Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
MAIOR ACOMPANHADO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Sumário
I - A lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, a qual se fixa no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei. II - Em face do disposto no artigo 59.º do CPC, importa aferir se a situação em análise está abrangida por qualquer regulamento europeu ou outro instrumento internacional que vincule o Estado Português, caso em que as respetivas disposições prevalecerão no âmbito dos critérios determinativos da competência internacional. III - A Convenção de Haia, n.º 35, de 2000, relativa à proteção internacional de adultos, atribui competência para adotar medidas tendentes à proteção da pessoa ou dos bens do adulto, em primeiro lugar, às autoridades judiciárias ou administrativas do Estado Contratante onde o adulto tem a sua residência habitual. IV - Atendendo ao alegado pela requerente, sem esquecer que a requerida é casada desde ../../1958 e que, de acordo com o que decorre dos autos, a casa de morada de família, na qual permanece o marido, se situa em Portugal, importa concluir que a requerida/beneficiária tem o seu centro de vida neste país, correspondendo a sua residência em Portugal ao local onde se encontra organizada a sua vida individual, familiar e social em termos de estabilidade e permanência, apesar de se encontrar previsivelmente em França, com a filha mais nova, desde meados de abril de 2024, pelo que a presente ação especial para acompanhamento de maior podia ser instaurada em Portugal.
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães: I. Relatório
Em 16-10-2024, AA, residente narua ..., freguesia ..., ..., concelho ..., intentou, no Juízo Local Cível de Ponte de Lima, ação especial para acompanhamento de maior, relativamente à sua mãe BB, casada, portadora do documento de identificação civil n.º ...03 ..., válido até 29-07-2029, número de identificação fiscal n.º ...23, NISS ...19, n.º utente de saúde ...17.
Alega, no essencial, que esta nasceu em ../../1938, padecendo de diversas patologias, que enuncia, sendo portadora de incapacidade que, em julho de 2023, lhe conferia uma incapacidade permanente global de 86%, apresenta desorientação espacial e temporal, não sendo muitas das vezes capaz de conhecer a sucessão dos dias, meses e anos, não sabendo, inclusive qual o dia corrente e em que estação do ano se encontra; apesar a sua condição clínica exigir a realização de permanente de terapêutica farmacológica e acompanhamento médico regular, a beneficiária não consegue cumprir as prescrições médicas sem orientação e supervisão de terceiros, nem é capaz de se deslocar às consultas médicas que lhe sejam marcadas, sem que tenha assistência de uma terceira pessoa, tendo necessidade de terceiras pessoas para a auxiliarem nas mais basilares tarefas do seu quotidiano; ainda por força da sua condição clínica, a beneficiária não consegue manter uma conversação sem ter lapsos de memória, encontrando-se impossibilitada de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos, cumprir os seus deveres, bem como de gerir o seu património ativo e passivo, não apresentando juízo crítico quanto ao perigo a que pode sujeitar-se.
Requer se decrete o acompanhamento da requerida, com aplicação das seguintes medidas: a) representação geral da beneficiária, com constituição do conselho de família; b) administração total dos bens; c) limitação do direito pessoal de fixar residência e de testar, sem limitação de quaisquer outros direitos pessoais por não se mostrarem quaisquer fundamentos que o demandem.
Mais requereu a sua nomeação como acompanhante da beneficiária.
No requerimento de início de processo, a requerente indicou a residência da requerida/beneficiária, nos seguintes termos: «(…) com residência na rua ..., freguesia ..., ..., concelho ..., atualmente desconhece onde reside, desde de meados de abril de 2024».
No requerimento de início de processo, a requerente alegou, entre o mais, que:
«(…)
A beneficiária é casada com CC desde ../../1958. Cfr. Doc. 1 e 2 que se juntam e cujo teor se dá por reproduzido.
(…)
Deste casamento germinaram e subsistem três filhas, AA, nascida a ../../1959, AA, nascida a ../../1969 e DD, nascida a ../../1973. Cfr. Doc. n.º 3, 4 e 5 que se juntam e cujo teor se dá por reproduzido.
(…)
A filha AA foi quem sempre prestou apoio e cuidado à beneficiária nas suas atividades da vida diária, nomeadamente quem lhe confecionava as refeições, a alimenta, procede à sua higiene pessoal e efetua as compras de alimentação e medicação necessárias, assegurando o seu bem-estar, pelo que se mostra a pessoa mais idónea e capaz de assegurar o interesse da beneficiária. Cfr. Doc. n.º 10 a 34 que se juntam e cujo teor se dão por reproduzidos.
(…)
A filha da beneficiária, AA, ainda que residente na rua ..., freguesia ..., sempre cuidou da beneficiária e manifesta total disponibilidade e vontade em exercer as funções de acompanhante, tendo aceite o exercício de tal cargo, sendo reveladora de idoneidade pessoal. Protesta juntar».
Por despacho de 21-10-2024 foi determinada a notificação da requerente para esclarecer o tribunal o motivo pelo qual desconhece onde a requerida reside (critério essencial para determinar a competência territorial do tribunal), e se assim é, como é possível afirmar que é a pessoa indicada para o cargo de acompanhante (e não o marido da requerida ou qualquer outra filha que tenha conhecimento onde reside a mãe e que, naturalmente, prive com a mesma).
A requerente veio corresponder ao convite do Tribunal, alegando o seguinte:
«(…)
A requerida vivia com o seu marido CC, até ../../2024, na sua residência em Moreira ..., concelho ..., na rua ..., ..., nesse dia a filha mais nova, DD sem que qualquer motivo aparente, vinda de França onde reside, deslocou-se à residência dos pais, acompanhada de mais duas pessoas e levou a requerida à força e em pijama, não mais dando notícias, pelo que a requerente presume que a requerida esteja atualmente a viver com a filha mais nova, em 156 Rue ..., ... França.
A requerente declarou e assegura que é a pessoa indicada para o cargo de acompanhante, pela razão que era quem cuidava dos pais, nomeadamente da requerida até à data de 14 de abril 2024, sendo que, do pai continua a cuidar até aos dias hoje.
É o que cumpre esclarecer».
Em 05-12-2024, o Ministério Público invocou a exceção de ilegitimidade da requerente para a propositura da presente ação porquanto não se mostra devidamente autorizada para o efeito pela sua mãe, requerida, nem pediu, fundadamente, o suprimento do consentimento, mais suscitando a incompetência internacional dos tribunais portugueses para tramitar e conhecer o presente processo, nos seguintes termos:
«(…)
Acresce que a indicação da residência da requerida mostra-se essencial para a fixação da competência do Tribunal e, no tipo de acção em causa, para a tramitação deste processo que prevê, entre o mais, a audição pessoal e directa da beneficiária (art.º 897.º, n.º2 do CPC), o que pressupõe que a mesma esteja localizável, sob pena de impossibilidade da lide.
Ora, face ao requerimento apresentado pela requerente é manifesto que a requerida não tinha, à data da propositura da acção e em concreto - que é, no nosso entendimento, o que releva, atenta a tramitação deste tipo de processo -, a sua residência fixada na rua ..., freguesia ..., concelho ..., tudo apontando no sentido, se atentarmos na informação prestada pela requerente, de que a mesma estará em França.
E assim sendo - uma vez que se considera que esta acção não tem por objecto apurar o paradeiro da requerida -, sempre o Tribunal, atento o disposto no art.º 62.º do CPC, será internacionalmente incompetente, excepção que se deixa arguida para os devidos e legais efeitos».
Em 26-12-2024, a requerente apresentou petição inicial aperfeiçoada, com cumulação de suprimento de autorização, relativamente à beneficiária.
Após, foi proferida decisão, de 27-12-2024, na qual o Tribunal recorrido julgo procedente, por verificada, a exceção de incompetência absoluta, por violação das regras de competência internacional dos tribunais portugueses, e, consequentemente, absolveu a requerida da instância, com custas pela requerente.
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Quanto à invocada excepção de incompetência internacional deste Juízo Local Cível, dir-se-á, em primeiro lugar, que a competência do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir), independentemente da procedência ou do acerto substantivo[1]. Em segundo lugar, convém atentar para o que dispõe o artigo 59º, do Código de Processo Civil: “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º”. Ou seja, a competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeiro lugar, do que resultar de convenções internacionais ou dos regulamentos europeus sobre a matéria (que prevalecem sobre o direito interno dos respectivos Estados Contratantes/Outorgantes ou Estados-Membros) e, só depois, da integração de algum dos segmentos normativos dos artigos 62º (factores de atribuição da competência internacional) e 63º (competência exclusiva dos tribunais portugueses), sem prejuízo da que possa emergir de pacto atributivo de jurisdição, nos termos do artigo 94º”. Portugal ratificou a Convenção de Haia, nº 35, de 2000, relativa à protecção internacional de adultos, que entrou em vigor na ordem internacional em 1 de Janeiro de 2009. A Convenção referida foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 52/14, de 19 de Junho, ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 44/2014, de 19 de Junho, e publicada no Diário da República, 1ª Série, nº 116, de 19 de Junho. O Aviso nº 41/2018, de 12.04.2018, tornou público que a República Portuguesa depositou junto do Secretariado Permanente da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado o seu instrumento de ratificação à Convenção, pelo que a Convenção entrou em vigor na ordem jurídica portuguesa a 01.07.2018. Nos termos do disposto no artigo 5º, nº 1, da Convenção, “as autoridades judiciárias ou administrativas do Estado Contratante onde o adulto tem a sua residência habitual são competentes para adoptar medidas tendentes à protecção da pessoa ou dos bens do adulto”. E nos termos do nº 2, “em caso de mudança de residência habitual do adulto para outro Estado Contratante, são competentes as autoridades do Estado da nova residência habitual”. No nosso caso, de acordo com a estruturação que a requerente empresta à factualidade articulada temos que a residência habitual da requerida deixou de ser, desde há quatro meses, no concelho ..., área desta Comarca e deste Juízo Local Cível, passando a ser em 156 Rue ..., ... França. Segundo o artigo 96º, do Código de Processo Civil, “determinam a incompetência absoluta do tribunal: (…) a) A infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional”. Nos termos do disposto no artigo 98º, do Código de Processo Civil, “se a incompetência for arguida antes de ser proferido o despacho saneador, pode conhecer-se dela imediatamente”. E de acordo com o disposto no artigo 99º, nº1, do citado diploma legal, “a verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar. Em face do exposto, e nos termos do disposto nos artigos 5º, da Convenção de Haia, de 13 de Janeiro de 2000, relativa à protecção internacional de adultos, 59º, 96º, 97º, 98, 99º e 278º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, julgo procedente, por verificada, a excepção de incompetência absoluta deste Juízo Local Cível, por violação das regras de competência internacional dos tribunais portugueses, e, consequentemente, absolvo a requerida da instância. Custas pela requerente. Notifique».
Inconformada com tal decisão, dela recorre a requerente, pugnando pela revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que julgue os tribunais portugueses competentes para a tramitação dos autos.
Termina as alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:
«I. A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados.
II. Entende a Recorrente que as suas legítimas pretensões e os interesses da beneficiária saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.
III. O ora Recorrente não se conforma com a sentença proferida pelo Tribunal recorrido, entendendo que a mesma padece de vícios, no que à decisão proferida sobre a sua incompetência internacional, já que não restam dúvidas da competência internacional do tribunal recorrido para o julgamento do presente litígio
IV. A beneficiária é cidadã portuguesa, tem aqui o seu domicílio e os seus familiares mais próximos, pelo que o seu centro de interesses é em Portugal.
V. Deve ser irrelevante a situação temporária da beneficiária estar com a filha DD, por ter sido subtraída à força da sua residência e sem qualquer justificação ou consentimento.
VI. Mas, a necessidade de efetiva tutela jurídica, ao abrigo do princípio da necessidade contido no artigo 62.º, alínea c), do Código de Processo Civil, também se cumpre se as circunstâncias do caso, além de revelarem forte conexão real ou pessoal com a ordem jurídica portuguesa, evidenciarem que o direito exercendo, a não se admitir que seja atuado perante os tribunais Portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício.
VII. Ora, in casu, essa praticabilidade e exercício está irremediavelmente comprometida, com a decisão agora proferida e de que se recorre.
VIII. O princípio da necessidade vale, assim, como salvaguarda para tais situações funcionando como alargamento ou extensão excecional da competência internacional dos tribunais Portugueses.
IX. Por outro lado, é evidente que o tribunal do lugar onde a beneficiária tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto do seu estado sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.
X. A beneficiária tem toda a sua vida organizada e estabilizada em Portugal, pelo que não tem qualquer nexo estreito com outro país, muito menos com França.
XI. Sem necessidade de mais considerações, estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção.
XII. Teria, assim, de improceder a deduzida exceção de incompetência internacional do Tribunal a quo, aduzida pelo Ministério Público, por verificação dos elementos de conexão constantes das alíneas a), b) e c) do artigo 62º do Código de Processo Civil.
XIII. Face ao que antecede, a sentença em crise violou o disposto no artigo 62.º, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Civil e ainda os artigos 70º Código Civil».
O Ministério Público apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação de Guimarães, confirmando-se a admissão do recurso nos mesmos termos.
II. Delimitação do objeto do recurso
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) -, importa aferir se, atenta a natureza da relação material controvertida, a competência internacional para decidir o presente processo de acompanhamento de maior instaurado em relação à beneficiária BB, nascida em ../../1938, casada, portadora do documento de identificação civil n.º ...03 ..., válido até 29-07-2029, número de identificação fiscal n.º ...23, NISS ...19, n.º utente de saúde ...17, deve ser deferida aos tribunais portugueses como sustenta a requerente/apelante, ou se o Tribunal recorrido é internacionalmente incompetente para apreciar o pedido formulado, conforme entendeu o Tribunal a quo na decisão recorrida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
III. Fundamentação
1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra.
2. Apreciação sobre o objeto do recurso.
Na presente apelação importa apreciar e decidir se, atenta a natureza da relação material controvertida, a competência internacional para decidir o presente processo de acompanhamento de maior instaurado em relação à beneficiária BB, deve ser deferida aos tribunais portugueses como sustenta a requerente/apelante, ou se o Tribunal recorrido é internacionalmente incompetente para apreciar o pedido formulado, conforme decidido no despacho impugnado.
Como determina o artigo 37.º, n.º 2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26-08), a lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, decorrendo do artigo 38.º, n.º 1 do mesmo diploma legal que a competência se fixa no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
A competência internacional dos tribunais portugueses encontra-se regulada no artigo 59.º do CPC, ao prever que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.
Deste modo, em face do disposto no artigo 59.º do CPC, importa aferir, em primeiro lugar, se a situação em análise está abrangida por qualquer regulamento europeu ou outro instrumento internacional que vincule o Estado Português, caso em que as respetivas disposições prevalecerão no âmbito dos critérios determinativos da competência internacional - cf. ainda o disposto no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.
Ora, como - bem - salientou o Tribunal a quo na fundamentação da decisão recorrida, «Portugal ratificou a Convenção de Haia, nº 35, de 2000, relativa à protecção internacional de adultos, que entrou em vigor na ordem internacional em 1 de Janeiro de 2009. A Convenção referida foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 52/14, de 19 de Junho, ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 44/2014, de 19 de Junho, e publicada no Diário da República, 1ª Série, nº 116, de 19 de Junho. O Aviso nº 41/2018, de 12.04.2018, tornou público que a República Portuguesa depositou junto do Secretariado Permanente da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado o seu instrumento de ratificação à Convenção, pelo que a Convenção entrou em vigor na ordem jurídica portuguesa a 01.07.2018. Nos termos do disposto no artigo 5º, nº 1, da Convenção, “as autoridades judiciárias ou administrativas do Estado Contratante onde o adulto tem a sua residência habitual são competentes para adoptar medidas tendentes à protecção da pessoa ou dos bens do adulto”. E nos termos do nº 2, “em caso de mudança de residência habitual do adulto para outro Estado Contratante, são competentes as autoridades do Estado da nova residência habitual”.
No caso, a decisão recorrida entendeu que, de acordo com a estruturação que a requerente empresta à factualidade articulada temos que a residência habitual da requerida deixou de ser, desde há quatro meses, no concelho ..., área desta Comarca e deste Juízo Local Cível, passando a ser em 156 Rue ..., ... França.
A recorrente insurge-se contra o assim decidido, sustentando que face ao alegado na petição inicial poderá a beneficiária estar em França, mas, não é cem por cento certo que assim o seja, pois não houve nenhuma confirmação. Alega que, aquando da entrada da ação, em 16-10-2024, a beneficiária encontrava-se temporariamente com a sua filha DD, provavelmente em França, mas, a residência da beneficiária sempre foi, como é atualmente na rua ..., freguesia ..., concelho ..., sendo que o conceito autónomo de “residência habitual ou permanente” envolve elementos objetivos e subjetivos deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponda ao local onde a beneficiária tem organizada a sua vida familiar, social, com carácter de estabilidade e duração, demonstrativas da integração na sociedade local, com carácter de permanência, que é e sempre foi a morada indicada na petição inicial. A beneficiária é cidadã portuguesa, tem o seu domicílio em Portugal e os seus familiares mais próximos, pelo que o seu centro de interesses é em Portugal, sendo irrelevante a situação temporária da beneficiária, pois, segundo alega, aquela foi subtraída à força da sua residência e sem qualquer justificação ou consentimento.
Apreciando, importa começar por salientar que a Convenção de Haia, nº 35, de 2000, relativa à proteção internacional de adultos (doravante CH2000) foi ratificada por ambos os Estados (Portugal e França), aplicando-se à proteção, em situações de caráter internacional, de adultos que, devido a uma deficiência ou insuficiência das suas capacidades pessoais, não estão em condições de defender os seus interesses (artigo 1.º), podendo incidir sobre a determinação da incapacidade e a instituição de um regime de proteção para o adulto [artigo 3.º, al. a)], a designação e as funções de qualquer pessoa ou organismo encarregados da pessoa ou dos bens do adulto, bem como da sua representação ou assistência [artigo 3.º, al. d)], a administração, conservação ou alienação dos bens do adulto [artigo 3.º, al. f)], a autorização de uma intervenção específica para proteção da pessoa ou dos bens do adulto [artigo 3.º, al. g)] e prevendo regras uniformes que determinam quais as autoridades nacionais competentes para tomar as medidas de proteção necessárias.
Neste domínio, a CH2000 atribui competência para adotar medidas tendentes à proteção da pessoa ou dos bens do adulto, em primeiro lugar, às autoridades judiciárias ou administrativas do Estado Contratante onde o adulto tem a sua residência habitual (artigo 5.º, n.º 1), mas reconhece igualmente a competência convergente, embora subsidiária e condicional, das autoridades do Estado do qual o adulto é nacional (artigo 7.º). Igualmente aceites são a competência das autoridades do Estado em que se situam os bens do adulto para tomar medidas de proteção relativas a esses bens (artigo 9.º), assim como a competência do Estado em cujo território se encontre o adulto (artigos 10.º e 11.º) ou os bens pertencentes ao adulto para tomar medidas de urgência (artigo 10.º) ou medidas temporárias com eficácia territorial restringida relativamente à proteção da pessoa (artigo 11.º), bem como a possibilidade de as autoridades competentes principais solicitarem às autoridades de outros Estados que adotem medidas de proteção, quando tal for do interesse do adulto (artigo 8.º).
Ademais, tal como se prevê no n.º 2 do artigo 5.º da CH2000, em caso de mudança da residência habitual do adulto para outro Estado Contratante, são competentes as autoridades do Estado da nova residência habitual.
Ora, a residência habitual do adulto, «[e]nquanto centro de vida do interessado, constitui um conceito puramente factual e funcional, a concretizar a partir da situação concreta do interessado. Devendo partir-se, em primeiro lugar, de elementos objectivos temperados pela vontade (actual ou prospectiva) do interessado, que exteriorizem uma certa permanência ou tendência em determinado território como determinante para aferir qual a autoridade que melhor colocada se encontra para assegurar uma intervenção adequada aos interesses do adulto. Ter-se-á que ter em conta, caso a caso, se o local onde se encontra o incapaz corresponde ou não ao centro efectivo e estável da vida pessoal do indivíduo, sendo por isso um critério de natureza mais qualitativa do que quantitativa»[2].
Por outro lado, importa ainda considerar que a competência internacional dos tribunais portugueses afere-se pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida[3].
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-02-2023, antes referenciado, «em sede de aferição dos pressupostos para a atribuição da competência, não há lugar a qualquer apreciação sobre o mérito da causa nem tão pouco sobre a (in)suficiência do que tenha sido alegado pelo A., importa sim atentar aos contornos factuais e jurídicos da pretensão deduzida na estrita medida do necessário para aferir da existência do fator legal de atribuição de competência dos tribunais portugueses para o conhecimento da causa».
Ou seja, a (in)competência do tribunal é aferida em função dos factos alegados na petição inicial, considerando o pedido do autor, não interessando quaisquer outros pressupostos processuais, ou os termos da contestação ou oposição deduzida[4], por isso, sem necessidade de produção de prova sobre os correspondentes factos.
Ponderando o que vem alegado na petição inicial, incluindo o que resulta das circunstâncias alegadas em sede de esclarecimentos ao Tribunal sobre o motivo pelo qual desconhece onde a requerida reside (critério essencial para determinar a competência territorial do Tribunal), temos que «a requerida vivia com o seu marido CC, até ../../2024, na sua residência em Moreira ..., concelho ..., na rua ..., ..., nesse dia a filha mais nova, DD sem que qualquer motivo aparente, vinda de França onde reside, deslocou-se à residência dos pais, acompanhada de mais duas pessoas e levou a requerida àforça e em pijama, não mais dando notícias, pelo que a requerente presume que a requerida esteja atualmente a viver com a filha mais nova, em 156 Rue ..., ... França. A requerente declarou e assegura que é a pessoa indicada para o cargo de acompanhante, pela razão que era quem cuidava dos pais, nomeadamente da requerida até à data de 14 de abril 2024, sendo que, do pai continua a cuidar até aos dias hoje».
Note-se, ainda que, conforme vem alegado no requerimento inicial, a ora requerente, AA, filha da requerida, foi quem sempre prestou apoio e cuidado à beneficiária nas suas atividades da vida diária, nomeadamente quem lhe confecionava as refeições, a alimenta, procede à sua higiene pessoal e efetua as compras de alimentação e medicação necessárias, assegurando o seu bem-estar, sendo a beneficiária portadora do documento de identificação civil n.º ...03 ..., válido até 29-07-2029, número de identificação fiscal n.º ...23, NISS ...19, n.º utente de saúde ...17 e casada comCC desde ../../1958.
Atendendo então ao alegado pela requerente, sem esquecer que a requerida é casada desde ../../1958 e que, de acordo com o que decorre dos autos, a casa de morada de família, na qual permanece o marido, se situa em Portugal, afigura-se-nos indiscutível que a requerida/beneficiária tem o seu centro de vida em Portugal, correspondendo a sua residência neste país ao local onde se encontra organizada a sua vida individual, familiar e social em termos de estabilidade e permanência.
Note-se que, de acordo com a definição de casa de morada de família, que consta do artigo 10.º, n.º 3, da Lei n.º 83/19, de 3-09 (Lei de Bases da Habitação), a casa de morada de família é aquela onde, de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges ou unidos de facto, acrescentando o n.º 4 do mesmo preceito que a casa de morada de família goza de especial proteção legal.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-02-2022[5], «[a] casa de morada de família é aquela onde de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges (ou unidos de facto), conforme resulta do disposto no art.º 1672.º do CC, e mantém a sua relevância mesmo após a dissolução do casamento ou união de facto».
Atendendo então ao objeto da ação, na configuração dada pela requerente na petição inicial, entendemos ser de concluir que a requerida/beneficiária tem a sua residência habitual em Portugal, na rua ..., freguesia ..., ..., concelho ..., apesar de se encontrar previsivelmente em França, com a filha mais nova, desde meados de abril de 2024.
Assim sendo, considerando o critério prioritário de atribuição de competência para adoção de medidas tendentes à proteção da pessoa ou dos bens do adulto, às autoridades judiciárias do Estado Contratante onde o adulto tem a sua residência habitual (artigo 5.º, n.º 1 da CH2000), resta concluir que a presente ação especial para acompanhamento de maior podia ser instaurada em Portugal.
Nestes termos e com os fundamentos expostos, diversamente do decidido pelo Tribunal recorrido, importa julgar improcedente a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses.
Procedem, assim, as conclusões da apelação, impondo-se revogar a decisão recorrida e, em consequência, declarar o Tribunal recorrido competente em razão da nacionalidade para apreciar o pedido formulado na ação em referência.
IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, julgando improcedente a exceção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses, declarando-se o Tribunal recorrido competente em razão da nacionalidade para apreciar o pedido formulado na ação em referência.
Sem custas, por isenção - artigo 4.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, al. h), do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
Guimarães, 27 de fevereiro de 2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
Maria dos Anos Melo Nogueira (Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
Afonso Cabral de Andrade (Juiz Desembargador - 2.º adjunto)
[1] Em nota de rodapé 1, consta o seguinte: «Cfr., neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2022, relatado por Fernando Baptista, in www.dgsi.pt.» [2]Cf. Geraldo Rocha Ribeiro, A Convenção da Haia de 2000, relativa à proteção internacional de adultos: a experiência portuguesa na sua aplicação (regime Jurídico do Maior Acompanhado), Julgar Online, junho de 2022, pgs. 10-11, acessível em https://julgar.pt. [3]Cf. por todos, os Acs. do STJ de 15-02-2023 (relatora: Ana Resende), p. 4239/20.4T8STB.E1. S1; de 07-06-2022 (relator: Fernando Baptista), p. 24974/19.9T8LSB.L1. S1, acessíveis em www.dgsi.pt. [4]Cf. o Ac. TRP de 04-05-2023 (relatora: Isoleta de Almeida Costa), p. 7962/21.2T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt. [5] Relatora Maria Domingas Simões, p. 1747/14.0T8LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt.