NON BIS IN IDEM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
Sumário

1 - Em ordem a concluir sobre a aplicação do princípio ne bis in idem importa delimiter e avaliar a base factual que se pretende ilustrativa da dita repetição.
2 – Para além da circunstância de o crime de tráfico de estupefacientes se tratar de um crime de trato sucessivo, em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros atos de execução, é revelador de estarmos perante crimes autónomos o modo de ação, que não impede o arguido, após contacto anterior com o sistema de justiça, de sucumbir numa segunda resolução criminosa, dando lugar a um novo momento, coincidente com uma nova resolução perfeitamente autónoma.

Texto Integral

Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. No processo comum singular n.º 715/19.0PBAGH do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Local Criminal de Angra do Heroísmo, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
1. Condeno o arguido AA, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e Tabela I-C anexa, na pena especialmente atenuada, nos termos do artigo art.º 4 do DL 401/82, de 23/9, e art.º 73º, n.º 1, al. a) e b) do Cód. Penal, de 2 (dois) anos de prisão.
2. Determino, nos termos do artigo 43º, n.º 1 e 2, do Código Penal, que a pena seja cumprida em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
3. Imponho ao arguido a permanência contínua na Rua ..., sujeito aos deveres previstos no artigo 6º da Lei 33/2010, de 02/09, nomeadamente o de responder aos contactos, em particular por via telefónica, que pelos serviços de reinserção social forem feitos durante os períodos de vigilância electrónica.
4. Autorizo o arguido a ausentar-se para comparência em actos judiciais ou diligências policiais no presente processo ou outros, consultas médicas, tratamentos ou similares e obtenção ou revalidação de documentos oficiais.
5. Autorizo o arguido, ainda, a ausentar-se para o exercício da sua profissão.
(…)
2. Não se conformando com a sua condenação, veio o arguido interpor recurso para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões:
(…)
2. Pela prática a ... de ... de 2018 de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade foi o arguido condenado por sentença de 27 de Novembro de 2018, transitada em julgado a 18 de Dezembro de 2018, na pena de 12 meses de prisão, suspensa por 12 meses (Processo 183/18.3PBAGH);
3. O arguido foi condenado no proc. 183 por um crime de tráfico de estupefacientes praticado entre ...e ... de ... de 2018;
4. Acontece que, nos presentes autos, proc. 715, foi condenado, também, por igual crime, praticado entre 2016 e 2020;
5. Há, pois, uma coincidência de condenações sendo que o proc. 715 fez uma nova apreciação dos mesmos factos, havendo condenações autónomas;
6. Havendo condenações autónomas, os factos praticados entre 13 e ... de ... de 2018 no processo 715 não podem ser alvo de condenação por parte do ora recorrente, sob pena de violação do princípio constitucional ne bis in idem;
7. O arguido deve ser absolvido, parcialmente, do crime de tráfico de estupefacientes, por violação da exceção de caso julgado, expressa no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, sob a designação do princípio ne bis in idem;
8. O princípio ne bis em idem, previsto no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, consagra que: “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”;
9. Foi aplicada ao arguido o regime especial para jovens, que resultou numa pena de prisão de 2 anos, uma vez que da atenuação resultam vantagens para a reintegração social do condenado;
10. No entanto, o arguido, ora recorrente, entende que a pena que lhe foi aplicada está desajustada face às exigências de prevenção geral e especial e à sua culpabilidade;
11. As circunstâncias que foram atendidas na determinação concreta da pena na, aliás, douta sentença, não foram objeto de adequada ponderação, pois se o tivessem sido a pena concreta aplicada teria sido mais baixa e teria sido suspensa na sua execução;
12. A condenação do arguido em 2 anos de prisão, parece-nos que fez subir a culpa do agente para um ponto que a ultrapassa, razão pela qual é ilegal;
13. Efectivamente, ao aplicar ao arguido, ora recorrente, tal pena o tribunal recorrido violou o princípio da culpa, já que a medida da pena nunca pode ultrapassar a medida da culpa;
14. O arguido confessou praticamente todos os factos de que vinha acusado e pelos quais foi condenado, a droga que “traficava” é considerada uma droga “leve”, à data dos factos o arguido contava com 20 anos de idade, tem uma filha de 3 anos de idade, a quem paga pensão de alimentos no montante de €75,00, vive com a mãe e um irmão, já não consome produtos estupefacientes, o arguido trabalha e contribui para as despesas domésticas, está, pois, social e familiarmente bem inserido, havendo que atender, também, ao tempo, entretanto, decorrido entre a prática dos factos e a condenação, mais de 4 anos;
15. Tudo ponderado, olhando os factos apurados e supra ditos e tendo presente o limite máximo consentido pela culpa do arguido entende-se adequada e ajustada uma pena mais baixa do que a pena concretamente aplicada ao arguido pelo Tribunal “a quo”, isto é, uma pena mais baixa do que a de 2 anos de prisão, a qual deve ser suspensa na sua execução, por estarem preenchidos os requisitos do artigo 50.º do Código Penal;
16. No caso dos autos, a ameaça de prisão basta para satisfazer, de modo exigente e adequado, as necessidades de reparação e prevenção do crime, contribuindo para o processo de reintegração do recorrente na sociedade;
17. Assim, reunidos os pressupostos exigidos pelo artigo 50.º do Código Penal, “o juiz tem o dever de suspender a execução da pena (…)”, in Ac. S.T.J. de 27.06.1996, Acs. STJ, IV, T2, pág. 204;
18. Deve, pois, ser suspensa na sua execução a pena de prisão que vier a ser aplicada ao arguido;
19. Assim não entendendo, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 50.º, 40.º, 71.º, n.ºs 1 e 2 e 73.º e 74, todos do Código Penal e artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, o presente recurso deve ser aceite e deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva, parcialmente, o arguido pela prática do crime de tráfico de estupefacientes por violação da exceção de caso julgado, expressa no artigo 29.º, n.º 5 da C.R.P., sob a designação do princípio ne bis in idem e condene o arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/92, de 22 de Janeiro, e Tabela I-C anexa em pena de prisão especialmente atenuada em pena de prisão inferior a 2 anos, suspensa na sua execução.
3. O Ministério Publico apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, concluindo nos seguintes termos:
1. Nos presentes autos, o recorrente AA entendeu que o tribunal recorrido não podia ter dado como provado os factos constantes do ponto 5.º da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, atentas as datas desses factos e as datas em apreço no processo n.º 183/18.3PBAGH, no qual o recorrente foi condenado por sentença transitada em julgado em 18-12-2018, pela prática de um crime tráfico de menor gravidade, por violação do principio ne bis in idem.
2. Por fim, sustenta o recorrente AA que a pena de 2 (dois) anos de prisão, a ser cumprida em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância aplicada in casu mostra-se desajustada às exigências de prevenção geral e especial e face à culpa do mesmo, pugnando pela suspensão da execução da pena, ao abrigo do artigo 50.º do Código Penal.
3. Cremos que não assiste razão ao recorrente AA.
4. Em primeiro lugar, quanto ao princípio ne bis in idem, cumpre salientar que este princípio garante que a mesma concreta e hipotética ação jurídico-penal não possa ser apreciada numa segunda investigação/decisão final, pelo que ninguém poderá ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
5. Não obstante, este princípio não é absoluto, ou seja, comporta exceções, sendo precisamente o caso dos autos, porquanto o recorrente AA cometeu múltiplos crimes, no caso dois crimes (um crime de tráfico de menor gravidade - artigo 25.º da Lei da Droga no âmbito do proc. n.º 183/18.3PBAHG e um crime de tráfico de estupefaciente - artigo 21.º da Lei da Droga nestes autos) em circunstâncias completamente diferentes, pelo que o recorrente foi julgado separadamente por cada um desses crimes, ainda que estes ilícitos envolvam uma conduta semelhante.
6. Torna-se evidente que ocorreram duas punições por infrações distintas, ocorridas em momentos, locais e com contextos diferentes.
7. Se não vejamos, no primeiro processo (NUIPC 183/18.3PBAHG) em que o recorrente foi condenado, por sentença transitada em julgado em 18-12-2018, o mesmo foi detido em flagrante delito, no dia ...-...-2018, na ..., na posse de cannabis resina.
8. Nesse processo, foi ainda dado como provado que, nos dias ...-...-2018, ...-...-2018 e ...-...-2018, por mensagens, o recorrente recebeu encomendas de cannabis resina de consumidores finais.
9. Assim, em bom rigor, o recorrente foi condenado por ter na sua posse cannabis resina no dia ...-...-2018 e por receber encomendas do mesmo produto estupefaciente nos dias ...-...-2018, ...-...-2018 e ...-...-2018.
10. O recorrente AA não foi condenado por vender cannabis resina nos dias ...-...-2018, ...-...-2018 e ...-...-2018.
11. Já nos presentes autos, a conduta em apreço é bem distinta, o recorrente AA foi condenado por vender cannabis resina, num período de tempo bastante alargado, incluindo o período temporal em que foi condenado por ter na sua posse cannabis resina (Processo n.º 183/18.3PBAHG).
12. Verifica-se assim que as duas condenações são distintas em termos de atos adotados pelo recorrente AA, de quantidades de produto estupefaciente e da existência de efetiva transação de substâncias ilícitas, sendo, por isso, de tratar cada condenação de acordo com a sua gravidade.
13. Em síntese, entre o processo n.º 183/18.3PBAHG e os presentes autos não há identidade de factos, tanto assim é, que os crimes pelos quais o arguido foi condenado naqueles processos são distintos (crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º da Lei da Droga no proc. n.º 183/18.3PBAHG e um crime de tráfico de produto estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21.º da Lei da Droga nestes autos). Logo estamos perante duas condenações por dois crimes diferenciados, ainda que ambos envolvam a atividade ilícita de tráfico de drogas, os elementos e as circunstâncias dos mesmos foram completamente distintas, conforme resulta das sentenças.
14. 0 recorrente AA vem ainda defender que a pena aplicada é desajustada face às exigências de prevenção geral e especial e face à culpa do mesmo e pugna pela suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, invocando que as circunstâncias de vida do recorrente não foram devidamente ponderadas, concretamente que o recorrente se encontra inserido a nível social e familiar.
15. Ora, a pena aplicada ao recorrente AA mostra-se adequada e proporcional face à gravidade da sua conduta, à sua personalidade delinquente e face à moldura abstrata aplicada a este tipo de crime.
16. No caso dos autos, não é de aplicar a suspensão da execução da pena que foi aplicada ao recorrente AA, pois que se não mostram verificados os pressupostos de que depende tal suspensão.
17. Afigura-se legítimo que se formulem sérias dúvidas sobre a capacidade do recorrente AA de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, visto que o mesmo para além de não ter um projeto de vida minimamente estruturado, pois, não tem qualquer vínculo laboral estável e continua a consumir produtos estupefacientes, cometeu o crime ora em apreço em pleno período de suspensão da execução da pena de prisão de que havia beneficiado em anterior condenação pelo mesmo tipo de crime, o que demonstra bem a sua insensibilidade à advertência contida em tal condenação e a propensão que revela para a prática deste tipo de crime (tráfico de estupefacientes), fazendo fenecer qualquer esperança de por meio da suspensão da pena manter o recorrente afastado da criminalidade.
18. O Tribunal recorrido não violou o princípio ne bis in idem e não violou os artigos 40.º, 50.º, 70.º, 71.º, 73.º e 74.º do Código Penal, nem o artigo 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
19. Pelo que, deve manter-se intocada a douta sentença recorrida.
4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, secundando a posição expressa pelo Ministério Público em 1.ª instância, no sentido de que o recurso não merece provimento, devendo a decisão recorrida ser confirmada.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), não foi apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art.º 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art.º 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, atendendo às conclusões da motivação de recurso, cumpre apreciar as seguintes questões:
• Da violação do princípio ne bis in idem;
• Do quantum da pena e suspensão da sua execução.
2. Da sentença recorrida
O tribunal a quo deu como provada a seguinte factualidade
1. Desde data não concretamente apurada, mas compreendida no ano de 2016 até ao mês de Março de 2020, o arguido AA dedicou-se à compra e venda de produto estupefaciente, Cannabis (Resina), neste concelho de ….
2. Para tanto, o arguido AA adquiria aquele produto estupefaciente a indivíduos e em locais cuja identificação não foi possível apurar, destinando-o, posteriormente, à respectiva venda, sempre a um preço superior àquele pelo qual o havia adquirido, a consumidores, neste concelho de ….
3. A venda do produto estupefaciente pelo arguido AA era feita mediante prévio contacto telefónico ou envio de mensagens de texto escritas (vulgo sms), efectuado pelos consumidores, a maioria dos quais seus conhecidos, para o número de telemóvel de que aquele era titular – ....
4. Nesses contactos, o arguido AA combinava com os consumidores o local de entrega do produto estupefaciente que estes pretendiam e, de seguida, encontrava-se com os mesmos, em locais públicos deste concelho de …, entregando-lhes as quantidades de produto estupefaciente pretendidas, a troco de dinheiro.
5. Assim, o arguido AA, nas seguintes circunstâncias, vendeu, produto estupefaciente, Cannabis (Resina), designadamente, a:
a. BB, na altura estudante do liceu de ..., em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre o ano de 2017 e o ano de 2018, entre três a quatro vezes por semana, em frente ao liceu na ..., tendo, em cada uma dessas transacções, BB adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00 cada;
b. CC, no período temporal compreendido entre o mês de Março ou Abril de 2017 até ao mês de Setembro de 2019, pelo menos, uma vez por mês, em locais públicos, não concretamente apurados, da cidade de ..., tendo, em cada uma dessas transacções, CC adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00;
c. DD, desde data não concretamente apurada, mas compreendida no ano de 2018 até ... de ... de 2019, entre duas a cinco vezes por mês, junto à escola primária ... e em outros locais públicos, não concretamente apurados, do concelho de ..., tendo, em cada uma dessas transacções DD adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00;
d. EE, em datas não concretamente apuradas do ano de 2018 e no período temporal compreendido entre o mês de Fevereiro de 2019 e o mês de Agosto de 2019, pelo menos, duas vezes por mês, no parque de estacionamento junto ao ..., neste concelho de ..., tendo, em cada uma dessas transacções, EE adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00;
e. FF, no período temporal compreendido entre o final do ano de 2018 e início do ano de 2019 até ao final do ano de 2019, pelo menos, duas vezes por mês, junto à escola primária S. …, neste concelho de …, tendo, em cada uma dessas transacções, FF adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00;
f. GG, em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre o final do ano de 2018 e o início do ano de 2019, por duas vezes, junto à ..., neste concelho de ..., tendo, em cada uma dessas transacções, GG adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00;
g. HH, no período temporal compreendido entre o dia ... de ... de 2019 e data não concretamente apurada do mês de Setembro de 2019, entre nove a onze vezes, designadamente, a ........2019, ........2019 e ........2019, junto ao ..., tendo, em cada uma dessas transacções, HH adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00, €15,00 e €20,00;
h. II, no período temporal compreendido entre o mês de Janeiro ou Março de 2019 até ... de ... de 2019, entre seis a sete vezes, no ..., tendo, em cada uma dessas transacções, II adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00;
i. JJ, no período temporal compreendido entre o mês de Fevereiro de 2019 e o mês de Setembro de 2019, por quatro vezes, e no período temporal compreendido entre Janeiro e Março de 2020, por duas vezes, no ..., tendo, em cada uma dessas transacções, JJ adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00 e €20,00;
j. KK, no Carnaval de 2019, durante duas semanas, entre duas a três vezes, junto à escola primária ..., tendo, em cada uma dessas transacções, KK adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço total, por semana, de €30,00 na Páscoa de 2019, durante duas semanas, entre duas a três vezes, junto à escola primária ..., tendo, em cada uma dessas transacções, KK adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço total, por semana, de €30,00 no Natal de 2019, durante duas semanas, entre duas a três vezes, junto à escola primária ..., tendo, em cada uma dessas transacções, KK adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço total, por semana, de €30,00 entre Julho e Setembro de 2019, entre duas a três vezes por semana, junto à escola primária ..., tendo, em cada uma dessas transacções, KK adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço total, por semana, de €30,00 no mês de Fevereiro ou Março de 2020, entre duas a três vezes por semana, junto à escola primária ..., tendo, em cada uma dessas transacções, KK adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço total, por semana, de €30,00;
k. AA, no período temporal compreendido entre o mês de Março de 2019 e o dia ... de ... de 2019, pelo menos, duas vezes por mês, no ... e em outros locais públicos, não concretamente apurados, do concelho de ..., tendo, em cada uma dessas transacções, AA adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €20,00;
l. LL, no período temporal compreendido entre o mês de Junho de 2019 e o mês de Março de 2020, entre cinco a seis vezes, no ..., no ... e nas imediações do ..., neste concelho de ..., tendo em cada uma dessas transacções, LL adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €5,00 e €10,00;
m. MM, no período temporal compreendido entre o mês de Junho de 2019 e o mês de Agosto de 2019, cerca de duas a três vezes por semana, em locais públicos, não concretamente apurados, da cidade de …, tendo, em cada uma dessas transacções, MM adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00;
n. NN, no período temporal compreendido entre o Verão de 2019 e o mês de Janeiro ou Fevereiro de 2020, uma vez por semana, no parque de estacionamento junto à escola primária S. …, neste concelho de …, tendo, em cada uma dessas transacções, NN adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00 e €40,00; e
o. OO, em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas no ano de 2019, entre cinco a seis vezes, em locais que se não lograram apurar, tendo, em cada uma dessas transacções, OO adquirido, para consumo próprio, Cannabis (Resina), em quantidades não apuradas, pelo preço de €10,00.
6. Acresce que, no dia ... de ... de 2019, pelas 17:00 horas, na via pública, na ..., freguesia de ..., concelho de ..., o arguido AA tentou proceder à venda, de Cannabis (Resina), em quantidade não concretamente apurada, mas correspondente a meia língua, pelo preço de €4,00, a PP, para consumo próprio deste, apenas não o logrando fazer, atenta a intervenção de elementos da PSP - Esquadra de ....
7. Nessa sequência, o arguido AA detinha na sua posse, os seguintes objectos:
i. Uma nota do Baco Central Europeu, no valor de €5,00 (cinco euros) e
ii. Cannabis (Resina), com o peso líquido de 5,422 (cinco vírgula quatrocentos e vinte e dois) gramas, com o grau de pureza de 15,7 (THC), o que permitiria um consumo individual de 17 (dezassete) doses.
8. Acresce que, ainda no dia ... de ... de 2019, pelas 17:15 horas, na residência do arguido AA, sita na ..., o arguido tinha no seu quarto de dormir, os seguintes bens:
i. um involucro de cartão SIM (MEO, Moche), com o número ...;
ii. um invólucro de cartão SIM (MEO), com o IMEI ...;
iii. três cartões micro SD, de 8G, 4G e 2G;
iv. um telemóvel, marca Huawei, modelo VNS-L31, de cor dourada, com os IMEIs ... e ...;
v. um telemóvel, marca Samsung, de cor branco, com o IMEI 352564079855812;
vi. um computador portátil, marca Asus, modelo K501, de cor preta, com o número de série A9N0AS708386392;
vii. um isqueiro, marca Prof., modelo I-17, de cor cinza;
viii. uma régua, marca Novinco, de cor branca, utilizada no corte de produto estupefaciente;
ix. uma lâmina de X-acto, com 13 centímetros, utilizada no corte de produto estupefaciente;
x. uma tesoura, com cabo azul e 14 centímetros de comprimento, utilizada no corte de produto estupefaciente;
xi. um canivete, com cabo de cor preta, com 15 centímetros de comprimento total, utilizado no corte de produto estupefaciente;
xii. €70,00 (setenta euros), constituídos por cinco notas de €10,00 (dez euros) do Banco Central Europeu e quatro notas de €5,00 (cinco euros) do Banco central Europeu; e
xiii. Cannabis (Resina), com o peso líquido de 120,523 (cento e vinte vírgula quinhentos e vinte e três) gramas, com o grau de pureza de 15,4 (THC), o que permitiria um consumo individual de 371 (trezentas e setenta e uma) doses.
9. O produto estupefaciente e os bens referidos pertenciam ao arguido AA, sendo que, o produto estupefaciente era o que lhe restava de uma porção maior que adquiriu em circunstâncias não concretamente apuradas e que destinava à venda a quem o procurasse, nomeadamente, a consumidores, sempre por preço superior ao da sua aquisição, com o propósito de obter proveitos económicos.
10. As quantias em dinheiro resultaram da venda por este de produto estupefaciente, Cannabis (Resina) a terceiros, consumidores, nos termos acima descritos.
11. Os demais objectos identificados foram adquiridos pelo arguido AA, com os proventos obtidos com a descrita actividade de compra e venda de produto estupefaciente, Cannabis (Resina) e eram utilizados pelo arguido em tal actividade.
12. À data dos factos descritos, o arguido AA fazia alguns biscates na construção civil e em jardinagem, não auferindo qualquer subsídio ou pensão.
13. De igual modo, no período temporal compreendido entre o ano de 2016 e o ano de 2020, o arguido AA não apresentou qualquer Declaração de Rendimentos no Serviço de Finanças competente.
14. O arguido AA conhecia a natureza e as características estupefacientes do produto, Cannabis (Resina), que teve na sua posse, cedeu, vendeu e transportou consigo, destinando tal produto à venda a consumidores, mediante contrapartida monetária, actividade esta que exerceu durante o período temporal compreendido entre o ano de 2016 e o mês de Março de 2020.
15. O arguido AA sabia que a detenção, cedência, distribuição, transporte ou comercialização de produto estupefaciente era proibida e punida por lei penal e, não obstante, quis proceder à sua aquisição e comercialização conforme acima descrito, com intuito de auferir proventos económicos, o que conseguiu.
16. O arguido AA agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente e, apesar de saber que todas as suas condutas, acima descritas, eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as prosseguir.
17. À data dos factos e ainda actualmente o arguido vivia no contexto familiar de origem, constituído pela progenitora e um irmão mais novo, pese embora entre 2019 e 2020, tenha integrado o agregado familiar da avó paterna, na sequência de alguns desentendimentos com a progenitora, residindo com ela actualmente.
18. Desde os 18-19 anos que o arguido tem vindo a desempenhar actividades indiferenciadas, mas sobretudo na área da construção civil e de jardinagem, de acordo com as oportunidades de trabalho, sendo em regra essas solicitações obtidas por um tio paterno. Muito pontualmente trabalhou na área da reciclagem e na da restauração, por curtos períodos.
19. Entre Julho de 2023 e Setembro de 2024 o arguido trabalhou numa pizzaria, denotando alguma gratificação com a situação laboral e com referências positivas à integração e cumprimento das responsabilidades laborais.
20. Desde Setembro de 2024 desempenha funções de copeiro num hotel, auferindo €900 mensais. Contribui com cerca de 200€ para as despesas do agregado, com 75€ para a prestação de alimentos da filha e refere ainda uma penhora sobre o vencimento, de cerca de 100€ mensais. Aufere cerca de €30 a €40 por dia de trabalho, montante com que participa no pagamento das despesas do agregado.
21. O arguido assumiu consumos de estupefacientes, nomeadamente haxixe, desde cerca dos 17-18 anos, não considerando a necessidade de tratamento e não lhe atribuindo especial impacto na gestão do seu quotidiano, revelando dificuldades de motivação em manter-se abstinente.
22. Referencia actualmente uma situação de abstinência em termos de consumos aditivos e o afastamento em relação a sociabilidades associadas a essa problemática, tendendo a um convívio social mais restrito à família e à ocupação dos tempos livres centrado sobretudo em jogos online. Concluiu em Setembro passado o Programa Livre de Drogas, cujo acompanhamento decorreu por um período de cerca de 3 anos.
23. Retomou muito recentemente o relacionamento com a mãe da filha, contudo o casal mantém a residência em habitações separadas. A relação entre ambos, que se iniciou sensivelmente há 5 anos, tem sido marcada por frequentes ruturas e reconciliações, tendo neste contexto o arguido sido condenado por um crime de violência doméstica. O casal tem uma filha com 3 anos de idade, mantendo o arguido um contacto minimamente regular com a filha, quer presencial, quer por videochamada.
24. Contribui mensalmente com uma pensão de alimentos no montante de €75, judicialmente fixada.
25. O arguido frequentou a escola até cerca dos 18 anos, abandonando o percurso escolar quando frequentava o 6º ano de escolaridade, integrado em curso profissionalizante de …, que não concluiu. O percurso escolar foi marcado pelo absentismo e pela tendência para se associar com outros pares igualmente problemáticos, não antecipando a intenção de vir a concluir a escolaridade obrigatória.
26. O arguido é um indivíduo que revela um funcionamento em que predomina ainda uma grande imaturidade e um pensamento essencialmente imediatista, com dificuldade em termos de pensamento consequencial e de capacidade de descentração.
27. Indicia também dificuldades ao nível da capacidade de resolução de problemas e de tolerância à frustração, a par de uma consciência crítica essencialmente autocentrada e decorrente sobretudo das consequências que podem resultar para si próprio.
28. Estas características de funcionamento não surgem indissociadas da problemática aditiva que o arguido mantém há vários anos, com aparente impacto na sua capacidade de organização e de investimento nos diferentes contextos de vida, denotando alguma apatia, na forma como avalia o seu percurso e enquadramento.
29. Pela prática a ... de ... de 2018 de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade foi o arguido condenado por sentença de 27 de Novembro de 2018, transitada em julgado a 18 de Dezembro de 2018, na pena de 12 meses de prisão, suspensa por 12 meses (Processo 183/18.3PBAGH).
30. Foram os seguintes factos que levaram à condenação:
1. No dia ........18, pelas 23:20 horas, na ... nesta cidade, o arguido tinha na sua posse:
- 5 canivetes;
- 1 nota de 5 euros;
- Duas moedas de 2 euros;
- 10 euros em moedas de 1 euro;
- 1 moeda de 0,50 cêntimos;
- 1 telemóvel Starnaut da Altice, com o nº série ...;
- 1 telemóvel da Alcatel, azul claro, com o nº de série ...;
- Dois pedaços (línguas) de cannabis (resina) com o peso bruto de 7,86 gramas;
- 5 “charros” (canábis resina) com o peso bruto de 5,16 gramas (haxixe misturado com tabaco);
- 1 caixa metálica onde guardava o estupefaciente.
2. O arguido destinava o produto estupefaciente à venda a terceiros, sendo o dinheiro que lhe foi apreendido, produto das referidas vendas.
3. Para o efeito, o arguido recebia encomendas de haxixe de consumidores que ligavam para o seu telemóvel nº ..., designadamente:
- no dia .......,18, o consumidor “...” mandou a seguinte sms para o telemóvel do arguido: “Tou cá fora, traz 10 e 10 de troco” e “Tou cá fora, traz 10”;
- no dia ........18, o consumidor com nº de telemóvel ... mandou a seguinte sms ao arguido: “Tens mais daquilo mas ve se desta vez vem com os 4,4 se tiveres da-me um toque” “E ao menos trás 10 para compensar os de antes de ontem”;
- No dia ........18, o usuário do nº ... mandou a seguinte sms ao arguido: “Acabei de sair do trabalho e vim desde a ... ate a ... de carro e não tinha bófia és mesmo cagado bacalhau não tem bofia nenhuma na boa abraço aos 2”.
4. O arguido conhecia as características e as qualidades do produto que detinha, designadamente a sua natureza estupefaciente e tóxica para o corpo humano, sabendo tratar-se de canábis de resina e, apesar disso, não se absteve de a vender.
5. O arguido sabia perfeitamente que qualquer actividade envolvendo estupefaciente, designadamente, a sua cedência, a qualquer título, a terceiros, sem a necessária autorização, era absolutamente proibida e punida por lei criminal.
6. O arguido em tudo agiu de forma livre, voluntária e conscientemente.
31. Pela prática a ... de ... de 2019 e a ... de ... de 2022 de um crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogos foi o arguido condenado por sentença de ... de ... de 2022, transitada a ... de ... de 2023, na pena de 1 ano e 6 meses, suspensa por 3 anos (Processo 575/19.0PBAGH).
32. O arguido confessou os factos.
***
3. Apreciando
a) Da violação do princípio ne bis in idem
Sendo incontornável que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime, o que resulta das disposições conjugadas dos arts. 29.º, n.º 5 e 18.º, n.º 1 da CRP, importa, porém, avaliar se essa é de facto a realidade invocada pelo recorrente, ao almejar ser “absolvido parcialmente” do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual se mostra condenado.
A base factual que se pretende ilustrativa da dita repetição reporta-se à condenação sofrida nos presentes autos, por vendas de estupefaciente ocorridas entre 2016 e 2020, em contraponto com a condenação igualmente sofrida pelo arguido no âmbito do processo 183/18.3PBAGH, descrita na sentença recorrida sob o ponto 30 da factualidade provada, a saber,
1. No dia ........18, pelas 23:20 horas, na ..., nesta cidade, o arguido tinha na sua posse:
- 5 canivetes;
- 1 nota de 5 euros;
- Duas moedas de 2 euros;
- 10 euros em moedas de 1 euro;
- 1 moeda de 0,50 cêntimos;
- 1 telemóvel Starnaut da Altice, com o nº série ...;
- 1 telemóvel da Alcatel, azul claro, com o nº de série ...;
- Dois pedaços (línguas) de cannabis (resina) com o peso bruto de 7,86 gramas;
- 5 “charros” (canábis resina) com o peso bruto de 5,16 gramas (haxixe misturado com tabaco);
- 1 caixa metálica onde guardava o estupefaciente.
2. O arguido destinava o produto estupefaciente à venda a terceiros, sendo o dinheiro que lhe foi apreendido, produto das referidas vendas.
3. Para o efeito, o arguido recebia encomendas de haxixe de consumidores que ligavam para o seu telemóvel nº ..., designadamente:
- no dia .......,18, o consumidor “...” mandou a seguinte sms para o telemóvel do arguido: “Tou cá fora, traz 10 e 10 de troco” e “Tou cá fora, traz 10”;
- no dia ........18, o consumidor com nº de telemóvel ... mandou a seguinte sms ao arguido: “Tens mais daquilo mas ve se desta vez vem com os 4,4 se tiveres da-me um toque” “E ao menos trás 10 para compensar os de antes de ontem”;
- No dia ........18, o usuário do nº ... mandou a seguinte sms ao arguido: “Acabei de sair do trabalho e vim desde a ... ate a ... de carro e não tinha bófia és mesmo cagado bacalhau não tem bofia nenhuma na boa abraço aos 2”.
4. O arguido conhecia as características e as qualidades do produto que detinha, designadamente a sua natureza estupefaciente e tóxica para o corpo humano, sabendo tratar-se de canábis de resina e, apesar disso, não se absteve de a vender.
5. O arguido sabia perfeitamente que qualquer actividade envolvendo estupefaciente, designadamente, a sua cedência, a qualquer título, a terceiros, sem a necessária autorização, era absolutamente proibida e punida por lei criminal.
6. O arguido em tudo agiu de forma livre, voluntária e conscientemente.
Isso teve presente a decisão recorrida, pois que o esclareceu nos seguintes termos:
Como referido, e como resulta da matéria de facto assente, as vendas de estupefaciente pelo arguido ocorreram entre 2016 e 2020, durando, pois, cinco anos.
A consumação do crime de tráfico de estupefaciente deu-se pela posse e venda desde 2016, ambas se prolongando até 2020.
Isto posto, importa aqui considerar que o arguido foi já condenado no Processo 183/18.3PBAGH por um crime de tráfico de menor gravidade devido à prática de actos de tráfico cometidos entre 13 e ... de ... de 2018, tendo sido dadas como provadas três vendas de haxixe a consumidores. Esse período temporal está incluído no lapso de tempo de que cuida este processo, sendo certo que aqui se deu como provado que o arguido já vinha traficando desde 2016 e continuou a fazê-lo até 2020.
Contudo, a referida condenação transitou em julgado a 18 de Dezembro de 2018. A partir desse momento o arguido ficou ciente e advertido de que a prática de crime da mesma natureza pelo qual viesse a ser condenado, durante o prazo de suspensão do processo, determinaria a eventual revogação da suspensão. Ao cometer actos de tráfico após 18 de Dezembro de 2018 não pode ter deixado de renovar a tomada de consciência da ilicitude e a censurabilidade dessa subsequente actividade por ele desenvolvida, ou seja, não pôde deixar de renovar a resolução criminosa concretizada nos factos praticados ulteriormente, pelos quais está agora a ser julgado veio a ser condenado.
Ora, para além da circunstância de o crime de tráfico de estupefacientes se tratar de um crime de trato sucessivo, em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros atos de execução, não se compreende a pretensão do recorrente, ao pretender ser “absolvido parcialmente” do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual se mostra condenado, porquanto aquilo que invoca antes constituiria impedimento ao conhecimento de mérito da presente causa.
Porém, nada disso se trata.
É que de facto estamos perante crimes autónomos, sendo disso revelador o modo de ação, que não impede o arguido, após contacto anterior com o sistema de justiça, à ordem do processo n.º 183/18.3PBAGH, de sucumbir numa segunda resolução criminosa, dando lugar a um novo momento de ação, coincidente com uma nova resolução perfeitamente autónoma.
Por isso mesmo, não se mostra descrito qualquer quadro factual tendente a concluir sobre a aplicação do princípio ne bis in idem, pelo que o desfecho a esse propósito pretendido pelo recorrente extravasa as premissas.
Por conseguinte, na evidência de resoluções autónomas distintas, concluímos pela não verificação da exceção suscitada, logo pela improcedência do recurso quanto a essa mesma questão.
b) Do quantum da pena e suspensão da sua execução
O arguido, que se mostra condenado numa pena de 2 anos de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação, pugna pela respetiva redução e suspensão da sua execução.
Importa, pois, verificar se de facto ocorreu qualquer distorção ou desproporcionalidade a reclamar a intervenção do tribunal de recurso alterando o respetivo quantum.
Como é sabido as finalidades de aplicação de uma pena decorrem essencialmente da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da preocupação em se atingir a reinserção do agente na comunidade - artigos 40.º e 71.º, ambos do Código Penal.
Quanto à determinação da medida da pena, a mesma far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção – n.º 1 do art.º 71.º do Código Penal.
No que respeita ao relacionamento entre aqueles dois critérios, ensina Figueiredo Dias (in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 215), que à culpa compete fornecer o limite máximo da pena que ao caso deve ser aplicada, sendo em função de considerações de prevenção geral de integração e especial socialização, que deve ser determinada abaixo daquele máximo, a medida da pena.
Segundo o art.º 71.º, n.º 2 do Código Penal, “na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (...)”, impondo os princípios da proibição da dupla valoração e do ne bis in idem que não sejam de novo apreciadas, em sede de medida concreta da pena, as circunstâncias que outrora foram consideradas a propósito do tipo de crime.
Assim considerando, analisou o tribunal a quo os factos praticados pelo arguido com vista à subsunção dos mesmos dentro dos concretos fatores da medida da pena, o que fundamentou nos seguintes termos:
“No caso dos autos, ao nível da ilicitude assume inicial e particular relevo o hiato de tempo que o arguido dedicou à actividade de tráfico de estupefacientes, assim como o número de pessoas afectado pela sua actividade criminosa. O período de tempo a que se dedicou ao tráfico, entre 2016 e Março de 2020, é considerável, o mesmo sucedendo com o número de compradores a que chegou, não podendo a sua actividade de todo considerar-se ocasional. Ademais, vendeu estupefaciente a um estudante nas imediações de uma escola.
Entretanto, o arguido sofreu uma outra condenação pela prática de um crime de violência doméstica, demonstrando que o seu comportamento anti-social se espraia por áreas muito diversas entre si.”
À vista disso, afigura-se-nos que o tribunal a quo individualizou corretamente as circunstâncias relevantes, tendo em conta que as exigências de prevenção geral são inquestionavelmente elevadas, e com elas confluem exigências de prevenção especial identicamente elevadas.
É que de facto ganham no caso presente especial relevância as finalidades de reprovação e prevenção de futuros crimes (prevenção geral ou positiva), na medida em que a punição do tráfico de estupefacientes visa a proteção da saúde pública bem como, em segunda linha, a integridade física e moral dos consumidores, impondo-se igualmente, com acuidade, as necessidades de prevenção especial, relativas à reinserção do agente e à necessidade de evitar a prática de futuros crimes, sendo certo que este último regista uma condenação anterior pela mesma tipologia de crime (a referente ao processo 183/18.3PBAGH).
Sem prejuízo, ainda entendeu o tribunal a quo por bem aplicar ao arguido o Regime Especial dos Jovens Delinquentes consagrado pelo Dec. Lei n.º 401/82, de 23 de setembro, em cujo artigo 4.º se prevê que se ao caso for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 72.º e 73.ºdo Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
Tanto justificou nos seguintes termos:
“O actual percurso de vida do arguido permite concluir que da atenuação especial da pena resultam sérias vantagens para a sua reinserção. O mesmo parece encetar com alguma seriedade esforços para agir com responsabilidade na condução da sua vida: concluiu um tratamento à toxicodependência e tem trabalhado ininterruptamente desde há mais de um ano, contribuindo para as despesas domésticas do seu agregado familiar e para o sustento da filha.”
Dessa forma, ao contrário daquilo que alega o recorrente, foram mais que devidamente ponderadas as suas condições pessoais, ao ponto de passar a beneficiar de uma pena especialmente atenuada que se cifra entre 9 meses e 18 dias e 8 anos de prisão (versus 4 a 12 anos de prisão).
Ora, ponderando nós de modo igualmente equitativo, o grau de ilicitude dos factos, a culpa, a intensidade do dolo e a postura do arguido em julgamento (confessou a prática dos factos), não identificamos na determinação da pena concreta operada pelo tribunal a quo qualquer incorreção ou desproporcionalidade que demande intervenção.
Ou seja, a pena fixada em 2 anos de prisão, numa moldura de punição especialmente atenuada, mostra-se justa, adequada às finalidades de prevenção, e proporcional à culpa e personalidade do arguido/recorrente, sendo por isso de manter.
Sem prejuízo, pretende ainda o arguido que lhe deveria ter sido aplicada uma pena não privativa da liberdade, pois que o tribunal determinou a sua execução em regime de permanência na habitação quando a mesma, no seu entender, deveria ter sido suspensa.
De acordo com o disposto no artigo 50.º n.º 1 do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
E, segundo o n.º 5 da mesma disposição legal, o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.
Perante este regime a pena de 2 anos de prisão aplicada ao arguido é de facto suscetível de ser suspensa na sua execução.
Porém, não foi essa a opção tomada pelo tribunal de primeira instância, que para tanto considerou o seguinte:
“Uma larga parte dos actos de tráfico levados a cabo ocorreram após a condenação em pena de prisão suspensa sofrida no Processo 183/18.3PBAGH pela prática de um crime de idêntica natureza, o que é demonstrativo da pouca conta em que o arguido teve essa solene advertência nessa fase da sua vida.
Esta evidência de imediato afasta a possibilidade da aplicação de uma nova suspensão da pena ou da substituição da pena por trabalho a favor da comunidade.
A simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão não realizam de fora adequada e suficiente as finalidades da punição, pois o arguido já lhes foi insensível.
A substituição da prisão por trabalho a favor da comunidade, já depois de uma ameaça de condenação em prisão, previsivelmente também não sortirá qualquer efeito no arguido.”
Tudo observado, e salientando a circunstância de o arguido registar antecedentes criminais inclusive pela prática de crime da mesma exata natureza, somos igualmente por concluir no sentido de não estarem reunidos os pressupostos para se formular um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do recorrente.
Com efeito, não só se conclui pela total ausência de crítica quanto a condutas de igual natureza, mas também porque não podem ser defraudadas as expectativas comunitárias de reposição da ordem jurídica, da confiança na validade das normas violadas e no cumprimento do direito.
Verdadeiramente, mostram-se em destaque elevadíssimas exigências de prevenção geral, que reclamam firmeza na punição, não podendo a suspensão ser vista pela comunidade como um perdão judicial, uma vez que assim o impedem fortes razões de reprovação e prevenção deste tipo de crime, que, como “supra” se referiu, visa essencialmente a proteção da saúde pública.
A não suspensão da execução da pena de prisão imposta ao recorrente mostra- -se conforme às exigências do caso e ao direito aplicável, sendo, por isso mesmo, de manter, ainda mais num caso como o presente, em que foi facultado ao recorrente o cumprimento da pena em permanência na habitação, procurando a manutenção da sua integração laboral (“Deverá ser preservada a sua presente boa integração laboral, possibilitando a saída de casa para o exercício da profissão”).
O recurso não merece, por isso, provimento.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso apresentado pelo arguido AA, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.
Notifique.
*
Lisboa, 11 de março de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Manuel José Ramos da Fonseca
Paulo Barreto