de reductio ad absurdum, força-nos, pois, a interpretar o dito art. 80.º, n. 4 da LTC de molde a excluir da sua aplicação decisões de não conhecimento dos recursos para o TC baseados em extemporaneidade por se mostrar ultrapassado o respetivo prazo.
Ora, conforme resulta da descrição dos atos processuais praticados nos aludidos recursos para o Tribunal Constitucional, o segundo recurso interposto sobre o Ac. TRL de 23-05-2023, foi rejeitado por se mostrar ultrapassado o respetivo prazo, pelo que é irrelevante para efeitos do trânsito em julgado daquele acórdão.
A não ser assim, podemos afirmar, como o STJ no Acórdão 2/2002, de 17.1.2002, que o regime de recursos no âmbito contraordenacional tornou “a aplicação de qualquer coima vulnerável a toda a espécie de manobras dilatórias, em suma, dependente, em último termo, da vontade do acusado.”
Já o recurso de constitucionalidade que visava o Ac. TRL de 22-01-2024 foi rejeitado, não por ser intempestivo, mas “por inexistir coincidência entre a aplicação dos preceitos legais que sustentam a ratio decidendi da decisão recorrida e a formulação selecionada pela recorrente como objeto da questão colocada.”.
Será, portanto, quanto a esta decisão (definitiva) de não admissão proferida pelo Tribunal Constitucional, ou seja, pelo trânsito do Ac. TC n.º 360/2024, proferido em 08-05-2024 (no processo n.º 174/2024), que se terá de determinar a data do trânsito em julgado ora em causa.
Ora, conforme resulta dos factos supra descritos, “No referido processo n.º 174/2024, a Secretaria do Tribunal Constitucional certificou o trânsito em julgado do acórdão n.º 360/2024 no dia 23.05.2024 (cf. fls. 161, volume 24.º)”.
Nestes termos, torna-se claro que a data do trânsito em causa coincide com o dia 23-05-2024, tal como sustentado no despacho recorrido, se bem que com fundamentação diversa.
Resta, pois, concluir pela total improcedência do recurso, não se verificando, pelo exposto, as invocadas inconstitucionalidades, assentes em premissas não verificadas em concreto.
As custas são fixadas entre 3 a 6 Ucs, atento o disposto no art. 8.º, e na tabela III, do Reg. Custas Processuais.

IV. Decisão.
Em face do exposto, deliberam os Juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e manter as decisões recorridas.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s.

Lisboa, 12/03/2025
A.M. Luz Cordeiro
Alexandre Au-Yong Oliveira
Bernardino Tavares (com declaração de voto)

Declaração de voto:
Voto a decisão porque, apesar de discordar da aplicação da LC de 2012, na versão de 2022 - conforme fundamentação enunciada no Acórdão 225/15.4YUSTR-W.L1, para a qual remeto -, concordando que o trânsito em julgado da decisão ocorreu a 23 de maio de 2024, aplicada a LC de 2012, que corresponde à data da prática dos factos, a contabilização dos 10 anos e 6 meses para a verificação da prescrição do procedimento contraordenacional (que resultam do artigo 74.º, desta versão), leva-nos para momento posterior ao trânsito, ou seja, para o dia 1 de junho de 2024, o que importa o mesmo resultado a que se chegou no presente acórdão.
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[1] Os dados do TJUE podem ser acedidos aqui:
https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2024-05/pt_ra_2023_cour_statistiques_web_07052024.pdf
[2] Cf., ainda, o Acórdão C-399/11 do TJUE, (caso Melloni), em especial n. 59.
[3] https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/1923-2021-190003675
[4] Por todos, cf. Nuno Brandão https://rpdc.pt/wp-content/uploads/2022/12/A.2.-Nuno-Brandao.pdf, em especial p. 31.
[5] Cf TJUE Acórdão n.º 422/2020.
[6] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/file/dossier_covid_outubro2022.pdf?src=1&mid=6909&bid=5516
[7] Igualmente o Acórdão TC n.º 91/2023, onde se cita a doutrina recente, no mesmo sentido.