ÓNUS DA PROVA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR
JUROS LEGAIS
Sumário

I - O critério de distribuição do ónus da prova (v. art. 342º, do Código Civil) tem por base a relação material e orienta-se em função da natureza dos factos alegados, sendo que, tendencialmente, o direito invocado na ação é-o pelo Autor, a este competindo a prova dos factos constitutivos do seu aparecimento (nº1), e os factos impeditivos (aqueles que, contemporâneos à formação do direito, obstam ao seu aparecimento), modificativos (os que alteram o direito depois de constituído) e extintivos (os que fazem cessar a produção dos seus efeitos) do direito alegado são pelo Réu (nº2).
II - Alegada falta de causa para a transferência bancária verificada de conta da Autora para conta bancária do Réu, negando este tal falta, é à Autora que cabe a prova da afirmada falta de causa, facto constitutivo do seu direito (nº1, do art. 342º e art. 473º, ambos do Código Civil).
III - Provada a deslocação patrimonial e a ausência de causa justificativa da mesma, cabe, através do recurso ao instituto do enriquecimento sem causa, repor, na justa medida, o equilíbrio.
IV - Na ação de restituição com base no enriquecimento sem causa, os juros legais da dívida pecuniária em que se traduza a obrigação de restituir são devidos a partir do momento de constituição do devedor em mora em relação à obrigação de restituição. E fica o devedor constituído em mora a partir da citação para a ação de restituição ou, em momento anterior, em que passe a saber do enriquecimento sem causa (sendo este facto, a ter de ser alegado, de mais difícil prova para o credor) - cfr. art. 480º, do Código Civil, a consagrar hipóteses de constituição em mora do devedor.

Texto Integral

Processo nº 428/23.8T8ETR.P1

Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível do Porto - Juiz 4




Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais
2º Adjunto: Des. Carla Jesus Costa Fraga Torres





Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

Recorrente: o Réu, AA

Recorrida: a Autora, BB


BB propôs a presente ação declarativa, com processo comum, contra AA, pedindo a condenação do Réu a restituir-lhe a quantia de € 14.975,00 acrescida de juros, à taxa legal, a contar de 20/10/2022, data em que este recebeu na sua conta bancária a referida importância por não existir motivo justificativo para o R. fazer sua a referida importância já que nunca falou com o Réu, não o conhece nem celebrou com ele qualquer negócio, sequer o celebrou com terceiro.
O Réu contestou, defendendo-se por exceção, ao invocar a incompetência territorial do tribunal, a ineptidão da petição inicial e a ilegitimidade passiva, e por impugnação, ao negar factos alegados pela Autora, sustentando não ter feito sua a importância que caiu na sua conta bancária, apenas tendo sido facilitador do recebimento daquela importância, que entregou à pessoa que lhe solicitou o favor de a receber na sua conta bancária.
A Autora apresentou resposta pugnando pela improcedência das invocadas exceções e pela condenação do Réu conforme peticionado.
Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador a julgar as invocadas exceções improcedentes, tendo sido fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
Pede a Autora a condenação de Réu numa indemnização não inferior a 2.000,00€, por litigar de má fé, deduzindo oposição com base em factos falsos e ocultando factos essenciais, impedindo a descoberta da verdade e a realização da justiça.
Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.


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Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, decido julgar a presente acção procedente, por provada, e em consequência condenar o R. a restituir à A. a quantia € 14.975,000 (catorze, novecentos e setenta e cinco euros), acrescida dos juros, à taxa de 4%, desde 22/10/2022 até integral pagamento.
Decido igualmente condenar o R. como litigante de má fé na multa de 6 (seis) UC e a indemnizar a A. dos prejuízos por ela sofridos, designadamente o reembolso das despesas a que a má-fé do litigante a tenha obrigado, incluindo os honorários do seu mandatário.
Custas pelo R. (art.º 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC)”.

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Apresentou o Réu recurso de apelação pugnando por que seja concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, se revogue a sentença recorrida, seja a mesma substituída por outra que absolva o Recorrente dos pedidos contra ele formulados e se condene a Recorrida como litigante de má-fé, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

(…)


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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Pronunciou-se o Tribunal a quo no sentido de não padecer a sentença das arguidas nulidades.

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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1ª- Da nulidade da sentença, por padecer de insuficiência de fundamentação de facto e contradição entre fundamentos e decisão, vícios a que aludem as alíneas b) e c), do nº1, do art. 615º, do CPC;
2ª - Da impugnação da decisão de facto:
- Da observância dos ónus de impugnação da decisão de facto;
- Do mérito da impugnação da decisão de facto/modificabilidade de tal decisão:
. Critérios do julgamento (âmbito da apreciação e autonomia decisória).
. Da modificabilidade da decisão de facto.
3ª- Quanto à modificabilidade da decisão de mérito:
3.1- Da obrigação de restituição com base no enriquecimento sem causa do Réu (ónus de alegação e ónus da prova);
3.2. Da mora do devedor e do momento de constituição em mora;
3.3- Da litigância de má fé do Réu;
3.4 – Da litigância de má fé da Autora, questão nova suscitada nas alegações de recurso.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Foram os seguintes os factos considerados provados com relevância para a decisão pelo Tribunal de 1ª instância (transcrição):

1) No início do mês de outubro de 2022, a Autora andava à procura de uma solução para adquirir ou construir uma habitação, pois estava a residir com os seus pais;

2) No sítio online www.olx.pt visualizou um anúncio de venda de casas pré-fabricadas (estrutura móvel) que se situava em ..., ..., Porto;

3) Tendo contactado o anunciante, que usava a designação comercial de “A...”, combinou visitar as instalações do mesmo, para ver e aí avaliar melhor os produtos que este tinha para venda;

4) Ali chegada, em ..., foi recebida por uma representante do comerciante, que lhe mostrou os vários produtos que tinha disponíveis;

5) A autora mostrou-se interessada num dos produtos, mas desde logo manifestou junto da representante do estabelecimento que a eventual aceitação e concretização do negócio estaria sempre dependente da verificação e conformidade de todos os requisitos necessários à implantação da casa móvel no seu terreno;

6) A representante do estabelecimento informou a Autora de que, para reservar a casa pela qual se interessou e garantir que não seria vendida a outra pessoa, teria de efetuar uma transferência bancária no valor de metade do seu preço;

7) Esclareceu, ainda, que, caso de o negócio não se viesse a concluir, por qualquer motivo, seriam devolvidas as quantias entregues;

8) Nenhum contrato de compra e venda foi realizado entre as partes e nada foi assinado;

9) Nem foi firmado nenhum negócio entre as partes para a compra da dita “casa móvel” uma vez que a A. teria de aferir das condições que eram necessárias para se poder concluir o negócio;

10) No dia 20/10/2022 a Autora efetuou na sua agência bancária do Banco 1..., sito na ..., uma transferência bancaria a partir da sua conta de depósitos à ordem com o IBAN  ...92, no valor de 14.975,00€ para a conta bancária indicada pela representante do estabelecimento com o IBAN nº  ...14, cujo titular é o Réu;

11) Esta conta bancária titulada pelo Réu está aberta junto do Banco 2... S.A.;

12) A Autora desconhece a relação do Réu com o estabelecimento comercial onde estavam os produtos e a representante/vendedora que forneceu o número da conta bancária;

13) Após diligências para apurar da viabilidade da implantação do produto “casa móvel” no terreno onde pretendia, a A. apurou que tal implantação se mostrava impossível e como tal não era viável prosseguir o negócio;

14) Tendo informado a representante do estabelecimento que tinha desistido da compra da casa móvel;

15) E que, tal como acordado entre as partes anteriormente, pretendia a devolução do valor que havia entregue no dia 20/10/2022;

16) Apesar das inúmeras insistências da Autora, a referida representante do estabelecimento comercial nunca mais respondeu aos pedidos de devolução da quantia entregue;

17) E nunca devolveu qualquer valor à Autora;

18) A Autora nunca falou com o Réu e não o conhece;

19) A Autora nunca fez qualquer negócio com o Réu;

20) Mas o Réu recebeu na referida conta bancária do Banco 2... a importância de 14.975,00€, que fez sua.


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2. FACTOS NÃO PROVADOS

Não resultaram provados outros factos com relevo para a boa decisão da causa, designadamente que:

a) A representante do estabelecimento informou a Autora que para início de negociações, esta teria de efetuar uma transferência bancária no valor de metade do imóvel que eventualmente pretenderia adquirir, para comprovar da veracidade da intenção de negociar;

b) Na altura referida em 9) ficou acordado entre as partes prosseguir as negociações;

c) Foi em 03/11/2022 que a Autora informou a representante do estabelecimento do referido em 14);

d) O Réu não é a pessoa responsável pela venda da dita “casa móvel”;

e) O Réu apenas surge como facilitador do recebimento da quantia pecuniária em causa;

f) O Réu entregou a quantia de €14.975,00, à pessoa que lhe solicitou o favor de receber a sobredita quantia.


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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1º- Da nulidade da sentença por: insuficiência de fundamentação de facto, contradição entre fundamentos e decisão e omissão de pronúncia.

Arguiu o Réu/Apelante, no recurso que apresentou, a nulidade da sentença por a mesma padecer dos vícios de falta de fundamentação e de contradição entre os fundamentos e a decisão, previstos nas als b) e c), do nº1, do art.º 615.º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência.
Analisemos, em primeiro lugar, das invocadas nulidades, pois que as mesmas contendem com a validade da própria decisão.
Começa por se referir que as “Causas de nulidade da sentença”, vêm taxativamente consagradas no referido preceito que estabelece:
“1 - É nula a sentença quando:
… b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”.
As nulidades da sentença são, assim, tipificados, vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites, sendo vícios do silogismo judiciário inerentes à sua formação e à harmonia formal entre as premissas e a conclusão, que não podem ser confundidas com erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito[1]. Trata-se de um error in procedendo, nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in judicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito.
E, como vícios intrínsecos daquela peça processual, as nulidades da sentença são apreciadas em função do texto da sentença e do discurso lógico que nela é desenvolvido, não podendo ser confundidas com erros de julgamento de facto nem com erros de aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito. Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas e/ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, antes o mérito da relação material controvertida, nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso[2].
Os vícios da sentença são, portanto, aqueles que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”[3] ou condenar ultra petitum, tendo o julgador de limitar a condenação ao que, concretamente, vem peticionado, em obediência ao princípio do dispositivo.
Os referidos vícios respeitam à “estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)”[4].

Analisemos os invocados vícios, que se reportam quer à estrutura quer aos limites, exarando-se, desde já, que, fundamentada é a decisão, quer de facto quer de direito, consequente com os fundamentos, não contendo qualquer ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível.
Sendo frequente a confusão entre a nulidade da decisão (que a proceder conduz à anulação da sentença) e a discordância do resultado obtido, cumpre reforçar e deixar claro que os vícios da sentença não podem ser confundidos com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito, estes decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou aplicação do direito (error juris) de forma que o decidido não corresponde à realidade normativa (que, na procedência, conduzem à alteração da decisão da matéria de facto e/ou à revogação da decisão).
E, com efeito, “Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607-3). Há nulidade (no sentido de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão (ac. do STJ de 17.10.90, Roberto Valente, AJ, 12, p. 20: constitui nulidade a falta de discriminação dos factos provados). Não a constitui a mera deficiência de fundamentação (ac. do TRP de 6.1.94, CJ, 1994, I. p 197: a simples indicação do preceito legal aplicável constitui fundamentação suficiente da decisão…”[5].
Assim, “é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito ou que se caracterize pela sua ininteligibilidade, previsões que a jurisprudência tem vindo a interpretar de forma uniforme, de modo a incluir apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão (STJ 2-6-16,781/11).” [6].
Deste modo, importa distinguir entre erros de atividade ou de construção da sentença, geradores de nulidade a que se reporta aquele art. 615º, n.º 1, dos erros de julgamento, que apenas afetam o valor doutrinal da decisão, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada[7] atacáveis em via de recurso e não determinativos daquela invalidade.
A deficiente fundamentação, em que apenas se verifica uma insuficiente ou errada análise das provas produzidas ou uma indevida enunciação e interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, não constitui omissão de fundamentação, determinativa de nulidade da sentença, mas mero erro de julgamento, atacável e sindicável em via de recurso[8].
E nos casos em que o vício da deficiente fundamentação se coloque ao nível da decisão sobre a matéria de facto, esse vício tem de ser solucionado mediante as regras próprias enunciadas nos n.ºs 1 e 2 do art. 662º.
Quanto ao vício consagrado na al. c), os fundamentos estarem em oposição com a decisão ou ocorrer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, cumpre referir que “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial (art. 186-2-b)”[9].
Verificando-se contradição entre os fundamentos e a decisão quando no raciocínio do julgador existe vício tal que apontando a fundamentação num sentido a decisão segue em sentido oposto, pelo menos diferente, constata-se que no caso a decisão se orienta no mesmo sentido da fundamentação.
A apontada nulidade não se verifica no caso pois que nenhuma oposição entre os fundamentos e a decisão se verifica, antes os fundamentos aduzidos conduzem, necessariamente, à decisão, que de ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível não padece, antes a mesma tem um só sentido e é clara, evidente e bem percetível, prendendo-se a questão suscitada, antes com o mérito que, adiante, será objeto de reapreciação.
Contradição que possa existir entre factos provados e factos não provados, que se não vislumbra, nunca poderá constituir causa de nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão, pois esta nulidade apenas existe quando a contradição resulta entre fundamentação e decisão e não em caso de incorreta decisão, por insuficiência, excesso, omissão ou deficiente apreciação, sobre a matéria de facto.
Como se decidiu no Ac. do STJ de 22.02.2019, proc. 19/14.4T8VVD.G1.S1, consultável in www.dgsi.pt, “A nulidade ancorada na ambiguidade ou obscuridade da decisão proferida, remete-nos para a questão dos casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando a decisão, em qualquer dos respetivos segmentos, permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade)”, sequer vindo suscitado erro de construção do silogismo judiciário, mas diferente valoração e opinião sobre a prova produzida, questão a prender-se com erro de julgamento, nunca com a construção lógica da sentença, que de ambiguidade ou obscuridade, que a torne ininteligível, nunca pode ser considerado padecer.
Não padece, pois, a decisão dos apontados vícios formais, que improcedem.

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2º. Da reapreciação da decisão da matéria de facto
Analisemos, agora, a impugnação da decisão de facto para que, ante a definitiva definição dos contornos fácticos do caso, possamos entrar na reapreciação da decisão de mérito.
Verifica-se que, para tanto, o Réu apresentou alegações, observando os ónus de alegar e de formular conclusões, consagrados no nº 1, do artigo 639º, e deu cumprimento aos ónus impostos pelo nº1 e 2, do artigo 640.º, referindo os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados (e tal é efetuado nas conclusões, assim delimitado estando o âmbito do recurso na vertente da impugnação da matéria de facto), indicando elementos probatórios a conduzirem à alteração dos pontos impugnados nos termos por si propugnados e a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida e exarando, ainda, as passagens da gravação em que fundamenta o recurso, preenchidos se mostrando os pressupostos de ordem formal para se proceder à reapreciação da decisão de facto, os requisitos habilitadores a tal conhecimento.
Tem de se entender que o Recorrente, ao cumprir esses ónus, circunscreveu o objeto do recurso no que concerne à matéria de facto, nos termos exigidos pelo legislador e interpretados pelos Tribunais Superiores, sendo, por isso, de apreciar, o recurso, na vertente de mérito, da impugnação.

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Vejamos, agora, os parâmetros e balizas do julgamento a efetuar por este tribunal, para melhor perceção do âmbito da decisão a proferir.
Em matéria de alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, para o caso de erro, estatui o nº1, do art. 662º, com a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto” que Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto: “… se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, podendo, como referido, ainda, a decisão da matéria de facto sofrer alterações no caso de divergência na apreciação probatória, sendo que, “dentro dos limites definidos pelo recorrente, a Relação goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais. Ou seja, (…) a Relação não está limitada à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, devendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (art. 413º), sem exclusão sequer da possibilidade de efetuar a audição de toda a gravação se esta se revelar oportuna para a concreta decisão (cf. Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 288-293)”.[10].
Os objetivos visados pelo legislador com o duplo grau de jurisdição em matéria de facto “designadamente quando esteja em causa decisão assente em meios de prova oralmente produzidos, determinam o seguinte: reapreciação dos meios de prova especificados pelo recorrente, através da audição das gravações (…); conjugação desses meios de prova com outros indicados pelo recorrido ou que se mostrem acessíveis, por constarem dos autos ou da gravação; (…) formação de convicção própria e autónoma quanto à matéria de facto impugnada, introduzindo na decisão da matéria de facto que se considere erradamente julgada as modificações que forem consideradas pertinentes (cf. STJ 14-5-15, 260/70, STJ 29-10-13, 298/07, STJ 14-2-12, 6823/09 e STJ 16-12-10, 170/06). Cf. ainda Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, pp. 187-189, no sentido de que a Relação pode fazer uso de presunções judiciais que o Tribunal de 1ª instância não utilizou, bem como que alterar a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida com base em presunções judiciais”[11].
Deste modo, “a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o Tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levaram a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância[12], sendo que “a Relação goza dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal a quo, sem exclusão dos que decorrem do princípio da livre apreciação genericamente consagrado no art. 607º, nº5, e a que especificamente se alude no arts. 349º (presunções judiciais), 351º (reconhecimento não confessório), 376º, nº3 (certos documentos), 391º (prova pericial) e 396º (prova testemunhal), todos do CC, bem assim nos arts. 466º, nº3 (declarações de parte) e 494º, nº2 (verificações não qualificadas) do CPC”[13].
Cumpre referir que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, deve obedecer ao seguinte: i) o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente (a menos que se venha a revelar necessária a pronúncia sobre facticidade não impugnada para que não haja contradições); ii) sobre essa matéria, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento; iii) nesse novo julgamento, o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes). Dentro destes parâmetros, o Tribunal da Relação, como verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, e, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas se distinguindo dele quanto a fatores de imediação e de oralidade.
Assim, deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação a, após audição da prova gravada e da reanálise de toda a prova convocada para a decisão dos concretos pontos impugnados, concluir, com a necessária segurança, no sentido de os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova, apontarem para direção diversa e justificarem, objetivamente, outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.
E cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação com os demais, sendo que o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida, pelo que toda ela tem de ser revisitada.

Ponderando os critérios e balizas que deverão conduzir o julgamento da Relação e os argumentos apresentados pelo apelante e debruçando-nos sobre a parte da sentença onde vem motivada a decisão de facto, entendemos não se justificar alterar a decisão de facto pelas razões que se passam a expor.


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Das alterações ao decidido pelo tribunal de primeira instância.

Revisitada a prova, adianta-se não ser a prova produzida, a indicada pelo apelante e toda a restante, suficiente para dar uma resposta diversa aos factos impugnados e não pode deixar de se considerar que bem decidiu o Tribunal a quo a matéria que, agora, vem impugnada, não podendo, por isso, a impugnação da decisão de facto deixar de improceder.
Analisemos.

Impugna o Réu/apelante a decisão da matéria de facto pretendendo que, face ao depoimento prestado pela sua testemunha CC, que corroborou o seu depoimento de parte não confessório, e porque as declarações de parte da Autora e o depoimento das testemunhas desta não foram credíveis nem convincentes se considere:

- não provados os factos provados dos pontos 5., 9., 13 a 16. e, ainda, a parte final do ponto 20º da matéria de facto provada e provados os constantes das alíneas d) a f) dos factos não provados;

- existir contradição insanável entre a matéria de facto provada dos pontos 6., 7., 9., 14. e 15., e os factos não provados das alíneas d) e e), tanto se dando como provado que não existiu negócio entre as partes, como se dá como provado que existiu.

Têm os itens provados e os não provados impugnados a seguinte redação:

- Provados:

“5) A autora mostrou-se interessada num dos produtos, mas desde logo manifestou junto da representante do estabelecimento que a eventual aceitação e concretização do negócio estaria sempre dependente da verificação e conformidade de todos os requisitos necessários à implantação da casa móvel no seu terreno”;”6) A representante do estabelecimento informou a Autora de que, para reservar a casa pela qual se interessou e garantir que não seria vendida a outra pessoa, teria de efetuar uma transferência bancária no valor de metade do seu preço;” “7) Esclareceu, ainda, que, caso de o negócio não se viesse a concluir, por qualquer motivo, seriam devolvidas as quantias entregues;”, ““9) Nem foi firmado nenhum negócio entre as partes para a compra da dita “casa móvel” uma vez que a A. teria de aferir das condições que eram necessárias para se poder concluir o negócio;”. “13) Após diligências para apurar da viabilidade da implantação do produto “casa móvel” no terreno onde pretendia, a A. apurou que tal implantação se mostrava impossível e como tal não era viável prosseguir o negócio;” “14) Tendo informado a representante do estabelecimento que tinha desistido da compra da casa móvel;” “15) E que, tal como acordado entre as partes anteriormente, pretendia a devolução do valor que havia entregue no dia 20/10/2022;” e “16) Apesar das inúmeras insistências da Autora, a referida representante do estabelecimento comercial nunca mais respondeu aos pedidos de devolução da quantia entregue”. E tem o ponto 20, impugnado quanto à parte final, a seguinte redação:

“20) Mas o Réu recebeu na referida conta bancária do Banco 2... a importância de 14.975,00€, que fez sua”.

- Não provados: “d) O Réu não é a pessoa responsável pela venda da dita “casa móvel”; “e) O Réu apenas surge como facilitador do recebimento da quantia pecuniária em causa;” “f) O Réu entregou a quantia de €14.975,00, à pessoa que lhe solicitou o favor de receber a sobredita quantia”.
Conhecendo.

Quanto aos referidos factos, após justificar a sua convicção referindo que a mesma se fundou “… no depoimento de parte do R., AA, nas declarações de parte da A., BB, nos depoimentos das testemunhas DD, amigo da A., EE, amiga da A. e mulher da anterior testemunha, e CC, conjugados com os documentos juntos aos autos, analisados criticamente e à luz das regras de experiência comum”, o Tribunal a quo considerou, a fundamentar a sua convicção quanto à resposta que deu aos referidos factos provados e não provados, esclarecendo que disseram as partes e as testemunhas:

“O R. AA referiu foi o Sr. CC, que trabalha em França, que lhe pediu o número da conta para uma senhora entregar o dinheiro da compra de uma casa A.... A conta bancária era do Banco 2.... Em Novembro de 2023 levantou o dinheiro com um cheque da própria conta e entregou o dinheiro ao Sr. CC. Afirmou não saber onde está a casa, não chegou a ver a casa. Não sabe onde reside o Sr. CC. Conhece o Sr. CC de ele ir comprar vinho ao armazém "Agência B...", onde trabalha. Foi citado e contestou antes de devolver o dinheiro ao CC. Sabia qual era a origem do dinheiro. O amigo não conseguiu comprar o terreno e teve de vender a casinha que trouxe de França. Mais à frente referiu que deu o dinheiro ao Sr. CC em Novembro de 2022. O Sr. CC estava a divorciar-se e não queria que a mulher soubesse deste negócio. Soube que era o sinal da casa. O Sr. CC está a viver em França. Vinha para Portugal viver na "casinha" e ia comprar um terreno para lá viver. Não sabia que estavam várias casas à venda. (…)

A A. BB relatou que andava à procura de um apartamento ou algo onde pudesse ter um cantinho. Andava à procura na internet. Encontrou no OLX um anúncio destas casas móveis. Aparecia o nome de uma FF. Foi o anúncio que viu, onde aparece uma tal de FF. Não sabe o último nome. Não entrou de imediato em contacto. Andou a ver apartamentos. Falou com os pais para saber se tinham algum terreno que lhe pudessem doar ou vender. Ficou com a esperança de uma resposta dos pais. Pediu a um casal para ir com ela ver a casa móvel. Foram ver a ... a A.... Tirou a morada através do OLX. Colocaram no GPS. Era em .... Ali tinha várias casas expostas. Foram ao escritório e estava fechado. Andaram a ver as casas de fora, até que ao descer viram dois camiões estacionados e veio uma senhora chamada GG que se ofereceu para mostrar alguns items. Mostrou duas ou três casas. Pretendia um T3s porque tem dois filhos. Houve um T3 que lhe agradou. Não assinou nada. Disse que tinha de falar com os pais dela. A senhora GG ficou com o contacto dela e continuou sempre a insistir, mas disse-lhe que tinha de falar com os pais e que não se podia comprometer. No outro dia de manhã essa D. GG mandou-lhe uma SMS a dizer que, para reservar a casa, tinha dar um sinal porque havia um interessado. Disse-lhe que não, porque tinha de falar com os pais. Sentiu-se pressionada e fez a reserva, fazendo a transferência de 14.975,00 €. Ela mandou-lhe pelo WhatsApp o número da conta. Foi ao banco fazer a transferência, reservou a casa. Não se com que concretizou a venda porque os pais não lhe deram nem venderam o terreno, até porque não era possível implantar lá uma casa móvel. Falou com a D. GG para lhe devolver o dinheiro um mês depois e ela disse que ia falar com o patrão, empatou-a. Ficou à espera, até que lhe ligou a D. FF a quem disse que queria a devolução de dinheiro e que não tinha qualquer contrato. A D. FF disse-lhe que não iam devolver valor nenhum. Este telefonema foi 1 ou 2 meses depois de pedir a restituição do dinheiro. Ninguém mais a contactou. O preço da casa era o dobro do que entregou. A D. GG disse-lhe que, caso não se chegasse à concretização do negócio, que lhe devolvia o dinheiro. Pediu-lhe um documento da entrega do dinheiro e a D. GG disse-lhe que isso era tudo entregue no dia da entrega da casa. A D. FF ou a D. GG nunca disseram o nome do patrão. A casa que pretendia não está nas fotos juntas com petição inicial. O valor da casa era de 30.000 e tal euros já com a colocação e posicionamento no terreno. Entregou metade do valor. Não sabe quem era a Sr.ª FF que a contactou por telemóvel e que se identificou como representante da empresa que vende casas. Não voltou ao sítio onde havia visto as casas.

A testemunha DD referiu que foi com a A. ver casas a .... Veio uma senhora e os chamou para dar uma volta e ver as casas. Tinha lá muitos modelos. A BB mostrou interesse por uma casa, mas não queria dizer que sim sem falar com os pais. Não fizeram contrato e a A. não assinou qualquer documento. Sem falar com os pais, a A. não se quis comprometer. No caminho de regresso a casa houve uma pressão para a A. comprar a casa. Ligaram para ela a pressioná-la para fazer a reserva da casa. Ia conduzir e ouviu o telefonema. Ouviu a tal senhora a dizer que podia fazer reserva e que se o negócio não se concretizasse devolviam o dinheiro. Soube que a A. fez a reserva. Acha que não devolveram o dinheiro à A.

A testemunha EE referiu que foi ela e o marido que foram com a A. ver casas. Andaram a ver várias casas. A A. interessou-se por uma. Veio uma senhora, GG, que mostrou à A. a casa pelo qual se interessou. A D. GG disse-lhe que ela tinha de fazer uma reserva porque podia aparecer alguém interessado. Disse que se o negócio não se concretizasse lhe devolviam o dinheiro. A A. disse que tinha de falar com os pais porque o terreno não era dela, era dos pais. Vieram embora e, na viagem de regresso, a D. GG ligou a pressionar a A. para fazer um negócio. Na presença dela não foi assinado nada. Acha que não se concretizou o negócio. O preço da casa era 30.000 e tal euros. A A. escolheu um T3 porque tem dois filhos, um rapaz e uma rapariga.

A testemunha CC referiu que reside e trabalha em França há 10 anos e que conhece o R. há mais de 20 anos. Conheceu-o no futebol. O R. era guarda-redes num clube em .... Jogava noutra equipa. Sabe que o R. trabalha em vinhos. Não conhece a A., mas já ouviu falar dela. A D. BB e fez uma compra de uma A... que era dele. Não vende casas. Vendeu esta casa em concreto que era dele. Ia alugar um terreno, o que não se concretizou e pediu à sobrinha GG para falar com o patrão dela para pôr a casa no estaleiro e vendê-la. O estaleiro fica em .... A sobrinha chama-se GG. Pelo que sabe, ela está a trabalhar na Suíça. Só tinha aquela casa para vender. O preço era 29.950 €. A casa já foi vendida. Os documentos não foram assinados pela A. . Recebeu o dinheiro da A. e fez alterações à casa. Vendeu-a por um valor irrisório. Os documentos não foram assinados pela A. porque ela não apareceu mais no local. A Sr.ª pagou metade do valor da casa. Fez alterações na casa com o dinheiro da A. e teve imensos prejuízos. O dinheiro que entrou na conta do R. foi um favor que este lhe fez. Recebeu o dinheiro passado um mês, em Novembro de 2022. A sobrinha vendeu-lhe a casa. A A. pagou metade do valor da casa - 14.975,00 € - e ficou de pagar outra metade um mês depois. Quando a sobrinha lhe ligou disse que já não queria a casa. O R. entregou-lhe aquela quantia em dinheiro. Não sabe o nome do patrão da GG, da sobrinha. Quando o confrontado com o documento n.º 1 junto com a petição inicial, disse que é ele que é o utilizador da OLX. Os anúncios correspondem a algumas casas que anunciou. É intermediário destes negócios. Quando lhe foi perguntado se a rescisão do contrato foi comunicada à A., respondeu que não enviou qualquer carta para a A. a rescindir o contrato. Na altura estava a divorciar-se. Trabalha no estrangeiro. Ganha comissões por aquilo que vende, ganha comissões em dinheiro. Anuncia várias coisas de várias pessoas. Não tem contas em Portugal. Recebe as comissões em dinheiro. Trabalha lá fora, não tem contas bancárias nem a Portugal nem a França devido a determinados problemas. Não passou o recibo da quantia que recebeu”.

Revisitada a referida prova resulta que bem motiva o Tribunal a quo estarem o depoimento do Réu e o depoimento da testemunha CC eivados de contradições e inverosimilhanças, bem mencionando:

“Aliás, as contradições do R. começam logo na contestação.

Assim, no art.º 9.º da contestação, o R. alega que "desconhece a situação vertida na petição inicial" e no art.º 11.º que "O facto de alguém, que o R. desconhece, ter indicado a sua conta bancária para pagamento de um determina quantia".

Contudo, no art.º 23.º do mesmo articulado, o R. alega "Pois, o Réu entregou a quantia de € 14.975,00, à pessoa que lhe solicitou o especial favor de receber a sobredita quantia".

Na audiência, no seu depoimento de parte, o R. identifica "a pessoa" a quem alegadamente deu o número da sua conta bancária para receber o dinheiro da A., afirmando que essa pessoa é o Sr. CC, que trabalha em França, e que lhe terá pedido o número da conta para uma senhora entregar o dinheiro da compra de uma casa A.... Referiu ainda que conhecia o Sr. CC de ele ir comprar vinho ao armazém "Agência B...", onde trabalha, e que o Sr. CC vinha para Portugal viver na "casinha" e ia comprar um terreno para lá viver. O amigo não conseguiu comprar o terreno e teve de vender a casinha que trouxe de França. O Sr. CC estava a divorciar-se e não queria que a mulher soubesse deste negócio. Referiu ainda que deu o dinheiro ao Sr. CC em Novembro de 2022.

Mas esta versão, além de não se afigurar verosímil (desde logo porque as regras da experiência revelam que uma pessoa medianamente inteligente e diligente não autoriza que a sua conta bancária seja utilizada por conhecidos ou mesmo amigos para receber dinheiro de terceiros, que não é seu nem é para si, para depois lhe entregar), foi contrariada em vários pontos pelo referido CC.

Em primeiro lugar, porque este CC referiu que conhece o R. há 20 anos e do futebol e não do local onde o R. trabalha.

Depois, porque acabou por dizer, quando confrontado com o doc. 1 junto com a petição inicial, contrariamente ao que inicialmente havia dito e ao que o R. referiu, que é intermediário de vendas e que ganha comissões pelas vendas que concretiza, o que nos leva a concluir que a venda da casa que foi mostrada à A. não seria uma venda isolada, a venda da sua "casinha" que ia implantar num terreno para viver em Portugal.

Dos extractos bancários da conta do R. no Banco 2... juntos aos autos em 09/02/2024, é possível verificar que a A. fez uma transferência de 14.975,00 para essa conta em 22/10/2022 e que foi levantada da mesma conta 15.005,00 em 23/11/2022. Contudo, não existem elementos que nos permitam saber - com certeza - qual o destino que foi dado a essa importância, mormente se foi entregue na totalidade aquele CC”.

Considerou o Tribunal a quo credíveis, esclarecedores e convincentes as declarações de parte da A. e os depoimentos das testemunhas DD e EE, depoimentos estes que foram “consonantes entre si e com as declarações de parte da A. e não apresentaram, no essencial, contradições”. E, na verdade, também assim entende este Tribunal, tendo-se os depoimentos destas testemunhas revelado seguros, coerentes e conformes com as declarações de parte da Autora, bem mostrando, ter tais testemunhas acompanhado a Autora na sua deslocação para ver as casas em causa, tendo assistido quer às conversas presenciais havidas em ..., ..., quando aí se deslocaram, quer às havidas pelo telemóvel durante a viagem de regresso a casa, bem sabendo que a Autora nenhum contrato pretendia celebrar e que a nada se vinculou, pois nenhum compromisso assumiu nem queria assumir sem ter um terreno onde pudesse instalar a casa.

Além disso, a versão dos factos que relataram é verosímil à luz das regras do normal suceder, pelo que, face aos referidos depoimentos das testemunhas DD e EE, e declarações de parte da A., coerentes, credíveis e convincentes, bem foram os factos provados acima referidos, que o recorrente impugna no recurso, julgados provados.

Não considerou o Tribunal a quo os depoimentos do Réu e da testemunha CC credíveis e, pelo modo como foram prestados, com imprecisões e não convincentes, não podem ser considerados suficientes para dar uma resposta positiva aos factos provados constantes das alíneas d) a f).

Os factos não provados impugnados foram considerados e bem não provados por ausência de prova, pois que não tendo sido confirmados nem pelas testemunhas nem pela A., sendo certo que os documentos juntos aos autos nada revelam sobre os mesmos, o depoimento de parte do Réu e o da testemunha CC nenhuma credibilidade, como vimos mereceram. O depoimento de parte do Réu revelou-se lacónico, inseguro e inverosímil, mostrando o Réu hesitações e incertezas, designadamente quanto a datas, tendo este Tribunal ficado com a convicção, pelo modo inseguro como falou, que não disse a verdade e que tudo não passou de um esquema para conduzir à apropriação, pelo Réu, de dinheiro da Autora.

Não resultou, na verdade, efetuada qualquer prova minimamente credível e convincente de o Réu não ser a pessoa responsável pela venda da dita “casa móvel”, de o Réu apenas ter surgido como facilitador do recebimento da quantia pecuniária em causa e de o Réu ter entregue a quantia de €14.975,00, à pessoa que lhe solicitou o favor de receber a sobredita quantia.

Com efeito, não houve prova que permita que seja dada aos factos considerados não provados impugnados uma resposta no sentido de se terem como provados, pelo que bem foram levados ao elenco dos factos não provados.

Na verdade, as declarações de parte da Autora foram pormenorizadas, esclarecedoras, assertivas e convincentes, e o depoimento das testemunhas da Autora, DD e EE também o foram, no sentido de nenhum contrato ter a Autora celebrado com o Réu, sequer com o terceiro que o Réu refere, e que a Autora, em momento algum, se quis vincular ou vinculou ao que quer que fosse relativamente à compra da casa, estando tal dependente de ter terreno para poder montar a casa que decidisse comprar.

Afirma o apelante nas suas alegações de recurso a sua opinião sobre a prova produzida. Ora, com o convencimento pessoal do Réu, infundado, inverosímil e parcial, não pode este Tribunal concordar. Na verdade, nenhuma prova credível e convincente resulta que permita a alteração pretendida, bem tendo a Autora logrado provar os referidos factos dados como provados e, ao invés, não logrou o Réu a prova dos factos constantes do elenco dos não provados que impugna que, por falta de prova, se têm de julgar não provados. Bem fundou o Tribunal a quo a sua convicção, que também é a nossa, não colhendo as razões do apelante, bem se fundando nas declarações de parte da Autora corroboradas pelos depoimentos das duas mencionadas testemunhas DD e EE, credíveis, convincentes e isentos, nenhum interesse tendo as mesmas no que se discute nos autos.

Nenhuma contradição existe entre os apontados factos provados e os indicados não provados, antes bem resultou provado nunca a Autora ter celebrado qualquer negócio com o Réu, com quem nunca falou e não conhece, não existindo causa para uma transferência de dinheiro para o Réu, que este fez seu.
Assim, integralmente revisitada a prova e vista a fundamentação da decisão da matéria de facto, supracitada, ficou-nos a convicção de a matéria de facto ter sido livremente e bem decidida, sendo que cada elemento de prova de livre apreciação, não pode ser considerado de modo estanque e individualizado. Há que proceder a uma análise crítica, conjunta e conjugada dos aludidos elementos probatórios, para que se forme uma convicção coerente e segura. Fazendo essa análise crítica, conjunta e conjugada de toda a prova produzida, e com base nas regras de experiência comum, não pode este Tribunal divergir do juízo probatório do Tribunal a quo, não havendo elementos probatórios produzidos no processo que imponham ou justifiquem decisão diversa (cfr. o nº1, do artigo 662.º) como pretende o apelante.
E, na verdade, não obstante as críticas que são dirigidas pelo Recorrente, não se vislumbra, à luz dos meios de prova invocados qualquer erro ao nível da apreciação ou valoração da prova produzida – sujeita à livre convicção do julgador –, à luz das regras da experiência, da lógica ou da ciência. Tendo a convicção do julgador apoio nos ditos meios de prova produzidos e na ausência de prova que permita fundar resposta diversa, é de manter a factualidade tal como decidido pelo tribunal recorrido, não sendo de aderir ao mero convencimento subjetivo do Apelante.
Correspondendo a convicção livre e adequadamente formada pelo julgador (ante a prova prestada perante si e, por isso, com oralidade e imediação), que também é, como vimos, a nossa, havendo concordância entre a apreciação probatória do Tribunal de 1ª instância e o Tribunal da Relação, tem de se concluir pela improcedência da apelação, nesta parte.
Nos termos expostos, julga-se totalmente improcedente a impugnação da matéria de facto.

*

3ª. Da reapreciação da decisão de mérito:

3.1- Da observância das regras do ónus da prova.
Insurge-se o Réu/Apelante contra a decisão de mérito por, no seu entender, se não mostrarem observados os ónus da prova por parte da Autora e ter, ele mesmo, parte passiva na ação, logrado a prova dos factos por si alegados na contestação, que fundamentam a improcedência da ação.
Cumpre deixar claro que, sendo as regras sobre o ónus da prova regras de decisão, sendo que “no nosso direito processual, ter o ónus da prova significa sobretudo determinar qual a parte que suporta a falta de prova de determinado facto”[14], logrando a Autora provar os factos, que integram os constitutivos do direito declarado na sentença e não demonstrando o Réu factos impeditivos, modificativos ou extintivos de tal direito, não pode aquela deixar de ter a vantagem da procedência da ação.
O critério de distribuição do ónus da prova tem por base a relação jurídica material, sendo o ónus da prova distribuído em função da natureza dos factos alegados, e, tendencialmente, o direito invocado na ação é-o pelo Autor, sendo a este, por conseguinte, que compete a prova dos factos constitutivos. Os factos constitutivos do direito são aqueles que constituem pressuposto do respetivo aparecimento; impeditivos aqueles que, sendo contemporâneos da formação do direito, obstam ao seu aparecimento, modificativos os que alteram o direito posteriormente à sua constituição e extintivos os que fazem cessar a respetiva produção de efeitos[15]. A Doutrina desenvolveu critérios auxiliares na aplicação, para superar dúvidas de qualificação. Entre outros (como o critério cronológico, da alegação, da normalidade, do tipo de defesa do Réu, etc.) destacou-se a teoria da norma da autoria de Rosenberg (ROSENBERG, 2002:123 e ss). A referida teoria assenta na estrutura da norma. Consequentemente, aquele que se queira fazer valer da estatuição da norma terá o ónus da prova relativamente aos factos integrantes da previsão. Estes serão os factos constitutivos do respectivo direito. Já as normas que constituam fundamento de excepção ao direito invocado contêm na sua previsão os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito, pelo que aí se identificarão os factos cujo ónus da prova cabe àquele contra quem o direito seja invocado. Isto significa que, na base da aplicação da teoria de Rosenberg, é fundamental qualificar, dentro do âmbito jurídico aplicável ao caso concreto, diferentes classes de normas (Rosenberg, 2002:124) que se relacionam entre si como regra e exceção, norma e contra-norma, cada uma delas aproveitando às diferentes partes do litígio, sendo o ónus da prova distribuído em conformidade[16].

Ora, a Autora invocou, como fundamento do seu direito, inexistir qualquer causa para a transferência e verifica-se que, a ela competindo fazer a prova de tais factos constitutivos do direito à restituição que invocou, os mesmos resultaram provados.
Ao Réu competia - em conformidade com o nº2, do art. 342º, do Código Civil – a alegação (e respetiva prova) de matéria de exceção, a importar, em caso de prova, a absolvição total pedido, nos termos do nº1 e 3, do art. 576º, do Código de Processo Civil.
Ora, não havendo causa para a transferência patrimonial, sempre o Réu teria de restituir a importância com que se enriqueceu, que entrou na sua conta bancária, o que seria imposto pelas mais elementares razões de justiça, tendo, para tanto, de se recorrer às regras que constituem válvulas de segurança do sistema.
E o instituto jurídico do enriquecimento sem causa, que constitui uma fonte obrigacional, com o seu regime consagrado nos arts. 473º e segs., do CC, prescreve naquele artigo que “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
Deste modo, para que exista enriquecimento sem causa, torna-se necessária a verificação de três requisitos cumulativos:
i) a existência de um enriquecimento patrimonial de alguém;
ii) que esse enriquecimento careça de causa justificativa;
iii) que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
O primeiro requisito consiste na obtenção de uma vantagem de caráter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista.
Quanto ao segundo requisito, faltará causa justificativa quando haja desarmonia com a ordenação dos bens aceites pelo sistema jurídico: se o enriquecimento está de acordo com o sistema jurídico a deslocação patrimonial tem causa justificativa; ao invés, se não está, se o enriquecimento houver de pertencer a outrem, carece de causa. Assim, haverá uma situação de enriquecimento sem causa quando, à luz do sistema jurídico, não exista uma relação ou um facto que legitime o enriquecimento, quer porque tal relação ou facto (a causa) nunca existiu quer porque, entretanto, desapareceu.
Pelo terceiro requisito exige-se que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa de quem exige a restituição, isto é, sem que exista entre o ato gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro ato jurídico de permeio, tendo, assim, de existir um nexo causal entre o enriquecimento do enriquecido e o empobrecimento da pessoa que exige a restituição.
A não existir causa para a deslocação patrimonial, a nenhum contrato ter sido celebrado entre a Autora e o Réu, sempre a vantagem patrimonial do enriquecido sem causa (que à luz das regras ou dos princípios do nosso sistema jurídico justifique a deslocação patrimonial ocorrida), tinha de ser restituída.
E resulta provado não ter sido celebrado qualquer contrato, seja com o Réu seja com terceiro que o Réu refere, mesmo que verbal.
Bem considerou o ora 1º adjunto relativamente ao instituto do enriquecimento sem causa, no Ac desta Relação de 12/7/2023, proc. nº 2121/21.7T8VLR.P1, em que a ora relatora foi adjunta, citando-se as respetivas notas no local próprio para melhor perceção:
“Como resulta do artigo 473º, nº 1, do Cód. Civil (onde se enuncia um princípio em forma de norma), a obrigação de restituir fundada no injusto locupletamento, à custa alheia, pressupõe, a verificação simultânea dos seguintes requisitos: a existência de um enriquecimento; obtenção deste à custa de outrem; e falta de causa justificativa dessa valorização patrimonial[17].
Portanto, desde logo, torna-se mister que haja um enriquecimento, o qual representa uma vantagem ou benefício, de carácter patrimonial e suscetível de avaliação pecuniária, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição e traduz-se numa melhoria da sua situação patrimonial, encarada sob dois ângulos: o do enriquecimento real, que corresponde ao valor objetivo e autónomo da vantagem adquirida; e o do enriquecimento patrimonial, que reflete a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efetiva (real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética).
Em segundo lugar, a obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa (quer porque nunca a tenha tido, quer porque, tendo-a inicialmente, a haja, entretanto, perdido).
A noção de falta de causa do enriquecimento é, contudo, muito controvertida e difícil de definir, inexistindo uma fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa[18]. Perante tais dificuldades, a doutrina pátria[19] vem sublinhando a necessidade de saber, em cada caso concreto, se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se, portanto, acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve ou, então, se o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, ou se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa.
Pode, assim, dizer-se que o enriquecimento carece de causa, quando o Direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a realizada deslocação patrimonial, hipótese em que a lei obriga a restabelecer o equilíbrio patrimonial por ele rompido, por não desejar que essa vantagem perdure, constituindo o accipiens no dever de restituir o recebido. Deste modo, operando-se deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, e se esse fim falta, a obrigação daí resultante fica sem causa.
Por fim, a obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de outrem.
A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduz-se, como regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro.
O benefício obtido pelo enriquecido deve, pois, resultar de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido. Daí que se postule a necessidade de existência de um nexo (causal) entre a vantagem patrimonial auferida por um e o sacrifício sofrido por outro.
Haverá, no entanto, que registar que, entre nós[20], se vem discutindo se se torna ou não necessário que a vantagem económica do enriquecido deva ser obtida imediatamente à custa do empobrecido, dado que a deslocação patrimonial para o enriquecido tanto poder ocorrer ou ser conseguida por via direta como por via indireta/reflexa.
A este propósito vem ganhando predominância a corrente doutrinal que amplia o referido requisito no sentido de exigir que, além de uma vantagem obtida à custa de outrem, se torna ainda indispensável, para que haja lugar à obrigação de restituição, que haja uma unidade do processo de enriquecimento, ou seja, uma deslocação patrimonial direta – no sentido de que entre o ato gerador do prejuízo do empobrecido e a vantagem conseguida pela outra parte não deve existir qualquer outro ato jurídico[21]. Dito de outro modo, para que haja obrigação de restituir torna-se necessário que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga ao direito à restituição, por forma a que entre o património empobrecido e o património enriquecido não exista nenhum património intermédio (de terceiro).
Feito este excurso pelos pressupostos normativos de que depende o funcionamento do instituto em causa, haverá, outrossim, que atentar que a ação baseada nas regras do instituto do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária (cfr. art. 474º do Cód. Civil[22]), só podendo a ela recorrer-se quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reação, o que, no fundo, funcionará como um novo pressuposto ou requisito legal para o recurso à ação de restituição com base nesse instituto[23].
De frisar, no entanto, que sendo o enriquecimento fonte autónoma da obrigação de restituir (embora subsidiária), por mor da regra vertida no nº 1 do art. 342º do Cód. Civil (no qual, segundo entendimento dominante, se consagra o pensamento fundamental da teoria das normas), é sobre o autor (alegadamente empobrecido) que impende o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram cada um dos requisitos supra enunciados. Daí que a mera falta de prova da existência de causa da atribuição não seja suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar também que efetivamente a causa falta[24]”.
Procedendo ao enquadramento jurídico dos factos, os quais, como vimos, se mantêm conforme o decidido em primeira instância, bem refere o Tribunal a quo: “como ficou provado, no dia 20/10/2022 a Autora efectuou na sua agência bancária do Banco 1..., sita na ..., uma transferência bancária a partir da sua conta de depósitos à ordem com o IBAN  ...92, no valor de 14.975,00€ para a conta bancária com o IBAN nº  ...14 da Banco 2... S.A., cujo titular é o Réu.
O R. recebeu aquela importância de 14.975,00€ na sua conta bancária e, a partir desse momento, passou a poder dispor da mesma e integrou-a no seu património, que aumentou na mesma medida.
Por seu turno, a A. ficou despojada da indicada quantia sem que para tal tivesse recebido qualquer contrapartida, pelo que o seu património ficou empobrecido na mesma medida.
O enriquecimento do R. carece de causa justificativa (pois a A. não celebrou qualquer negócio com o R.” nada tendo acordade com o mesmo e nada tendo dele recebido.

Verifica-se que, não se provando a celebração de contrato com o Réu (nem mesmo com CC), demonstrado ficou haver enriquecimento do mesmo, sem qualquer causa justificativa, à custa da Autora, enriquecimento esse injusto e, como tal, inaceitável para o Direito, tendo, por isso, de ser restituído como bem foi decidido na sentença recorrida.


*


3.2 – Da mora do devedor e do momento de constituição em mora.

Verificando-se ausência de uma qualquer causa justificativa da transferência para o Réu, tem a Autora direito à quantia que peticiona em que o Réu foi condenado, acrescida de juros de mora a contar da data da citação[25], data em que se deu a interpelação para a restituição da importância transferida pela Autora (cfr. arts. 473º, 479º, al. a), do art. 480º e 559º, do Código Civil), não antes, pois que se desconhece a data em que o Réu teve conhecimento da transferência e da falta de causa do seu enriquecimento.

Estabelece o art. 480º, do Código Civil, com a epígrafe “Agravamento da obrigação”:
“O enriquecido passa a responder também pelo perecimento ou deterioração culposa da coisa, pelos frutos que por sua culpa deixem de ser percebidos e pelos juros legais das quantias a que o empobrecido tiver direito, depois de se verificar algumas das seguintes circunstâncias:
a) Ter sido o enriquecido citado judicialmente para a restituição;
b) Ter ele conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento ou da falta do efeito que se pretendia obter com a prestação”.

“Verificadas algumas das circunstâncias previstas nas alíneas a) e b) do art. 480º, do CC, a responsabilidade do devedor passa a aferir-se pelos elementos fornecidos por esta disposição legal”[26].

“A lei regula os termos da obrigação de restituir a partir do momento em que o enriquecido/devedor esteja de má fé, isto é, sabia que o seu enriquecimento não tem causa jurídica ou, dito de outro modo, é injustificado. (…) Nessas hipóteses e a partir de qualquer dos momentos previstos nas alíneas deste preceito, à obrigação de restituição, calculada nos termos do artigo 479º, acresce uma obrigação de indemnizar que tem por objeto: … ii) os juros legais da dívida pecuniária em que se traduza a obrigação de restituir; fica, pois, constituído em mora a partir da citação para a ação de restituição ou do momento em que passe a saber da falta de causa do enriquecimento (facto de prova mais difícil para o credor), hipóteses de constituição em mora que se aditam às do nº2, do art. 805…”[27] do Código Civil.

Logrou a Autora demonstrar a verificação dos pressupostos do instituto jurídico em que fundamenta a sua pretensão, como decidiu o Tribunal a quo, impondo-se a confirmação de decisão recorrida no que concerne à obrigação de restituição, sendo, contudo, os juros de mora devidos pelo atraso no cumprimento da obrigação de restituição fundada no enriquecimento sem causa apenas a contar da data da interpelação judicial para a restituição efetuada com a citação (referida al. a), do art. 480º, do Código Civil).
Assim, sendo de manter o decidido na vertente de facto, na concordância probatória, também a decisão de mérito, com os fundamentos dela constantes, se tem de manter, salvo quanto a juros de mora desde a transferência, em 20/10/2022, e até à data em que se verificou a citação do Réu.

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3.3 – Da litigância de má fé do Réu.

Analisemos agora da responsabilidade processual.

Condenou o Tribunal a quo o Réu “como litigante de má fé na multa de 6 (seis) UC e a indemnizar a A. dos prejuízos por ela sofridos, designadamente o reembolso das despesas a que a má-fé do litigante a tenha obrigado, incluindo os honorários do seu mandatário”, por o mesmo ter alterado a verdade dos factos, negando factos que resultaram provados, que bem conhecia.

A condenação de uma parte como litigante de má fé traduz um juízo de censura sobre a sua atitude processual, visando alcançar o respeito pelos Tribunais, a moralização da atividade judiciária e o prestígio da justiça.

Entendeu o Tribunal a quo que a conduta do Réu se enquadra no n.º 2, do artigo 542.º, pois que veio apresentar defesa bem sabendo nenhum fundamento existir para a Autora lhe transferir o dinheiro e, apesar disso, em vez de lho devolver, fê-lo seu.

Segundo o dever da boa-fé processual estabelecido no artigo 8.º do Código de Processo Civil, as partes têm a obrigação de, conscientemente não articular factos contrários à verdade.

A violação deste dever dá lugar a sanção pecuniária: indemnização e multa.

Analisemos da responsabilidade processual do Réu, por litigância de má fé.

O instituto da má fé processual, regulado nos artigos 542º a 545º, de tal diploma legal, visa sancionar a parte que preencha, com a sua atuação processual, a respetiva previsão.

Ao contrário do que sucedia antes da revisão do Código de Processo Civil operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, atualmente as condutas passíveis de integrar má fé não têm de ser, necessariamente, dolosas, já que o instituto passou a abranger, também, a negligência grave. Atingiu-se uma maior responsabilização das partes. Como resulta do preâmbulo do referido diploma, o atual Código de Processo Civil, com a nova filosofia de colaboração que lhe está ínsita, consagrou "expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos". Na reforma processual introduzida por este DL houve uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual - quer a substancial quer a instrumental -, tanto na vertente subjetiva como na objetiva. A condenação por litigância de má fé pode agora fundar-se em negligência grave, para além da situação de dolo já anteriormente prevista.

Alberto dos Reis distinguia, em matéria de conduta processual das partes, quatro tipos de lide: lide cautelosa (aquela em que a parte esgota todos os meios para se assegurar de que tem razão e apesar disso vê inviabilizada a sua pretensão (ou oposição)), lide imprudente (aquela em que a parte comete imprudência leve ou levíssima), lide temerária (aquela em que a parte, embora convencida que tem razão, incorre em culpa grave ou erro grosseiro, indo a juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas (de facto ou de direito) que devia empregar para desfazer o seu erro, comprometendo a sua pretensão) e lide dolosa (aquela em que a parte, apesar de ciente de que não tem razão, litiga e deduz pretensão (ou oposição) conscientemente infundada)[28].

Ao sancionar, atualmente, a litigância com negligência grave a lei está a proibir, para além da lide dolosa, a lide temerária, a qual pressupõe culpa grave ou erro grosseiro[29].
Na verdade, de acordo com o nº2, do art. 542º, do CPC, “Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
“Segundo o nº2, constituem atuações ilícitas da parte: a dedução de pretensão ou oposição com manifesta falta de fundamento, por inconcludência ou inadmissibilidade do pedido ou da exceção (alínea a)); a apresentação duma versão dos factos, deturpada ou omissa, em violação do dever de verdade (alínea b)); a omissão do dever de cooperação (alínea c)); em geral, o uso reprovável do processo ou de meios processuais, visando um objetivo ilegal, o impedimento da descoberta da verdade, o entorpecimento da ação da justiça ou o protelamento, sem fundamento sério, do trânsito em julgado da decisão (alínea d))”[30].
“Visa entorpecer a ação da justiça a parte que atua usando meios dilatórios”[31] – cfr exemplos citados in ob e pag. cit..
“Visa apenas protelar o trânsito em julgado da decisão a parte que recorre ou reclama sem fundamento sério, conseguindo assim atrasar o momento do trânsito em julgado e da exequibilidade da decisão”[32].
Destarte, a lei tipifica as situações objetivas de má fé, exigindo-se, simultaneamente, um elemento subjetivo (dolo ou negligência grave) - cfr. referido nº2 - já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico.
O juízo de censura que enforma o instituto radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo”, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil. Litiga de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado e prudência, bem assim com o dever de indagar a realidade em que funda a pretensão[33] ou em que sustenta a defesa.
Distingue-se entre má fé material ou substancial e má fé processual ou instrumental. A primeira tem a ver com o mérito da causa, a segunda com a conduta processual[34]. Na primeira “a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo portanto o vencedor da ação ser condenado como litigante de má-fé” [35].
A má fé a se reportam as supra referidas als. a) e b) é a má fé material ou substancial, aquela que se refere à relação jurídica material[36]; as restantes alíneas contendem com a má fé instrumental[37].

A litigância de má fé surge como um instituto processual, de tipo público, com um sistema sancionatório próprio, especialmente regulado, não se tratando de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem através de atuações processuais. A responsabilidade por litigância de má fé está sempre associada à verificação de um ilícito puramente processual e constitui o “tipo central da responsabilidade processual”[38].

Atualmente, “considera-se sancionável a título de má-fé, a lide dolosa, tal como preconizava A. Reis, in Código de Processo Civil anotado, II volume, pg.280, e, ainda, a lide temerária baseada em situações de erro grosseiro ou culpa grave.

Como refere Menezes Cordeiro “alargou-se a litigância de má-fé à hipótese de negligência grave, equiparada, para o efeito, ao dolo.” (in “Da Boa Fé no Direito Civi”, Colecção Teses, Almedina ).

No dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida – dolo directo – ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial – dolo indirecto; no dolo instrumental faz-se dos meios e poderes processuais um uso manifestamente reprovável (v. Menezes Cordeiro, obra citada, pg.380).

Verifica-se a negligência grave naquelas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das desaconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida (Maia Gonçalves, C.Penal, anotado, pg.48).

O dever de litigar de boa-fé, com respeito pela verdade é corolário do princípio da cooperação a que se reporta o art.º 266º do Código de Processo Civil, e vem consignado no art.º 266º-A, do mesmo diploma legal.

Em qualquer caso, a conclusão pela actuação da parte como litigante de má-fé será sempre casuística, não se deduzindo mecanicamente da previsibilidade legal das alíneas do art.º 456º do Código de Processo Civil e a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça[39].

A questão da má fé material não pode ser vista de forma linear, sob pena de se limitar o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil, com foros de garantia constitucional, tendo de ser feita uma apreciação casuística, não cabendo a análise do dolo ou da negligência grave no processo civil em estereótipos rígidos.

A má fé processual não opera no domínio da interpretação e aplicação das regras do direito, mas tão só no domínio dos factos. A sustentação de posições jurídicas, mesmo que desconformes com a correta interpretação da lei, não basta à conclusão da litigância de má fé de quem as propugna.

Acresce, também, que, a conclusão no sentido da litigância de má fé não se pode extrair, mecanicamente, da simples alegação de factos pessoais que não se provaram ou da negação de factos pessoais que vieram a provar-se. Na “base da má-fé está este requisito essencial, a consciência de não ter razão. Não basta pois o erro grosseiro ou a culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição infundada"[40].
O que importa é que exista uma intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas imprudência (má fé em sentido ético), não bastando a imprudência, o erro, a falta de justa causa, é necessário o querer e \o saber que se está a actuar contra a verdade ou com propósitos ilegais.
A condenação por litigância de má fé, em qualquer das suas vertentes – material e instrumental – pressupõe sempre a existência de dolo ou de negligência grave (art. 456º, nº2, do CPC) pelo que se torna necessário que a parte tenha procedido com intenção maliciosa ou com falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida”[41].
Emergente dos princípios da cooperação, da boa fé processual e da probidade e adequação formal, a figura da litigância de má fé pretende cominar quem, dolosamente ou com negligência grave, põe em causa tais princípios, que a eles tem subjacente a boa administração da justiça.
Quanto à sua aplicabilidade, é quase unânime entre a jurisprudência e a doutrina mais avisada, a exigência de um comportamento doloso e consciente no sentido de pôr em causa a boa administração da justiça, vindo aquela a ser restritiva na admissão da litigância de má fé.
Esta interpretação impõe-se por ser a mais razoável e a que melhor compreende a realidade subjacente a um processo em que as partes estão em desacordo: não é humanamente exigível que elas sejam absolutamente objetivas, pois são elas que sentem os problemas e o litígio. O inadmissível surge apenas quando a parte, sabendo embora não ter razão, recorre ao processo (o que é ainda mais grave tratando-se de factos pessoais): provado isto, haverá litigância de má-fé. Esse é o limite à compreensão e aceitação, relativamente à posição vivida pelas partes.
O ensinamento do Prof. Alberto dos Reis que, quanto a esta matéria, vem incluído no CPC Anotado, é lapidar, assim escrevendo Não obstante o dever geral de probidade, imposto às partes, a litigância de má fé pressupõe a violação da obrigação de não ocultar ao tribunal ou, melhor, de confessar os factos que a parte sabe serem verdadeiros. Não basta, pois, o erro grosseiro ou culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada, de tal modo que a simples proposição da ação ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmarem um direito que não possuem ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que a Autora faça um pedido que conscientemente sabe não ter direito, e que o Réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir[42].
Exige-se para a condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a atuação dolosa ou gravemente negligente da parte, demonstrando-se nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, litigando de modo desconforme ao respeito devido ao tribunal e às partes[43].
À litigância de má fé não se basta a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta. Exige-se ainda que a parte tenha atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, que soubesse da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição e que se encontrasse numa situação em que se lhe impusesse esse conhecimento e um dever de agir em conformidade com ele. A aplicação do instituto da litigância de má fé, à semelhança do instituto do abuso de direito, traduz uma aplicação do princípio da boa fé no domínio processual civil, tendo de se ter em conta a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente, através da análise global dos factos provados e não provados, e não apenas de um segmento dessas factos[44].
Ora, vista a Doutrina e a Jurisprudência tendo-se em atenção a lição assim colhida, que em nosso entender plasma a interpretação mais avisada da figura jurídica do litigante de má fé, e analisando a conduta processual do Réu não podemos deixar de considerar que o mesmo atuou com dolo, pondo em causa os seus deveres como litigante, pelo que se justifica plenamente, como bem se decidiu, a sua condenação como litigante de má fé.
Resulta que o Réu, na contestação, onde deduziu a sua defesa, impugnou factos verdadeiros, alterando, desse modo, a verdade dos factos, praticando omissão grave do dever de cooperação e fazendo dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, sendo pratica processual errada e contrária às regras da boa fé impugnar factos que bem se sabe serem verdadeiros, bem resultando provado que o Réu fez seu o dinheiro da Autora que lhe entrou na conta. Altera, pois o Réu a verdade dos factos por si bem sabida, fazendo um uso manifestamente reprovável do processo.
Agiu, pois, o Réu contra a verdade dos factos, como bem refere o Tribunal a quo, com o propósito de entorpecer a ação da Justiça.

O comportamento do Réu visava impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça de forma intencional, sendo o seu comportamento doloso.
Ora, resultando verificar-se a referida atuação como litigante de má fé, bem foi proferida condenação do mesmo como tal.

Como se referiu, a violação dos referidos deveres dá lugar a sanção pecuniária, a multa, e, ainda, a indemnização, se pedida pela parte lesada. Esta, ao contrário daquela reverte para o pleiteante lesado.
Tendo o Réu, como vimos, litigado de má fé, bem foi, nos termos do nº1, do art. 542º, do CPC, condenado em multa e em indemnização à parte contrária, sendo que a multa aplicada foi no montante de 6 UCs, estabelecendo o art. 27º, nº3, do RCP[45] a moldura legal entre 2 a 100 UC, pelo que a multa fixada, não excessiva, é de manter.

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3.4 – Da questão nova da litigância de má fé da Autora.
Pede o apelante a condenação da apelada como litigante de má fé.
Cumpre deixar claro que este Tribunal é um Tribunal de recurso pelo que as questões a apreciar são as já suscitadas junto da 1ª Instância e que a mesma apreciou e decidiu.
Na verdade, o recurso visa, tão só, o reexame da matéria apreciada pela 1ª Instância na decisão recorrida, não podendo ter por objeto questões novas (cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Os recursos são os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se visa a sua modificação.
Recurso é, pois, um “pedido de reapreciação de uma decisão judicial apresentado a um órgão judiciário superior”[46].
Assim, não cabe a este Tribunal de recurso conhecer da referida questão nova, não colocada em 1ª instância nem decidida oficiosamente pelo Tribunal a quo.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, salvo no que se reporta aos juros peticionados entre 20/10/2022 e a data da citação do Réu para a presente ação, parte em que a apelação procede, tendo o Réu nesta parte de ser absolvido do pedido.


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As custas, quer do recurso quer as relativas à 1ª instância, são da responsabilidade de ambas as partes na proporção do decaimento (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).

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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, confirmam integralmente a decisão recorrida, salvo no atinente aos juros de mora peticionados entre 20/10/2022 e a data da citação do Réu para a ação, indo em relação a esta parte o Réu absolvido do pedido.


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Custas, quer do recurso quer em 1ª instância, por ambas as partes na proporção do vencimento, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza a Autora.

Porto, 24 de fevereiro de 2025

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores

Eugénia Cunha

Miguel Baldaia Morais

Carla Torres

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[1] Cfr., entre muitos, Ac. do STJ de 1/4/2014, Proc. 360/09: Sumários, Abril /2014, e Ac. da RE de 3/11/2016, Proc. 1070/13, in dgsi.Net.
[2] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in dgsi.net.
[3] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág. 735.
[5]Ibidem, pág 735 e seg.
[6] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 763.
[7] Ac. STJ de 5/4/2016, Proc. 128/13, Sumários Abril/2016, pág 8, Abílio Neto, in Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., Março/2017; pág. 921.
[8] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in dgsi.pt.
[9] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 736-737.
[10] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 823 e seg.
[11] Ibidem, págs 824 e seg.
[12] Ibidem, pág, 825.
[13] Ibidem, pág, 825.
[14] Rita Lynce de Faria, anotação ao artigo 342º, in Comentários ao Código Civil Parte Geral, Universidade Católica Editora, pág. 812
[15] Ibidem, pág 812
[16] Ibidem, pág.813
[17] Cfr, sobre a questão e por todos, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 491, GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, pág. 195, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, 2004, págs. 480 e seguintes e MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 381.
[18] No nº 2 do citado art. 473º prevêem-se, numa enumeração exemplificativa destinada a dar uma linha de rumo interpretativa, três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: condictio in debiti (repetição do indevido), condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto).
[19] Cfr., inter alia, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, págs. 454 e seguintes e DIOGO LEITE DE CAMPOS, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir e Enriquecimento, Almedina, 2003, págs. 317 e 412.
[20] Cfr., sobre a questão, na doutrina, ANTUNES VARELA, ob. citada, págs. 390 e seguintes, ALMEIDA COSTA, ob. citada, págs. 489 e seguintes, LEITE DE CAMPOS, ob. citada, pág. 327, JÚLIO GOMES,  O Conceito de Enriquecimento sem Causa – O enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Universidade Católica Portuguesa, 1998, págs. 433 e seguintes e 675 e seguintes e MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português – Direito das Obrigações, tomo III, Almedina, 2010, págs. 232 e seguintes; na jurisprudência, acórdãos do STJ de 6/10/2009 (processo nº 2217/07.8TBVCD.S1), de 14/7/2009 (processo nº 413/09.2YFLSB) e de 16/9/2008 (processo nº 08B1644), acessíveis em www.dgsi.pt.
[21] Registe-se, contudo, que uma parte da doutrina (v.g. MENEZES LEITÃO, in O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, Almedina, 2005, págs. 549 e seguintes) vem defendendo dever ter a jurisprudência os movimentes livres para atender a uma ou outra situação em que tal exigência de deslocação patrimonial direta se venha, em concreto, a mostrar excessiva, conduzindo, por via disso, a soluções que choquem com o comum sentimento de justiça.
[22] No qual se dispõe que “[n]ão há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
[23] Refira-se, no entanto, que a doutrina vem recorrentemente sublinhando que a denominada regra da subsidiariedade não tem um alcance absoluto – cfr., inter alia, MENEZES CORDEIRO, ob. citada, págs. 249 e seguintes, MENEZES LEITÃO, O enriquecimento sem causa no Direito Civil, págs. 914 e seguintes e JÚLIO GOMES, ob. citada, págs. 415 e seguintes.
[24] Cfr., neste sentido, na doutrina, ANTUNES VARELA, ob. citada, págs. 482 e seguinte e ALMEIDA COSTA, ob. citada, pág. 501; na jurisprudência, acórdãos do STJ de 28/10/1993 (processo nº 083871), de 22/06/2004 (processo nº 1688/04-1), de 25/11/2008 (processo nº 08A3501), de 02/02/2010 (processo nº 1761/06.97UPRT.S1), de 14/10/2010 (processo nº 5938/04.3TCLRS.L1.S1), de 19/02/2013 (processo nº 2777/10.6TBPTM.E1.S1), de 20/03/2014 (processo nº 2152/09.5TBBRG.G1.S1) e de 29/04/2014 (processo nº 246/12.9T2AND.C1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[25] Ac. RC de 9/4/2002, proc. nº157/02, sumário acessível in dgsi.net, Ac. STJ de 22/4/1999: CJ/STJ, 1999, 2º, 58 e Ac. do STJ de 27/5/1999: CJ/STJ, 1999, 2º, 123
[26] Ac. STJ de 27/5/1999: Proc. 99B444.dgsi.Net e v. Abílio Neto, Código Civil Anotado, 2018, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda, pág. 461.
[27] Ana Prata (Coord.) Código Civil Anotado, vol. I, 1ª ed. Almedina, pág. 623.
[28]Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª Ed. 1981, p. 262 e seguintes
[29] Ac. do STJ, de 20/3/2014: Processo 1063/11.9TVLSB.L1.S1,in dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março de 2017, pág 703, onde se decidiu que “a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição “cuja falta de fundamento não devia ignorar”, ou s eja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte, como litigante de má fé, demonstrando-se que o litigante tinha consciência “de não ter razão”, pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização”.
[30] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2º Volume, 3ª Edição, Almedina, pág 457
[31] Ibidem, pág 457
[32] Ibidem, pág 457
[33] Ac. da Relação de Coimbra de 16/12/2015, processo 298/14.7TBCNT-A.C1, in dgsi.net, onde se escreve “O juízo de censura que enforma o instituto radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo“, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil.
O âmbito da má fé abrange hoje não apenas o dolo, como a “negligência grave“, introduzida com a alteração ao CPC pelo DL nº 329-A/95, de 12 /12, concebida como erro grosseiro ou culpa grave, sem que seja exigível a prova da consciência da ilicitude da actuação do agente.
Por conseguinte, a lei tipifica as situações objectivas de má fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjectivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico. (…) Importa ter presente que actua de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado. Além disso, o dever de verdade processual (alínea b)) pressupõe que a parte tem a obrigação de indagar a realidade em que funda a sua pretensão (dever de pré-indagação)”.
[34] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2008, p. 220/221
[35] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 457

[36] Alberto dos Reis, CPC Anotado, II, 3ª ed., p. 264).
[37] Ac. da Relação de Coimbra de 16/12/2015, processo 298/14.7TBCNT-A.C1, in dgsi.net
[38] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 461
[39] Ac. da Relação de Guimarães de 10/11/2011, Processo 387645/09.9YIPRT.G1, in dgsi.net
[40] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra Editora, 1982, pag. 263.
[41] Ac. do STJ, de 3/2/2011, Ver. 351/2000: Sumários, 2011, p. 77, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março de 2017, pág 703
[42]Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 2º, Coimbra Editora, pag. 263
[43] Ac. da Relação de Guimarães de 15/10/2015, processo 3030/11.3TJVNF.G1, in dgsi.net
[44] Ac. do STJ de 10/12/2015, Processo551/06: Sumários, 2015, pág 692, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março de 2017, pág 706
[45] Ibidem, pág 595
[46] Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5ª Edição, Vol. I, 2019 , Almedina, pág 1237