DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO RURAL
Sumário


1 - A lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretiza o ato de alienação,
2 - O direito de preferência do arrendatário rural prevalece sobre o direito de preferência do proprietário de terreno confinante, só cedendo perante a preferência de co-herdeiro ou comproprietário.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório:
           
AA, divorciada, NIF ...26 residente na Rua ...., freguesia ... (...), ... ... iniciou uma ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB, viúva, NIF ...90, residente na Rua ..., freguesia ... (...), ... ... e CC, NIF ...69 e mulher DD, NIF ...85, casados sob o regime da comunhão geral de bens, residentes na Rua ..., freguesia ... (União das Freguesias ..., ... e ...), ... ..., peticionando o reconhecimento do direito de preferência na venda do prédio rústico, composto por terreno de pinhal, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial sob o nº ...94/... e inscrito na matriz rústica respetiva sob o artigo ...43, com o valor patrimonial de €37,49, pelo valor de €9000,00.

Para tanto alegam, em suma, o seguinte: mediante documento particular de compra e venda, devidamente autenticado, datado de ../../2021, elaborado pela Drª EE, Advogada, com escritório na Avenida ..., ..., ..., a 1ª Ré declarou vender aos 2ºs RR., que declararam comprar, o prédio rústico, composto por terreno de pinhal, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial sob o nº ...94/... e inscrito na matriz rústica respetiva sob o artigo ...43, com o valor patrimonial de €37,49, pelo valor de €9000,00; o herdeiro FF e mulher GG eram os donos e legítimos possuidores do prédio rústico, denominado »... ou ...«, com a área de 34.145m2, composto por terreno de eucaliptal, pinhal, mato e pastagem, sito no Lugar ... ou Sá da referida freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...85/..., inscrito na matriz rústica respetiva no artigo ...42, que adquiriram 4/8 por sucessão deferida por partilha por óbito de HH, 3/8 por compra e 1/8 por sucessão deferida em partilha judicial por óbito de II; em ../../2022, faleceu GG, mulher de FF, tendo deixado como únicos e universais herdeiros a autora, FF e FF; o prédio inscrito sob o artigo ...42/... passou a pertencer à herança ilíquida e indivisa por óbito da referida GG; prossegue descrevendo os atos de posse sobre o referido imóvel; mais alega que o prédio inscrito sob o artigo ...42/... confronta pelo lado nascente e em praticamente toda da sua extensão com o prédio inscrito sob o artigo ...43, vendido aos réus CC e DD; os réus adquirentes não possuíam, nem possuem, qualquer outro prédio rústico a confrontar com o prédio que compraram, destina-se ao mesmo tipo de cultura agrícola, de mato e florestal, estando integrado na RAN em área florestal de proteção e produção, nos termos do PDM ...; considera que lhe assiste o direito de preferência na venda do prédio tanto ao abrigo do disposto no art 1380º do Código Civil, como ao abrigo do disposto nos arts 26º do Decreto-Lei n.º 73/2009 de 31/03 e 18º do Decreto-Lei n.º 384/88 de 25/10, por estarem integrados na RAN; a autora não foi notificada para exercer o direito de preferência que lhe assiste, nem lhe foi dado conhecimento dos elementos essenciais do negócio; termina formulando o pedido acima enunciado.

A ré BB apresentou contestação tendo alegado, em suma, o seguinte: começa por se defender por via de exceção perentória, nega que os autores não tivessem sido notificados nem que não tivessem conhecimento do negócio em virtude de nos primeiros cinco dias do mês de 01/2022, a ré BB ter sido abordada, na via pública, pela autora AA, tendo esta informado a ré que tinha vendido o terreno pelo valor de €9000,00 no dia ../../2021; três ou quatro dias depois, a ré entrou à autora cópia do documento particular de compra e venda autenticado, datado de ../../2021, pelo que tiveram conhecimento da alienação e dos seus elementos essenciais nos primeiros 10 dias do mês de 01/2022; considera que o prazo para o exercício do direito de preferência terminou a 11/07/2022, encontrando-se caducado, nos termos previstos no art. 1410º do Código Civil; defende-se igualmente por via de impugnação, considerando que, independentemente do mérito da pretensão dos autores, esta cede perante o direito de preferência do arrendatário, previsto no art. 1091º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do Código Civil ex vi art 31º NRAR (Novo Regime de Arrendamento Rural – Decreto-Lei n.º 294/2009 de 13/10), uma vez que o prédio que os autores pretendem adquirir foi arrendado aos 2º réus pelo marido da 1ª ré em ../../2002, mediante o pagamento da renda anual de €1250,00; tal contrato manteve-se válido desde a data da celebração até ../../2021, data em que os réus adquiriram a propriedade do prédio, tendo sido os únicos possuidores do dito prédio nesse período; na medida em que ocupava o prédio na qualidade de arrendatária, não se encontrava obrigada a fazer aos autores a comunicação prevista nos arts 1380º e 416º do Código Civil, atenta a prevalência do direito de preferência do arrendatário sobre o da herança; mais alega que no dia ../../2002, o marido da ré, JJ, vendeu aos réus CC e DD o prédio designado “... ou ...”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...51, inscrito na atual matriz sob o artigo ...59, com o valor patrimonial de €67,12; aquando da celebração do referido contrato, quer a falecida GG, progenitora de FF, quer este último, tiveram conhecimento da celebração e do teor dos elementos essenciais de tal transação/alienação e nunca os mesmos, até à data da instauração da presente ação, se opuseram a tal contrato e/ou invocaram algum direito de preferência; no mesmo dia, JJ, marido da 1ª ré BB, celebrou com o 2º Réu, CC, um contrato de arrendamento relativo ao Prédio Rústico inscrito no artigo ...43, mediante a renda anual de €1250,00, o qual se manteve em vigor até à data da aquisição do imóvel; os réus adquiriram o terreno para nele colocarem maquinaria industrial decorrente da atividade que ainda hoje exercem; depois do arrendamento do prédio, iniciaram nele trabalhos de consolidação e de recuperação, terraplanando-o e nivelando-o; detêm o referido prédio há mais de 20 anos à vista de toda a gente; consideram que, ao ter adquirido o imóvel, estavam a exercer o direito de preferência que lhes assiste ao abrigo dos arts 31º do NRAR e 1091º, n.º 1, al .a) e n.º 3 do Código Civil; consideram que este direito de preferência prevalece sobre o dos autores; terminam peticionando a absolvição da causa.

Os réus CC e DD apresentaram contestação, tendo alegado, em suma, o seguinte: começam por se defender por via de exceção, alegando que FF já tem conhecimento da titularidade da propriedade pelos segundos réus desde a data da celebração do negócio, em ../../2021, em virtude de o réu CC se ter deslocado à casa do autor, nos dias imediatamente a seguir, a fim de lhe transmitir que iria proceder à limpeza da parte de baixo do terreno e que não se responsabilizava pela limpeza do »matagal« existente para lá das extremas, uma vez que já não pertencia ao seu terreno; tal factualidade consta das declarações que o 2º réu prestou na GNR nos autos n.º 213/22....; consideram que o direito que os autores pretendem exercer caducou em finais de 10/2021; prosseguem para a defesa por impugnação, acusando que o direito de preferência invocado cede perante o direito de preferência do arrendatário, nos termos previstos nos arts 31º do NRAR e 1091º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do Código Civil, uma vez que o prédio objeto da preferência encontra-se arrendado aos réus desde 09/2022, mantendo-se em vigor até ../../2021, data em que os réus adquiriram a propriedade do imóvel; desde essa data que detêm o imóvel publicamente; mais alegam ter comprado à ré BB, em 12/09/2022, o prédio designado “... ou ...”, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...51, inscrito na atual matriz sob o artigo ...59, com o valor patrimonial de €67,12, sendo que aquando da celebração do referido contrato de compra e venda, quer a falecida GG, quer FF tiveram conhecimento da sua celebração e dos elementos essenciais do negócio, sendo que os mesmos se opuseram a tal contrato e/ou invocaram algum direito de preferência; consideram ainda que o autor tinha pleno conhecimento do uso do terreno pelos réus há mais de 20 anos, tendo estes usado o terreno para exercício de atividade florestal, bem como para depósito de maquinaria industrial; consideram que o direito de preferência invocado pela autora cede perante o direito de preferência do arrendatário; terminam peticionando a absolvição da causa.

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Os presentes autos foram iniciados pela herança aberta por óbito de GG, NIF ...09, representada pelos únicos e universais herdeiros AA, divorciada, NIF ...26 residente na Rua ...., freguesia ... (...), ... ..., FF, viúvo, NIF ...47, residente na Avenida ..., freguesia ..., ... ... e FF, solteiro, maior, NIF ...88, residente na Avenida ..., freguesia ..., ... ...; conforme decorre do n/ despacho com refª ...27 (12/09/2024) e o despacho verbal constante da ata com refª ...62 (19/09/2024), atenda a junção aos autos da escritura de partilha de herança e da adjudicação do imóvel em causa à autora AA, considerou-se extinta a instância relativamente aos demais autores e,  consequentemente os autos passaram a prosseguir unicamente com AA na posição de autora.    
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Realizou-se o julgamento e após, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente.
           
Inconformada veio a Autora recorrer, formulando as seguintes Conclusões:

I.
O presente recurso fundamenta-se ao abrigo do artigo 640.º do CPC., na impugnação da matéria de facto ínsita na factualidade dada como provada, verbi gratia, a facticidade constante dos pontos 17,18, 19 e 20, bem, indicando como elemento de prova que impõe decisão diversa, quer as declarações das partes, bem assim os depoimentos das testemunhas.
II.
É entendimento da A./Recorrente que atenta a prova testemunhal e documental produzida e por ser determinante para a boa decisão a proferir, impunha-se ao Tribunal a quo dar como não provado, que:
“17. No dia ../../2002, JJ, à data marido da ré BB e titular do direito de propriedade sobre o imóvel referido em 1), celebrou com o réu CC um acordo escrito designado “contrato de arrendamento rural” que incidia sobre o prédio referido em 1), pelo prazo de 7 anos, tendo sido convencionada a renda anual de €1250,00.
18. O acordo escrito referido em 17) foi-se renovando anualmente até ../../2021, data da transmissão do direito de propriedade do imóvel referido em 1).
19. O réu CC adquiriu o terreno referido em 9) e celebrou o acordo escrito referido em 17) com JJ com o fito de utilizar os ditos terrenos para fins de depósito de maquinaria industrial da atividade que exerce.
20. O réu CC celebrou o acordo escrito referido em 17) com JJ com o fito de adquirir mais tarde o terreno, para efeitos de depósito de maquinaria industrial da atividade que exerce. ".
III.
Dispõe o art. 662.º, n.º 1, do CPC, que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 640.º do CPC, a decisão com base neles proferida.
IV.
Nos termos que ao diante melhor se explicitarão, do processo constam, do universo concatenado da prova produzida, verbi gratia, as declarações das testemunhas KK, LL, MM, os esclarecimentos, designadamente, confessórios, em sede de depoimentos e declarações de parte dos Apelados, CC e BB.
V.
Senão vejamos, a este propósito, entendeu-se na douta sentença sob escrutínio terem sido dados como provados os factos 17 e 18 para o que, considerou o Tribunal “a Quo” que (sic): “(...) o Tribunal valorou a cópia do contrato junta como doc. 1 da contestação da ré BB, juntamente com os depoimentos das testemunhas NN (sobrinho de JJ), LL e MM (noras do réu CC) e OO (filho de CC), os quais confirmaram a existência do contrato, do arrendamento e do pagamento da renda; pese embora as relações familiares de uns e outros em relação ao réu CC, o Tribunal valorou os seus depoimentos por exercerem funções na empresa do réu CC e por esse motivo terem conhecimento direto da existência do contrato e do pagamento das rendas (tendo igualmente mencionado terem sido eles a entregar o dinheiro relativamente ao arrendamento do imóvel), pelo que este facto foi considerado provado..” e quanto ao fato provado 19 e 20 para o que, considerou o Tribunal “ a Quo” que (sic): “(...)provado com fundamento nas declarações de parte do réu CC, da ré BB e da testemunha OO (filho do réu CC); com efeito, os três coincidiram na circunstância de o falecido JJ ter arrendado o imóvel com o fito de o alienar posteriormente a CC, o qual manifestou sempre interesse no terreno e que a ré BB celebrou o negócio de alienação por respeito à vontade do deu falecido marido; na medida em que todos depuseram com conhecimento direto dos factos, de uma maneira que o Tribunal avaliou como objetiva e isenta pese embora o seu natural interesse no desfecho dos autos, considerou estes factos como provados; por outro lado, importa referir que nenhuma prova se produziu que infirmasse estes depoimentos, o que somente reforça a sua credibilidade.”
VI.
No que concretamente concerne aos sobreditos factos 17, 18, 19 e 20, da facticidade dada como provada, entendeu o tribunal a quo, que existia um contrato de arrendamento celebrado em ../../2002 do prédio rústico em discussão nos presentes autos e que se encontrava em vigor até a alienação do prédio, pelo que, o direito de preferência do arrendatário prevalece sobre o do proprietário de terreno confinante e só cede perante o direito de preferência do co-herdeiro ou comproprietário.
VII.
Não pode a aqui Apelante concordar com tal entendimento, pelo que, a tal propósito atentemos nas declarações de parte prestadas pelo R. CC, na sessão de julgamento de 17/09/2024, registo fonográfico 00:28:26 a 00:28:45, bem como o registo fonográfico 00:29:35 a 00:30:24, na mesma sessão de julgamento e com o registo fonográfico 00:31:05 a 00:33:20, na mesma sessão de julgamento.
VIII.
No entanto, tendo em conta o depoimento prestado pela testemunha KK, conhecedor da configuração do terreno, que frequentava com regularidade o prédio rústico, a realidade era bem distinta do que a apresenta pelo Réu, conforme declarações prestadas na sessão de julgamento de 17/09/2024, registo fonográfico 00:01:35 a 00:04:46.
IX.
É possível concluir, objetivamente e sem qualquer margem para ambiguidades (não necessitadas, portanto, de qualquer especial dom interpretativo adveniente da prorrogativa conferida aos senhores magistrados do Princípio da Livre apreciação da prova), do teor das declarações de parte do R. e da testemunha KK, que há uma grande contradição nas mesmas.
X.
Enquanto um diz que apenas faz limpezas no prédio rústico, apesar de ter um “alegado contrato de arrendamento”, não obstante referir que é uma coisa particular dele e do de cujus, ao qual já está documentado nos autos que não tem comunicação nas finanças, que não tem um recibo sequer e que o próprio R. diz que só fazia limpezas, a testemunha KK vem demonstrar outra realidade bem distinta, conseguindo descrever ao pormenor a configuração do prédio rústico, identificando até a vegetação ali presente aos longos dos anos e que o mesmo não se encontrava limpo, mas que só em 2022 é que viu uma alteração do mesmo, após a alienação do mesmo.
XI.
A verdade é que o Recorrido não logrou provar tal facto, antes de mais porque (i) não juntou aos autos recibo de pagamento, até porque o mesmo vem dizer que não tem (ii) não demonstrou que usufruía plenamente do prédio rústico, referindo apenas que fazia limpezas no terreno, até porque estavam as máquinas da sua indústria por perto.
XII.
Mas as contradições não findaram...
XIII. Para isso atentemos as declarações de parte prestadas pela R. BB, na sessão de julgamento de 17/09/2024, registo fonográfico 00:15:06 a 00:15:25.
XIV.
No entanto, socorremos em primeiro lugar as declarações prestadas pela testemunha LL na sessão de julgamento de 04/10/2024, registo fonográfico 00:03:15 a 00:03:55, bem como o registo fonográfico 00:06:42 a 00:07:07, na mesma sessão de julgamento.
XV.
Em segundo lugar as declarações prestadas pela testemunha MM na sessão de julgamento de 04/10/2024, registo fonográfico 00:08:42 a 00:09:11, bem como o registo fonográfico 00:10:12 a 00:10:33, na mesma sessão de julgamento.
XVI.
Atendendo, as declarações de parte da R. BB e das testemunhas LL e MM, quem, alegadamente, se deslocava para a empresa, era o Sr. JJ e que era-lhe entregue um envelope que presumia ter dinheiro para o pagamento da renda.
XVII.
E ainda mais curioso, o que refere a testemunha LL, ao dizer que quem entregava o “envelope” com mais regularidade até era a sua cunhada, mas a mesma veio referir explicitamente que conhecia a Sr. BB, mas o contacto era sobre assuntos de imóveis e de que sobre terrenos nunca teve.
XVIII.
Então, é mais do que evidente que não há contrato de arrendamento, que não houve um pagamento sequer de rendas, porque efetivamente os RR. não lograram provar a sua existência.
XIX.
É possível concluir, objetivamente e sem qualquer margem para dúvidas do teor das declarações do depoimento das testemunhas, LL e MM, com relação aos quais foram tecidas em sede da douta sentença credibilidade, tudo devidamente complementado pelas declarações prestadas pelo RR., que existem nos autos elementos probatórios suficientes para que tivesse sido dado como não provados os factos inscritos nos artigos 17, 18, 19 e 20, pelo que, não existia um contrato de arrendamento do prédio rústico em discussão nos presentes autos e que não foi possível exercer pela A. o direito de preferência por ser proprietária do terreno confinante.
XX.
Por tudo isto e no modesto entendimento da Apelante, existem nos autos abundantes elementos probatórios, mais do que suficientes para que tivessem sido dados como não provados os factos arrimados nos artigos 17,18, 19 e 20, pelo que, deveria ter sido procedente a ação e reconhecido o direito de preferência da Recorrente.

TERMOS EM QUE,
Deve dar-se provimento ao presente recurso, nos termos das conclusões supra, revogando-se a sentença proferida em conformidade, com que se fará
JUSTIÇA!
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Os RR. BB, CC e DD apresentaram contra-alegações, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.
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Questões a decidir:

- Da modificabilidade da decisão de facto;
- Verificar se se encontram reunidos os requisitos necessários à aquisição do imóvel identificado nos autos por parte da A., com base em direito de preferência.
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Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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A matéria considerada provada na 1ª instância é a seguinte:

Factos provados.

1. Mediante a Ap. ...81 de 28/04/2021, encontra-se registada a favor de CC, casado sob o regime de comunhão geral de bens com DD, a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio rústico composto por terreno de pinhal, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., concelho ..., sob o artigo ...43 e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11.
2. Resulta o seguinte da descrição predial do prédio referido em 1):
a. Área: 4800m2;
b. Confrontações: Norte: PP; Sul: QQ; Nascente: PP; Poente: HH;
3. A titularidade do direito de propriedade sobre o prédio referido em 1) foi transmitida aos adquirentes mediante documento particular autenticado designado “contrato de compra e venda” datado de ../../2021, celebrado entre BB, na qualidade de alienante e CC e DD, na qualidade de adquirentes, pelo valor de €9000,00;
4. Mediante a Ap. ...28 de 2023/01/20, encontra-se registada a favor da autora AA a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio rústico designado »... ou ...«, composto por terreno de pastagem, mato, pinhal e eucaliptal, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., concelho ..., sob o artigo ...42 e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19.
5. Resulta o seguinte da descrição predial do prédio referido em 4):
a. Área: 34.145m2;
b. Confrontações: Norte: PP; Sul: Limite da freguesia; Nascente: regueira e RR; Poente: SS;
6. A titularidade do direito de propriedade sobre o prédio referido em 4) encontrava-se registada anteriormente favor de FF, casado sob o regime de comunhão de adquiridos com GG, mediante Ap. ...7 de 2002/09/19.
7. Em ../../2022, faleceu GG, deixando como seus únicos e universais herdeiros o marido FF e os filhos AA e FF.
8. Mediante documento particular designado “contrato de partilha” outorgado em 28/12/2022 no escritório do Solicitador Dr TT, arquivado sob o DPA 24/2022 com seis folhas da Pasta de Atos e Contratos Maço 1/2022, a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio referido em 4) foi adjudicada à autora AA, tendo esta registado a seu favor.
9. Mediante escritura pública de compra e venda celebrada no ... Cartório Notarial ... em 12/09/2022, JJ, à data casado sob o regime de separação de bens com a ré BB, transmitiu ao réu CC, casado sob o regime de comunhão geral de bens com DD, a titularidade do direito de propriedade o prédio rústico designado “... ou ...” sito no lugar ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho ... sob o artigo ...59 (tendo estado anteriormente inscritos sob os artigos ...63 e ...69) e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...51.
10. Desde há mais de 20 anos que a autora, por si ou por via dos seus antecessores, roça, cortam mato, apara árvores e suporta os encargos do prédio referido em 4), à vista de toda a gente e sem oposição e ninguém.
11. O prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., concelho ..., sob o artigo ...42 e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19, referido em 4), confronta, do seu lado nascente, com o prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., concelho ..., sob o artigo ...43 e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11, referido em 1).
12. Os prédios identificados em 1) e 4) destinam-se ao mesmo tipo de cultura agrícola, de mato e florestal, estando integrado na RAN em área florestal de proteção e produção, nos termos do PDM ....
13. Os réus não possuíam, nem possuem, qualquer outro prédio confinante com o prédio referido em 1).
14. A autora não foi notificada para exercer o direito de preferência na alienação do prédio identificado em 1), aquando do negócio referido em 3).
15. Não foi dado conhecimento à autora da venda, do preço, das condições de pagamento, da identidade do comprador e dos restantes elementos da transação/alienação.
16. A autora só tomou conhecimento do negócio referido em 3) em meados de 03/2022.
17. No dia ../../2002, JJ, à data marido da ré BB e titular do direito de propriedade sobre o imóvel referido em 1), celebrou com o réu CC um acordo escrito designado “contrato de arrendamento rural” que incidia sobre o prédio referido em 1), pelo prazo de 7 anos, tendo sido convencionada a renda anual de €1250,00.
18. O acordo escrito referido em 17) foi-se renovando anualmente até ../../2021, data da transmissão do direito de propriedade do imóvel referido em 1).
19. O réu CC adquiriu o terreno referido em 9) e celebrou o acordo escrito referido em 17) com JJ com o fito de utilizar os ditos terrenos para fins de depósito de maquinaria industrial da atividade que exerce.
20. O réu CC celebrou o acordo escrito referido em 17) com JJ com o fito de adquirir mais tarde o terreno, para efeitos de depósito de maquinaria industrial da atividade que exerce.

Factos não-provados;
21. Que a autora tenha tomado conhecimento do negócio referido em 3) nos primeiros cinco dias do mês de 01/2022.
22. Que a ré tenha entregado à autora até ao dia ../../2022 cópia do documento particular de compra e venda autenticado, datado de ../../2021.
23. Que FF e GG, progenitores da autora AA, tenham tido conhecimento da existência e dos elementos essenciais do negócio referido em 9).
24. Que após a celebração do negócio referido em 17), os réus CC e DD tenham efetuado trabalhos de terraplanagem e nivelamento do prédio referido em 1), com vista a permitir o alargamento da sua exposição de gruas.
25. Que a ré BB e JJ tivessem conhecimento das obras referidas no ponto anterior.
26. Que FF tenha conhecimento da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel referido em 1) desde a data da alienação, referida em 3).
27. Que depois da celebração do negócio referido em 3), o réu CC se tenha deslocado a casa de FF a fim de lhe transmitir que iria proceder à limpeza da parte de baixo do terreno e que não se responsabilizava pela limpeza do “matagal” existente para lá das extremas, uma vez que já não pertencia ao seu terreno.
28. Que o réu CC se tenha dirigido ao Presidente de Junta para que este intercedesse junto de FF para o elucidar da necessidade de proceder à limpeza do seu terreno e definirem concretamente até onde vai a responsabilidade de cada um deles.         
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Da análise do recurso de impugnação da matéria de facto:

Quanto à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente especificar, obrigatoriamente e sob pena de rejeição, o seguinte (v. artigo 640º n.º 1 do CPC):
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

Analisadas as conclusões formuladas pela Recorrente, verifica-se que, cumpre o formalismo imposto pelo art. 640º do C. P. Civil, pelo que se vai conhecer de seguida do recurso de impugnação da matéria de facto.
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Cabe então agora verificar se a prova produzida foi bem analisada pelo julgador na 1ª instância.

Resulta do disposto no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Conforme explica Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3ª Edição, pág. 245), a Relação deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações na matéria provada e não provada. Acrescentando que, em face da redação do art. 662º do C. P. Civil, fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe a sua própria convicção, mediante reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis, apenas cedendo nos fatores da imediação e oralidade.
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A Recorrente entende que os pontos 17, 18, 19 e 20, dos factos provados, se encontram incorretamente julgados.
O teor desses pontos é o seguinte:
17. No dia ../../2002, JJ, à data marido da ré BB e titular do direito de propriedade sobre o imóvel referido em 1), celebrou com o réu CC um acordo escrito designado “contrato de arrendamento rural” que incidia sobre o prédio referido em 1), pelo prazo de 7 anos, tendo sido convencionada a renda anual de €1250,00.
18. O acordo escrito referido em 17) foi-se renovando anualmente até ../../2021, data da transmissão do direito de propriedade do imóvel referido em 1).
19. O réu CC adquiriu o terreno referido em 9) e celebrou o acordo escrito referido em 17) com JJ com o fito de utilizar os ditos terrenos para fins de depósito de maquinaria industrial da atividade que exerce.
20. O réu CC celebrou o acordo escrito referido em 17) com JJ com o fito de adquirir mais tarde o terreno, para efeitos de depósito de maquinaria industrial da atividade que exerce.

Vejamos:

A matéria dos pontos 17 e 18 diz respeito à celebração de um contrato de arrendamento entre os RR., pelo que, tal matéria será analisada em conjunto.
Assim:
Sobre esta matéria temos a cópia do contrato, junta com a contestação. É certo que o documento em causa foi impugnado pela parte contrária, no entanto, as testemunhas NN (sobrinho de JJ e da Ré BB, desta por afinidade), LL e MM (noras do Réu CC e funcionárias da empresa de que este é gerente) e OO (filho do Réu CC), embora tivessem referido nunca ter visto tal documento, disseram ter conhecimento da existência de um contrato de arrendamento que tinha como objeto o terreno em causa nos autos, celebrado entre o Réu CC e o então marido da Ré BB, JJ (já falecido). A primeira testemunha referida, disse que o tio lhe disse muitas vezes que o terreno em causa ficaria para a sua mulher BB, após a sua morte e que estava arrendado ao Sr. CC. A testemunha LL, disse que desde há pelo menos 10 anos (altura em que começou a trabalhar na empresa do sogro), por vezes o seu sogro, quando se ausentava da empresa, lhe pedia para entregar um envelope com dinheiro ao Sr. JJ, dizendo que era para pagamento da renda do terreno. Por vezes fazia o mesmo pedido à sua cunhada MM. O Sr. JJ passava pela empresa para ir buscar o envelope. A testemunha MM, disse que há mais de 20 anos que o terreno estava arrendado ao sogro. Por vezes este pedia-lhe para entregar ao Sr. JJ um envelope com o valor da renda. Tratava-se do valor anual. Não sabe que valor era esse. A testemunha OO referiu que há muitos anos que existia o contrato de arrendamento. Desconhecia se existia contrato escrito, mas pelo menos estava verbalizado. Todas estas testemunhas e, principalmente, as testemunhas LL e MM, depuseram de forma segura, séria e credível, relatando os factos de que tinham conhecimento direto. Deste modo, tal como a primeira instância, entende-se que os factos em análise devem considerar-se provados.

Quanto à matéria dos pontos 19 e 20, a mesma foi referida pelo Réu CC e pelo seu filho e não há razões para duvidar de tais declarações já que as instalações da empresa de que o Réu é gerente se encontram num terreno contíguo ao que está em causa nos autos. Por outro lado, nenhuma das testemunhas indicadas pela Autora contradisse tais factos.

Assim, é de manter a redação dada aos mencionados pontos.

O Direito:
                  
O direito de preferência atribui a um sujeito a prioridade na aquisição, em caso de alienação ou oneração realizada pelo titular atual de um direito real (v. José de Oliveira Ascenção in Direito Civil – Reais, 4ª ed., pág. 512) desde que ele manifeste vontade de o realizar nas mesmas condições que foram acordadas entre o sujeito vinculado à preferência e um terceiro (v. Manuel Henriques Mesquita in Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 189).
A preferência concedida pelo art. 1380º, nº 1 do C. Civil e invocada pela Autora, beneficia os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura e visa propiciar o emparcelamento de terrenos, visando uma exploração agrícola tecnicamente rentável, evitando-se assim a proliferação do minifúndio. (v. Ac. STJ de 25/3/10 in www.dgsi.pt).
Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil anotado, vol. III, pág. 271). “O objectivo do artigo 1380º é fomentar o emparcelamento de terrenos minifundiários, criando objetivamente as condições que, sob o ponto de vista económico, se consideram imprescindíveis à constituição de explorações rendíveis”.
A razão de ser da preferência consignada no mencionado preceito é unir terrenos, de forma que os mesmos atinjam ou se aproximem da unidade de cultura, tornando a sua exploração mais viável e rentável.

Os Réus referem que o Réu CC beneficia da preferência concedida ao arrendatário.
Efetivamente, o art. 31º n.º 2 do NRAR (Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13/10) atribui ao arrendatário cujo contrato vigore há mais de três anos o direito de preferir em caso de venda ou dação em cumprimento de prédios que sejam objeto de arrendamento agrícola ou florestal.
No caso, o Réu CC tem há mais de três anos, a posição de arrendatário num contrato de arrendamento rural, aproveitando-lhe o disposto no mencionado art. 31º do NRAR, uma vez que “a lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretiza o acto de alienação, em virtude de o direito legal de preferência não passar de uma faculdade integrada no conteúdo do direito do arrendatário que, só a prática do negócio translativo da propriedade sem que o locador lhe tenha oferecido a preferência, a transforma em direito potestativo” (v. Acs. STJ de 21/01/16 e de 14/09/23).
Este direito a preferir só caduca perante o exercício do mesmo direito, por co-herdeiro ou comproprietário (nº 3 do mesmo preceito).
Assim, prevalece o direito de preferência do arrendatário rural, em face do direito de preferência do proprietário de terreno confinante. (neste sentido os Acs. do STJ de 4/03/04; da R.E. de 1/06/06; da R. C. de 17/11/09; da Ac. R.L. de 16/10/14, ambos em www.dgsi.pt ).
O facto de o arrendatário não estar a exercer no prédio qualquer atividade agrícola, não impede o exercício do direito de preferência, pois, como se diz no Acórdão do STJ 14/07/16 de (in www.dgsi.pt ) “A obrigação imposta ao arrendatário pelo n.º 3 do artigo 28.º do RAR de cultivar o prédio directamente, como seu proprietário, durante, pelo menos, cinco anos, surge como uma decorrência do prévio exercício do direito de preferência pelo arrendatário rural, pois só então este assume a qualidade de proprietário.
No momento em que o direito potestativo de preferência é exercido por via judicial, ou seja, através de acção de preferência – artigo 1410.º do Código Civil – como é o caso, o titular é ainda arrendatário e não proprietário.
A qualidade de proprietário advém com a sentença que julgue a acção procedente, por isso que constitutiva – cf. art. 10.º, n.º 2 al. c) do CPC.”

Deste modo, mais não resta que confirmar a sentença recorrida.             
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DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
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Guimarães, 27 de fevereiro de 2025

Alexandra Rolim Mendes
António Beça Pereira
José Cravo