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ACÇÃO POPULAR
COMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário
I – A competência do tribunal em razão da matéria afere-se em função dos termos em que a acção é proposta, determinando-se pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos (causa de pedir), independentemente da apreciação do seu acerto substancial. II. Residindo a causa de pedir dos pedidos indemnizatórios formulados na presente ação popular na comercialização pela Ré de um produto com a rotulagem em língua estrangeira e sem a respetiva e obrigatória tradução para a língua portuguesa, a qual não se enquadra em nenhuma das previstas infrações ao direito da concorrência, mas sim versa sobre direito dos consumidores, o Juízo Central Cível é o competente, em razão da matéria, para julgar esta ação.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório
EMP01... - Consumer Advocacy Association intentou, no Juízo Central Cível de Braga - Juiz ... - do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, acção declarativa popular de condenação, sob a forma única de processo, nos termos do disposto do art. 548º, aplicável “ex vi”, do art. 546º, ambos do Código de Processo Civil, contra EMP02..., S.A., peticionando que seja:
A. declarado que a ré teve o comportamento descrito no §3 supra, e que o mesmo é:
1. doloso; ou, pelo menos,
2. grosseiramente negligente;
B. declarado que agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, com os autores populares;
C. declarado que com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos à informação enquanto consumidores;
D. declarado que causou e causa danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços;
E. declarada a violação, ainda em curso, através de uma prática única e continuada, dos interesses identificados, causando danos diretamente aos consumidores, portugueses, que adquiriram, no estabelecimento da ré, os gnocchi da marca ..., 1 Kg, com a rotulagem totalmente em língua francesa e sem a respetiva e obrigatória tradução para a língua portuguesa.
F. condenada a ré a realizar a retoma dos gnocchi supra identificados que ainda se encontram à venda para substituir os rótulos com informação em língua portuguesa, nomeadamente no caso das informações redigidas em língua estrangeira, por via da tradução de tais informações a ser aposta ou aditada aos rótulos em questão, caso os deseje reintroduzir novamente no mercado.
G. condenada a ré a realizar a retoma dos gnocchi supra identificados a todos os consumidores que, tendo-os adquirido nos últimos 3 anos, os desejem devolver;
H. condenada a ré a indemnizar os consumidores que tenham adquirido nos últimos 3 anos os gnocchi supra identificados e que não os possam devolver por uma qualquer razão, pelos danos que sofreram em resultado das práticas em causa, no que respeita ao preço pagos pelos gnocchi supra referidos, seja a titulo doloso ou negligente, em montante global:
1. a determinar nos termos do artigo 609, do CPC;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo preço pago;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
I. subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar os consumidores que tenham adquirido nos últimos 3 anos os gnocchi supra identificados, em montante global:
1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em pelo menos €5,92;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo preço pago;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
J. condenada a ré a indemnizar os consumidores representados, clientes da ré, pelos danos que sofreram em resultado das práticas em causa, no que respeita aos danos morais causados pelas práticas ilícitas, em montante global:
1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, mas nunca inferior €1 por autor popular;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
K. condenada a ré a indemnizar os consumidores representados, in casu, todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos que sofreram em resultado das práticas em causa, no que respeita aos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:
1. nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que €0,11 por autor popular, in casu, agregados familiares privativos;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
L. ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a representante da classe tiver ou venha ainda a ter com o processo e com eventual incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela representante da classe12;
M. porque o artigo 22 (2), da lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que EMP01... – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como representante da classe neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes. subsidiariamente, e nos termos do §4 (m):
N. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pelo preço cobrado pelos produtos em causa, tal como sustentando em § 4 (i) supra. em qualquer caso, deve:
O. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danos que tal comportamento lhes causou; requer-se ainda que Vossa Excelência:
P. decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;
Q. decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do infra, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;
R. seja publicada a decisão transitadas em julgado, a expensas da ré e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 19 (2), da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito;
S. declare que a representante da classe tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança das quantias que a ré venha a ser condenada, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença;
T. declare, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que a ré deve proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo tribunal para proceder à administração da mesma tal como requerido em infra, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene a ré nesse pagamento;
U. declare uma remuneração, com uma taxa anual de 5 % sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) nos termos do requerido infra, a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar;
V. declare que a representante da classe tem direito a uma quantia a liquidar em execução de sentença, a título de procuradoria, relativamente a todos os custos que teve com a presente ação, incluindo honorários com todos os serviços prestados, tanto de advogados, como de técnicos especialistas, como com a obtenção e produção de documentação e custos de financiamento e respetivo imposto de valor acrescentado nos termos dos artigos 21 e 22 (5), da lei 83/95, sendo tais valores pagos exclusivamente daquilo que resultarem dos montantes prescritos nos termos do artigo 22 (4) e (5), da lei 83/95.
W. declare a representante da classe isenta de custas;
X. condene a ré em custas.
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Aberta vista ao Ministério Público foi arguida a exceção de incompetência em razão da matéria para conhecer da acção (ref.ª ...84).
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Cumprido o contraditório, o Autor pugnou pela improcedência de tal excepção (ref.ª ...96).
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Findos os articulados, por despacho saneador datado de 21.11.2024 foi decidido (ref.ª ...09):
Julgar «verificada a excepção dilatória de incompetência material, declarando este Juízo Central Cível de Braga, incompetente em razão da matéria para a apreciação da presente ação e, consequentemente, absolvo a R. da instância, artigos 96º al a), 97º nº 1 e 2, 99ºnº 1 e 2, 576º nº 1 e 2 e 577º al a) e 578º, todos do CPC».
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Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso o autor (cfr. Ref.ª ...89), tendo formulado, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1. Os recorrentes, autores populares, interpõe o presente recurso por entenderem que o tribunal a quo não fez a melhor e mais correta interpretação do direito ao entender verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal para conhecer a presente ação e em consequência ter absolvido a ré da instância. 2. O presente recurso é de apelação e é feito nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1, a) e 647 (1), todos do CPC, para o VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, o qual subirá de imediato e com efeito meramente devolutivo. 3. Os recorrentes, mui respeitosamente, discordam da douta sentença pelas razões de direito vertidas no §§ 2 e 4 supra, para onde se remete para uma completa compreensão e evitando aqui uma repetição fastidiosa e prolixa do que aí se encontra de forma resumida. 4. Mas que, resumindo, se estriba, no facto dos autores não concordam que a competência material para julgar a presente ação é do Tribunal da Concorrência, da Relação e Supervisão. 5. Isto porque, uma vez que a aferição do pressuposto processual da competência em razão da matéria é retirada em função da relação material controvertida, tal como configurada pelos autores, é absolutamente irrelevante o juízo de prognose relativamente ao mérito da causa. 6. Assim, focando-nos apenas em como a ação foi configurada, desde logo atento ao pedido e causa de pedir, supra depurados em §§ 3, que aqui se dá como reproduzido por uma questão de proficiência, recorta-se com elevada nitescência que nos presentes autos é discutido o direito que encontra estribo nos artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96, sendo que nenhum deles é direito da concorrência. Não obstante, o pedido e a causa de pedir versarem, também, sobre o direito da concorrência derivado da distorção das condições de equidade concorrencial e do abuso de posição dominante. 7. Assim, ainda que se possa falar de direito da concorrência nesta ação, o pedido é, mais do que isso, direitos dos consumidores com base, nomeadamente, na lei 24/96, o que por si só é suficiente para se afastar a competência do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão [cf. contrario sensu, artigo 112 (3) e (4), ab initio, da lei 62/2013]. 8. O retro referido normativo estabelece que a competência do supra referido tribunal da concorrência para julgar ações de indemnização têm de se fundar exclusivamente em infrações ao direito da concorrência – que como se viu não é aqui o caso. 9. Atentos ao disposto no artigo 117 (1, a, d), da lei 62/2013, em conjugação com os artigos 60 (1), 64 e 66, do CPC, é da competência dos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00. 10. Por conseguinte, o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Braga, é materialmente competente para prosseguir com a ação. §6. Pedido Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta sentença, nomeadamente pela não verificação da exceção dilatória invocada pelo tribunal recorrido, devendo ser considerado o Juízo Central Cível de Braga materialmente competente para julgar todos os pedidos formulados pelos autores populares».
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Contra-alegou o Ministério Público e a Ré, pugnando ambos pela manutenção da decisão recorrida e improcedência do recurso (cfr. Ref.ªs ...97 e ...52).
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. Ref.ª ...13).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste tribunal consiste em saber se o tribunal recorrido é competente em razão da matéria para conhecer da presente acção.
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III. Fundamentação de facto
As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do presente recurso são as que decorrem do relatório supra (que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidas),
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IV. Fundamentação de direito
1. Indagar qual o tribunal materialmente competente para a causa: se o Tribunal comum ou se o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.
A questão a apreciar e decidir reside em determinar se se verifica a exceção (dilatória) de incompetência material, determinando se, como decidiu o Tribunal “a quo”, a presente ação é de private enforcement da concorrência e, por isso, o tribunal competente para apreciar e julgar a presente causa é o Tribunal da concorrência, regulação e supervisão, nos termos previstos no art. 64º do CPC e art. 112º da Lei n.º 62/2013, de 26/08 [que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciário[1] (abreviadamente designada LOSJ)], ou, ao invés, como sustenta o apelante, se deve concluir-se pela competência do Juízo Central Cível, nos termos previstos nos arts. 60º, 64º e 66º do CPC e no art. 117, n.º 1, als. a) e d), da LOSJ.
A competência do tribunal é um pressuposto processual para que o tribunal se ocupe da questão, a apreciar em concreto, perante cada acção, em ordem a determinar se entre esta e aquele existe a conexão considerada relevante e decisiva pela lei, atribuindo-lhe o poder para apreciar a causa. Proposta a acção em tribunal diferente do que decorre das regras de competência, verifica-se a incompetência do tribunal que consiste na “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”[2].
Dispõe o art. 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que “[o]s tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Este preceito atribui aos tribunais judiciais uma competência própria em matéria cível e criminal e uma competência residual quanto ao que não pertencer à competência de outras ordens jurisdicionais[3].
Nele se estabelece o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, uma vez que ela se estende a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais.
Sob a epígrafe “Fatores determinantes da competência na ordem interna”, prescreve o art. 60º do CPC: “1 - A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código. 2 - Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território”.
Na concretização do enunciado constitucional estabelecido no n.º 1 do art. 211.º da CRP, prevê o art. 64.º do CPC que são “da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
A competência dos tribunais comuns, em razão da matéria, é residual, isto é, afirma-se na ausência de qualquer outra ordem jurisdicional com competência para a causa.
“A competência dos tribunais judiciais constitui a regra; é genérica. A dos tribunais especiais constitui a exceção; é específica”[4].
“As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada” (art. 65º do CPC).
A competência em razão da matéria (ratione materiae), respeita à distribuição do poder jurisdicional pelas diversas espécies e ordens de tribunais considerados no mesmo plano, isto é horizontalmente, sem que entre eles exista uma qualquer relação de subordinação ou dependência hierárquica[5].
A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (art. 96º, al. a) do CPC), traduzindo-se numa exceção dilatória (arts. 576º, n.º 1, e 577º, al. a), do CPC), de conhecimento oficioso do tribunal (art. 578º do CPC), que, consoante o tipo de processo e a fase processual em curso, acarreta a absolvição dos réus da instância ou o indeferimento liminar da petição inicial (arts. 99º, n.º 1 e 278º, n.º 1, al. a), do CPC).
Nos termos da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ):
- “Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território” (art. 37º, n.º 1).
- “A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (art. 38º, n.º 1).
- “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (art. 40º, n.º 1).
- “A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada” (n.º 2 do art. 40º).
- “Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada”(art. 130º, n.º 1).
O juízo central cível é um juízo de competência especializada (art. 81º, n.ºs 1 e 3, al. a) da LOSJ), cuja competência consta do n.º 1 do art. 117º, a saber:
“a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00; b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal; c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência; d) Exercer as demais competências conferidas por lei (…).
Como é entendimento maioritário da jurisprudência e doutrina, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respetivos fundamentos (causa de pedir), independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e da apreciação do seu acerto substancial[6]. Por isso, para se aferir da competência material do tribunal importa apenas atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.
Como advertia Manuel de Andrade "(...) a competência do tribunal (…) afere-se pelo 'quid disputatum' (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)"; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes. (...) É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão (…)"[7].
Há que atender, assim, ao direito a que ele se arroga e às consequências que, a partir daí, pretenda que o tribunal declare ou decrete.Isto porque o objeto do processo é, em regra, conformado pela pretensão do autor, a qual traça o âmbito máximo do “thema decidendum”, sob pena da posição do Réu poder revestir um efeito redutor do objeto processual, o que não se nos afigura correto.
Por outro lado e tal como é, aliás, entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme, a competência do tribunal, em geral, não está dependente da personalidade judiciária de demandante(s) e demandado(s) ou sequer da legitimidade das partes, sendo que para a aferição da mesma nada releva um julgamento quanto à procedência da pretensão ou da ação. É que saber se a configuração jurídica que os interessados dão à sua pretensão é ou não correta, ou se procedem as razões dos demandados, é questão que já contende com o mérito do processo e que não deve interferir na decisão sobre a competência do tribunal.
Nas palavras de Manuel de Andrade[8], “na definição desta competência [em razão da matéria], a lei atende à matéria da causa, quer dizer ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada. Trata-se, pois, duma competência ratione materiae. A instituição de diversas espécies de tribunais e a demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes”.
Na verdade, na base da repartição da competência em razão da matéria encontra-se o princípio da especialização com as vantagens que do mesmo resulta para a boa aplicação da justiça. Atenta a complexidade e vastidão das normas jurídicas, é indiscutível que a especialização, permitindo um conhecimento mais profundo do Direito, contribui para a sua melhor aplicação[9].
No caso, estão em causa critérios de repartição da competência entre otribunal da concorrência, regulação e supervisão e os tribunais comuns.
A competência do tribunal da concorrência, regulação e supervisão está prevista, no que aqui importa, nos n.ºs 3 e 4 do art. 112.º da LOSJ, os quais dispõem: «(…) 3 - Compete ao tribunal julgar ações de indemnização cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infrações ao direito da concorrência, ações destinadas ao exercício do direito de regresso entre coinfratores, bem como pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais ações, nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de junho. 4 - Compete ainda ao tribunal julgar todas as demais ações civis cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infrações ao direito da concorrência previstas nos artigos 9.º, 11.º e 12.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, em normas correspondentes de outros Estados-Membros e/ou nos artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia bem como pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais ações, nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de junho».
Da leitura do referido preceito normativo feita no Ac. da RG de 29/05/2024 (relatora Sandra Melo), in www.dgsi.pt., quando os pedidos, além de se fundarem em normas concorrenciais, se fundamentem em outras, de diferente natureza, fica afastada a competência do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.
É reconhecido que o direito da concorrência e o direito do consumidor têm campos de atuação muito próximos, até porque o direito da concorrência tem como um de seus princípios básicos a proteção do consumidor. Assim, a violação do direito concorrencial pode passar pela violação de normas que protegem o direito do consumidor, mas tal violação terá que ir mais além, visto que a função do direito da concorrência é proteger o funcionamento eficiente dos mercados, com os consequentes benefícios assim gerados aos consumidores, à economia e à sociedade como um todo.
Isto é: se a parte formula o seu pedido com base exclusiva em alguns dos institutos previstos no art. 112º, n.ºs 3 e 4, da LOTJ, mesmo que para tanto tenha que recorrer a outros institutos como o simples direito do consumidor, a competência da ação caberá ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão; se ao formular os pedidos cumula causas de pedir, referindo o Direito da Concorrência, mas recorrendo diretamente e essencialmente a outros institutos, independentemente das consequência da ação no mercado concorrencial, fica excluída a jurisdição daquele Tribunal, por não se discutir matéria da sua exclusiva competência.
No caso sub júdice, quer a decisão recorrida, quer a recorrida/Ré, bem como o Ministério Público fundamentam a sua posição coincidente na circunstância do Autor, na petição inicial, se referir à violação de regras do direito da concorrência[10].
As violações ao direito da concorrência estão previstas nos arts. 9.º, 11.º e 12.º da Lei n.º 19/12, de 08/05 (LDC) – que estabelece o regime jurídico da concorrência – e reconduzem-se a: «Artigo 9.º Acordos, práticas concertadas e decisões de associações de empresas 1 - São proibidos os acordos entre empresas, as práticas concertadas entre empresas e as decisões de associações de empresas que tenham por objeto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional, nomeadamente os que consistam em: a) Fixar, de forma direta ou indireta, os preços de compra ou de venda ou quaisquer outras condições de transação; b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos; c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento; d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes, colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência; e) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos; f) Estabelecer, no âmbito do fornecimento de bens ou serviços de alojamento em empreendimentos turísticos ou estabelecimentos de alojamento local, que o outro contraente ou qualquer outra entidade não podem oferecer, em plataforma eletrónica ou em estabelecimento em espaço físico, preços ou outras condições de venda do mesmo bem ou serviço que sejam mais vantajosas do que as praticadas por intermediário que atue através de plataforma eletrónica. (…) Artigo 11.º Abuso de posição dominante 1 - É proibida a exploração abusiva, por uma ou mais empresas, de uma posição dominante no mercado nacional ou numa parte substancial deste. 2 - Pode ser considerado abusivo, nomeadamente: a) Impor, de forma direta ou indireta, preços de compra ou de venda ou outras condições de transação não equitativas; b) Limitar a produção, a distribuição ou o desenvolvimento técnico em prejuízo dos consumidores; c) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes, colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência; d) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não tenham ligação com o objeto desses contratos; e) Recusar o acesso a uma rede ou a outras infraestruturas essenciais por si controladas, contra remuneração adequada, a qualquer outra empresa, desde que, sem esse acesso, esta não consiga, por razões de facto ou legais, operar como concorrente da empresa em posição dominante no mercado a montante ou a jusante, a menos que esta última demonstre que, por motivos operacionais ou outros, tal acesso é impossível em condições de razoabilidade. Artigo 12.º Abuso de dependência económica 1 - É proibida, na medida em que seja suscetível de afetar o funcionamento do mercado ou a estrutura da concorrência, a exploração abusiva, por uma ou mais empresas, do estado de dependência económica em que se encontre relativamente a elas qualquer empresa fornecedora ou cliente, por não dispor de alternativa equivalente. 2 - Podem ser considerados como abuso, entre outros, os seguintes casos: a) A adoção de qualquer dos comportamentos previstos nas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo anterior; b) A rutura injustificada, total ou parcial, de uma relação comercial estabelecida, tendo em consideração as relações comerciais anteriores, os usos reconhecidos no ramo da atividade económica e as condições contratuais estabelecidas. (…)».
Respeitando o art. 9º da LDC a “Acordos, práticas concertadas e decisões de associações de empresas”, ou seja, estando em causa um acordo entre empresas ou associações, tal exclui à partida a aplicação deste preceito normativo à conduta imputada, em singelo, à aqui Ré.
Por sua vez, punindo o art. 11º o abuso da posição dominante, a existência de posição dominante pressupõe a definição prévia do mercado relevante, a partir do qual se verificam as pressões concorrenciais a que as empresas estarão sujeitas na determinação do seu comportamento[11].
Por fim, no art. 12º da LDC é sancionado o abuso da dependência económica. Em discussão a exploração abusiva por uma ou mais empresas do estado de dependência económica em que se encontre relativamente a elas qualquer empresa fornecedora ou cliente, por não dispor de alternativa equivalente.
Em causa, entre o mais, o relacionamento de empresas com os seus parceiros económicos, tendo sempre como pressuposto a existência de efetiva dependência económica de uma empresa face a outra com a qual mantém uma relação contratual[12].
Da leitura da petição inicial constata-se que o Autor alega como causa de pedir que a ré é uma pessoa coletiva que exerce, com carácter profissional, uma atividade económica que visa a obtenção de benefícios, especificamente dedica-se à distribuição alimentar, por intermédio de venda ao público no mercado nacional de distribuição retalhista de base alimentar, sob a insígnia ....
E que, no âmbito dessa atividade, a ré comercializa, por intermédio de venda ao público, gnocchi da marca ..., 1 Kg, com a rotulagem totalmente em língua francesa e sem a respetiva e obrigatória tradução para a língua portuguesa.
Assim o alega o Autor nos arts. 4.º e 5.º do §1 identificação das partes, nos arts. 8.º e 9.º do §2 sumário e nos arts. 14º e 15º do §3 Factos da petição inicial.
Ora, a comercialização de um produto com a rotulagem totalmente em língua estrangeira e sem a respetiva e obrigatória tradução para a língua portuguesa é o facto jurídico de onde emergem os pedidos indemnizatórios deduzidos pelo Autor [pontos H) a J)], sendo que os demais “pedidos” formulados anteriormente pelo Autor são meras etapas cumulativas ou alternativas que fundamentam os reais pedidos de natureza exclusivamente indemnizatória.
Em termos similares, socorremo-nos da fundamentação explicitada no Ac. da RP de 25/01/2024 (relator João Venade), in www.dgsi.pt., nos termos da qual os precedentes pedidos não são pedidos reais, mas as etapas, cumulativas ou alternativas, que o julgador pode tomar para concluir por deferir o pedido real – pagamento de indemnização aos Autores (saber se violou normas, se comercializou um produto violando as regras legais quanto à respetiva rotulagem, se atuou com dolo ou negligência, com culpa, consciência da licitude e se lesou direitos dos consumidores).
“E eventualmente até se pode entender que as práticas civis podem também configurar crime ou contraordenações mas não o vai declarar porque não tem competência para tal nem se afigura que os Autores pretendem que o tribunal decida que a Ré praticou um crime ou uma contraordenação; a declaração que os Autores efetivamente pedem, na nossa visão, é a de que o tribunal atenda a que a atuação da Ré é grave, está legalmente prevista mas depois, para si como procedência do pedido, só pretendem o pagamento de quantias pecuniárias”.
São assim aparentes aqueles outros pedidos que não os de indemnização[13].
Por isso, a opção de se formular tais pedidos redunda numa opção de formular pedidos aparentes que não têm de ser decididos.
Ainda que assim não se entenda, importa ponderar outra possibilidade de apreciação.
Sustenta a decisão recorrida, em abono da promoção aduzida pelo Ministério Público, estar «em causa o direito a indemnização, na qualidade de consumidores, por violação do direito da concorrência - artigo 19º da Lei do Private Enforcement (Lei nº 23/2018, de 5 de junho, que prevê o Direito a indemnização por infração ao direito da concorrência, transpõe a Diretiva 2014/104/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia) meio processual instituído para garantir o ressarcimento dos consumidores lesados por violação do direito da concorrência, já que, no contexto da tutela de interesses difusos, permite no plano indemnizatório ressarcir interesses coletivos e individuais homogéneos defendidos por associações de consumidores», acrescentando que a «jurisdição para as ações de private enforcement da concorrência cabe ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão».
Acrescenta ainda que «a causa de pedir subsumir-se-á integralmente na previsão legal dos nºs 3 e 4 do artigo 112º da LOSJ, uma vez que a mesma assenta dominantemente em infrações ao direito da concorrência».
Pensamos que, nos autos, não está em causa nenhuma das situações previstas nos arts. 9.º, 11.º e 12.º da Lei n.º 19/12, de 08/05 – acordo de empresa ou prática concertada, abuso de posição dominante ou de dependência económica –, pois a única atuação é a comercialização de um artigo sem que a respetiva rotulagem obedeça às normas legais que impõem a obrigatória tradução para a língua portuguesa, o que não se integra em nenhuma das alíneas acima indicadas. Não está alegado que aquela situação tenha por base uma atuação concertada ou o abuso de uma posição dominante; não se alega que a Ré entrou em acordo com outra empresa para atuar como descrito nem que o faça, de modo não equitativo, porque entende que o pode fazer, por dominar o mercado.
Excluída está, pois, a aplicação daqueles normativos legais à situação dos autos.
Admitindo que o pedido objeto do ponto K verse sobre direito da concorrência – o que é reconhecido/confessado pela recorrente –, já o mesmo não se poderá concluir dos precedentes pedidos, que tratam de direitos dos consumidores ao abrigo do regime consagrado na Lei n.º 24/96.
Por outro lado, os pedidos formulados pelo autor não assentam em duas causas de pedir distintas, que devam ser consideradas de forma independente. A causa de pedir, como vimos, é única. Daí que não haja fundamento para recorrer à figura da causa de pedir dominante.
Acresce que, não só a qualificação jurídica pelo Autor da infração que justifica os seus pedidos indemnizatórios não tem a virtualidade de determinar, só por si, a norma jurídica violada, uma vez que o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3, do CPC), o que também vale para a determinação da natureza da causa de pedir, quando esta releva na aferição da competência do tribunal[14], como também, da leitura da petição inicial se constata que, para além da alegação da violação do direito da concorrência, o Autor baseou os seus pedidos indemnizatórios na violação de qualquer uma das seguintes normas[15]:
1. os artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, g) e 9 (1, a, b) do Decreto-Lei n.º 57/2008;
2. os artigos 3 (d, e), 8 (1, a) e (5) e 9 (1) da Lei n.º 24/96, e ainda;
3. o artigo 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 238/86, aplicável “ex vi” do artigo 26 do Decreto-Lei n.º 10/215.
4. o artigo 3 §2 (b) do Regulamento (CE) 1924/2006;
5. os artigos 6 (1,b), 7 (1) (2) e 8, da Diretiva 2005/29/CE;
6. a Diretiva 2014/104/UE – quanto às regras que regem às ações de indemnização por infração do direito da concorrência.
Ora, o art. 112.º, n.º 3, da LOSJ, invocado na decisão recorrida para justificar a competência do Tribunal da concorrência, regulação e supervisão, para julgar a presente ação, dispõe que compete ao tribunal julgar ações de indemnização cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente (sublinhado nosso) em infrações ao direito da concorrência, pelo que nunca a mera referência à violação do direito da concorrência, no meio da indicação de muitas outras normas violadas, teria o condão de encaminhar esta ação para aquele tribunal especializado.
Deste modo, se porventura se entender que todos os pedidos formulados pelo Autor são reais – e não pedidos aparentes –, então nunca estará em causa matéria exclusiva do direito de concorrência[16].
Está, assim, afastada a aplicação do n.º 3 do citado art. 112.º da LOTJ e nem sequer é necessário analisar o disposto no n.º 4 do mesmo preceito normativo, pois este visa as ações em que não seja pedida indemnização, o que não é o caso dos presentes autos.
Pelo exposto, sempre o juízo central cível seria competente em razão da matéria, conforme o disposto no artigo 112.º, n.ºs 3 e 4, a contrario, da citada LOSJ.
Assim, atenta a competência residual dos tribunais cíveis (arts. 40º, n.º 1 e 117.º, n.º 1, al. a), da LOSJ e art. 64.º do CPC), o tribunal competente, em razão da matéria, é aquele onde foi proposta a ação.
Por estas razões, deve o recurso ser julgado procedente, sendo de revogar a decisão recorrida.
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V. DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a presente apelação, e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se o Juízo Central Cível de Braga - Juiz ... - do Tribunal Judicial da Comarca de Braga competente, em razão da matéria, para a tramitação e julgamento dos autos.
Custas da apelação a cargo da Ré/apelada, estando o Ministério Público isento do seu pagamento (art. 4º, n.º 1, al. b) do Reg. Custas Processuais).
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Guimarães, 27 de fevereiro de 2025
Alcides Rodrigues (relator)
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira (1ª adjunta)
Maria Luísa Duarte Ramos (2ª adjunta)
[1] Que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário (art. 1º). [2] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, Lex, p. 128. [3] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, anotação ao art. 64º, CPC Online, CPC: art. 1.º a 129.º, Versão de 2024/12, pp. 80/81, in https://drive.google.com/file/d/1NgBsOLsoGXMXNqzKRBmrQEI3u-VTSOy5/view [4] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 95, [5] Cfr. Ac. do STJ de 12/10/2023 (relator Ferreira Lopes), in www.dgsi.pt. [6] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, Coimbra Editora, p. 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 91, Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 104, Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, Lex, 1999, 3ª ed., p. 25, Mariana França Monteiro, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, Coleção Teses, 2004, Almedina, pp, 168/170, e, entre outros, os Acs. do STJ de 25/06/09 (relator Pinto Hespanhol), de 22/10/2015 (relator Tomé Gomes), de 13/10/2016 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), de 29/11/2016 (relator Alexandre Reis), de 06/12/2016 (relator Fonseca Ramos) e de 02/03/2017 (relator António Piçarra), todos acessíveis em www.dgsi.pt. [7] Cfr. obra citada, p. 91. [8] Cfr. obra citada, p. 95. [9] Cfr. António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., 2015, Quid Juris, p. 178. [10] Cfr. Na explanação seguiremos de perto, sem embargo da introdução das necessárias adaptações, a fundamentação do Ac. do STJ de 18/04/2024 (relator João Cura Mariano) e do Ac. da RP de 25/01/2024 (relator João Venade), disponíveis in www.dgsi.pt., nos quais estava em causa a prática de um preço superior ao anunciado/publicitado. [11] Cfr. Lei da Concorrência Anotada, Coordenação de Carlos Botelho Moniz, Almedina, 2016, nota 6, p. 112, em anotação ao artigo 11º . [12] Cfr. Lei da Concorrência Anotada, supra citada, p. 136, em anotação ao artigo 12º . [13] A multiplicidade dos pedidos é meramente de caráter processual, nomeadamente por refletirem as múltiplas operações (v.g. uma prévia e instrumental - de apreciação, e outra posterior - de condenação) que o tribunal terá de desenvolver para atingir o fim último da ação (a «utilidade económica imediata do pedido») – cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 3.º, Coimbra Editora, 1946, pp. 147 e 148. [14] Cfr. Mariana França Monteiro, obra citada, (…), p. 184. [15] Cfr. arts. 6.º e 7.º do §2 sumário da petição inicial. [16] Cfr. Acs. da RP de 25/01/2024 (relator João Venade) e de 27/11/2023 (relatora Fátima Andrade), in www.dgsi.pt.