RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE DO PEDIDO RECONVENCIONAL
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Sumário


I - Para poder ser admitida a reconvenção deve existir uma conexão objetiva, sendo que no caso da alínea a), do número 2 do art. 266.º do Código de Processo Civil deve verificar-se uma identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da ação e da reconvenção, no caso de a reconvenção se estribar na causa de pedir da ação.
II – Já quando a reconvenção se alicerce na defesa esgrimida, a esse ato ou facto jurídico defensivo deve assistir o potencial de reduzir, modificar ou extinguir a pretensão deduzida pelo demandante para poder ser admitida.
III- A exceção de não cumprimento do contrato não vale para contratos diferentes que têm diferentes prestações correspetivas ou correlativas.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório.

EMP01..., LDA., com sede na Rua ..., ... ..., ..., intentou contra EMP02..., S.A., com sede no Lugar ..., Freguesia ..., 4770 ..., a presente ação com processo comum.
Aduziu, em suma, que:
-  A Autora forneceu à Ré produtos e prestou-lhe serviços para a linha de trabalho da Ré, relacionada com a transformação de carnes, que ascenderam a € 54.350,34 euros;
- Vencidas que se mostram as respetivas faturas, que juntou, não foram as mesmas liquidadas, pelo que deve a título de juros de mora comerciais também a importância de € 3.760,00.
Terminou pedindo que a Ré seja condenada a “pagar à Autora o montante de € 58.109,85 – cinquenta e oito mil, cento e nove euros e oitenta e cinco cêntimos, sendo de €54.350,34 euros – cinquenta e quatro mil, trezentos e cinquenta euros e trinta e quatro cêntimos, referente a capital, a que acrescem os juros de mora vencidos e vincendos até integral e efetivo pagamento, juros esses que à presente data ascendem ao montante de 3.760,00€– três mil setecentos e sessenta euros.”.
 A Ré contestou e deduziu reconvenção, aduzindo para tanto, em suma, o seguinte:
- Não nega que as faturas apresentadas pela Autora sejam devidas, pois os produtos e serviços aí melhor identificados e cobrados foram pedidos pela Ré e foram fornecidos pela Autora;
- Foi celebrado um acordo entre as partes para a criação de uma linha de ultracongelados da Ré, a qual foi necessitando de ajustes e alterações, tendo-lhe pago € 666.429,38 por uma linha de produção com tecnologia inovadora, altamente funcional e produtiva, com resultados extraordinários que nunca lhe foi entregue;
- Até á presente data, a linha de produção ainda não foi concluída, nem funciona conforme a proposta apresentada pela Autora e aceite e paga integralmente pela Ré;
- Tendo a Ré continuado a trabalhar com uma linha obsoleta, com uma cadência não muito diferente da que anteriormente tinha;
- Descreve ainda os prejuízos alegadamente sofridos;
- Entende a Ré que existe uma exceção de não cumprimento, não devendo ser obrigada ao pagamento das faturas peticionadas pela Autora enquanto a mesma não cumprir com a instalação da linha de produção acordada.
Conclui pedindo que a ação seja julgada improcedente e que no que concerne ao pedido reconvencional a Ré seja condenada a concluir a instalação da linha de produção, com a montagem da encartonadora e, programada para produzir à cadência que foi acordada, no pagamento da importância global de € 920.029,50, acrescida de juros de mora comerciais desde julho de 2021 até efetivo cumprimento da obrigação e ainda a condenação da Autora em todos os prejuízos que venham a ser causados à Ré desde a data da reconvenção até á decisão da causa.
A Autora apresentou réplica em que, na parte que ora importa considerar, pugnou pela inadmissibilidade da reconvenção, porquanto, em sinopse:
- A Ré deduziu pedido reconvencional requerendo que a Autora seja condenada no pagamento de indemnização, consequência direta e necessária de alegado incumprimento contratual de um contrato datado de 29/10/2020, que nada tem a ver com as faturas peticionadas, sendo contratos distintos pelo que não se verificam os pressupostos do art. 266.º, n.º 2 do Código de Processo Civil;
- Também pelas mesmas razões não pode proceder a exceção de não cumprimento, sendo que de todo modo impugna tal matéria bem como a constante da pretensão reconvencional.
Notificada a Ré para se pronunciar quanto à alegada inadmissibilidade do pedido reconvencional, pela mesma foi dito, em suma, que:
- O mesmo é admissível, porquanto todos os produtos foram negociados ao mesmo tempo, sendo que seriam entregues e instalados em diferentes momentos, sendo o que está aqui em causa é a relação contratual entre as partes;
- Acresce que a Ré não pediu a compensação de créditos, mas pretende que se discuta o crédito peticionado pela Autora e pretende que se discuta o reconhecimento do seu crédito;
- A reconvenção é admissível nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 266.º do Código de Processo Civil porque o pedido do Réu emerge de facto jurídico que serve de fundamento à defesa.
Concluiu pedindo que seja proferido despacho saneador a admitir a reconvenção.
A 5 de junho de 2024 foi proferida decisão a não admitir a reconvenção e sentença em que se julgou não estarem verificados os pressupostos da exceção de não cumprimento do contrato e se julgou a ação totalmente procedente, condenando-se a Ré no peticionado pela Autora.
Inconformada com estas decisões, a Ré interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…)

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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo caso fosse prestada caução, como requerido pela Recorrente. Uma vez que a Recorrente, notificada para tanto, não prestou a fixada caução foi atribuído efeito devolutivo ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela Recorrente, que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635.º, n.ºs 4 e 5 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, cumpre apreciar se a reconvenção é admissível e em todo o caso se verificam os requisitos para poder ser considerada a exceção de não cumprimento do contrato.
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III. Fundamentação

Os factos a considerar são os que resultam do relatório, sendo ainda a considerar a seguinte a factualidade dada por provada e não provada na sentença recorrida:
“1.A Autora tem como objeto a "atividade de comércio e reparação de máquinas de costura industriais, domésticas, acessórios e utensílios têxteis; comercio e reparação de máquinas de corte automático CNC e Sistemas CAD/CAM. Comércio de todo o tipo de Máquinas para a indústria alimentar, farmacêutica e cosmética. Produção e desenvolvimento de Software de manipulação industrial. Produção de Gases medicinais e industriais. Compra de insolvências. Fabricação de máquinas de acondicionamento e de embalagem. Fabricação de balanças e de outro equipamento para pesagem. Fabricação de máquinas para as indústrias alimentares, das bebidas e do tabaco. Fabricação de máquinas para as indústrias têxtil, do vestuário e do couro. Fabricação de outras máquinas diversas para uso não específico. Comércio por grosso de outras máquinas e equipamentos. Aluguer de outras máquinas e equipamentos. ", ao qual corresponde o CAE principal de 46640-R3.
2. A ré dedica-se ao comércio por grosso, a indústria e transformação de carnes, a desossa e desmembramento de carcaças animais, o fatiamento de peças de animais e, a preparação, a fabricação e o acondicionamento de produtos à base de carne (inclui aves), obtidos pelos processos de aquecimento, fumagem, secagem, salga ou outros processos físico-quimicos, assim como preparados de carne refrigerados ou congelados.
3. No exercício normal da sua atividade, a Autora prestou e vendeu à requerida, a pedido e sob encomenda desta, os serviços e bens constantes e descritos nas faturas números:
- Fatura n.º ...4, no valor de €389,66 euros – trezentos e oitenta e nove euros e sessenta e seis cêntimos, emitida a ../../2021, com data de vencimento a ../../2021 e referente a reparação de equipamentos alimentares Autom bem como da respetiva deslocação;
- Fatura n.º ...9, no valor de €627,30 euros – seiscentos e vinte e sete euros e trinta cêntimos, emitida a ../../2021, com data de vencimento a ../../2021 e referente a Pack 2 baterias Robot Kuka KRC4;
- Fatura n.º ...58, no valor de €22.140,00 euros – vinte e dois mil cento e quarenta euros, emitida a ../../2021, com data de vencimento a 29/07/2021 e referente a Detetor de Metais CEIA THS/MS21 ....
- Fatura n.º ...60, no valor de €25.489,29 euros – vinte e cinco mil, quatrocentos e oitenta e nove euros e vinte e nove cêntimos, emitida a ../../2021, com data de vencimento a 30/07/2021 e referente a Detetor de Metais CEIA THS/MS21 ....
- Fatura n.º ...43, no valor de €4.858,50 euros – quatro mil oitocentos e cinquenta e oito euros e cinquenta cêntimos, emitida a ../../2021, com data de vencimento a 11/09/2021 e referente a Alterar Robots na Linha de hambúrgueres (FP 2020B/108). - Fatura n.º ..., no valor de €315,37 euros – trezentos e quinze euros e trinta e sete cêntimos, emitida a ../../2022, com data de vencimento a 04/02/2022 e referente a reparação de equipamentos alimentares Autom, bem como da respetiva deslocação.;
- Fatura n.º ...3, no valor de €50,77 euros – cinquenta euros e setenta e sete cêntimos, emitida a ../../2022, com data de vencimento a 13/02/2022 e referente a 4 jarros de 2l material detetável e 4 jarros brancos 1l material detetável, levantados nas instalações de A.
- Fatura n.º ...71, no valor de €479,45 euros – quatrocentos e setenta e nove euros e quarenta e cinco cêntimos, emitida a ../../2022, com data de vencimento a 14/05/2022 e referente a 20 molas de sacos material detetável (...) aos quais acresceu portes.
4. Os serviços e os produtos foram devidamente prestados/vendidos e sem reclamações.
5. O valor do fornecimento dos produtos e da prestação de serviços perfez o total de €54.350,34 euros – cinquenta e quatro mil, trezentos e cinquenta euros e trinta e quatro cêntimos, com IVA incluído.
6. Montantes que deveriam ter sido pagos na data vencimento das citadas faturas.
7. A A. interpelou a R. para pagar tais quantias, através de carta simples, correio eletrónico, chamada telefónica e carta Registada que foi recebida, a qual não efetuou, até ao momento, o pagamento de tais importâncias.
Factos não provados:
- que apresentem os produtos fornecidos e serviços prestados, em causa nas facturas descritas nos factos provados, alguma desconformidade.”.
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Delimitadas que estão as questões a decidir, é o momento de a apreciar.
A reconvenção constitui um pedido deduzido contra o Autor por iniciativa do Réu, trata-se assim em substância de uma ação cruzada com o a ação proposta pelo Autor.
“É realmente este o verdeiro significado da reconvenção: acção proposta pelo réu contra o autor, a qual se enxerta na que o autor propusera contra o réu.[1]”.
Porém, sendo a dedução de reconvenção facultativa, a mesma não pode ser admitida sem que haja qualquer conexão com o objeto da ação já que:
“A reconvenção incondicionada abriria portas a quaisquer pedidos formulados pelo réu contra o autor, pedidos que o tribunal teria que conhecer concomitantemente com o pedido formulado por este, que veria assim, o processo marchar morosamente, talvez com inevitáveis e irreparáveis repercussões sobre a sua esfera jurídica.[2]”.
Por isso, a apresentação de reconvenção sendo facultativa não é livre, antes está condicionada a regras materiais e formais que têm por  escopo compatibilizar o princípio da economia processual com o da celeridade, sendo que podemos encontrar os requisitos de ordem material no art. 266.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, pressupondo as hipóteses aí gizadas uma determinada conexão com a ordem jurídica invocada pelo autor[3].
De acordo com o art. 266.º do Código de Processo Civil, na parte que ora importa reter:
“1 - O réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.
2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos:
a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
(…)”.
No caso dos autos, conforme também expressamente refere a Apelante, a hipótese em causa é a gizada na alínea a) do número 2 do aludido normativo, mais especificamente, na tese da Recorrente, a reconvenção seria materialmente admissível por emergir do facto jurídico que serve de fundamento à defesa.
Neste último caso terá sempre de interceder uma conexão entre o pedido reconvencional e a defesa do Réu[4].
Porém, um pedido reconvencional do Réu apenas pode considerar-se emergente de determinado ao ou facto jurídico quando tem o seu fundamento nesse ato ou facto e o pedido por si deduzido não é mera consequência necessária da defesa por si apresentada. Isto é, está mais para além da defesa e assumiu uma posição de ataque. Tem pois de ser um pedido substancial e não um pedido que nada acrescenta à defesa[5].
Para poder ser admitida a reconvenção deve existir uma conexão objetiva, sendo que no caso da alínea a), do número 2 do art. 266.º do Código de Processo Civil deve verificar-se uma identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da ação e da reconvenção, no caso de a reconvenção se estribar na causa de pedir da ação. Já quando a reconvenção se alicerce na defesa esgrimida, a esse ato ou facto jurídico deve assistir o potencial de reduzir, modificar ou extinguir a pretensão deduzida pelo demandante[6].
 “Em primeiro lugar, pela alínea a), o pedido reconvencional pode fundar-se na mesma causa de pedir - ou em parte a mesma causa de pedir - que o pedido do autor; pedida, por exemplo, a condenação do réu no pagamento do preço da venda, o réu pede a condenação na entrega da coisa: o mesmo contrato é a causa do pedido do autor e do réu.
Em segundo lugar, pela mesma alínea a), o pedido reconvencional pode fundar-se nos mesmos factos - ou parcialmente os mesmos factos - em que o próprio réu funda uma excepção peremptória ou com os quais indirectamente impugna os alegados na petição inicial. Pedida, por exemplo, a sua condenação no pagamento do remanescente do preço da empreitada, o réu excepciona a anulabilidade do contrato por dolo e pede a condenação do autor na restituição da parte do preço que pagou e em indemnização, ou excepciona o incumprimento do contrato, resolve-o e pede a condenação do autor na restituição do que pagou e em indemnização: os factos que fundam, respectivamente, a anulabilidade do contrato e o seu incumprimento pelo autor constituem a causa de pedir da reconvenção.[7]”.
  Importará, assim, indagar se o pedido reconvencional emerge do ato ou facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa, sendo que ao caso vertente importa considerar esta última situação, conforme pretende a Apelante, sendo que para ser admitida pode conter matéria de exceção perentória ou impugnação especificada dos fundamentos da ação, mas em qualquer caso é sempre necessário que tenha o referido efeito útil defensivo, hábil a reduzir, modificar ou extinguir a pretensão da demandante, sendo essa a caraterística que gera a conexão objetiva nos pedidos cruzados, sendo, de todo o modo, mais evidente na defesa por exceção do que na defesa por mera impugnação.
Ora, nestes autos peticionou a demandante a condenação da Ré por virtude do fornecimento de produtos e prestação de serviços para a sua linha de trabalho, relacionada com a transformação de carnes, juntando as respetivas faturas, que não se mostravam liquidadas no data de vencimento, sendo que tal matéria logrou total adesão de prova, conforme resulta dos itens 3 a 6 dos factos provados na sentença recorrida, supra transcritos.
E ficaram provados porque a aqui Apelante não excecionou ou impugnou tal factualidade, antes pelo contrário, aceitou que tais bens e serviços lhe foram fornecidos e prestados, não tendo sido liquidadas as atinentes faturas, conforme ressalta dos arts. 11.º e 12.º da petição inicial.
Já a causa de pedir da reconvenção suporta-se num alegado incumprimento contratual por parte da Autora de um outro contrato celebrado entre as partes, que aliás, a Ré, segundo refere e a A. não impugna, já liquidou na totalidade.
Ora, aqui chegados e munidos dos supra explicitados contributos doutrinais e jurisprudenciais, temos que a ser admitido e a triunfar o pedido reconvencional deduzido, tal em nada buliria com o pedido da demandante, que permaneceria intocado pois que, aliás, ressalte-se e repita-se, a Apelante o aceita pacificamente. Ou seja, a Recorrente não estriba a sua pretensão reconvencional, obviamente na pretensão deduzida pela demandante, pois que a aceita, mas também não a sustenta na defesa por si apresentada, pois que a reconvenção em nada contende com a pretensão da Autora, sendo que, como vimos, para ser admitida devia conter matéria de exceção perentória ou impugnação especificada dos fundamentos da ação, sendo que em qualquer caso seria sempre necessário que tivesse referido efeito útil defensivo, apto a reduzir, modificar ou extinguir a pretensão da demandante, sendo essa a caraterística que gera a conexão objetiva nos pedidos cruzados.
A reconvenção deduzida consubstancia não um pedido cruzado, mas sim um pedido paralelo à pretensão deduzida pela Autora, não sendo por isso subsumível a qualquer das alíneas do n.º 2 do art. 266.º do Código Processo Civil e especificamente à sua alínea a), conforme pretendia a demandante, pois que, recorrendo aos termos legais, o pedido do Réu não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa.
Ou seja, como bem se disse na decisão recorrida “ (…) a procedência da reconvenção em nada extinguiria ou modificaria o direito da A., em receber o preço dos equipamentos que forneceu à R. e serviços que lhe prestou e que aqui peticiona, tratando-se de contratos distintos, concluindo-se, assim, não estarem preenchidos requisitos de admissibilidade do pedido reconvencional previstos na alínea a), do n.º 2, do artigo 266.º do CPC, nem de qualquer outras das alíneas do preceito (…)”.
Assim sendo improcede, nesta parte, o recurso.
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Passemos então a apreciar o recurso quanto à matéria da alegada exceção de não cumprimento do contrato que não foi considerada na sentença recorrida porquanto “tratando-se de negócios/contratos distintos a exceptio não tem aplicação, não podendo a R. recusar pagar estas facturas com fundamento no não cumprimento pela A. de outro contrato entre as partes celebrado, atinente com a linha de produção com montagem de encartonadora e, programada para produzir à cadência.”.

Dispõe o art. 428.º do Código Civil que:

“1. Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
2. A excepção não pode ser afastada mediante a prestação de garantias.”.

A exceptio non adiplempleti contractus a que se reporta o transcrito normativo pode ocorrer nos contratos com prestações correspetivas ou correlativas, isto é interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra. É o que sucede nos contratos bilaterais ou sinalagmáticos e vale não só para a falta integral de cumprimento como também para o cumprimento apenas parcial ou defeituoso[8].
Embora o pressuposto seja a de que não estejam estabelecidos prazos distintos para o cumprimento das prestações, este pressuposto carece de precisão, já que o seu verdadeiro sentido é o de que quem invoca a exceção não se encontre adstrito a cumprir antes da contraparte, pelo que os prazos diversos apenas obstam à invocação da exceção pelo contraente que primeiro deve efetaua a prestação, mas nada obstaculiza o outro de o fazer[9].
No caso em apreço, como a própria Ré reconhece, temos que a Autora cumpriu integralmente as prestações, consubstanciadas em fornecimento de produtos e prestações de serviços a que se reportam os valores por si reclamados, pelo que em relação a tais contratos não pode ser invocada a exceção de não cumprimento do contrato, pois, repete-se, a Recorrida cumpriu integralmente com as suas obrigações.
O que a Recorrente pretende, sem qualquer base legal, é que a exceção de não cumprimento valha para distintos contratos, o que evidentemente não tem qualquer sentido, não podendo assim recusar a sua prestação com base num alegado incumprimento do contrato de instalação da linha de produção.
 Em suma, a exceção de não cumprimento do contrato não vale naturalmente para contratos diferentes que têm diferentes prestações correspetivas ou correlativas, pelo que claudica também nesta parte o recurso interposto pela Ré.
Improcede assim o recurso interposto.
As custas serão suportadas pela Apelante, nos termos do art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
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IV. Decisão

Perante o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, conformando-se a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.
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Guimarães, 6 de março de 2025

Relator: Luís Miguel Martins
Primeira Adjunta: Anizabel Sousa Pereira
Segunda Adjunta: Maria Amália Santos


[1] Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º, pág. 96.
[2] Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, pág. 172.
[3] Cfr. neste sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., pág. 335.
[4] Cfr. a este respeito Elias da Costa, Silva Costa e Figueiredo de Sousa, Código de Processo Civil, Anotado e Comentado, 3.º Volume, seguido de uma multiplicidade de exemplos, a págs. 406 e segs..
[5] Alberto dos Reis, ob. op. cit., págs. 99 e segs..
[6] Cfr. Acordãos da Relação de Guimarães de 28/06/2018, processo 2010/12.6.TBGMR-E.G1, Relator José Alberto Moreira Dias, de 10/07/2018, processo 1630/17.7T8VRL-A.G1, Relatora Maria João Matos,  de 06/05/2021, processo 2103/19.9T8VNF-A.G1, Relator Jorge Teixeira, de 15/06/2022, processo 182/20.5T8CBT.G1, Relatora Conceição Sampaio e de 20/10/2022, processo 5870/20.3T8BRG-B.G1, Relatora Eugénia Pedro, todos consultáveis in  www.dgsi.pt  e Jacinto Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, volume II, 3.ª ed., pag. 32.
[7] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª edição, págs. 531 e 532.
[8] Cfr.Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, págs. 405 e 406.
[9] Cfr. Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 7.ª edição, pág. 311.