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SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
REVOGAÇÃO
INJUNÇÕES
CUMPRIMENTO
ARQUIVAMENTO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
Sumário
I- É hoje razoavelmente pacífico o entendimento de que, perante a ocorrência de um qualquer incumprimento, a opção pela dedução de acusação em vez do arquivamento não é automática, envolvendo antes um juízo de culpa ou vontade de não cumprir por parte do arguido. II- Cremos que não oferece dúvida a desproporcionalidade de sujeitar um arguido a julgamento e condenação, quando a materialidade patente nos autos demonstra que a suspensão provisória alcançou a finalidade com a mesma visada. Não parece aceitável deixar que as questões de ordem formal se sobreponham às questões de fundo, devendo antes prevalecer a justiça material. III- Constitui incumbência do juiz de julgamento, designadamente, no cumprimento do disposto no artigo 311º, nº 1 do Código de Processo Penal, pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. Por assim ser, a «importação» da solução processual civil, no sentido de se considerar verificada uma exceção dilatória inominada (e as exceções dilatórias, por definição, obstam ao conhecimento de mérito), não se afigura verdadeiramente estranha ao «rito processual penal».
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
No processo nº 634/23.5SILSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Sintra (Juiz 3), em que é arguido AA, filho de BB e de CC, nascido a ........1984, no ..., solteiro, ..., portador do título de residência com o número …59, residente na ..., foi, em 24.06.2024, proferida a seguinte decisão:
“- Da irregularidade processual:
Resulta dos autos que, em sede de inquérito, foi aplicada ao arguido AA a suspensão provisória do processo, pelo prazo de 4 (quatro) meses, mediante o cumprimento das seguintes injunções:
- entregar a quantia de €400,00 à ..., devendo tal valor ser fracionado em prestações mensais e sucessivas, no valor de €100,00 cada, sendo que a data limite a ter em consideração para cada pagamento, será de um mês, a contar da data a partir da qual a suspensão provisória terá início; e
- entregar aos autos o comprovativo mensal de cada pagamento.
A aplicação do referido instituto foi notificada ao arguido em 17.07.2023 por via postal com PD, terminando o período da suspensão em 17.11.2023.
Decorrido o prazo da suspensão, o arguido foi notificado em 4.12.2023 para comprovar nos autos o cumprimento da injunção imposta, e nada disse.
Por despacho de 8.01.2024, o Ministério Público revogou então a suspensão provisória do processo e deduziu acusação contra o arguido.
Em 9.02.2024 veio então o arguido comprovar a realização dos pagamentos impostos como – juntando prova da realização de um primeiro pagamento em 21.09.2023 e de um segundo em 30.11.2023.
Sem prejuízo, e sem se pronunciar sobre tais comprovativos, por despacho de 16.02.2024, o Ministério Público remeteu os autos à distribuição para julgamento.
Cumpre apreciar e decidir.
Relativamente às obrigações impostas ao arguido no âmbito da suspensão provisória do processo, desde já se esclarece que, na perspetiva deste Tribunal, apenas aquela referente ao pagamento, durante o período da suspensão, da quantia pecuniária imposta constituía, verdadeiramente, a injunção a cumprir.
Ao invés, já a obrigação da sua demonstração em juízo era meramente acessória, constituindo, precisamente e por definição, um meio de o arguido comprovar o cumprimento da injunção.
Nesse sentido, assim se decidiu no Acórdão do Tribunal de Coimbra de 17.05.20171 com o qual se concorda inteiramente e que se passa a citar “A comprovação do depósito em juízo, no processo, é outra questão. Não tem natureza de injunção. Não integra esta. É um mero meio de provar (comprovar/documentar) esse depósito (…) “a não comprovação do depósito nos autos, pelo arguido, de sua espontânea vontade, não significa automático incumprimento da injunção”
Estabelece o artigo 282. º, n.º 4, do Código de Processo Penal que:
“4 - O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas: a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado”.
Donde, estando demonstrado nos autos que o arguido procedeu ao pagamento pecuniário injuntivo acima descrito, tendo o processo prosseguido para julgamento, quid iuris?
Nestas situações, importa notar, conforme realça o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra citado que aqui se segue de perto, que existem modos de averiguar o cumprimento das injunções impostas que não exigem a colaboração do arguido.
Sucede que, no presente caso, tal averiguação, designadamente junto da entidade destinatária do pagamento, não foi feita.
Quanto às consequências dessa omissão, não estando a mesma prevista nem cominada com o vício de nulidade, estamos perante uma mera irregularidade, nos termos do artigo 123.º, do CPP, a qual, tendo afetado os atos processuais que se lhe seguiram, deve ser oficiosamente declarada e reparada, ao abrigo do disposto no n.º 2, do mesmo preceito2.
Pelo exposto, declaro a irregularidade processual do ato do Ministério Público que, findo o prazo da suspensão provisória do processo, mandou prosseguir os autos para acusação e julgamento, sem previamente averiguar do cumprimento da injunção pelo arguido e, tendo já decorrido o prazo da suspensão, mais ordeno o arquivamento dos autos – artigos 123.º, n.º 1 e 2, e 282º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal.
Sem custas.
Notifique e dê baixa estatística.
Após trânsito: arquive.”
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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:
“A. O instituto da suspensão provisória do processo previsto no artigo 281.º, do Código de Processo Penal é aplicável na fase de inquérito pelo Ministério Público, com a concordância do Juiz de Instrução.
B. É competência do Ministério Público o arquivamento dos autos, nos termos do artigo 282.º, do Código de Processo Penal, por cumprimento das injunções impostas em sede de suspensão provisória do processo.
C. E a decisão de revogação da suspensão provisória de processo é, igualmente, decisão do Ministério Público, que pode ser judicialmente controlada em sede de instrução desde que requerida pelos arguidos.
D. Como tal, o Juiz de Julgamento não pode colocar em causa a acusação deduzida, salvo nos casos expressamente previstos na lei, no exercício dos seus poderes e em cumprimento dos seus deveres – cf. artigo 311.º, do Código de Processo Penal (não se verificando nestes autos qualquer desses casos).
E. O arguido foi devido e regularmente notificado do despacho de acusação contra si deduzido e não requerer a abertura de instrução, nem invocou qualquer irregularidade dos actos do Ministério Público que importasse ao Juiz de Julgamento apreciar.
F. A existir qualquer irregularidade – que o Ministério Público não vislumbra – não poderia o Tribunal a quo reconhecer oficiosamente a mesma e determinar o arquivamento dos autos, uma vez que a mesma se mostrava sanada por não ter sido arguida em tempo pelo interessado (cf. artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
G. Em face do exposto, entende o Ministério Público que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 123.º, n.º 1 e 2 e 282.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, bem como, o princípio do acusatório previsto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, se deverá ser concedido provimento ao presente recurso e consequentemente, ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público contra AA e determine a notificação do mesmo para contestar, tudo nos termos dos artigos 311.º e 311.º-A do Código de Processo Penal.
Contudo, Vossas Excelências farão, porém, como sempre, JUSTIÇA!”
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.
Tempestivamente, não foi apresentada resposta.
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Remetidos os autos a este Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416º do Código de Processo Penal, emitiu parecer, nos seguintes termos:
“Concordamos integralmente com os fundamentos do recurso interposto pelo Ministério Público, na 1.ª instância, quanto à competência para proceder ao arquivamento do processo suspenso provisoriamente e quanto à inexistência de irregularidade processual.
Independentemente da comprovação tardia do cumprimento da injunção, pelo arguido, depois de deduzida a acusação, em 09/02/2024, verifica-se que a injunção não foi integralmente satisfeita no período em que o deveria ter sido, ou seja, no período da suspensão compreendido entre 17/07/2023 e 17/11/2023, tendo-o sido na totalidade em 30/11/2023.
Assim, o arguido não cumpriu a injunção para efeitos do disposto no art.º 282.º, n.º 3, do CPP e o processo prosseguiu os seus termos, conforme disposto na al. a) do n.º 4 do mesmo dispositivo.
Como se diz no acordão do TRC de 11/10/2023, proferido no P. 403/21.7PBCLD.C1, disponível em www.dgsi.pt, “Determinada a suspensão provisória do processo mediante o cumprimento de injunções e regras de conduta, se o arguido, no decurso da suspensão, apenas cumpre parcialmente a injunção e nem sequer dá conhecimento desse cumprimento parcial no processo, pode o Ministério Público deduzir acusação e remeter o processo para julgamento.”
Caso, não fosse assim, ou seja, se o arguido tivesse cumprido a injunção no período da suspensão, e comprovado posteriormente o cumprimento, então verificar-se-ia uma exceção dilatória inominada, com a consequente absolvição da instância e arquivamento dos autos, como decidido no acórdão do TRL de 09/11/2021, proferido no P. 27/19.9PFSNT.L1-5, e relatado pelo Sr. Desembargador Paulo Barreto, disponível em www.dgsi.pt.
Pelo exposto, somos de parecer que o recurso merece provimento.”
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Proferido despacho liminar, no qual se corrigiu o efeito atribuído ao recurso, e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II. Objeto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Tendo em conta os termos em que o Digno recorrente estruturou o seu recurso, importa apreciar se a Mma. Juiz a quo exorbitou as suas competências, tomando conhecimento de irregularidade que deveria considerar-se sanada e que, por isso, não podia apreciar ex officio e, em consequência, se deverá determinar-se o prosseguimento dos autos para julgamento.
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III. Elementos do processo Com interesse para a decisão do recurso, resulta dos autos que:
- Em 10.05.2023, foi determinada pelo titular da ação penal a suspensão provisória do processo contra o arguido AA (refª Citius 144218501), nos termos previstos no artigo 281º do Código de Processo Penal, “pelo prazo de 4 (quatro) meses, mediante o cumprimento das seguintes injunções: - entregar a quantia de €400,00 à ..., devendo tal valor ser fracionado em prestações mensais e sucessivas, no valor de €100,00 cada, sendo que a data limite a ter em consideração para cada pagamento, será de um mês, a contar da data a partir da qual a suspensão provisória terá início; e - entregar aos autos o comprovativo mensal de cada pagamento”.
- Tal decisão mereceu a concordância do Juiz de Instrução Criminal, em despacho proferido em 17.05.2023 (refª Citius 144368966).
- A suspensão provisória do processo foi notificada ao arguido através de ofício expedido em 06.07.2023 (refª Citius 145441170), e depositado em 11.07.2023 (refª Citius 23796694).
- Em 04.12.20233, foi o arguido notificado “para no prazo de 10 dias, juntar aos autos documento comprovativo do pagamento da injunção imposta ou para vir indicar aos autos o motivo do não cumprimento da injunção imposta, sob pena de se considerar não cumprida a injunção e se determinar o prosseguimento dos autos, com dedução de acusação e posterior remessa para julgamento, nos termos do disposto no artigo 282.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal” (ref.ªs Citius 147671380 e 24666148).
- Nesse prazo de 10 dias, o arguido nada disse.
- Em 08.01.2024, foi proferido despacho (refª Citius 148225418), com o seguinte teor:
“Revogação da Suspensão Provisória do Processo Nos presentes autos, em que se encontra indiciada a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, o Ministério Público procedeu à aplicação da suspensão provisória do processo, por um período de quatro meses, mediante a imposição ao arguido das seguintes injunções: - entregar a quantia de €400,00 à ..., devendo tal valor ser fracionado em prestações mensais e sucessivas, no valor de €100,00 cada, sendo que a data limite a ter em consideração para cada pagamento, será de um mês, a contar da data a partir da qual a suspensão provisória terá início; e - entregar aos autos o comprovativo mensal de cada pagamento O arguido foi notificado do teor do despacho que determinou a suspensão provisória dos presentes autos de inquérito. No entanto, não juntou aos autos o comprovativo do cumprimento das injunções acima referidas, apesar de conhecer a obrigação que sobre si impendia nesse sentido, como pressuposto da suspensão provisória dos presentes autos. Foi o arguido notificado em 22-11-2023, para vir juntar, em 10 dias, o comprovativo do cumprimento das injunções, e nada disse ou requereu. Tais circunstâncias traduzem um incumprimento culposo e censurável, por parte do arguido, das injunções impostas nos autos e que inviabiliza a manutenção da suspensão provisória do processo. Nos termos do artigo 282.º, n.º 4, al. a), do Código de Processo Penal, se a arguida não cumprir com as injunções fixadas, como se verifica no caso presente, impõe-se a revogação da suspensão provisória do processo e o prosseguimento dos autos como Inquérito (SO), com a dedução do despacho de acusação que infra se segue.”
- Nessa mesma data, deduziu o Ministério Público acusação, em processo comum e com intervenção de tribunal singular, imputando ao arguido AA a prática “como autor material, (artigo 26.º, do Código Penal), um crime de condução sem habilitação legal, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.”
- Notificado daquela decisão, veio o arguido, em 09.02.2024, juntar comprovativos dos pagamentos realizados no âmbito da injunção imposta – sendo um pagamento no valor de € 100,00, efetuado em 21.09.2023, e um pagamento no valor de € 300,00, efetuado em 30.11.2023 – mais requerendo a “não submissão a julgamento e arquivamento dos presentes autos.” (refª Citius 25009127).
- Em 16.02.2024 foi determinada a remessa dos autos para julgamento (refª Citius 149245035).
- Por despacho proferido em 19.04.2024, foi dada ao Ministério Público a oportunidade de se pronunciar sobre a documentação junta pelo arguido (refª Citius 150242553), o que fez em 18.06.2024, sustentando estar ultrapassada a oportunidade da suspensão provisória do processo, mais referindo que, em seu entender, “a aplicação do referido instituto (após a sua revogação no despacho final de inquérito do Ministério Público) não é admissível na fase de julgamento, podendo os comprovativos juntos ser atendíveis em sede de medida da pena” (refª Citius 151586389).
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IV. Fundamentação
Fixado o objeto do recurso e estando já transcritas, quer a decisão impugnada, quer as conclusões do recurso interposto, importa apreciar.
Como acima se referiu, a questão central colocada nos autos – mais do que saber se o Tribunal a quo podia, ou não, conhecer da identificada «irregularidade insanável» – é a de saber se é inevitável a sujeição do arguido a julgamento, face à revogação da suspensão provisória do processo por parte do Ministério Público, na circunstância em que, como acontece nos autos, está demonstrado o cumprimento (eventualmente tardio) da injunção4 fixada na decisão de suspensão.
A suspensão provisória do processo, cujo regime legal se acha previsto nos artigos 281º e ss. do Código de Processo Penal, é, como se sabe, uma das soluções de consenso e oportunidade consagradas na nossa lei processual penal, destinada a evitar que, em casos de gravidade reduzida e/ou em que as exigências de prevenção especial se mostrem mitigadas, seja o arguido submetido a julgamento (e potencial condenação).
Como é também sabido, na fase de inquérito, a opção pela aplicação de tal instituto cabe ao Ministério Público, obtida a concordância do Juiz de Instrução (e do arguido – e, ainda, do assistente se o houver).
E é também ao Ministério Público que cabe proferir decisão quanto ao definitivo arquivamento dos autos, ou, inversamente, quanto à revogação da suspensão e remessa dos autos para julgamento, em conformidade com os nos 3 e 4 do artigo 282º do Código de Processo Penal, no qual se estabelece que “3 - Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto. 4 - O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas: a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado”.
Crê-se que é hoje razoavelmente pacífico o entendimento de que, perante a ocorrência de um qualquer incumprimento, a opção pela dedução de acusação em vez do arquivamento não é automática, envolvendo antes um juízo de culpa ou vontade de não cumprir por parte do arguido 5.
Impõe-se, por isso, a formulação de um juízo sobre a existência de incumprimento relativamente às injunções e regras de conduta fixadas na decisão de suspensão, mas também sobre o impacto desse incumprimento no atingimento das finalidades subjacentes à aplicação do instituto em causa. Ou seja, é necessário que se possa afirmar que a conduta inadimplente do arguido revela que os fins visados com tal solução de consenso não puderam ser alcançados.
Como explica João Conde Correia6, “O incumprimento dos prazos, das injunções ou das regras de conduta não determina o prosseguimento imediato do processo, ficando sujeito à comprovação prévia do caráter culposo do incumprimento [ac. RL, 18.5.2010 (José Adriano); ac. RP, 9.12.2015 (Nuno Ribeiro Coelho)]. «Um funcionamento automático da revogação violaria o princípio da culpa e, numa perspetiva mais ampla, onde ele radica, a própria dignidade da pessoa humana, erigida em esteio basilar de todo o sistema jurídico» (André Lamas Leite, 2009-10, p. 620).”
E, continua ainda o mesmo autor, “O incumprimento das injunções e das regras de conduta deverá, assim, ser total ou irremediável, comprometendo, definitivamente, os objetivos in illo tempore subjacentes à decisão de suspensão provisória do processo (Eduardo Maia Costa, 2016, p. 946; Paulo Pinto de Albuquerque, 2007, p. 728).
[…]
Fora deste regime legal, ficam pequenas violações do acordado (de modo que, não obstante isso, este acaba por ser cumprido) ou os casos em que as obrigações incumpridas são insignificantes, quando comparadas com aquelas que foram assumidas. O arguido acordou cumprir a injunção em dez prestações mensais, mas acaba por pagar tudo de uma só vez; em lugar de contemplar uma instituição determinada entregou-a a outra semelhante; ou, então, falha apenas uma parcela ínfima ou irrelevante das obrigações impostas. Em bom rigor, nestas hipóteses insignificantes, nem sequer se pode invocar o inadimplemento do acordado. No essencial, o consenso é respeitado. Os objetivos subjacentes à suspensão provisória do processo são, apesar de tudo, integralmente cumpridos. Falar do seu incumprimento seria aqui um exagero formal, indiferente à essência material do caso concreto. As violações detetadas são, processualmente, inconsequentes (João Conde Correia, 2013, p. 44). O processo poderá ser arquivado sem qualquer limitação.”
Naturalmente que tal avaliação cabe, em primeira linha, ao Ministério Público, enquanto titular da fase de inquérito em que se inscreve o instituto aqui em causa. E, sem embargo de se poder constatar a eventual deficiência da indagação levada a cabo pelo titular da ação penal, face à autonomia do Ministério Público, não cabe ao Juiz de Instrução Criminal (ou ao Juiz de Julgamento) determinar que concretos atos devem ser executados antes de, eventualmente, se decidir a revogação da suspensão provisória e, menos ainda, proferir a decisão prevista no artigo 282º, nº 3 do Código de Processo Penal, em substituição da proferida pelo Ministério Público.
O que fazer, então, se o Ministério Público tiver determinado o prosseguimento dos autos, deduzindo acusação, constatando-se que a injunção fixada se mostra afinal cumprida?
Cremos que, também aqui, não oferece dúvida a desproporcionalidade de sujeitar um arguido a julgamento e condenação, quando a materialidade patente nos autos demonstra que a suspensão provisória alcançou a finalidade com a mesma visada. Não parece aceitável deixar que as questões de ordem formal se sobreponham às questões de fundo, devendo antes prevalecer a justiça material7.
Neste âmbito, propõe João Conde Correia8: “Se, apesar do arguido ter cumprido integralmente as injunções e as regras de conduta fixadas, o MP deduzir acusação, o arguido poderá impugnar essa decisão mediante um pedido de abertura de instrução [ac. RP, 5.4.2017 (Maria Deolinda Dionísio); ac. RC, 27.9.2017 (Paulo Valério); ac. RG, 6.11.2017 (Armando Azevedo); ac. RG, 27.6.2016 (Cruz Bucho) CJ, 2016, II, p. 265]. Não há nenhuma razão para submeter estes arguidos a julgamento, sendo a comprovação judicial da decisão de acusar (art.º 286.º) a melhor forma de o evitar. Caso assim não seja ou quando a instrução seja inadmissível [v.g. por causa da forma processual utilizada: art.º 286.º/3; ac. RP, 15.5.2016 (Ana Bacelar)], o arguido deverá ser sujeito a julgamento e, caso aquele cumprimento seja efetivo, absolvido. O despacho de recebimento da acusação não é o momento adequado para sindicar uma eventual divergência relativa ao cumprimento/incumprimento das injunções e regras de conduta [ac. RL, 18.5.2010 (José Adriano)]. Invocar uma exceção dilatória inominada (art.º 576.º/2 CPC) e absolver o arguido da instância [ac. RC, 13.9.2017 (Jorge França); ac. RE, 8.3.2018 (Ana Bacelar)] é uma solução importada do processo civil, que não se adequa ao rito penal. O que está em causa é uma questão prévia, de geometria variável, que deve ser processualmente demonstrada, suscetível de impedir a condenação do arguido, ainda que os factos que lhe são imputados na acusação sejam integralmente demonstrados.”
Sendo de subscrever a proposição de que, estando cumpridas as injunções e regras de conduta, não há nenhuma razão para submeter estes arguidos a julgamento, já discordamos do entendimento de que, não havendo lugar a instrução – que, recordamos, é uma fase facultativa – o julgamento se torna inevitável.
É que constitui incumbência do Juiz de Julgamento, designadamente, no cumprimento do disposto no artigo 311º, nº 1 do Código de Processo Penal, pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. Por assim ser, a «importação» da solução processual civil, no sentido de se considerar verificada uma exceção dilatória inominada (e as exceções dilatórias, por definição, obstam ao conhecimento de mérito), não se afigura verdadeiramente estranha ao «rito processual penal».
Esclarece António Latas9, a propósito do citado artigo 311º, que, “[e]mbora o preceito não enumere as questões prévias ou incidentais a que se reporta, cremos ser pacífico o entendimento na jurisprudência e doutrina desde o CPP/29 no sentido de incluir aí as exceções processuais e as exceções de natureza substantiva ou mista, cujo efeito se traduza em fazer terminar o processo (tomado no sentido deque a cada crime corresponde um processo) ou que simplesmente impeça o julgamento do processo no tribunal onde foi distribuído, pois a tanto se reconduz a fórmula legal “…que obstem ao julgamento do mérito da causa.”
[…]
§ 13 Pressuposto comum, é que o presidente possa conhecer das nulidades, exceções ou questões prévias no despacho de saneamento, o que significa que só pode e deve fazê-lo com base no estado do processo tal como este se apresenta no início da fase de julgamento, em face da acusação ou do despacho de pronúncia proferidos e sem que tenha lugar o apuramento de quaisquer factos neste momento processual.
§ 14 Nada impede, porém, o recurso a atos processuais incontroversamente documentados nas fases preliminares do processo (por ação ou omissão), como sejam a desistência de queixa do procedimento criminal em crime semipúblico ou a falta de constituição de assistente que tenha deduzido acusação em crime particular (nomeadamente por falta de despacho judicial sobre o requerimento respetivo), pois o nosso modelo processual assenta no livre acesso do tribunal de julgamento a todo o processo. Ponto é, repita-se, que o ato processual em causa se apresente incontroverso quanto à sua existência ou inexistência e quanto ao seu conteúdo, não implicando indagação factual, pois se assim for o processo deve prosseguir os seus termos, sem prejuízo de a questão vir a ser decidida no início da audiência, depois de cumprido o contraditório (art. 338.º), ou, em todo o caso, após a audiência ao iniciar a deliberação com vista à decisão da causa (368.º/1).”
E, como aponta Luís Lemos Triunfante10, em anotação ao artigo 338º do Código de Processo Penal, “As nulidades, questões prévias ou incidentais devem ser apreciadas tão cedo quanto possível, sendo que existem pelo menos três momentos para o efeito: i) saneamento processual (v. art. 311.º/1); ii) em sede prévia ao julgamento (art. em análise) e iii) sentença (v. art. 368.º/1). Na prática, o legislador impõe que o julgador se pronuncie sobre tais questões assim que processualmente lhe for possível”.
Seguindo a posição expressa no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.03.202011, na esteira do pensamento de Maia Gonçalves12, “As questões prévias aqui referidas, (…) podem obstar ao conhecimento do mérito. Essas questões podem ter natureza substantiva (…) ou adjetiva (incompetência do tribunal, ilegitimidade do acusador, etc). (…) As questões prévias devem ser apreciadas tão cedo quanto possível (cfr, v.g. art.º 311.º, nº 1), mas podem também ser decididas na sentença final (art.º 368º, nº 1) e assim terá que suceder necessariamente sempre que a solução estiver dependente de prova a produzir na audiência.
Concorda-se com tal entendimento:
a) a questão prévia deve ser apreciada imediatamente, mesmo antes da produção de prova, sempre que os factos relevantes para a decisão já se mostrarem estabilizados na configuração do “thema decidendum” plasmado na acusação/pronúncia.
b) sempre que a solução depende da valoração de factos externos à acusação/pronúncia e os mesmos estejam diretamente relacionados com a definição do objeto do processo, impõe-se produzir prova a respeito dos mesmos, em julgamento e – se necessário, operando os necessários procedimentos processuais relativos a uma alteração não substancial ou substancial dos factos da acusação -, somente depois, decidir.”
Ora, descendo finalmente ao caso dos autos, temos que está demonstrado que o arguido procedeu ao pagamento da quantia fixada na decisão de suspensão provisória – e fê-lo ainda antes de ter sido decidida a revogação daquela suspensão. Parece-nos manifestamente excessivo o entendimento de que, tendo o último pagamento ocorrido 13 dias após o termo do prazo de 4 meses estabelecido naquela decisão (e sem que se tenha averiguado que circunstâncias poderão ter determinado tal atraso), se deva concluir pela submissão do arguido a julgamento, valorando-se o cumprimento da injunção na medida da pena, quando é certo que o comportamento do arguido permite considerar alcançados os propósitos do instituto em causa.
O pagamento, como se disse, ocorreu. E esta é uma questão incontroversa: o Ministério Público já teve, aliás, oportunidade de exercer o contraditório (como decorre do que acima se expôs), e não questionou a existência de tal pagamento.
Por assim ser, tal cumprimento da injunção não pode deixar de ter consequências no processo.
Por outro lado, face ao que já se disse, é manifesta a inutilidade de determinar o prosseguimento dos autos para julgamento, apenas para, na respetiva fase introdutória, se determinar, então o arquivamento dos autos, com base na mencionada questão prévia.
Subscrevemos, pois, o entendimento expresso no já citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2017, quando refere: “O que ocorre, isso sim, é uma exceção dilatória inominada, que obstará a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (v. o subsidiário artº 576º, 2, do CPC).
Com efeito, verificado, embora em momento tardio, que o arguido cumprira atempadamente as injunções a que havia sido sujeito aquando da SPP, deveria o tribunal ter proferido despacho declarando tal e absolvendo-o da instância.
Nos termos do disposto no artº 282º, 4, a) do CPP, o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas «se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta» e, nos termos do disposto no nº 4 do artº 383º do mesmo CPP, o MP deduz acusação no prazo de 90 dias «a contar da verificação do incumprimento».
O prosseguimento do processo, está bom de ver, só acontecerá face ao incumprimento das injunções e regras de conduta e não de um qualquer prazo a que seja concedida natureza perentória, sem o devido apoio legal. Seu pressuposto legal é, nos termos estritos da lei, aquele incumprimento.
No nosso caso, o arguido cumpriu as injunções que lhe foram fixadas e só não demonstrou postura colaborante para fazer prova de que o fizera, quando convidado para o efeito. E daí, poderia o MP considerar que, face a tal postura, incumprira ele as injunções? Cremos que não. O que deveria ter feito era, ‘motu próprio’ e impulsionado pelo seu dever de investigação, ter solicitado a necessária informação à entidade beneficiária do pagamento ou proceder à audição do arguido. Mas não o fez.
Não podemos, deste modo, deixar que as questões de ordem formal se sobreponham às questões de fundo, de modo a fazer prevalecer a justiça material.
Verificando que o arguido cumprira as injunções que lhe haviam sido fixadas para a SPP, o juiz de julgamento deveria ter proferido despacho em que, julgando esgotado o objeto do presente processo especial, desse sem efeito a audiência de julgamento designada, absolvendo o arguido da respetiva instância. Não poderia o MP, sem previamente se certificar de que a injunção em causa fora incumprida, proferir acusação e remeter os autos a juízo.”
Face ao exposto, porque cumprida a injunção antes de revogada a suspensão provisória e determinado o consequente prosseguimento dos autos, há que declarar verificada uma exceção dilatória inominada, e, em sequência, a absolvição da instância e o arquivamento dos autos.
Em suma, tem de concluir-se pela improcedência do recurso interposto pelo Ministério Público, devendo manter-se a decisão de arquivamento, embora com diversa fundamentação.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, embora com diversa fundamentação, determinando-se o arquivamento dos autos, não ao abrigo do artigo 282º, nº 3, do Código de Processo Penal, mas por se verificar exceção dilatória inominada que acarreta a absolvição do arguido (artigo 311º, nº 1 do Código de Processo Penal).
Sem custas, por delas estar isento o recorrente.
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Lisboa, 11 de março de 2025 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
João Grilo Amaral
Ester Pacheco dos Santos
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1. Proferido no processo n.º 3/16.3PACVL.C1, relatado pelo Ex.mo Senhor Desembargador LUÍS TEIXEIRA, disponível em www.dgsi.pt.
2. Idem.
3. A correspondência foi depositada em 29.11.2023, presumindo-se a notificação efetuada no 5º dia posterior a esse depósito (cf. artigo 113º, nº 3 do Código de Processo Penal).
4. Damos aqui como adquirido – por se mostrar razoavelmente consensual na nossa jurisprudência e não ser sequer controverso nos autos – que a injunção fixada, no caso, era apenas o pagamento de uma quantia a uma IPSS. Já a obrigação de comprovar tal pagamento nos autos, como acertadamente se considerou na decisão recorrida, configura um dever acessório, processual, cujo incumprimento não é idóneo a por em causa as finalidades subjacentes ao instituto em estudo – vd., a propósito, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 09.11.2021, no processo nº 27/19.9PFSNT.L1-5, Relator: Desembargador Paulo Barreto, em ECLI:PT:TRL:2021:27.19.9PFSNT.L1.5.27/ , e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.05.2017, no processo nº 3/16.3PACVL.C1, Relator: Desembargador Luís Teixeira, em www.dgsi.pt (citado na decisão recorrida).
5. Vd. acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 05.03.2024, no processo nº 313/22.0PFAMD.L1-5, Relatora: Desembargadora Sara Reis Marques, em ECLI:PT:TRL:2024:313.22.0PFAMD.L1.5.48/ , bem como a jurisprudência e doutrina que aí se menciona: a título de exemplo, Ac RE de 21-06-2022 Processo: 276/19.0 GCSSB.E1 e de 11-05-202, Processo: 579/19.3T9EVR.E1, da RG de 11-01-2021, da RP de 09-12-2015 Processo: 280/12.9TAVNG-A.P1 e da RL de 18-05-2010, Processo:107/08.6 GACCH.L1 -5, todos disponíveis in www.dgsi.pt e, na doutrina, Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, IIº Vol, Rei dos Livros, 2004, anot. Artº 282; Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17ª ed., Almedina, 2009, anot. Art.º 282º; Maia Costa, CPP Comentado, 2014, Almedina, anot. Art.º 282º, Magistrados do Ministério Publico do Distrito Judicial do Porto, CPP Comentários e notas práticas, Coimbra Editora, art.º 282º.
6. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, págs. 1125-1127
7. Vd., a propósito, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2017, no processo nº 81/14.0GTCBR.C1, Relator: Desembargador Jorge França, e o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.03.2018, no processo nº 790/16.9PBSTB.E1, Relatora: Desembargadora Ana Bacelar, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
8. Ob. cit., págs. 1136-1137.
9. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022, págs. 41-42.
10. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022, pág. 400.
11. Processo nº 10981/17.0T9PRT.P1, Relator: Desembargador Jorge Langweg, em ECLI:PT:TRP:2020:10981.17.0T9PRT.P1.DD/
12. Código de Processo Penal Anotado – Legislação Complementar, 17ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 778, notas 2 e 3.